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O Aliciamento nos Esportes Eletrônicos (e-sport)
Por Helio Tadeu Brogna Coelho1
Uma prática um tanto comum entre os clubes esportivos é a busca pelo
rompimento contratual de atletas talentosos que jogam em determinados times, ou que,
estrategicamente, fariam falta para o clube ao qual se dedicam. Essa prática corriqueira
é conhecida como “aliciamento” e, hoje, também vem percorrendo o cenário do esporte
eletrônico (e-sport), o que faz despertar atenção redobrada sobre essa conduta.
As críticas que estimulam o debate sobre o aliciamento são vistas, normalmente,
sob duas óticas: a legal e a ética. A partir daí, surgem algumas questões que merecem
ser avaliadas com mais afinco: O que é, efetivamente, o aliciamento? O aliciamento de
cyber-atletas possui previsão legal? É uma prática ética, ou antiética? Quais seriam as
penalidades decorrentes de sua articulação? E quais os mecanismos de proteção
contratual?
As respostas a essas perguntas sempre são alvo de dúvidas e profundo debate no
cenário desportivo e, agora, também afetam os contratos dos novos atletas de jogos
eletrônicos (cyber-atletas).
Inicialmente é importante diferenciar duas situações. De um lado, a análise deste
texto tomará como critério o aspecto legal e contratual acerca do aliciamento. De outro,
temos as regras específicas de torneios e organizadores que também tratam do tema.
Entretanto, neste último caso – e ressalvados os entendimentos diferentes – as regras do
jogo em si não seriam, em tese, campo adequado para regular a relação existente entre
os clubes e os atletas – a despeito de diversos organizadores fazerem isso.
Feita essa observação, é importante, agora, tecer uma breve consideração acerca
da etimologia da palavra “aliciar”, e como esse instituto incide na prática em meio aos
clubes desportivos e seus atletas.
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Advogado, pós-graduado em Direito e Tecnologia da Informação pela Universidade de São Paulo
(USP), Diretor Jurídico da Associação Comercial, Industrial e Cultural de Games (ACIGAMES), Diretor
Jurídico da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico (ABCOMM). E-mails:
helio@terrascoelho.com.br / heliotbc@gmail.com / https://br.linkedin.com/in/helio-tadeu-brogna-coelho-
6b779777
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A palavra “aliciar” advém do latim “ad lacere” ou “alliciare”, que em tradução
livre e literal significa atrair alguém para perto. A sua finalidade precípua, portanto, é
seduzir ou conquistar alguém para fazer ou deixar de fazer alguma coisa, modificando,
assim, aquele estado ou situação inicial em que o aliciado se encontrava.
Em meio ao contexto desportivo a essência da palavra não muda, ou seja,
consiste em convencer um determinado atleta a, normalmente, romper o contrato que
mantém com o clube a qual se dedica para, então, firmar uma nova relação contratual
com um outro clube.
Durante a abordagem, é comum que o aliciador prometa uma contrapartida ao
aliciado, atual ou futura, certa ou determinada – como, por exemplo, prêmios elevados,
a valorização da imagem do atleta, o aumento de seu valor comercial, entre outros –,
com o fim específico de consumar a sua ação.
Contudo, para caracterizar o aliciamento não é necessário, obrigatoriamente, a
existência de resultado ou proveito imediato em favor do atleta, bastando, para tanto,
que ocorra a efetiva rescisão involuntária do contrato que ele mantinha junto ao clube.
A simples comunhão de interesses das partes (aliciador e aliciado) também pode,
em tese, configurar a prática, mas desde que haja, como dito, consumação do ato que
gera a rescisão do contrato.
Por sua vez, o aliciamento pode ocorrer por qualquer forma ou meio de
execução, e pode ser direto ou indireto. Assim, a prática da sedução não é limitada ou
vinculada, necessariamente, a uma determinada forma, podendo ser, respectivamente,
presencial (inclusive à distância, ou por meios eletrônicos) entre os próprios
interessados, ou por meio de representantes (procurador, empresário, preposto etc).
