Este documento apresenta uma pesquisa sobre a percepção de homossexuais sobre o "gueto" homossexual em Fortaleza através de entrevistas. A pesquisa é dividida em 4 capítulos onde o 1o capítulo aborda os conceitos teóricos de sexualidade, homossexualidade e "gueto", o 2o descreve a metodologia utilizada, o 3o apresenta os resultados das entrevistas e o 4o traz considerações finais sobre a pesquisa. O resumo destaca que a pesquisa busca compreender como os entrevist
2. 2
FORTALEZACEARÁ
2009
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, pela vida, e pelos sinais de sua presença em momentos de alegria,
e sobretudo, nas dificuldades.
Ao meu pai pelo amor e carinho dedicado em toda minha infância, sentimentos que
foram fundamentais na minha formação humana, seus ensinamentos e exemplos
fizeram de mim o que sou hoje.
A minha mãe, exemplo de dedicação e luta, meu muito obrigada.
Aos meus treze sobrinhos e sobrinhas (filhos/filhas) que eu tanto amo, e que de alguma
forma contribuíram para realização desse trabalho.Pelo carinho e apoio em todos os
momentos.Agradeço, especialmente pela ajuda direta no desenvolvimento do trabalho:
Cristina (Tininha), Érica, Mariana, Leandro e Márcio.
A todos meus irmãos, sempre tão dispostos a me ajudar.Em especial, agradeço a
minha irmã Fátima (Neném) e ao meu irmão Assis (Tiza), por terem sempre acreditado
em mim, me apoiando e incentivando e me ajudando de todas as formas.O apoio e
ajuda deles, foram fundamentais para a conclusão desse trabalho.
A minha prima Susana, pela ajuda na digitação do trabalho.
A minha querida cunhada Keila, pela disposição em me ajudar na árdua busca de
material bibliográfico.
As amigas Mercedes, Pimenta, Valéria e Eliete, pelas constantes conversas e
3. 3
compartilhamentos das angústias.
Às amigas Claudiana, Ítala, Inah, Katiane e Kelly, por suas amizades incondicionais,
por terem me proporcionado momentos maravilhosos ao longo da minha formação
acadêmica, pelo apoio, incentivo e ajuda na realização desse trabalho.
Ao meu querido amigo Renato, sempre tão presente em minha vida, me incentivando,
apoiando, ajudando e compartilhando as angústias.
Ao amigo Eduardo, mesmo distante, agradeço pelo carinho e apoio.
Ao meu amigo Evaldo, sempre tão solícito e disposto a me ajudar quando mais
precisei.
A equipe de profissionais da instituição na qual desenvolvo atividade de estágio –
Defesa Civil de Fortaleza – pelo aprendizado e amizade.Em especial, a Elisângela
Medeiros e ao Alísio Santiago, por compreender minha ausência, para conclusão da
monografia.
Agradeço a minha orientadora Alessandra Silva Xavier, pela ajuda na realização e
orientação desta pesquisa.
Aos membros da banca examinadora pela delicadeza em aceitar o convite e contribuir
para o aprimoramento da minha pesquisa.
Ao Grupo de Resistência Asa Branca, pelo acolhimento e apoio com material
bibliográfico.
Aos sujeitos participantes da pesquisa, por compartilharem comigo uma parte de suas
vidas, contribuindo com os resultados do estudo.
4. 4
RESUMO
O presente estudo tem como objetivo compreender, interpretar e analisar as
percepções e os posicionamentos dos homossexuais sobre o “gueto” homossexual em
Fortaleza.Para abordar a temática, realizei, em um primeiro momento, pesquisas
bibliográfica e documental buscando fundamentação teórica em livros e artigos que
tratam das categorias sexualidade, homossexualidade, preconceito e discriminação, e
“gueto” homossexual.No segundo momento, realizei pesquisa de campo no Grupo de
Resistência Asa Branca (GRAB) com quatro homossexuais que fazem parte do Projeto
SAGAS/GRAB – FortalezaCe.Para tanto, adotei a abordagem qualitativa por meio de
entrevista semiestruturada e observação direta.Após análise dos discursos dos
homossexuais, sujeitos do estudo, pude apreender que: a relação com a família, no
momento da descoberta da homossexualidade, tornase conflituosa, entretanto com o
tempo vai se modificando, e os sentimentos de medo , negação e raiva, dos sujeitos
em relação à família vão sendo superados, embora na maioria das vezes, haja certo
distanciamento dos familiares com a vida íntima do individuo, mas há harmonia e boa
convivência nessa relação; os homossexuais fora dos espaços delimitados sofrem
discriminação das mais variadas formas, desde piadas de mau gosto, xingamentos,
agressões verbais até a perda de emprego; o “gueto” homossexual para os sujeitos da
pesquisa, representa um espaço de proteção contra o preconceito e a discriminação,
e ainda, um local onde eles desenvolvem um sentimento de pertencimento a um grupo
5. 5
social de referência.Espero que esse estudo possa contribuir para que a sociedade
Fortalezense aprenda a viver com as diferenças, respeitando os diferentes, e
essencialmente, os protagonistas desse estudo – os homossexuais. E ainda, contribuir
para que o Serviço Social, diante dos dados dessa pesquisa, se empenhe na luta pela
transformação social, essencialmente no respeito às diferenças, uma vez que seu
Código de Ética profissional tem como princípios fundamentais, entre outros, “opção
por um projeto profissional vinculado ao processo de construção de uma nova ordem
societária (...)” e “empenho na eliminação de todas as formas de preconceito,
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e á discussão das diferenças” (CFESS,1993)
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 9
CAPÍTULO I : ENFOQUES SOBRE SEXUALIDADE HOMOSSEXUALIDADE E
“GUETO” 12
1.1. Sexualidade: construto sóciohistóricocultural 12
1.2. Identidade sexual 17
1.3.Os saberes sobre a homossexualidade 22
1.3.1. Concepção clerical da homossexualidade23
1.3.2. Concepção da medicina 25
1.4. Homossexualidade e o “gueto” 27
CAPÍTULO II: PASSOS METODOLÓGICOS DA INVESTIGAÇÃO 31
2.1 Aproximação com o objeto – “gueto” 31
2.2 Natureza do estudo 33
2.3.Campo da pesquisa 35
6. 6
2.4. Sujeitos da pesquisa e trajetória metodológica 38
CAPÍTULO III : ”GUETO” HOMOSSEXUAL: AS PERCEPÇÃOES E OS
POSICIONAMENTOS DOS SUJEITOS DA PESQUISA 42
3.1.A descoberta da homossexualidade 42
3.2.A relação com a família44
3.3.Tipos de discriminação sofrida fora dos espaços delimitados 47
3.4.Visão sobre o “gueto” 48
CONSIDERAÇÕES FINAIS 51
REFERÊNCIAS BIBLIOGRAFICAS 55
INTRODUÇÃO
Esta pesquisa tem como objetivo central, compreender, interpretar e
analisar as percepções e os posicionamentos dos homossexuais sobre o “gueto”
homossexual em Fortaleza.
O ponto primordial que me impulsionou a pesquisar sobre tal temática, foi
ter presenciado, diversas vezes, uma pessoa da família, pela qual tenho grande
estima, sendo vítima de preconceito e discriminação, por conta de sua orientação
sexual.Essa pessoa tornouse ponte para atrair para o meu convívio, vários outros
homossexuais, dos quais me tornei muita amiga e confidente.Fato esse, que só fez
aumentar minha indignação, pois, convivendo com o maior número de pessoas de
orientação sexual e afetiva por pessoas do mesmo sexo, tenho presenciado com muita
freqüência situações de constrangimento, que essas pessoas têm passado por causa
de sua orientação sexual. Por vezes, quando estou em algum local com alguns deles,
observo manifestações preconceituosas e discriminatórias, no momento eles
disfarçam, fingem que não foi com eles, mas depois acabam me confidenciando, que
7. 7
se sentiram bastante incomodados com tal situação.
O fato decisivo para o empreendimento em torno do “gueto” homossexual,
foi uma situação de extrema violência, pela qual passou um desses amigos.Ele foi
expulso brutalmente, por um segurança, de um local dito “hetero”, por estar apenas
conversando de forma mais íntima com outra pessoa do mesmo sexo que o seu.Fato
que nos deixou profundamente indignados, surgindo a partir daí várias discussões
entre nós sobre preconceito e discriminação contra homossexuais.Durante as
discussões, alguns apontavam como solução para fugir dessas manifestações
preconceituosa e discriminatória, a escolha por freqüentar locais voltados
exclusivamente para o público homossexual.Já, outros, assim como eu, questionavam
esse tipo de solução que os empurravam para um confinamento – o “gueto”
homossexual aceitando passivamente a violência social de rejeição e repressão, uma
vez que o “gueto” não elimina a ameaça social dirigida aos homossexuais.A partir de
então, as discussões sobre o “gueto” homossexual tornouse uma constante no nosso
grupo de amigos, havendo divergência de opiniões.Onde uns, apontam que o “gueto” é
um espaço para diversão e para a liberdade de expressão da homossexualidade,
outros, consideram uma segregação forçada, pelo preconceito, pela discriminação e
pela homofobia de uma sociedade intolerante, que não sabe viver com a diversidade,
pensamento por mim compartilhado.
