A contra-reforma da Previdência Social sob o governo Cardoso
1. A “contra-reforma” da Previdência Social sob o governo Cardoso: políticas
de dominação de classe
Guízei Brígida Oliveira (Graduanda Ciências Sociais/UEL)
guiballet@hotmail.com
A contra-reforma previdenciária e demais alterações no âmbito da Previdência
Social, durante os dois mandatos do governo Fernando Henrique Cardoso (1995-1998 e
1999-2002), inserem-se em um projeto mais amplo de contra-reforma estatal, que por sua
vez visa a adequação do país aos padrões internacionais favoráveis ao acúmulo e
reprodução do capital por meio de medidas liberalizantes. Assim, os direitos sociais
garantidos pela Constituição, sofreram uma mercantilização, que foi legitimada pelo
discurso ideológico do Estado que se apresentava (e se apresenta) enquanto garantidor
do “bem-comum”. Na prática presenciamos a individualização dos sujeitos e a
reafirmação de um Estado de classes.
Nesta pesquisa pretendemos investigar a “reforma” da Previdência Social brasileira,
durante os dois mandatos do governo Cardoso (1995-1998 e 1999 e 2003), sob o
contexto da implementação das políticas neoliberais no Brasil. Dado o seu caráter
retrógrado para os trabalhadores, consideramos a “reforma” como verdadeira contra-
reforma. Propomos investigar, de um lado, o favorecimento da “reforma” previdenciária
em favor de determinadas frações burguesas ligadas ao capital financeiro (nacional,
internacional e associado) e, de outro, o desfavorecimento às classes populares através
da retirada de direitos de caráter universal e conquistados historicamente.
Este trabalho tem como objetivo geral entender, por meio da análise da “reforma”
previdenciária, como o Estado brasileiro se submeteu às imposições do capital financeiro
(internacional, associado e nacional) de caráter monopolista. Em termos específicos, é
possível observar a perda de direitos sociais até então consagrados historicamente.
Nesse sentido, permitirá delimitar o quanto as políticas liberalizantes praticadas pelo
governo Cardoso foram prejudiciais às classes trabalhadoras em geral e favoráveis à
concentração e centralização de capital às frações vinculadas ao capital financeiro
nacional, associado e internacional.
Nossas principais fontes de investigação serão: a análise da legislação
previdenciária, medidas provisórias, anais da câmara, consulta ao material bibliográfico
que debateu (e debate) o tema, as discussões de caráter conceitual e a consulta a
revistas e jornais de circulação nacional. O diálogo com teorias do Serviço Social se faz
presente, uma vez que a Previdência Social faz parte do tripé da Seguridade Social no
Brasil (Saúde, Assistência Social e Previdência Social). Por fim, a consulta aos dados e
estatísticas oficiais serão feitas principalmente por meio eletrônico, através dos sites
governamentais, especialmente o da Previdência Social. Merecerão atenção também os
sites de bancos e organizações que oferecem serviços no âmbito da Previdência Privada,
bem como os de sindicatos e de partidos políticos.
Como as “reformas” do Estado brasileiro se inserem no movimento geral de
concentração e centralização do capital, pretendemos demonstrar como alguns grupos
privados – capital financeiro nacional, internacional e associado – se beneficiaram direta
ou indiretamente delas. Por outro lado, demonstrar como o proletariado brasileiro foi
prejudicado com elas. Não só isso: procuraremos demonstrar que a supressão de direitos
sociais historicamente conquistados afetou a mobilização organizada do proletariado na
luta por novos direitos, ou seja, a democracia brasileira não tem significado o “direito a ter
direitos”.