Deve-se lembrar de que no aliciamento não há a participação (ou consentimento)
do clube tomador dos serviços que é, por sua vez, o sujeito prejudicado ou enganado
pelo terceiro aliciante e o pelo atleta.
O debate ganha força e relevância na medida em que o aliciamento, no geral,
não possui segmentação específica na legislação vigente do direito desportivo – onde os
cyber-atletas, em tese, se enquadrariam –, sendo que, via de regra, são as Confederações
ou os órgãos máximos da Justiça Desportivas – e oficialmente reconhecidas – que
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acabam tratando desse instituto e delimitando os efeitos jurídicos e penalidades para o
caso de aliciamento.
Quanto ao ponto de vista da legalidade, a Lei 9.615/982
, em seu art. 11, VI e art.
50, por exemplo, delegou ao Conselho de Desenvolvimento do Desporto Brasileiro
(CDDB), a competência para editar e aprovar os Código de Justiça Desportivo e suas
alterações.
E por sua vez, o Código3
, ao ser editado, estabeleceu expressamente, em seu art.
240, a proibição do aliciamento, inclusive com a previsão de multa.
“Art. 240. Aliciar atleta autônomo ou pertencente a qualquer
entidade desportiva.
Pena: multa, de R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil
reais), e suspensão de sessenta a cento e oitenta dias.
Parágrafo único. Comprovado o comprometimento da entidade
desportiva no aliciamento, será ela punida com a pena de multa de
R$ 100,00 (cem reais) a R$ 100.000,00 (cem mil reais).”.
Mas, a questão que ainda persiste é sobre o enquadramento legal dos cyber-
atletas na aludida lei desportiva, eis que, como se sabe, não possuem ainda
reconhecimento específico sobre as suas atividades4
– notadamente acerca do
“profissionalismo” –, e o caráter lúdico dos jogos eletrônicos são considerados
informais, o que lhes prejudica sob o ponto de vista da lei.
Porém, apesar de a categoria (cyber-atleta) não estar diretamente protegida sob o
manto da legalidade, a verdade é que o Código de Justiça Desportivo pode, sim, ser
tangenciado como parâmetro para fundamentar a proibição desta prática.
Diante disso, como a divergência recai sobre o enquadramento do cyber-atleta
como profissional ou não (e se a atividade é formal e reconhecida) é possível afirmar
que, uma saída coerente para solucionar esse problema, é prover a correta adequação
dos contratos de trabalho dos jogadores a fim de entabular situações específicas sobre o
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http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9615consol.htm
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https://cdn.cbf.com.br/content/201507/20150709151309_0.pdf
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Neste aspecto, é importante observar que a Lei 9.615/98 prevê no art. 1º, §2º, que a prática desportiva
não-formal é caracterizada pela liberdade lúdica de seus participantes, o que, pelo menos em tese,
configuraria a possibilidade aplicar aos cyber-atletas o Código de Justiça Desportiva. Contudo, o próprio
Código estabelece, em seu art. 1º, que sofrem a incidência da norma apenas o desporto formal.
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aliciamento, inclusive, com a previsão de multa ao profissional caso venha a quebrar o
ajuste, tudo isso para atribuir segurança jurídica às relações entre os atletas e os clubes.
Com efeito, existe, ainda, uma segunda possibilidade de solução desse imbróglio
– e que pouco se debate na prática, mas que, a nosso ver, tem perfeito cabimento à
atividade dos cyber-atletas. Trata-se, pois, de preencher essa lacuna existe na legislação
brasileira com outras fontes alternativas do direito.
Para tanto, é possível aplicar, por analogia, o disposto no art. 608 do Código
Civil, que regulamenta a “prestação de serviços” em geral e proíbe, expressamente, o
aliciamento.
O art. 608 do Código Civil diz o seguinte:
“Aquele que aliciar pessoas obrigadas em contrato escrito a prestar
serviços a outrem pagará a este a importância que ao prestador de
serviço, pelo ajuste desfeito, houvesse de caber durante dois anos.”.