Por essas razões aqui expressas, eu cursando Serviço Social na
Universidade Estadual do Ceará (UECE), fui levada a refletir sobre o “gueto”
homossexual, e buscar com mais afinco, através de pesquisa bibliográfica e de
campo, conhecimento para desvendar os reais significados do “gueto” homossexual
em Fortaleza objetivo central dessa pesquisa.
Devo destacar aqui, a relevância desse estudo para o Serviço Social, uma
vez que o Código de Ética profissional tem como principio fundamental, entre outros, o
reconhecimento da liberdade como valor ético central.Nesse sentido , o assistente
social deve ter todo o empenho na eliminação de toda forma de preconceito,
8. 8
incentivando o respeito à diversidade, à participação de grupos socialmente
discriminados e á discussão das diferenças.Para além da análise critica da realidade,
a dimensão ética da prática do Serviço Social, deve agir em busca da transformação
social, em que, a democracia, a defesa dos direitos humanos e o respeito às
diferenças, estejam sempre presentes no fazer profissional.(CFESS,1993)
Assim, os resultados obtidos nesse estudo, podem contribuir para o Serviço
Social viabilizar políticas públicas para o público LGBTT (Lésbicas, Gays, Travestis e
Transexuais), pois no conjunto de deveres que estão postos para o assistente social
em seu Código de Ética, destacase, entre outros, “empenharse na viabilização dos
direitos sociais dos usuários, através dos programas e políticas públicas.” (CFESS,
1993)
Vale salientar aqui, que o percurso metodológico para realização deste
estudo foi bastante árduo, pois o tema em questão dispõe de pouquíssimo material
bibliográfico.
Este trabalho está constituído em quatro capítulos.No primeiro capítulo
intitulado “Enfoques sobre sexualidade – homossexualidade e “gueto”, trago a
discussão teórica em torno da sexualidade, da homossexualidade e do “gueto”,
abordando aspectos sóciohistórico cultural.Procuro mostrar que a sexualidade
humana, como um fenômeno sociocultural, tem sido regulada por instituições como a
igreja, a família e Estado, e como a cultura patriarcal machista com a predominância
do domínio masculino, tem influenciado na negação e desvalorização dos
homossexuais.E o que tem levado os homossexuais a buscarem, cada vez mais os
“guetos” homossexuais.
No segundo capítulo, denominado “Passos metodológicos da
investigação”, apresento toda a trajetória metodológica da investigação.Inicialmente
mostro como foi feito a aproximação com o objeto de estudo, em seguida descrevo a
natureza do estudo.Na seqüência, descrevo o campo de pesquisa.E, por último,
9. 9
exponho os sujeitos da pesquisa e a trajetória metodológica da investigação.
No terceiro e último capítulo, “Gueto” homossexual:as percepções e os
posicionamentos dos sujeitos da pesquisa”, faço a análise das percepções e dos
posicionamentos dos homossexuais entrevistados, articulando suas falas com a
literatura consultada, para elucidar os objetivos do estudo.
Nas considerações finais, são apresentados os principais resultados
identificados na realização do estudo.Esse é o momento de descoberta das perguntas
iniciais da pesquisa.
CAPÍTULO I: ENFOQUES SOBRE SEXUALIDADE
HOMOSSEXUALIDADE E “GUETO”
1.1 Sexualidade: construto sóciohistóricocultural
A sexualidade é uma temática sobre a qual há bastante discussão, diversos
autores têm adotado diferentes enfoques destacando elementos importantes quando
10. 10
na sua discussão.
Um dos pontos de enfoque apontado por Loiola (2005) diz respeito à
compreensão da sexualidade como um construto sóciohistóricocultural dos sujeitos.
Sem desconsiderar o aspecto biológico que acaba por restringir à sexualidade a
reprodução prioriza o entendimento da sexualidade a partir da interação do sujeito
com a sociedade, com a história e com a cultura a que pertence.
Destarte, o entendimento da sexualidade está para além da função
procriativa, onde se tem uma compreensão que abrange todas as suas significações e
funções na vida humana.
É preciso compreender, que para além da perspectiva reprodutiva, a
sexualidade é “uma construção dos sujeitos concretos (homens e mulheres)” (LOIOLA,
2005, p.50). Apesar da influência do contexto sóciohistóricocultural, estes sujeitos,
são portadores de uma subjetividade que os permite vivenciar as diversas
manifestações da sexualidade.
Entretanto, as funções e significados acerca da sexualidade variam, ao
longo da história humana, e estas variações irão produzir efeitos sobre a forma como
serão aceitos ou questionados determinados comportamentos sexuais. Assim, o
entendimento da sexualidade subsiste numa concepção binária, em que a existência
dos dois sexos (masculino e feminino) está intrinsecamente ligada à procriação.
Dessa forma, a história da sexualidade apresentase como um fenômeno sociocultural
que determina os papéis sociais e os comportamentos sexuais dos indivíduos, ou seja,
uma padronização de conduta que controla a subjetividade dos indivíduos.
Os padrões de comportamentos sociais e sexuais são regulados pela
cultura, sendo esta a mediadora das ações realizadas pelos indivíduos em seu
cotidiano. A cultura aqui referendada é a cultura ocidental, que traz em seu cerne o
estabelecimento de uma ordem sexual patriarcal e machista com a predominância do
domínio masculino sobre o feminino, onde cabe aos homens o ditame dos valores e
11. 11
das normas de sociabilidade.
A sexualidade revelase, assim, como um fenômeno sociocultural, em que
os papéis sociais e sexuais dos sujeitos são regulados por instituições como a igreja,
a família e o Estado.
A igreja cristã, considerando o sexo como tendo uma função exclusivamente
procriativa, reprimiu todas as práticas que perturbasse as finalidades atribuídas à
procriação. Conforme Loiola (2005) a Igreja cristã:
a partir de uma série de estratégias castradora da vida: confundiu a essência
da vitalidade humana, a sexualidade, rotulandoa de perversão, fornicação,
bestialidade, pecado sodomia, heresia, dentre outros tantos atributos;
sacrificou várias personalidades através da ‘santa’ inquisição, levandoas à
fogueira, quando não , à guilhotina.Publicou todas essas barbaridades aos
‘quatros canto do mundo’ em nome do amor divino.Usou a fogueira e a
guilhotina durante a inquisição, posteriormente o celibato e a confissão,
decretou e publicou a morte, mas não conseguiu o êxito esperado eximir a
necessidade do desejo sexual, muito embora tenha produzido subjetivamente
uma sexualidade extremamente negativa.(p.55)
Dessa forma, a igreja regula a vida do sujeito, impondolhe, com rigor
violento, os preceitos cristãos, baseada na concepção da articulação entre o sexo e a
expulsão do homem do “paraíso”, onde se deu o pecado original. A mulher
culpabilizada por tal pecado é vista como mais sensual e mais sexuada que o homem,
portanto, mais fraca e sujeita a sucumbir às tentações do prazer carnal. A partir dessa
ideologia, indica Pinheiro (2003, p.29):
colocamse as mazelas do mundo na relação sexual livre e prazerosa
associando o sexo, a mulher e o gênero feminino ao pecado.Por trás desta
ideologia, estão as bases da criação do sistema patriarcal, no qual o homem
nega à mulher e o prazer ( oprimindo o gênero feminino) e exalta o poder e o
trabalho ( exaltando o masculino).
Assim, para a igreja católica, herdeira das tradições bíblicas, a miséria que
oprime os homens é conseqüência do pecado original cometido por Adão, mas com
grande cooperação de uma mulher: Eva. Esse pecado foi transmitido a todos os
homens afetando a morte de suas almas e distanciandoos de Deus. Com a
descoberta da nudez, pelo pecado original, o homem descobre o sexo e se
12. 12
envergonha dele.
Nesse sentido, destaca Santos (2008):
A dimensão sexual parece constranger e assombrar a Igreja por ocultar
implicações outras que extrapolam o campo da sexualidade. Representações
de Deus, da salvação e do pecado podem de fato estar em jogo em torno
dessa problemática. Além de uma questão moral, a Igreja se vê imobilizada
diante de um emaranhado de questões dogmáticas. Por isso mudanças na
moral sexual encontram resistências e impossibilidades. Outro fator a ser
considerado é a construção ideológica católica em torno do poder da Igreja
como ‘sustentáculo da verdade’. Abrir mão de certas posições colocaria em
xeque este poder e seu domínio sobre os fiéis. (p.9).
Segundo Chauí (1984) o Dicionário de Psicanálise de Laplanche e
Pontalis, aponta a sexualidade como:
polimorfa, polivalente, ultrapassa a necessidade fisiológica e tem a ver com a
simbolização do desejo. Não se reduz aos órgãos genitais ( ainda que estes
possam ser privilegiados na sexualidade adulta) porque qualquer região do
corpo é susceptível de prazer sexual, desde que tenha sido investida de
erotismo na vida de alguém, e porque a satisfação sexual pode ser alcançada
sem a união genital.(p.15).