2. A “contra-reforma” da previdência social sob o governo Cardoso:
políticas de dominação de classe*
Guízei Brígida de Oliveira**
GT1: Política e economia na América Latina
Resumo:
A contra-reforma previdenciária, durante os dois mandatos do governo Fernando
Henrique Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), inserem-se em um projeto mais amplo de
contra-reforma estatal, que por sua vez visava à adequação do país aos padrões
internacionais favoráveis ao acúmulo e reprodução do capital, por meio de medidas
liberalizantes. Nesse sentido, os direitos sociais, garantidos pela Constituição, sofreram
uma mercantilização, que foi legitimada pelo discurso ideológico do Estado que se
apresentava (e apresenta) enquanto garantidor do “bem-comum”. Na prática
presenciamos a individualização dos sujeitos e reafirmação de um Estado de classes.
Neste artigo pretendemos discutir a “reforma”1 da Previdência Social
brasileira ocorrida durante o Governo Cardoso (1995-1998 e 1999-2002), sob a
implantação das políticas neoliberais no Brasil, portanto, em relação direta com o
Estado, entendido enquanto uma instituição complexa a serviço das classes
dominantes. Propomos discutir, de um lado, o favorecimento da “reforma”
previdenciária em favor de determinadas frações burguesas ligadas ao capital
financeiro (nacional, internacional e associado) e, de outro, o desfavorecimento às
classes populares através da retirada de direitos de caráter universal e
conquistados historicamente.
O neoliberalismo tem suas raízes no pós II Guerra Mundial, na região da
Europa e da América do Norte, contestava a intervenção estatal na economia e os
gastos com o Estado de bem-estar social. De acordo com Petras, “as políticas
neoliberais podem ser resumidas em cinco metas essenciais: estabilização (de
*
Este artigo é uma versão resumida e modificada de nosso projeto de iniciação científica,
recentemente aprovado e, portanto, em sua fase inicial de investigação. Portanto, as discussões
empreendidas aqui não têm caráter conclusivo, mas tão-somente exploratórios.
**
Graduanda em Ciências Sociais da Universidade Estadual de Londrina (UEL) e integrante do
Grupo de Estudos de Política da América Latina (GEPAL).
1
Ao longo do texto, toda vez que nos referimos, direta ou indiretamente, à “reforma”, na verdade
estamos considerando-a como “contra-reforma”, dado o seu caráter retrógrado para as classes
trabalhadoras. O termo será usado no singular, por constituir um conjunto de mudanças que
alteraram o sistema previdenciário brasileiro, a despeito de não terem ocorrido de uma única vez.
3. preços e das contas nacionais); privatização (dos meios de produção e das
empresas estatais); liberalização (do comércio e do fluxo de capitais);
desregulamentação (da atividade privada) e austeridade fiscal (restrições aos
gastos públicos)” (2000, p. 18).
Na década de 1970, o mundo capitalista entra em crise (recessão econômica,
alto grau de inflação, baixo crescimento, queda nas taxas médias de lucro, etc.),
apresentando-se como momento fértil para o fortalecimento da ideologia neoliberal,
ao se legitimar como a única solução para superar a crise.
As bases da crise, segundo teóricos liberais como Hayek, estavam nas
pressões exercidas pelos sindicatos e movimento operário de maneira geral sobre o
aumento de salários e maiores gastos no âmbito social. Para solucionar a crise que
atingia as economias de mercado, o Estado deveria se manter forte para
desarticular os sindicatos e controlar o dinheiro, porém deveria diminuir ao máximo
os gastos sociais e intervir minimamente na economia. Os governos deveriam ter
como fundamento a estabilidade monetária, a ser adquirida, entre outras medidas,
por reformas fiscais e trabalhistas. Com isso, “os conglomerados exportadores e
estrangeiros substituem os industriais nacionais, funcionários públicos e sindicatos
como beneficiários e controladores, ou seja, o mercado internacional substitui o
nacional; a concentração de renda substitui a distribuição mais eqüitativa; os
serviços privados substituem os públicos; a riqueza privada acompanha o
empobrecimento do bem-estar social, o ‘livre mercado’ não é ‘livre’ para a maioria
do povo, nem se baseia exclusivamente no mercado” (PETRAS, 2000, p.26).