É bem verdade que os atletas que mantém vínculo de emprego com os clubes
são considerados, tecnicamente, empregados, nos termos da Lei Pelé e da Consolidação
das Leis do Trabalho. Entretanto, esses mesmos atletas não deixam de ser,
concomitantemente, prestadores de serviços, o que, via de regra, atrai a incidência do
artigo mencionado.
E o dispositivo acima, como se viu, está inserto numa lei geral e é claro ao
dispor sobre o aliciamento, o que faz suprir aquela lacuna inicial de falta de previsão
legal sobre o enquadramento do cyber-atleta, de maneira que acaba por contribuir,
consideravelmente, com o tema, vez que nos ajuda a torna-lo mais claro e assertivo,
especialmente no que tange às sanções decorrentes do aliciamento.
Muito embora a aplicação do Código Civil ao direito desportivo seja meramente
subsidiária (fonte alternativa do direito), não se pode afastá-lo por inteiro quando a
própria situação o exige, pois, como se vê, a ausência de previsão na Lei Pelé
invariavelmente reclama a necessidade de nos socorrermos do aludido instituto.
Deste modo, admitida a aplicação do art. 608 do Código Civil nas relações
jurídicas existentes entre cyber-atletas e os clubes, consequentemente aplica-se também
as penalidades lá emolduradas.
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As sanções decorrentes do aliciamento, normalmente, quando constantes em
contrato no Código de Justiça Desportiva, são prefixadas, ou seja, preveem um valor
fixo a título de multa a ser pago ao clube prejudicado, o que dispensa, em princípio,
qualquer prova por parte do terceiro lesado.
E o artigo 608 do Código Civil não é diferente, pois traz em seu bojo a
estipulação, em favor do clube prejudicado (tomador dos serviços do atleta), a multa
equivalente a 24 (vinte e quatro) vezes o salário que o profissional aliciado receberia a
título de remuneração.
De acordo com o dispositivo, quem deve pagar o preço é o aliciante que
provocou a situação de ruptura do contrato do atleta com o seu clube.
Com isso, conclui-se que a prática do aliciamento encontra respaldo em diversas
fontes do Direito que, mediante interpretação analógica, torna possível o preenchimento
da lacuna afeta ao tema.
É bem verdade que, afora esse debate sobre a existência ou não de previsão legal
acerca do aliciamento, o fato é que, sob o crivo da ética e da moral, é evidente que a
prática, quando consumada, afronta inexoravelmente os bons costumes e corrompe a
índole dos envolvidos, ao passo que deveriam manter foco na competição – apesar de a
situação, em tese, poder ser confundida, por vezes, com a livre concorrência ou, talvez,
até mesmo com a concorrência desleal.
De qualquer forma, sabe-se que quando o ser humano se encontra em
competição, tomado pela forte adrenalina, fica mais propenso a quebrar a barreira da
ética para não sucumbir à ação do adversário, e é isso que, muitas vezes, leva os rivais a
“aliciarem” jogador chave para, por vezes, apenas solapar a estrutura do time
concorrente.
Neste contexto, é altamente recomendável aos profissionais da área (times e
cyber-atletas) que, na prática, quando houver indícios de aliciamento de jogadores e a
organizadora do jogo (ou campeonato) negar a participação do clube ou do profissional,
sob alegação de aliciamento, essa situação seja avaliada por profissionais qualificados
da área jurídica para sopesar as provas do caso concreto e, se o caso, submeter a
demanda ao Poder Judiciário para promover a defesa dos interesses dos envolvidos.
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Sobre o Autor
Helio Tadeu Brogna Coelho, é advogado, pós-
graduado em Direito e Tecnologia da Informação
pela Universidade de São Paulo (USP). Diretor
Jurídico da Associação Comercial, Industrial e
Cultural de Games (ACIGAMES). Diretor Jurídico
da Associação Brasileira de Comércio Eletrônico
(ABCOMM). Sócio do escritório Terras Coelho
Advogados. São Paulo, 21 de fevereiro de 2.018.
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