Dessa forma, a sexualidade humana, à luz da psicanálise, ultrapassa a
dimensão biológica, e as “tentativas de supressão das pulsões são sempre falhas e os
fenômenos substitutivos que emergem em conseqüência desta ‘supressão’ constituem
as doenças nervosas.” (SANTOS, 2008, p.6). A tentativa de inibir o desejo sexual pode
causar no indivíduo, debilidade ou adoecimento. Visto que, a constituição do sujeito
não pode ser separada da sua sexualidade. Entretanto, a moral cristã com todo seu
rigor repressivo, não conseguiu arrancar do sujeito sua necessidade sexual, os
“impulsos e desejos desconhecem barreiras para sua satisfação”. (SANTOS, 2008,
p.4). Mesmo estabelecendo
uma relação negativa, no que concerne ao sexo, “o poder não ‘pode’ nada contra o
sexo e os prazeres, salvo dizerlhes não” (FOUCAULT, 2007, p.93).
Como indica Loiola (2005) à psicanálise “elastece a sexualidade no âmbito
das relações sociais, desfamiliariza a binaridade do sexoreprodução (...) privilegia o
gozo e o prazer como seus atributos principais.” (p.67). Desse modo, a psicanálise
13. 13
foge da visão biologizante da sexualidade humana, ressaltando a importância da
fantasia:
Com efeito, a sexualidade se inscreve na fantasia, antes de mais nada.Esse é
o campo por excelência do erotismo.Não existiria, pois, sexualidade sem
fantasia,sendo esta a sua matériaprima.Seria, então, a partir da fantasia
como fundamento, que aquela pode assumir formas comportamentais
diversificadas.O comportamento seria, pois, o elo final de uma longa cadeia de
relações, que se inscreveriam primordialmente na fantasia do sujeito, o sexo
seria, portanto, um efeito distante do sexual, por mais paradoxal que possa
parecer esta afirmação.Em contrapartida, se existe algo de enigmático e de
absurdo no erotismo, a fantasia seria o lugar desse enigma e de iluminação
dessa obscuridade (BIRMAN, citado por LOIOLA,2005, p.6768).
Foucault (2007) aponta que as práticas sexuais no início do século XVII não
procuravam o segredo, entretanto, com o advento do capitalismo a burguesia vitoriana
encerra a sexualidade, ou seja, a sexualidade:
Mudase para dentro de casa. A família conjugal a confisca. E absorvea,
inteiramente, na seriedade da função de reproduzir. Em torno do sexo, se
cala. O casal, legítimo e procriador, ditam a lei.Impõese como modelo, faz
reinar a norma, detém a verdade, guarda o direito de falar, reservandose o
princípio do segredo.(FOUCAULT,2007,p.9).
Com a Contra–Reforma a Igreja católica intensifica o sacramento da
confissão em todos os países católicos, impondo ”regras meticulosas de exame de si
mesmo.” (FOUCAULT, 2007, p.25). Nessa nova pastoral, o bom cristão deve, durante
a confissão, mencionar em detalhes “todas as insinuações da carne: pensamentos,
desejos, imaginações voluptuosas, deleites, movimentos simultâneos da alma e do
corpo”. (FOUCAULT, 2007, p.25).A confissão no Ocidente, foi umas das técnicas mais
valorizadas para produzir a verdade sobre o sexo.Como bem ressalta Loiola:
o confessionário ocupa o lugar central para o discurso da sexualidade cristã,
haja vista que todo cristão teria essa obrigação para com sua igreja, de modo
que esse espaço configurouse num lugar interrogativo e
punitivo.(2006,p.4647).
Foucault (2007) aponta que nas sociedades modernas, o sexo não tem sido
condenado a permanecer na obscuridade, pelo contrário, há uma explosão discursiva
sobre ele, entretanto:
tais discursos sobre o sexo não se multiplicaram fora do poder ou contra ele,
14. 14
porém lá onde ele se exercia e como meio para seu exercício; criaramse em
todo canto incitações a falar; em toda parte dispositivos para ouvir e registrar,
procedimentos para observar, interrogar e formular. Desenfurnamno e
obrigamno a uma existência discursiva.Do singular imperativo, que impõe a
cada um fazer de sua sexualidade um discurso permanente, aos múltiplos
mecanismos que, na ordem da economia, da pedagogia, da medicina e da
justiça incitam, extraem, organizam e institucionalizam o discurso do sexo, foi
imensa a prolixidade que nossa civilização exigiu e
organizou.(FOUCAULT,2007,p.39).
Assim, temse uma proliferação de discursos sobre o sexo, que se
caracteriza pela busca do conhecimento da sexualidade como estratégia de controle
do indivíduo e da população. E ainda, destaca Foucault, a sociedade capitalista:
não reagiu ao sexo com uma recusa em reconhecêlo. Ao contrário,
instaurou todo um aparelho para produzir discursos verdadeiros sobre ele.(...)
também empreendeu a formulação de sua verdade regulada.(2007,p.7879).
De acordo com Foucault (1977) citado por Chauí (1984) a partir do século
XVIII, foram utilizadas quatro estratégias nas relações de saber e poder sobre o sexo
1)histerização do corpo feminino (hipersexualizada e fecunda, a mulher se
distribui em dois papéis, a mãe e a histérica);2) pedagogização do sexo
infantil (a criança é um ser sexuado polimorfo, desconhecendo a sexualidade
saudável, de modo que suas práticas sexuais colocam em risco sua vida,
sua sanidade mental e da futura prole; o risco principal é a masturbação);
3)socialização das condutas de procriação ou regulação
demográfica(interdição das práticas anticoncepcionais pelo Estado e pela
medicina);4)psiquiatrização do prazer perverso(que de pecado e vício, se
torna doença).(CHAUÍ,1984,p.184185).
Dessa forma, a pedagogia, a medicina, a psiquiatria, a economia e o
Estado fizeram da família o espaço fundamental para a sexualização dos corpos.
A família proclamada pelo pensamento religioso judaico–cristão é uma
instituição natural dos homens, permanente e criada por Deus. (GURGEL, 1999).
Nessa perspectiva, a família como primeiro grupo responsável pela socialização do
sujeito, promove a educação das crianças estabelecendo papéis sociais e sexuais de
meninos e meninas de acordo com o sexo biológico e com os preceitos cristãos –
estimula nos meninos a expressão sexual e nas meninas a reclusão e a repressão –
reforçando, assim, os valores promulgados pela igreja cristã.Assim, a moralização do
sexo fazse preferencialmente pela família.
15. 15
Como aponta Loiola (2005) a família:
inicia a inserção da criança no mundo adulto a partir das normas e
prescrições interpretadas da ‘carta sagrada’ legitimada pela igreja.Com suas
estratégias seguidas da ritualização em todo o processo socializador
constitui desde a apresentação do indivíduo representante de Deus na Terra
até o casamento, exercendo a função de cristalizar nas subjetividades a
doutrina disciplinadora da conduta dos homens e mulheres,... , limitada à
reprodução da espécie. (p.56).
Assim, a família, reproduzindo a moral cristã no processo de socialização
do indivíduo, atribui papéis estereotipados para o homem e para a mulher de forma
desigual, onde o papel atribuído ao homem é sempre mais valorizado do que o papel
da mulher.Nesse sentido, destaca Trevisan: “criaramse corpos doutrinários e normas
severas, com o intuito de sedimentar a família enquanto espaço fundamental para
defesa da catolicidade.” (2007,p.110).
O Estado, por seu turno, absorve os valores moralistas da igreja cristã, em
parceria com a família e com a escola e dotado de recursos formais e legais reproduz
o machismo e a binaridade dos sexos.
Deste modo, o Estado (e o Estado aqui referendado é o Estado burguês,
que direciona suas ações seguindo a lógica do capital consumo e obtenção de lucro)
ao mesmo tempo em que, em nome da moral e dos bons costumes,castra as
possibilidades de prazer dos sujeitos, expõe o corpo humano para a venda de
mercadorias com o objetivo de obter lucro.Assim, banaliza a sexualidade dos sujeitos
transformandoa em mercadoria. (LOIOLA,2005).
A sexualidade, segundo Costa (1994), é um aspecto conflituoso e
controverso da vida do ser humano, e na cultura ocidental, criamse modelos para
classificar as pessoas, na maioria das vezes baseadas em preconceitos, não
permitindo que as mesmas sejam como são. Tais moldes se referem aos papéis
sociais determinados para o masculino e feminino, que desconsideram a dinâmica da
sexualidade, sua multiplicidade, variável de pessoa para pessoa, não sendo uma
experiência estanque ao longo da vida.
16. 16
1.2. Identidade sexual
Como vemos o sexo durante algum tempo considerado como algo
meramente biológico e natural, passa por transformações, ao ser deslocado do plano
natural para o plano cultural. Esse deslocamento, segundo os antropólogos e os
psicanalistas, acontece a partir da proibição do incesto. (CHAUÍ, 1984).
Nesse sentido, aponta Chauí (1984), a tragédia de Édipo, quando Freud
elabora o conceito de Complexo de Édipo , passa a ser o tema central na discussão 1
da sexualidade e de sua repressão.