Entendemos que as medidas neoliberais são de caráter retrógrado, pois
propõem a supressão de direitos sociais e trabalhistas já adquiridos. Num plano
puramente ideológico, o receituário neoliberal defende que as “reformas” servem
para livrar o Estado das constantes crises fiscais, quando sabemos que elas têm
servido para fortalecer a acumulação de capital nas mãos de monopólios nacionais
e internacionais. Nesse sentido, ao suprimirem direitos sociais e trabalhistas de
grande parcela da população, consideramos que elas têm um caráter de contra-
reforma. O grau de retrocesso social é tamanho que modificaram as lutas sociais,
4. que têm se empenhado na preservação e não na obtenção de novos direitos. Nesse
sentido, a democracia não tem significado o “direito a ter direitos”, mas o contrário.
A despeito de correntemente muitos intelectuais, inclusive críticos do projeto
neoliberal como um todo, não questionarem o uso ideológico do termo “reforma”,
preferimos considerá-la como contra-reforma, ou seja, as “reformas” operadas no
Brasil, principalmente dos anos de 1990 para cá, tiveram (e têm) um caráter
retrógrado que têm significado, para os trabalhadores, a perda de direitos que, no
discurso neoliberal aparecem como privilégios.
As “reformas” neoliberais começam a ser implementadas com a eleição de
Thatcher na Inglaterra em 1979 e Reagan nos EUA em 1980, seguidos por outros
países europeus, inclusive os social-democratas e os que se autoproclamavam de
esquerda. Com a queda do chamado “socialismo real”, tanto na Europa Oriental
quanto na União Soviética, o neoliberalismo avançou por praticamente todo o
continente europeu. Na América Latina, as políticas neoliberais começaram a ser
impostas pelo ditador Augusto Pinochet nos anos de 1970, quando obteve a
simpatia de intelectuais do naipe de Hayek. Mas não só: em 1976 a Argentina passa
a viver sob uma das ditaduras mais violentas da região e os militares iniciam um
processo de liberalização econômica sem precedentes na história daquele país.
No Brasil, a implementação do projeto neoliberal começou no final dos anos
de 1980 e início da década de 1990, com a eleição de Collor, mas a concretização
ocorre no fim do governo Itamar Franco com o Plano Real e segue de maneira
enfática no governo Cardoso.
Com o processo de “redemocratização” brasileiro, a partir da constituinte de
1988, a economia nacional se abriu para a dominação do capital financeiro
internacional, submetendo-se às pressões dos órgãos representativos deste capital
- como o Banco Mundial e o FMI – e dos agentes econômicos que representam
essa parcela capitalista.
Segundo Saes, o Estado brasileiro, nos governos Collor e FHC, “não mais se
pauta por qualquer projeto de desenvolvimento nacional. Polarizados pelas metas
do equilíbrio monetário e do equilíbrio orçamentário, os condutores da política
estatal dos anos 90 abrem grandes oportunidades de ganho ao capital financeiro
5. internacional; e, em contrapartida, atacam o setor público, promovem a
desnacionalização e a desindustrialização da economia brasileira, e assumem
portanto, a iniciativa da destruição dos grupos econômicos nacionais” (2001, p.104).
Em nome da governabilidade e impulsionado por instituições financeiras
multilaterais, uma reforma do Estado seria necessária para que se alcançasse uma
nova etapa de crescimento econômico. Assim, o “Consenso de Washington” foi
organizado pelo FMI e pelo Banco Mundial (entre outras instituições), em 1989, de
acordo com seus instrumentos de poder fizeram exigências acerca de políticas de
ajuste estrutural para os países latino americanos. De acordo com SILVA, essas
instituições aconselharam “os países a realizarem uma rigorosa disciplina fiscal,
privatização, redução dos gastos públicos, reformas (tributária, previdenciária, etc.),
liberalização comercial, desregulação da economia e flexibilização das relações
trabalhistas, dentre outras” (2003, p.68).