Nye (2002) aponta que Freud acreditava que a estrutura e o funcionamento
básicos da personalidade humana embora tenha certa flexibilidade são formados
durante os primeiros cincos ou seis anos de vida. Assim, boa parte do que o sujeito é
como adulto é determinado por suas experiências na infância.
Chauí (1984) indica que Freud classificou as fases da libido, segundo a
origem do prazer, as regiões prazerosas do corpo e os objetos. A primeira fase é oral,
onde a atividade se centraliza na boca, e o prazer vem do ato de comer ou sugar e da
ingestão de alimentos. A segunda fase é anal, tem como órgão do prazer o ânus, e o
prazer se dão pela retenção e expulsão das fezes. A terceira fase é a fálica ou genital,
que tem como fonte de prazer os órgãos genitais, o prazer vem da masturbação e das
fantasias.
Para Freud, segundo indicam Santos, Xavier e Nunes (2008) a fase fálica é
decisiva na formação da personalidade do sujeito. Nesta fase, onde se organiza o
1
Tratase de um sistema ou de uma rede intrincada (donde, complexo) de afetos e fantasias que a criança possui,
entre os três e quatro anos, ao perceber que faz parte de uma tríada ou relação triangular constituída por ela, pela
mãe e pelo pai (CHAUÍ, 1984, p.63).
.
17. 17
Complexo de Édipo, quando:
o menino percebe a presença do órgão masculino, manipulao obtendo
satisfação libidinal.A menina também percebe a diferença anatômica sexual e
ressentese por não possuir algo que os meninos possuem. Em ambos os
casos a mãe é o primeiro objeto de amor.Nesse processo, o menino mantém
um desejo incestuoso pela mãe.O pai é percebido como rival que lhe impede
o acesso ao objeto desejado(mãe).Temendo ser punido com a perda dos
órgãos genitais(angústia de castração) e do lugar fálico em que se encontra,
o menino terá que recalcar o desejo incestuoso pela mãe e identificarse com
o pai, escolhendoo como modelo de papel masculino, e então internalizar
regras e normas impostas pela autoridade paterna (a pessoa que ocupa esse
lugar). A situação feminina é distinta. Ao perceber a ausência do pênis,
desenvolve um sentimento de inferioridade, tendo inveja e desejando o órgão
masculino. Atribui à mãe a culpa por ter sido gerada assim e rivaliza com
ela.Ao mesmo tempo precisa se identificar com a mãe para obter o amor do
pai.Depois, esse desejo pelo pai deve se dissipar a fim de que possa sair da
situação edípica, havendo um grande deslocamento de energia libidinal que
leva consigo para o inconsciente, os sentimentos conflituosos
experimentados nessa fase, e as vivências infantis orais, anais e fálica
(SANTOS, XAVIER e NUNES,2008,p.4748).
Assim, nesta fase o falo representa, tanto para os meninos como para as
meninas, a onipotência. Entretanto, a menina desenvolve um sentimento de
inferioridade, por perceber que não possui o pênis, e o menino, por medo da
castração, desiste de seu objeto de desejo – a mãe.
De acordo com Freud (1967) citado por Chauí (1984) há diferenças na
superação do complexo de Édipo:
No menino, o complexo será vencido graças ao medo da castração pelo
pai,como punição do desejo incestuoso.Para conservar o pênis, o menino
aceita renunciar a mãe.Na menina, a solução será mais demorada porque
precisa aceitar e conseguir um substituto para o pai, o que só lhe será
possível puberdade (p.70).
Assim, a ameaça da castração faz com que os meninos resolvam de forma
definitiva e completa o complexo de Édipo, já as meninas, por não serem motivadas
pelo medo da castração, prolongam a superação do complexo de Édipo até a
puberdade.
Nye (2002) adverte que a solução do complexo de Édipo do menino pode
18. 18
tomar rumos diferentes. Como, por exemplo, o sentimento de desagrado do menino
pelo pai pode permanecer e prolongarse para todas as figuras de autoridade. Nesse
sentido, indica Nye (2002, p.25):
Entre os pensamentos de Freud sobre a homossexualidade estava a
idéia de que ela pode resultar de uma intensa ligação erótica com a
mãe, especialmente na ausência de um pai forte; a identificação com a
mãe em vez de com o pai, é uma possibilidade nesses casos.
Desse modo, a homossexualidade pode ser resultado das marcas
deixadas na vida adulta pelo modo como foi experimentado o complexo de Édipo e a
proibição do incesto na infância. Parisotto (2003) indica que Freud tinha alguns
pressupostos acerca da identidade sexual, bem como dos fenômenos
Heterossexualidade/Homossexualidade. Entre alguns desses pressupostos, Freud
considerava que tanto a hetero como a homossexualidade se desenvolvem
socialmente, e que a homossexualidade incluía fenômenos de ordens diversas, mas
afirmava ainda que os indivíduos possuem sempre uma corrente libidinosa
homossexual e heterossexual, mas que a determinação da orientação dominante vai
depender de questões diversas.
Nesse contexto, na psicanálise:
entendese a sexualidade do adulto como decorrente de um processo de
desenvolvimento ordenado a partir de diversos aspectos, desde o biológico,
atravessando o aprendizado cultural, até as representações mentais que
estão perpassadas por conflitos referentes à situação edípica. É nesta área –
dos conflitos, das representações mentais, das fantasias –, que está para
além da objetividade e que está presente em toda atividade sexual, que a
psicanálise tem oferecido sua maior contribuição. (PARISOTTO, 2003, P.84)
Ao tratar sobre o sexo, Calligaris (1997) aponta que se este for definido
pelos órgãos externos e por sua função procriativa, temos ainda hoje, dois sexos
biológicos: homem e mulher.
Entretanto, ressalta Calligaris, a identidade de gênero não está relacionada
somente ao sexo biológico, mas a uma variedade de fatores.
Nesse sentido, por mais que as pesquisas procurem mostrar que a
19. 19
orientação sexual tem fundamento biológico, não se pode esquecer da influência 2
cultural que promove a divisão dos sujeitos em categorias sexuais.
Segundo Costa (1993) desde o século XIX, passamos a acreditar que os
sujeitos estavam naturalmente divididos em heterossexuais, homossexuais e
bissexuais. A crença nesta classificação é fruto do vocabulário sexual de nossa cultura,
que nos induz a produzirmos modos de identificarmos moralmente, a nós e aos outros.
As identificações sexuais de cada indivíduo são determinadas pela crença nos
dispositivos lingüísticos. Entretanto, é preciso, aponta Costa (1993) abandonar o
vocabulário que deu origem a esta crença, que classifica o indivíduo em heterossexual,
homossexual e bissexual, e buscar definir os sentimentos, de acordo com os padrões
éticos de cada um, redescrevendo um novo modo de amar e desejar sexualmente
Conforme enfatiza Graner (2008) temse encontrado, mesmo que em
comunidades geográfica e socialmente diferenciadas, por meio da história e da
cultura, distinções significativas entre homem e mulher. Ao homem, por possuir o falo,
geralmente associase a idéia de domínio, poder e de liberdade sexual, em
contrapartida, a figura da mulher encontrase frequentemente associada à idéia de
fraqueza, sujeição e recato sexual.
Assim, o órgão genital (o pênis ou a vagina) vai simbolizar a afirmativa de
identidade do indivíduo, em que a sociedade a qual pertence traça um roteiro de vida
2
Orientação sexual é a atração afetiva e/ou sexual que uma pessoa sente pela outra. A orientação sexual existe
num continuum que varia desde a homossexualidade exclusiva até a heterossexualidade exclusiva, passando
pelas diversas formas de bissexualidade. Embora tenhamos a possibilidade de escolher se vamos demonstrar, ou
não, os nossos sentimentos, os psicólogos não consideram que orientação sexual
seja uma opção consciente que possa ser modificada por um ato de vontade (BRASIL, 2004, p. 29).
20. 20
determinando:
o seu identificarse, sentirse, comportarse e vestire.Mesmo com as
‘revoluções’ dos costumes,idéias e papéis sociais, ainda persiste para
muitos a idéia de que um ‘pênis’ significa,como regra: homem, roupa de
homem (azul, gravata, calça, sem adornos), brinquedos/objetos de
homem(outdoor e violentos/ativos), trabalho de homem( mecânicos, exatos,
físicos e de comando), comportamento de homem( virilidade, truculência
corporal), etc.Enquanto que uma ‘vagina’ significa, também como regra:
mulher, roupa de mulher( rosa, laço, saia, adornos), brinquedos/objetos de
mulher (indoor epacíficos/passivos), trabalho de mulher ( delicados,
subjetivos, mentais e de agregação), comportamento de mulher(feminilidade,
delicadeza corporal) etc.( GRANER,2008, p.77)
Ainda tratando a respeito de sexualidade e sexo, e seus significados
socioculturais, há no trabalho de Graner (2008), reflexões sobre o tema, apontando que
sexo é:
O conjunto de desejos, afinidades, projeções, sonhos e ações, e o ‘sexo’ que
o ‘EU’ exercita através do corpo, mente e espírito pode tanto representar
prazer, gozo, liberdade, vaidade, autonomia,orgulho ou furor como dor,
frigidez, prisão, perversão, dependência, vergonha ou apatia. (p. 76)
Nesse mesmo trabalho, a referida autora destaca a noção de gênero,
entendido como um conjunto de concepções, valores e praticas que se consensuam
associados a praticas sexuais e sociais do sexo oposto, evidenciando a busca de
compreensão das relações sociais entre homens e mulheres.
Nesse contexto, surge o conceito de identidade de gênero, que como indica
Graner (2008) é o:
auto conhecimento emocional definido através da afinidade maior com o que
socialmente se convencionou reconhecer como masculino e/ou feminino,
podendo ou não corresponder à demarcação sexual atribuída à pessoa pelo
coletivo no momento de seu nascimento( dada tanto pela percepção de seu
órgão genital como pelo estabelecimento de sua existência jurídica.) ( p.79).
O homem nasce em uma estrutura social objetiva que lhe impõem
significativos que se encarregam de sua socialização.Assim, a criança interioriza os
papéis e as atitudes dos outros significativos – as pessoas mais próximas
tornandose capaz de autoidentificarse.Desse modo, ela não só absorve os papéis e
21. 21
atitudes dos outros significativos, como assume o mundo deles.
A criança na socialização primaria identificase com os outros significativos,
por não ter escolha, já que os outros significativos são definidos antecipadamente pela
sociedade.O mundo dos pais é interiorizado por ela, como sendo o único mundo
possível existente.”Os outros significativos na vida do indivíduo são os principais
agentes da conservação de sua realidade subjetiva” (BERGER e LUCKMANN, 1985,
p.200).
1.3. Os saberes sobre a homossexualidade
A história tem mostrado que a homossexualidade não é um fenômeno
recente, das tribos às civilizações, sempre existiu homossexual, entretanto, a forma
como é tratada se diferencia de um momento histórico para outro.
Segundo Loiola (2006), na Grécia antiga, as relações homossexuais,
apesar de se submeterem a postulados legais, eram livres, desde que tais relações se
realizassem entre pessoas de idades diferenciadas, um adulto e um jovem, sob o
pretexto do mais velho educar e proteger o mais novo.
Na Grécia e em Roma antigas, a homofilia (o termo homossexualidade é
recente) masculina era tolerada e, por vezes, até estimulada. Nessas sociedades, a
mulher considerada naturalmente passiva, o jovem livre, do sexo masculino,
considerado passivo pela pouca idade, e o escravo, considerado passivo por sua
condição de dominado e por obrigação, faziam com que as relações homofílicas só
fossem admitidas entre um homem livre adulto e um jovem livre ou um escravo, jovem
ou adulto. O jovem, pela idade, podia ser livre e passivo sem desonra; o escravo, por
sua condição desonrosa, só podia ser passivo; um homem, livre adulto que se
prestasse a uma relação homofílica no papel passivo era considerado imoral e indigno,
entretanto, comportandose como ativo na relação sexual, era livre para manter
relações com jovens, por não afetar sua masculinidade; com mulheres, por serem
22. 22
inferiores; e com escravos, por não serem considerados cidadãos (CHAUÍ, 1984).
Com o advento do Cristianismo, o Império romano, que antes celebrava a
bissexualidade, passa a condenar as práticas homoeróticas. Os códigos de conduta, a
moral e a ética impostas pela Igreja, aliada ao império, segregam os indivíduos que
estão fora dos padrões socialmente estabelecidos. O tribunal do Santo Ofício,
instituído na Europa, perseguia aqueles que praticavam heresia e a homossexualidade
estava incluída dentre estas práticas.
Na Europa dos séculos XVI, XVII e XVIII, não apenas a Espanha, Portugal,
França e Itália católicos, mas também a Inglaterra, Suíça e Holanda protestantes
puniam severamente a sodomia seus praticantes eram condenados a punições como:
multas, prisão, confisco de bens, banimento da cidade ou do País, trabalho forçado,
execração e açoite público até a castração, amputação das orelhas, morte na forca,
morte por fogueira e afogamento (TREVISAN, 2007).
1.3.1. Concepção clerical da homossexualidade
A religião cristã, sempre restringiu a sexualidade à função procriativa, ou
seja, qualquer atividade sexual que não tivesse finalidade procriadora era considerada
pecaminosa. Assim, aponta Gurgel (1999), foi desenvolvido um código de ética sexual
pelos primeiros padres da Igreja cristã – Clemente, Orígenes, Jerônimo e Agostinho –
estabelecendo o princípio de que o sexo praticado para finalidade não procriativa era
uma violação da natureza. Desta forma, a homossexualidade passa a ser condenada
como um pecado, visto que sua prática representa uma transgressão à ordem natural e
divina das coisas.
A Igreja faz uso de textos bíblicos para determinar pecados condenáveis.
Como o livro de Levítico do Antigo Testamento, que sobre a sodomia aponta que: 3
3
Termo utilizado na Bíblia, para designar as relações homossexuais masculinas, em Sodoma, tidas como relações
contra a natureza. (ARIÈS, 1985).
23. 23
“Não te aproximaras dum homem como se fosse mulher, porque é uma abominação.”
(Lv. 18,22); e “Aquele que pecar com um homem, como se fosse uma mulher, ambos
cometeram uma coisa execranda, sejam punidos de morte; o seu sangue caia sobre
eles.” (LV.20,13).Também no livro I Coríntios do Novo Testamento, há referências à
condenação da homossexualidade: “nem os efeminados, nem os sodomitas (...)
possuirão o reino de Deus”.(I Cor.6,10). A Epístola de São Paulo aos Romanos (1,
2627), no Novo Testamento, deixa clara a condenação que o apóstolo Paulo faz a
prática homossexual, considerando como um desregramento cometido contra a
natureza:
Por isso Deus entregouos a paixões de ignomínia.Efetivamente, as suas
próprias mulheres mudaram o uso natural em outro uso, que é contra a
natureza, e ,do mesmo modo, também os homens, deixando o uso natural da
mulher, arderam nos seus desejos mutuamente, cometendo homens com
homens a torpeza e recebendo em si mesmos a paga que era devida ao seu
desregramento.(BÍBLIA, 1983).
É mister destacar aqui, o trabalho de Gafo (1985) apontado por Loiola
(2006), sobre o cristianismo e a homossexualidade, em que ele faz uma divisão da
história cristã em quatro fases:
a primeira compreende os primeiros setes séculos da cristandade – onde as
influências do mito da cidade de Sodoma influenciam e/ou justificam
decisivamente na criação dos códigos de condutas e determinações punitivas
para os pecadores, ainda no Império Romano.A segunda fase (..) entre os
séculos VII e XI – é aqui que se Distingue com maior clareza as atitudes
consideradas homossexuais:’ toques, afetos, masturbação mútua, conexão
interfemural e sodomia’ – a homossexualidade é considerada um pecado
grave a homossexualidade feminina tem citação inédita.A terceira fase (...)
séculos XI e XIII – neste período é definido por alguns santos o pecado
antinatural, incluindo a homossexualidade e outras práticas como a
masturbação.Santo Alberto Magno e Sto.Tomás de Aquino são expoentes (...)
para a solidez da moral cristã nesse período; a quarta fase(...) séculos XIV e
XX – período de afirmação da moral cristã com um profundo acirramento da
aversão à homossexualidade, haja vista a proclamação do sexo
exclusivamente para a procriação.( LOIOLA,2006,p.43).
Diante de tal consideração, percebese que a moral cristã tem influenciado
sobremaneira as condutas dos sujeitos, determinando o uso do sexo para procriação,
punindo e condenado como um pecado contra a natureza, as práticas sexuais com
finalidades não procriativas, entre elas destacase a homossexualidade. A
24. 24
abominação do prazer homossexual pela instituição cristã, “determina a dualidade nas
relações entre os homens e as mulheres (...), fixa o estabelecimento dos papéis
sexuais e sociais eliminando a possibilidade da homossexualidade” (LOIOLA, 2006,
p.47).
O depoimento de Roberto, em entrevista cedida a Paiva (2007), confirma a
influência que a moral cristã tem na direção das condutas dos sujeitos:
A questão da homossexualidade ocupa todos os lugares da minha vida.(...). A
minha memória homoerótica vai aos três anos de idade, pelo
menos.(...).Desde a primeira infância, segunda infância, puberdade,
adolescência, eu sempre soube que eu era diferente e sabia qual era essa
diferença.Daí ter sofrido terrivelmente, porque fui criado sob a ética católica,
quer dizer, judaicocristã, no catolicismo romano, indo para a missa todo
domingo não sei mais o quê , e que dizia sobre aquilo que eu sentia de
diferente em mim, e que era a minha peculiaridade, a minha essência,era que
aquilo era proibido, era sujo, era pecaminoso. Se insistisse naquilo eu iria ser
condenado ao fogo do inferno,etc.(...).Participava de grupos de orações e
pedia a Deus que me curasse então diretamente.Me sentia culpado porque
me masturbava tendo desejos por homens.Mas o próprio contato com a
religião me afundava cada vez mais, me fazendo me sentir uma nulidade total
como ser humano...(p.123125)
Esse posicionamento da igreja, com variações mínimas ao longo da
historia, tem influenciado e motivado diversas discussões ao redor do mundo, acerca
da Homossexualidade, bem como do surgimento de grupos de discussões acerca do
próprio papel da igreja no controle do pensamento e opiniões da sociedade.