Iniciando sua ofensiva neoliberal, o governo Cardoso logo no primeiro ano do
seu primeiro mandato (1995), criou o Projeto de Emenda Constitucional n° 173, que
tratava da reforma do aparelho do Estado brasileiro. Alicerçado na popularidade
adquirida nas urnas, este governo organizou profundas mudanças nos aparelhos e
nas políticas estatais. Do ponto de vista ideológico, tratou os direitos sociais como
privilégios e barreira para o desenvolvimento da economia, flexibilizou a legislação
do trabalho, diminui os gastos públicos, privatizou as empresas estatais, abriu o
mercado para investimentos transnacionais, desregulamentou a economia, entre
outras decisões.
Essas medidas eram justificadas de acordo com o modelo que o Estado
brasileiro havia assumido nas últimas décadas, segundo o qual a crise econômica
era resultado de uma grande intervenção estatal na economia e os altos gastos
sociais. O governo apontou quatro problemas que o Estado deveria solucionar: “o
tamanho do Estado; a necessidade de redefinição do papel regulador do Estado; a
recuperação da governança; a governabilidade” (SILVA, 2003, p. 80).
O governo Cardoso apresentava o Estado como sendo social-liberal, com o
discurso de que este modelo seria o ideal para deixar o país mais competitivo sem,
contudo, abandonar a área social. Todavia se omite o fato de que a crise fiscal se
6. origina na utilização dos recursos estatais de acordo com a acumulação e
ampliação do capital, que tem por finalidade a manutenção do lucro do setor
privado. Para assegurar a condição de acumulação das classes dominantes e se
manter legítimo, o Estado se coloca como o reformador de um modelo que estaria
encaminhando para o colapso, não permitindo que se explicite os mecanismos nos
quais a acumulação se reproduz.
O governo Cardoso seguindo seu projeto de “reforma” do Estado, adota
políticas de mercado para as ações estatais, distinguindo a formulação das
políticas, de sua execução. O Estado agiria mediante três instituições: as secretarias
de formulação das políticas sociais que agem de maneira estratégica acerca das
decisões do governo, juntamente com os ministros e o presidente; as agências
executivas têm a função de executar as decisões tomadas pelo governo e as
agências reguladoras que têm o papel de definir preços de mercado.
Nesse sentido, o Estado passa a financiar os serviços sociais, mas são
prestados por outras instituições mediante a publicização, ou seja, a criação de
organizações sociais que receberiam recursos públicos para gerenciar e executar
serviços através de grupos privados sem fins lucrativos, todavia a sociedade deve
custear parte desses serviços (SILVA, 2003, p. 87). Essa transferência do público
para o privado desresponsabiliza o Estado pelos serviços prestados, não se
sujeitam aos controles formais por parte dele, ficando sua avaliação vinculada
apenas aos resultados; além de serem normatizadas pelo direito privado. A
terceirização é outro fator que contribui para a mercantilização dos direitos sociais,
uma vez que o Estado desloca, via licitação pública e contratos, para o setor privado
serviços que antes ficavam sob sua responsabilidade.
Essas medidas fazem aumentar a concorrência entre as instituições privadas
por recursos públicos e transformam os serviços sociais em mercadorias, que se
submetem às demandas de oferta e procura de acordo com o mercado e restringem
o seu acesso àqueles que possuem recursos financeiros para adquiri-los. Esses
serviços passam a integrar a esfera da circulação – uma vez que se tornaram
mercadorias -, na qual a troca é feita como de equivalentes, desconsiderando as
bases materiais onde a desigualdade entre as classes se funda.
7. A competição entre as instituições tende à monopolização dos serviços em
um número reduzido de organizações que possuem capital e estrutura, que acabam
por estabelecer as condições de compra e oferta dos serviços; mesmo com baixo
grau de escolha entre as prestadoras de serviço, os sujeitos passam a ser
responsáveis por tal escolha, com isso o Estado repassa a responsabilidade do
serviço para o consumidor, se eximindo da qualidade acerca dos serviços.
Ocorre uma deterioração no âmbito da cidadania: os sujeitos passam de
cidadãos para consumidores. De acordo com Marshall o cidadão deve participar
integralmente na comunidade política e ter acesso ao bem-estar e segurança social
advindos dessa participação. Isso se daria por meio dos direitos adquiridos (civis,
políticos e sociais) e através de instituições que garantam o exercício desses
direitos. Porém, com a mercantilização dos direitos sociais, o cidadão passa a
pertencer a uma outra categoria, a de clientes ou de consumidores; buscando esses
“produtos” no mercado privado e não mais como uma política exercida pelo Estado.
Seguindo esse contexto, a Previdência Social considerada como um grave
problema nacional, que exigia uma “reforma” como condição para o ajuste fiscal e a
estabilização da economia. As propostas formuladas seguem os “aconselhamentos”
dos órgãos internacionais (FMI e Banco Mundial): a previdência deveria passar por
uma “reforma estrutural”, de maneira que liberasse o Estado de encargos
restringindo o acesso aos benefícios, como a aposentadoria e as pensões, e
fortalecesse o mercado de seguros privados e previdência complementar. Assim, foi
encaminhado ao Congresso Nacional, em 1995, o Projeto de Emenda
Constitucional que propôs a “reforma” da Previdência Social Pública e privada.
Segundo Duarte (apud Mello), o contexto para a “reforma” era favorável ao
governo Fernando Henrique Cardoso, pois estava “balizado por três fatores: a
eleição do Presidente da República, através da coligação PFL/PSDB, em primeiro
turno; o êxito do Plano Real, que permitiu inicialmente um boom no consumo aliado
à estabilidade de preços e que conferiu grande legitimidade e autoconfiança ao
governo; a inexistência do constrangimento eleitoral que inibisse o apoio de
parlamentares a propostas impopulares” (2003, p. 131, grifos da autora).
8. O texto final, aprovado apenas no final do ano de 1998 (15/12), após três
anos e dez meses de tramitação, significou uma perda para o governo Cardoso, que
não “conseguiu transformar a Previdência em seguro privado, excluindo-a da
concepção de Seguridade Social; não se aprovou supressão do teto de 10 salários
mínimos para a Previdência Social; não se aprovou uma nova fórmula para a
aposentadoria que combinasse idade e tempo de contribuição, entre outros pontos”
(DUARTE apud Mello, 2003, p. 133).
Apesar de não ter conseguido aprovar a lei em sua versão original, as várias
medidas aprovadas significaram perdas para os trabalhadores, em contraposição ao
fortalecimento dos setores privados.
O sistema previdenciário brasileiro passou a se estruturar mediante quatro
regimes: o primeiro é o Regime Geral da Previdência (RGPS) que se destina aos
segurados que se encontram no interior do setor privado; o segundo é o Regime
Próprio da Previdência dos Setores Civis (RPPS) que abrange a cobertura dos
servidores dos municípios, estados e da União; o terceiro é o Regime dos Militares
das Forças Armadas e o quarto é o Regime de Previdência Privada que possui um
caráter complementar e voluntário, que se organiza de maneira autônoma à
Previdência Social Pública. Esses regimes estão divididos em dois grupos, o da
previdência social de caráter estatal (que inclui os três primeiros regimes) e o da
previdência complementar de caráter privado.
Este último grupo, por sua vez se divide em outros dois tipos de entidades
que são as qualificadas como fechadas, por não possuírem fins lucrativos e as
abertas que podem ou não ter fins lucrativos. As primeiras têm sua fiscalização
vinculada à Secretaria de Previdência Complementar do Ministério da Previdência e
Assistência Social e as segundas à Superintendência de Seguros Privados do
Ministério da Fazenda.