1.3.2. Concepção da medicina
A partir do século XIX, irrompe na Europa e no Brasil a preocupação
médica com a homossexualidade. A ciência médica passa a exercer um controle
terapêutico que substitui o antigo controle religioso. A homossexualidade, antes tida
como pecado, vício ou crime, passíveis de castigos ou de penas, passa a ser
considerada uma patologia, que necessita da intervenção e do cuidado do médico ou
do psiquiatra (TREVISAN, 2007).
25. 25
Começaram a abundar na Europa e no Brasil, em meados do século XIX,
abordagens cientificas sobre as perversões sexuais. A psiquiatria, com larga
experiência no trato da loucura, passa a enquadrar os desvios à norma não mais como
crimes e sim como doenças. O pederasta, agora considerado doente, não era mais
culpado por transgredir a norma, do ponto de vista jurídico.
Nesse período, a medicina iniciou estudos acerca das causas da
homossexualidade, e apresentou duas causas principais: biológicas, destacando a
hereditariedade e os defeitos congênitos e defeitos hormonais; e causas de cunho
social. Uma vez que havia causas endócrinas e orgânicas, os médicos viam, dessa
forma, a possibilidade de cura, pela correção hormonal, por exemplo. E, além disso, se
fosse observada que as causas eram de caráter social, haveria “medidas
pedagógicas” de correção. (FRY e MACRAE, 1983)
No Brasil, as investidas psiquiátricas contra os homossexuais nunca
chegaram a criar instituições especializadas, nem por isso as sugestões de crescente
psiquiatrização da prática homossexual deixaram de ser, a partir da década de 1920,
periodicamente reiteradas por autoridades médicopoliciais do país, preocupadas
com a defesa da sociedade sadia. Apesar de não haver, no Código Penal Brasileiro,
nenhuma menção à homossexualidade como crime, a medicina legal se achava no
direito de sugerir ação médicocorrecional para os delinqüentes homossexuais, além
de punição do crime específico de que eram acusados (FRY e MACRAE, 1983). Em
parte isso se dava porque as visões da medicina e da ciência aliavamse à visão
tradicionalista da Igreja, e assim continuava perseguição aos homossexuais.
A partir do início do século XX, a medicina toma para si o direito de falar
sobre homossexualidade e suas causas, procurando determinala, “diagnosticála”,
procurando intervenções. Assim, a homossexualidade passa de crime, pecado, para, a
partir de então, ser considerada doença. (FRY e MACRAE, 1983). Nesse período, a
medicina começou a destacar a homossexualidade como patologia que traria consigo
a possibilidade de outras doenças, surgindo os homossexuais ”esquizóides e
26. 26
paranóides”, por exemplo.
Na década de 30, no Brasil, a idéia da homossexualidade como patologia
ganhava força. Entretanto, médicos, psicólogos e sexologistas, ao tratarem dessa
temática em seus escritos, recorriam aos ensinamentos da Igreja Católica sobre a
imoralidade do homoerotismo como referencia de fundo para argumentar que eram
necessárias atitudes sociais mais tolerantes para com os indivíduos depravados sobre
as quais escreviam (GREEN, 2000).
Nos anos 60, os movimentos de jovens e estudantes propiciaram várias
discussões na sociedade e na mídia sobre a sexualidade, os papéis de gênero e a
homossexualidade.
A discussão acerca dos saberes sobre a diversidade sexual no Brasil,
ganha força nos anos 70, quando se dá início ao movimento comunitário homossexual.
Associações e grupos se multiplicavam pelo País, na luta pelos direitos humanos de
gays, lésbicas, transgêneros e bissexuais (GLTB).De acordo com os dados do
programa Brasil sem homofobia (2004), atualmente, há cerca de 140 grupos
espalhados por todo o território nacional.
Em 1973, em grande parte devida ás pressões dos movimentos
homossexuais, a homossexualidade deixou de ser classificada como doença pela
Associação Americana de Psiquiatria. Médicos e psicoterapeutas passam a aceitar a
idéia de que a homossexualidade é uma orientação sexual tão aceitável como a
heterossexualidade (FRY e MACRAE, 1983).
1.4. Homossexualidade e o “gueto”
O que vemos hoje, ao lado dos avanços dados no trato da questão
27. 27
homossexual no decorrer da história, é uma crescente manifestação homofóbica que 4
vai desde assassinatos de homossexuais, até a utilização de simples símbolos que
confirmam a discriminação e o preconceito.
A apreensão do conceito de preconceito aqui, é a indicada por Rodrigues,
Assmar e Jablonski (1999), que traz sua definição como uma atitude hostil ou negativa
com relação a um determinado grupo, já a discriminação referese a comportamentos
(expressões verbais, condutas agressivas,etc.)
Para fugir da violência e da intolerância da sociedade contra sua
subjetividade homossexual, os homossexuais têm buscado cada vez mais espaços
onde possam expressar sua sexualidade, livres de discriminação e preconceito – o
“gueto” homossexual. Para Loiola (2006) o “gueto” homossexual, ao mesmo tempo em
que contribui para a socialização com outros indivíduos de mesma orientação sexual,
segregaos.
Assim, o “gueto”:
constituise como o lugar que se consolida a segregação,onde serão
manifestados, livremente, os sentimentos interiorizados, inibidos pela
dinâmica social.É o lugar fechado, onde os iguais na (orientação sexual) se
encontram, ou os diferentes do mundo sistematizado se escondem.
(LOIOLA,2006, p.92)
A dinâmica social acaba impondo ao homossexual, desde muito cedo, a
idéia de que a homossexualidade é algo inferior, sujo, pervertido. O homossexual,
internalizando essas idéias, acaba por sentirse segregado, buscando os “guetos”
como locais de livre expressão, entre os “iguais”. São locais nos quais se vive, sexual e
socialmente, a homossexualidade, sem nenhuma repressão. Dessa maneira, os
indivíduos se agrupam nos “guetos”, cedendo à pressão social, para sentiremse
aceitos e não sofrerem punições.(RODRIGUES, ASSMAR e JABLONSKI, 2001).
4
O termo homofobia é utilizado para descrever a aversão aos sujeitos que têm orientação sexual e afetiva por
pessoas do mesmo sexo.A homofobia é uma ideologia antihomossexual que se manifesta de múltiplas
formas:agressão física, chantagem e extorsão, xingamentos, ofensas verbais, discriminação, constrangimento,
humilhação e assassinato.(LOIOLA, 2006).
28. 28
Para Trevisan (2007) discutir as causas da homossexualidade é algo
dispensável e equivocado. A homossexualidade é fato consumado, não precisa de
justificação causal. Ao questionar a origem de algo diferente, já se está sugerindo a
idéia de um desvio da normalidade.
Nesse sentido:
(...) criar conceitos fechados de homossexual (ou bissexual) acabaria servindo
mais aos objetivos da normatização do que a uma real liberação da
sexualidade, inclusive por incentivar diretamente a política do gueto, do
separatismo e do racismo sexual, numa discriminação às avessas
(TREVISAN, 2007, p. 36).
Desse modo, os homossexuais, considerados desviantes da normatividade
padronizada, buscam espaços onde possam expressar livremente sua sexualidade
livres de discriminações e preconceitos.
Numa sociedade como a nossa em que a identidade homossexual é
estigmatizada, a criação do ”gueto“ (bares, discotecas, saunas e outros espaços
direcionados para o público homossexual) tem sido uma estratégia utilizada pelos
homossexuais não só para socialização de pessoas com mesma orientação sexual,
mas também para proteção contra manifestações discriminatórias, preconceituosas e
homofóbicas. Assim, o “gueto” homossexual passa a ser um ambiente social seguro,
onde o individuo pode expressar sua sexualidade sem preocupação ou ansiedade.
Esses espaços – “os guetos” – para além de um local de diversão são
criados pela rejeição da sociedade as manifestações públicas da subjetividade dos
homossexuais. Nesse sentido, é mister destacar a definição clássica de “gueto”
apontada por Pollak (1985) como “bairros urbanos habitados por grupos segregados
do restante da sociedade, levando uma vida econômica relativamente autônoma e
desenvolvendo uma cultura própria” (p.70).
O uso do termo “gueto” nesse trabalho referese aos locais nos quais os
homossexuais se encontram para, além da diversão, se reconhecer como sujeitos
através da interação com outras pessoas que compartilham uma experiência similar
29. 29
de segregação social e para vivenciarem sua sexualidade livre de preconceito e
discriminação.
O termo ”gueto” tem sido usado por diversas ciências. Mas, de uma forma
geral, há convergência de significado, como uma área:
urbana restrita, uma rede de instituições ligadas a grupos específicos e uma
constelação cultural e cognitiva (valores, formas de pensar ou mentalidades)
que implica tanto em isolamento sóciomoral de uma categoria estigmatizada
quanto o truncamento sistemático do espaço e das oportunidades de vida de
seus integrantes.(WACQUANT, 2004, p.156).