O Estado estabeleceu a possibilidade dos governos (municipais, estaduais e
da União) aderirem ao sistema complementar privado, mediante o estabelecimento
de um teto para a aposentadoria de seus servidores, ou seja, aos servidores
públicos fica facultada o acesso à previdência complementar, desde que os
governos instituam um teto para a aposentadoria. Esta medida atomiza os
9. servidores, que passam a ser responsáveis em suas individualidades por suas
aposentadorias, eximindo o Estado de suas responsabilidades constitucionais de
assegurar igualdade de condição para o conjunto da sociedade. Mantém assim as
desigualdades presentes no interior da vida social, uma vez que aqueles que podem
contribuir para os sistemas complementares privados terão acesso a uma
aposentadoria que assegure suas condições materiais de existência; já aqueles que
não têm a possibilidade de tal contribuição, permanecerão em suas atividades, ou
ainda em atividades extras, por mais tempo, alterando as condições do mercado de
trabalho; inclusive contribuindo para o aumento das taxas de desemprego. Além de,
no futuro, terem que depender das medidas de assistência social do Estado, que se
mostram ineficientes e onerosas.
A “reforma” previdenciária desconstitucionalizou os critérios que serviam de
base para o cálculo dos benefícios referentes à aposentadoria, com isso possibilitou
outra alteração mediante Lei Complementar, que ocorreu em 1999, criando o fator
previdenciário. “[A Lei Complementar] determina que o benefício de aposentadoria
passe a ser calculado de acordo com o montante de contribuições realizadas pelo
segurado, capitalizadas a uma taxa com percentual variável conforme o tempo de
contribuição, a idade e a expectativa de gozo do benefício” (SALVADOR, 2005, p.
14).
O cálculo anterior à reforma se baseava nas últimas 36 contribuições
corrigidas do trabalhador, com este novo cálculo a taxa de juros é inferior a das
cadernetas de poupança e às praticadas pelos fundos de previdência
complementar. O período de referência abrange todo o espaço de tempo da
contribuição previdenciária, o que significa que há uma perda real ao valor da
aposentadoria.
Essa medida também exclui os trabalhadores que se encontram fora do
sistema formal de trabalho, num período em que o país alcança taxas nunca antes
vistas de desemprego e informalização do trabalho. A esses trabalhadores se
destinam apenas políticas de cunho assistencialista, que não alteram suas
condições materiais.
10. Há uma troca entre o critério de tempo de serviço pelo critério do tempo de
contribuição, o que se configura enquanto uma maior exigência para a filiação ao
sistema previdenciário; somando-se com a crescente dificuldade de inserção no
mercado de trabalho formal, se verifica a elevação da idade para a aposentadoria.
As mulheres passam a ter que comprovar pelo menos 30 anos de contribuição e os
homens 35 anos de contribuição para terem acesso às aposentadorias integrais.
Isso demonstra que exigir comprovação de 35 anos de contribuição num país onde
20,0% da força de trabalho não encontra emprego, e 45% dos empregados não têm
carteira assinada, constitui mais que simples equívoco, por tratar-se de uma regra
absurda, uma aberração, que tende a atingir fundamentalmente os indivíduos mais
fracos e pobres. Recaindo sobre os já marginalizados a pena eterna de, no futuro
terem as aposentadorias fixadas em níveis reduzidos face ao cálculo de valores
proporcionais ao tempo contribuição (SALVADOR, 2005, p. 25).
Juntamente com a “reforma”, outros fatores contribuíram para a deterioração
do sistema previdenciário brasileiro, tais como o alto grau de sonegação, evasão e
anistia fiscal; pouca fiscalização, baixo investimento nos meios necessários para o
controle e combate às fraudes.
Houve um processo de revisão constitucional em 1993/94 que criou um
mecanismo, que se dizia provisório, denominado Fundo Social de Emergência.
Implementado em 1994, foi transformado em Fundo de Estabilização Fiscal e
finalmente em 1999 passou a se chamar Desvinculação dos Recursos da União
(DRU). Esse mecanismo permitia à União realocar 20% de todos os seus recursos
orçamentários da União para o Tesouro, o que significa que 20% das verbas
destinadas para a seguridade social poderiam ser, de maneira livre, destinadas para
outras finalidades, inclusive para a intervenção estatal na economia visando à
manutenção dos interesses do capital em detrimento da precarização do setor
social.