O referido autor indica que o uso do termo se tornou disseminado e
aplicado conforme o senso comum que prevalece nas sociedades, de modo que não
há definição precisa do mesmo nas diversas áreas do conhecimento.
A palavra “gueto” foi inicialmente utilizada para referirse à consignação
forçada de judeus por autoridades políticas e religiosas da cidade. Nesses casos, os
judeus viviam em áreas cedidas e restritas, onde praticavam seus negócios e seguiam
seus costumes. O termo deriva de giudecca, borghetto ou gietto, do idioma italiano.
Seu significado passou por várias modificações, das quais se destaca a utilização do
termo para referirse aos locais específicos dos homossexuais ‘ em resposta ao
estigma e à libertação gay’ (LEVINE citado por WACQUANT, 2004, p.157).
Wacquant (2004) indica que para a categoria dominante a finalidade do
“gueto” é circunscrever e controlar, o que se traduz no que Max Weber chamou de
‘cercamento excludente’ da categoria dominada “(WACQUANT, 2004, p.158). Para os
dominados o “gueto” tem o papel de integrar e proteger, pois proporciona a
socialização de seus membros e livraos do contato permanente com os dominantes.
Para Pinheiro (2003), os “guetos” são:
Locais criados pela rejeição social da expressão pública desta subjetividade,
o que força as pessoas a buscar lugares para a sua expressão, com uma
cultura própria, extremamente apartada. Desta forma, o gueto surge como
espaço público de afirmação da subjetividade e da existência da comunidade
homoerótica. (p.59)
30. 30
Nunan e Jablonski (2002) indicam que os homossexuais procuram os
“guetos”, pela segregação forçada por causa da discriminação, por preferir manter
contato com pessoas similares compartilhando identidade e por poder ser eles
mesmos, mostrando sua orientação sexual sem preocupação ou ansiedade.
Toda essa situação de rejeição social que acaba empurrando os
homossexuais para os “guetos”, estimula as relações de objeto.Ou seja, os
homossexuais acabam tendo de contentarse com relações passageiras e com a
coisificação das relações.Viver uma relação afetiva mais sólida implica em ter que se
expor, enfrentando toda uma carga de preconceito que isso pode produzir, uma vez
que, uma relação mais humana e edificante existe para além do “gueto”.
CAPÍTULO II: PASSOS METODOLÓGICOS DA INVESTIGAÇÃO
2.1. Aproximação com o objeto – “gueto”
Para me aproximar do objeto, realizei visitas a duas boates destinadas ao
público LGBTT. Fiz observação direta no “gueto” homossexual, compreendendo que
esse tipo de observação tem por objetivo registrar e recolher todos os componentes
da vida social do meio observado e que se apresentem à percepção do observador.
Dessa forma, pude testemunhar os comportamentos, atitudes, praticas dos indivíduos
31. 31
nos próprios locais em que tais fatos acontecem, sem alterar o seu ritmo natural ou
cotidiano (PERETZ, 2000).
Na boate “A”, o espaço físico é pequeno, mas aconchegante, com dois
andares, os dois destinados à dança. Há um bar que vende diversos tipos de bebidas,
nos dois ambientes. Luzes se espalham por todo o local, de baixa intensidade, e das
mais variadas cores, com direito a globo luminoso e jogos de luz. Um DJ realiza a
seqüência de musicas, e não há pausas entre elas. Em alguns momentos, percebi
certa preferência por alguns cantores, que não identifiquei quem eram, mas o publico
gritava, dando resposta que tinham aprovado a escolha do DJ.
O público, eminentemente masculino, veste as mais variadas roupas, de
diversos estilos, e alguns utilizam óculos escuros, alem de gel no cabelo e outros até
maquiagem. Observei presença restrita de travestis, e um deles falou que eles não são
muito bem vindos naquela boate (preconceito???). Por conta do intenso barulho da
musica, não consegui distinguir bem as conversas, nem esmiuçar a linguagem, mas
percebi que há uma variação também grande de estilos e linguagens, com uso de
expressões próprias, e alguns se tratam e se abordam no feminino ( “Dá licença que
estou precisando ir ao banheiro, estou morta de apertada”). Esse uso do feminino
para tratar de si e dos outros foi algo muito comum que observei no lugar.
Brigas, não vi. O lugar é calmo, e muito raramente se vê discussão ou se
precisa de apoio da segurança, me informa um dos freqüentadores. O que mais
observei foi muita dança, todos parecem envolvidos pela musica, muito contagiante.
Observei poucos casais, que se beijam e se abraçam livremente. A presença de
casais só aumentou no fim da noite, dentro da madrugada, e um amigo informa que é a
hora que todos procuram alguém pra beijar.
Há um local denominado de dark room, no qual a luminosidade é mínima, e
os freqüentadores têm mais “liberdade” com seus parceiros, e um amigo informa que
nesse local há muito sexo, livre. Passei pelo local, mas não consegui enxergar muita
32. 32
coisa.
Há alguns que tiram a blusa, e dançam entre os demais, e geralmente são
pessoas de corpos muito bonitos, “malhados”.
O ambiente funciona ate seis da manha, quando então a casa fecha.
Permaneci no local ate três da manha, e amigos ainda me criticaram
porque fui “muito cedo”.
A boate “B”, os cenários são relativamente parecidos, mas há, nessa,
outros ambientes, e esses pude observar com mais clareza. Há uma sala em que são
exibidos filmes de natureza pornográfica, e segundo alguns amigos que me
acompanharam, há sessões de masturbação coletiva e individual, livremente e na
frente de demais pessoas. Não entrei nesse ambiente,mas pela descrição e
observação externa à sala, o ambiente é sempre cheio, e há uma rotatividade grande
para dentro e fora dessa sala. Há também um dark room, em frente à sala de cinema
pornográfico. Dessa a sala, há também um grande fluxo de freqüentadores, mas
observei que a permanência dentro dessa sala é mais rápida do que na sala de
cinema. Alguns amigos me informaram que muitos vão apenas para observar, e não
participam ativamente. Percebi ainda que, como no caso da boate “A”, o publico é
eminentemente masculino, mas vi algumas mulheres no local. Na parte da frente da
boate, há uma pista de dança, e mais uma vez, observei muito envolvimento com a
música e com a dança no local. Na parte de trás da boate, há um local de ar livre, onde
se vendem bebidas e há musica ao vivo, o “pagode”, e os freqüentadores dispõem
também de espaço para dança. Lateralmente, há banheiros coletivos, e, amigos
novamente descreveram que nesses banheiros o sexo acontece publicamente.
Segundo amigos que freqüentam mais assiduamente o local, essa boate é mais
comumente freqüentada por pessoas de classe social mais baixa, devido , sobretudo,
ao valor da entrada, mais acessível que a da boate “A”.
33. 33
2.2 Natureza do estudo
Ao realizar uma pesquisa, cabe ao pesquisador, questionar a realidade
compreendendo que qualquer conhecimento é apenas recorte e que ao lado da
preocupação empírica deve haver a preocupação teórica, uma vez que é preciso ter
conhecimento teórico para captar a realidade. A realidade existe independente da
interpretação, entretanto, para conhecêla é preciso interpretála (DEMO, 1999).
É mister destacar que enquanto a teoria coloca a discussão sobre
concepções de realidade, o método coloca a discussão sobre concepções de
ciências.
Portanto, na pesquisa é essencial também a preocupação metodológica,
visto que ela é um dos horizontes estratégicos da pesquisa, uma vez que alcança a
capacidade de discutir de forma criativa, caminhos alternativos para a ciência. O
método é que vai diferenciar a ciência de outros saberes, pois a ciência é assumida
como conhecimento metódico, cuidadoso e testado.
Andery (1996) aponta que o conhecimento em Marx:
(...) não se produz, portanto a partir de um simples reflexo do fenômeno, tal
como este aparece para o homem; o conhecimento tem que desvendar, no
fenômeno aquilo que lhe é constitutivo e que é em principio obscuro; o método
para a produção desse conhecimento assume, assim, um caráter
fundamental: deve permitir tal desvendamento, deve permitir que se descubra
por trás da aparência o fenômeno tal como é realmente, e mais, o que
determina, inclusive, que ele apareça da forma como o faz. (ANDERY, 1996,
p. 413).
Assim, em Marx, para construir conhecimento é preciso desvendar no
fenômeno o que lhe é constitutivo, procurando descobrir o que está por trás da
aparência, considerando que os fenômenos constituemse, fundamse e
transformamse a partir de múltiplas determinações.
Desse modo, Marx com seu método materialista, histórico e dialético, nos
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dá suporte para compreendermos o real e construirmos conhecimento. A partir dessa
compreensão, a pesquisa social a que me propus realizar, foi norteada pelo método
materialista, histórico e dialético de Marx.
Para elucidar o objeto que tomei para investigação realizei uma pesquisa
bibliográfica e documental buscando informações e conhecimento através da literatura
especializada.
Na pesquisa de campo, visando abranger a complexidade do objeto, a
abordagem foi feita através de uma pesquisa qualitativa, buscando descobrir o
significado das ações e das relações que se ocultam nas estruturas sociais, captar o
universo das percepções das emoções e das interpretações dos informantes no seu
contexto (MARTINELLI, 1999).
A técnica utilizada para obtenção das informações foi a entrevista
semiestruturada, contendo questões abertas, visando captar as falas espontâneas
dos sujeitos participantes da pesquisa. Tal entrevista permite que o entrevistado fale
livremente sobre os assuntos que vão surgindo, como desdobramento do tema, dando
oportunidade para que o mesmo coloque outras questões relacionadas com a questão
central. (HAGUETTE, 1999).
Dessa forma, a investigação teve como principal instrumento de coleta de
dados a entrevista na qual foram feitas as seguintes perguntas aos homossexuais
participantes da pesquisa: Como você se percebeu homossexual?A família sabe de
sua orientação sexual?Como reagiu ao saber?O que os amigos significam para
você?Você possui mais amigos homossexuais ou heterossexuais?Qual o lugar que
você prefere freqüentar? Por quê?O que o “gueto” representa para você?Quais os
tipos de discriminação você sofre fora dos “guetos”?Você acha que os homossexuais
devem se expor ou não?O que seria mais incomodo para você na reação das
pessoas?Há algo em que você tenha vergonha?O que você pensa acerca da sua
orientação sexual?Como você se sente?As pessoas costumam ter alguma reação a
você por conta da sua orientação sexual?Você acha que o público LGBTT freqüenta
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um determinado tipo de lugar?Quais as características desse lugar?Por que as
pessoas freqüentam?
Essas perguntas, portanto, instigam e movem essa pesquisa que tem como
objetivo geral desvendar os reais significados do “gueto” homossexual em Fortaleza, e
como objetivos específicos:desvelar o significado do “gueto” para os homossexuais;
identificar os tipos de discriminações sofridas pelos homossexuais entrevistados.
Através da articulação das respostas dos sujeitos entrevistados com a
literatura consultada, tentei elucidar os objetivos do estudo.
2.3. Campo da pesquisa
A pesquisa de campo foi realizada no GRAB (Grupo de Resistência Asa
Branca) situado na Rua Teresa Cristina, 1050, Centro – Fortaleza Ceará.
Fundado em 1989, o GRAB é uma organização da sociedade civil, sem fins
lucrativos, com base comunitária, sendo pioneira no estado do Ceará, na defesa dos
direitos de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais (LGBTT). Busca de forma
permanente a inclusão dos/das homossexuais, através do ativismo, pela construção da
cidadania e da defesa dos direitos humanos das comunidades LGBTT. Tem variados
projetos destinados a facilitar a discussão do tema na sociedade, através de oficinas,
encontros, projetos comunitários, sendo inclusive atualmente reconhecido como de
Utilidade Publica Municipal (Lei 7066 de 27/03/1992). Presta assessoria jurídica e
psicosocial ás pessoas afetadas por discriminação de prevenção das DST/AIDS e
Hepatites virais e apoio a pessoas vivendo com HIV/AIDS, com fornecimento orientado
e gratuito de preservativos. Ainda, disponibiliza um centro de documentação
(biblioteca e videoteca) sobre Direitos Humanos, Homossexualidade e DST/AIDS para
toda a sociedade.
O GRAB, em seus vinte anos de existência, tem atuado diretamente no
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enfrentamento ao preconceito por orientação sexual em diversas instâncias da
sociedade, através da construção da cidadania homossexual na premissa de que esta
perpassa todas as esferas da vida humana, exigindo uma atuação plural que
contemple a justiça, a saúde, a educação, a cultura, a formação profissional,
contribuindo para que essa população vivencie plenamente seus direitos sexuais e
sociais. Desta forma, a instituição tem desenvolvido diversas ações e projetos nas
áreas da Saúde (prevenção das DST/HIV/Aids e apoio às pessoas vivendo com
HIV/Aids), Qualificação Profissional (cursos de informática e centro de estética),
Direitos Humanos (assistência jurídica e psicosocial gratuita em casos de
discriminação por orientação homossexual), Ativismo (politização e luta pelo controle
social das políticas públicas) e Organização das Paradas pela Diversidade Sexual no
Ceará.
No período de 1995 a 2006, o GRAB realizou Projetos na área de
Assessoria Jurídica, Prevenção e Cidadania, junto à população de gays, bissexuais,
trabalhadores do sexo e transgêneros.Em 2000, desenvolveu o Projeto HIVIDAARTE,
junto a 30 jovens, de 14 a 21 anos, portadores de HIV/Aids e filhos de portadores, para
a capacitação profissional.
Realiza as Paradas pela Diversidade Sexual no Ceará, desde 1999, tem
participado das Conferências estaduais e nacionais de Direitos Humanos e das
reuniões para a formulação do Programa Brasil Sem Homofobia – Programa de
combate à violência e à discriminação contra LGBTT e de promoção da cidadania
homossexual, da SEDH (Secretaria Especial de Direitos Humanos) – Presidência da
República.
O quadro de profissionais do GRAB é formado por pessoas habilitadas em
gerenciamento e elaboração de projetos, ativismo, controle social, desenvolvimento
institucional, advocacy intervenção etc., que o credencia a utilizar as ferramentas
metodológicas empregadas, baseadas em metodologias participativas, numa
construção entre pares e de empoderamento comunitário.Dessa forma, tem
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desenvolvido ações sócioeducativas e de intervenção social, sob o princípio de
prioridade em melhorar a qualidade de vida de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e
transexuais e estreitar, cada vez mais, o diálogo entre o movimento comunitário
homossexual e a sociedade civil.
A Diretoria do GRAB, de acordo com seu estatuto, é formada por um
presidente, um vicepresidente, primeiro e segundo secretários, primeiro e segundo
tesoureiros e um conselho fiscal composto por três filiados do GRAB e seus
respectivos suplentes.
O GRAB tem como missão, melhorar a qualidade de vida de lésbicas, gays,
bissexuais, travestis e transexuais; e pessoas vivendo com HIV/Aids, no estado do
Ceará.Para tanto, a instituição desenvolve hoje os seguintes Projetos: Entre nós;
SOMOS ;Diversidade sexual e Cidadania; Centro de Referência LGBTT Janaina
Dutra; OBALUAIÊ e o Projeto SAGAS.
O Projeto Entre Nós, realiza ações educativas em prevenção das
DST/HIV/Aids junto a gays e outros Homens que fazem Sexo com Homens (HSH) em
13 municípios cearenses e em 15 bairros da periferia de Fortaleza.
O SOMOS desenvolve ações voltadas ao fortalecimento institucional de
ONGS de promoção dos direitos humanos de homossexuais, nas áreas de
intervenção, advocacy e desenvolvimento organizacional.O Projeto assessora hoje,
mais de 15 grupos em todo estado do Ceará.
O Projeto Diversidade Sexual e Cidadania, têm como objetivo capacitar
profissionais da educação, especialmente, os professores da rede pública municipal
de Fortaleza a estarem habilitados para a abordagem e discussão sobre sexualidade
humana e diversidade sexual, nos espaços escolares, privilegiando o prisma do
enfrentamento ao preconceito e a discriminação.
O Centro de Referencia LGBTT Janaina Dutra oferece serviços de
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assessoria jurídica e psicosocial e de mediação de conflitos em casos de
discriminação por razão da orientação sexual.O atendimento é feito por uma equipe
multidisciplinar, formada por advogada, estagiários de Direito, psicóloga e assistente
social.
O OBALUAIÊ realiza ações preventivas à transmissão das hepatites virais,
através da mobilização e parceria entre ativistas LGBTT, rede pública de saúde,
especialmente as equipes do Programa de Saúde da Família (PSF) e autoridades
afrodescendente da área de abrangência do projeto.
O Projeto SAGAS faz parte de uma parceria entre a Fundação Schorer –
Instituição Holandesa voltada para o público LGBTT – com quatro ONGS no Brasil: o
GRAB no Ceará, a ABIA (Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids) e Grupo
ArcoÍris no Rio de Janeiro e o Grupo Somos no Rio Grande do Sul.O SAGAS/GRAB
realiza atividades que tem como objetivo estimular a prática do sexo seguro e
contribuir para a autonomia dos jovens homossexuais e outros Homens que fazem
Sexo com Homens – HSH na Cidade de Fortaleza – Ceará.As atividades de interação
do Projeto SAGAS/GRAB iniciaram em 2008 e conta com diversas ações: Sobre nós:
diálogos e sexualidades – atividades diretamente com os jovens; Atividades de
pesquisa; Parcerias e Desenvolvimento Institucional.
Nas primeiras terçasfeiras de cada mês o GRAB realiza reuniões aberta
ao público, onde são discutidos temas como: Prevenção e Sexo Seguro, Gênero e
Sexualidade, Cidadania Homossexual, A Diversidade Sexual e o Parlamento, o
Movimento Homossexual e a Luta Contra a Aids.(GRAB, 2009)
A escolha do GRAB se deu por conta de sua visibilidade na sociedade
cearense, como um grupo de referência quando o assunto é a temática
homossexual.Além disso, é uma entidade que tem como principal bandeira de luta o
enfrentamento ao preconceito por orientação sexual em diversas instâncias da
sociedade, divulgando informações corretas e positivas da homossexualidade e
esclarecendo ao público LGBTT a importância da organização política na luta pelos