As políticas sociais praticadas pelo Estado brasileiro se configuram, em
termos teóricos, numa relação entre o aparelho estatal (seus órgãos e suas
instituições) e as forças produtivas, ou seja, é preciso assegurar a reprodução do
capital conforme os interesses das frações burguesas hegemônicas.
11. A Constituição de 1988 estabelece que os direitos sociais2 devem visar a
melhoria da condição social dos indivíduos cabendo ao Estado uma ação positiva
para assegurar o acesso a esses direitos. Na verdade, o próprio Estado contraria os
princípios da Constituição, que utiliza o termo “direitos sociais” para contrapor aos
“direitos individuais”, ou seja, esses primeiros direitos deveriam ser respeitados para
que as desigualdades presentes na sociedade fossem diminuídas, de maneira que
os sujeitos pudessem desenvolver suas potencialidades de maneira digna. O que
percebemos, entretanto, é que o acesso a esses direitos, considerados como
fundamentais, não é fornecido pelo Estado e que ao contrário do que estabelece a
lei, como no caso da Previdência Social, dificulta e exclui grande parte dos
trabalhadores.
Com a “reforma” estatal, o caráter público das ações do Estado não
ultrapassa o discurso, uma vez que não há uma clara divisão entre o setor público e
o privado. As parcerias entre esses dois setores e a falta de definição do que é
público impedem ou falseiam o uso do termo políticas públicas. Nesse sentido, as
políticas do Estado, no caso específico da Previdência Social, são de caráter
excludente, uma vez que se dirigem aos sujeitos que estão inseridos na cadeia
produtiva formal (possuem carteira assinada) ou aqueles que devem se submeter à
comprovação de miserabilidade (políticas assistencialistas).
As políticas sociais praticadas pelo Estado devem ser entendidas na sua
relação com a estrutura capitalista e suas modificações. No intuito de manter sua
dominação, o Estado pode fazer concessões, ou seja, pode abrir mão de certas
medidas visando a manutenção da ordem social; que propicia a segurança da
propriedade privada e os meios para a acumulação.
As “reformas” assumem um caráter de dominação de classe, uma vez o que
o Estado organiza, prioritariamente, os interesses das classes dominantes. Por se
tratar de uma organização complexa, ele é obrigado, muitas vezes, a atender
interesses que não correspondem, no plano imediato, aos das classes dominantes.
2 o
De acordo com o artigo 6 , são eles: educação, saúde, trabalho, lazer, segurança, previdência
social, proteção à maternidade e à infância e assistência aos desamparados
12. Em outros termos, procura traduzir tudo em dominação de classe, ainda que tenha
havido uma demanda dos trabalhadores sobre isso o obrigando a incorporá-la.
Portanto, o Estado oculta sua organização de dominação e dissolve a divisão
de classes, justificando que suas políticas sociais se baseiam “na igualdade de
oportunidades, no livre acesso dos indivíduos aos bens disponíveis, com pleno
desenvolvimento de suas capacidades e de suas responsabilidades no mercado”
(FALEIROS, 2000, p. 79).
Essa relação complexa entre Estado e classes sociais, inserida em uma
realidade concreta como a brasileira nos anos de 1990, demonstra a necessidade
de se estudar as especificidades de uma economia de capitalismo dependente.
Além disso, é preciso atentar para as disputas políticas no interior e no exterior do
aparelho estatal que envolvem políticas sociais, demandas populares e, finalmente,
os interesses do capital em torno da questão previdenciária.
Salientamos que, ao nosso ver, a realidade brasileira se apresenta repleta de
contradições sociais, políticas, econômicas, ideológicas etc. que demonstram sua
cisão em classes sociais antagônicas e profundamente desiguais. Portanto, nos
esforçamos intelectualmente para analisar as mudanças estruturais no âmbito da
Previdência Social sob uma realidade inserida num processo histórico mais amplo
que certamente ultrapassa as fronteiras nacionais.
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