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28 – 29
Capítulo 2
Revolução ou piada?
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30 – 31
Pergunte a qualquer aluno do primeiro grau
em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com
toda a segurança: No dia 31 de março.
Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de dé-
cadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais
adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades
oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e
seus desdobramentos pelos próximos 21 anos.
Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movi-
mento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje.
No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer
amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também ti-
nham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas,
pois as lorotas eram muitas e criativas.
Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira,
noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior
seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam
proporções globais.
Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele
diaasmaisvariadaspotocas.Desdeamortesúbitadealguémdequem
não se gostava até que a padaria de um adversário político estava dis-
tribuindo pão de graça.
Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote.
Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redonde-
zas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o
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[2]Revoluçãooupiada?
lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado
e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, na-
riz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te
compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do
Universo.
Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu
Mulambinhotinhaacertadonamilhardojogodobicho.Receberaum
dinheirão e estava se preparando para arribar.
Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu
pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissio-
nais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em
bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas
daAvenida,comosechamavaazonadebaixomeretríciodeBoiPinta-
do, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popu-
lar xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares ser-
viços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com
toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa.
A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do deve-
dor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avi-
sos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a
população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril,
fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não
embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à
intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros
para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa
do caloteiro.
Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe
estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do
golpe,estariamdandocabimentoaumapiadaprontaqueomundoin-
teiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando
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comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas
não aconteceu nenhuma ação golpista.
Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos mili-
tares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de pri-
meiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró
por falar tão cândida verdade.
Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo
repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse
a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época
realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, tal-
vez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter
ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele.
Pelosim,pelonão,atéhojeprevaleceadataerrada.Énodia31demar-
ço que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes
para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares,
fazendoouvidosdemercadoràorientaçãodosgovernoscivis,emitem
Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revo-
lução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora.
As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por con-
ta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em
decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área
educacional.
A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mun-
do sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro
dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum
sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada
de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas
tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se
deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro.
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[2]Revoluçãooupiada?
É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo me-
nos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acon-
tecendo de modo bastante improvisado.
Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e
principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a
ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças,
o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que
uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada
do governo, a situação fugiu do controle.
Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos
no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo
golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria.
Naquelamadrugadade1ºdeabril,umcertogeneralOlímpioMourão,
sediadoemMinasGerais,pôsastropasquecomandavaemmovimen-
to, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe
como fato consumado.
O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe
demágica.Tantoqueaomeio-diaopresidenteJoãoGoulart,quetodo
mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio
de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel
Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros
governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas.
Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro,
no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas
nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível
golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo
estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar
exatamente o quê.
Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram infor-
madas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque
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o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de
alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absoluta-
mente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer.
Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, por-
que o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava
em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na
calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a
agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O mo-
vimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população tam-
bém tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava.
Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pen-
sadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia sim-
plesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região,
aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada
adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria,
das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no
Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre so-
nolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco.
De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e
com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais
nada menos que Továrish Lói.
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[2]Revoluçãooupiada?
Negro vai virar macaco, branco vai virar banana
Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o
tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam
entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais.
Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação.
Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma na-
tureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista decla-
rado e afamado.
Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho
registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da
história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva.
O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marqui-
nhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo.
O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram
Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Be-
nário de Almeida e Silva.
O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado
pelopaidesdeoberçodeTovárish,ganhounaescolaaalcunhadeLói,
o apelido pegou composto.
Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que
não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudi-
delas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesa-
do, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do
sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado
Cumpade Deca.
Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca
vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava.
Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, in-
culta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega
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o filósofo Zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel
Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática.
Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que
acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que
porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona
Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor
Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo ten-
tada pelo demônio em pessoa.
Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anuncian-
do, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha
sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para comparti-
lhar com a turma. Querem ouvir?
De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado
uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de
quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de
hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo
sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados,
ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse
em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar
o grupo.
Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lis-
ta o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas
um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de
mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma
lorota de longe.
Coisascomoenfiarumpedaçodecigarroacesonaorelhadeumburro
carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando
o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulan-
do ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão.
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[2]Revoluçãooupiada?
Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um
grande prejuízo para o proprietário da carga.
Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de
algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada
saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar,
levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integrida-
de de braços, costelas e até do pescoço.
Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de
fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para
o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com
toda a força, provocando uma forte pancada.
Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declara-
do do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca,
com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfia-
ram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que
Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada.
Noprimeirodeabril,sofisticavamaspatranhas.Noanoanterior,apro-
veitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo gru-
po adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio,
disseminou o pânico nos Estados Unidos.
Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro,
localmaisaltodacidade,umbalãoemformadediscovoador.Tiveram
a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria
para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore
de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o
OVNI se deslocava lentamente.
Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pes-
soas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava
na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso.
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Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de
uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordes-
tinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento.
Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco con-
vencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e
logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma
coisa estranha estava para acontecer.
Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as
leisAfonsoArinosouMariadaPenhaeoutrosavançosdaconvivência
civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito
físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era ne-
gro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doi-
do. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco.
Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de
puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão,
espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era
Mói de Ferro.
Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, por-
tador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram
cogitadas.
Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60
chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na
fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco.
Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinô-
nimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas pa-
ragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era prove-
niente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo
formado por escravos fugidos do litoral.
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[2]Revoluçãooupiada?
De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta re-
tinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar
macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados,
provocandoefazendoalgazarra.Parodiavam,cantarolandoaltoebom
som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco
vai virar banana”.
E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam
abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela,
quem vai te comer sou eu”.
Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir
com energia para acabar aquela libertinagem.
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40 – 41
As pegadinhas de Lói
Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natu-
reza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas,
nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas
da carochinha anunciadas por Továrish Lói.
Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima
e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes.
Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em
seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói
com cara de rapariga.
Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda
aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é re-
gra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patra-
nhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa
de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos
da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de
comunista de carteirinha, como a gente já sabe.
Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior con-
fiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País.
O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que
trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB.
Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias.
Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso mui-
tos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele en-
controu no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade
com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Mor-
se. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou
o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas.
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[2]Revoluçãooupiada?
Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semia-
nalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades
pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chama-
da Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados
Unidos.
A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade
Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é
sério mesmo, deixa Továrish continuar.
Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas
está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver
com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas.
Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele esta-
va mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O
marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da
boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos dese-
nhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação
militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse Zé Carioca,
personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de
algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante.
Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora garga-
lhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre
todo dia, comentou um gaiato.
A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já
semultiplicavamoscomentários.Finalmente,comoprecáriosilêncio,
Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas
do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada.
A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em
pouco tempo já parecia um pequeno comício.
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Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de
criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior
é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não
conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabe-
luda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada,
nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do
que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava.
Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem
precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as
mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxi-
ma, Továrish.
A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com
um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar
Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango.
Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto
rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para
atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2
mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Ama-
zônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Re-
cordes como a maior mentira de todos os tempos.
A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a
assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, de-
pois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma,
gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A mui-
to custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conse-
guiu impor algo parecido com silêncio.
Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com
toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo,
com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de
Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel.
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[2]Revoluçãooupiada?
A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam
que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites.
Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chama-
do Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem
humoristas.
Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia
crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de caro-
chinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que
repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os
que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar
uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em
matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar
o silêncio. Impossível prosseguir.
E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do men-
tiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o
Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em
nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito perti-
nentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou
bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de
Lói são cinco. Que cara mais gaiato.
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44 – 45
Morra a caterva vermelha
Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os
mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as
pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem
pé nem cabeça, Lói?
Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não se-
riam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fra-
codaspernas,tinhadatamarcadaparaacabar.OpresidenteJoãoGou-
lart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista.
Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país,
mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer.
Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino
Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco,
construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o
PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado
todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da Re-
pública por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora?
Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar
no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência
nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas
seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que
havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Ja-
neiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática
de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão
inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a
capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam,
quando muito, parar em Manaus.
Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém desproposita-
das. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua
história,dassuasvitóriasemcamposdebatalhaedoseunacionalismo.
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[2]Revoluçãooupiada?
Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e
desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento.
Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente
um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista.
Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do co-
mandodatropa.Logoele,umbonecoamericanoquesóexistenosdese-
nhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui
a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma
espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo
vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato.
Eumavacafardadanocomandodeummovimentomilitar?Realmen-
te a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca farda-
da? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criativida-
de e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com
farda, quepe, espada e tudo o mais.
Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi
sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo
podia ser verdade.
Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do
seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava
prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de en-
cher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica
meioenjoada,porissonãotemnadamaischatodoquebrincadeirain-
sistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel
está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe.
Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cum-
pade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito
engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guer-
reiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra
1964 O Julgamento de Deus.indd 46 10/03/2014 13:32:58
46 – 47
ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu
Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim.
Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tem-
pos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada
qual ir tratar da sua vida.
E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador
Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e cre-
dibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comer-
ciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento
comercial.
Atéentãocompletamentealheioaofuzuê,chegoucomumaexpressão
transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Tová-
rish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém
aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida aca-
bou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País
inteiro.
Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a
Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora
sagrada do descanso depois do almoço.
Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreen-
dentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversí-
vel todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de
Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores
de algodão do lugar.
Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que
em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondi-
nho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredonda-
do, meio que parecer com o teleférico carioca.
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[2]Revoluçãooupiada?
Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia
forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comer-
ciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros
e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux
Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era
conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC,
quesignificavaComandodeCaçaaosComunistase,segundosedizia,
estava se espalhando por todo o País.
De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy
até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias
ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes
sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos
não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrarie-
dades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como vere-
mos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e finan-
ciava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém
conseguisse provar.
Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi
Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde.
Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos
aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos
e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal,
fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta
do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de pra-
ça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou
pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da
família e da propriedade.
Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a
título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais
alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo
o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a
1964 O Julgamento de Deus.indd 48 10/03/2014 13:32:58
48 – 49
derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego
das famílias de bem.
Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado
por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida
para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta.
E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva
vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964...
Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado.
Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus.
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  • 1.
  • 2. 28 – 29 Capítulo 2 Revolução ou piada? 1964 O Julgamento de Deus.indd 29 10/03/2014 13:32:57
  • 3. 30 – 31 Pergunte a qualquer aluno do primeiro grau em que data ocorreu o golpe militar de 1964, que ele responderá com toda a segurança: No dia 31 de março. Trata-se de uma impostura que vem sendo alimentada ao longo de dé- cadas. O golpe ocorreu no dia 1º de abril. A data não poderia ser mais adequada, pois trata-se do Dia Internacional da Mentira. E falsidades oficiais foi o que nunca faltou sobre os acontecimentos daquele dia e seus desdobramentos pelos próximos 21 anos. Os responsáveis pela antecipação foram os próprios artífices do movi- mento. Naquela época, a comemoração era muito maior do que hoje. No mundo inteiro, quase todas as pessoas se empenhavam em fazer amigos ou desconhecidos caírem em alguma esparrela. E também ti- nham que prestar atenção para não serem apanhados em armadilhas, pois as lorotas eram muitas e criativas. Até órgãos sérios da imprensa internacional entravam na brincadeira, noticiando os acontecimentos mais improváveis com ares da maior seriedade. Muitos acreditavam e repetiam a ficção. Algumas tomavam proporções globais. Em Boi Pintado, antiga Boa Vista, era comum se espalharem naquele diaasmaisvariadaspotocas.Desdeamortesúbitadealguémdequem não se gostava até que a padaria de um adversário político estava dis- tribuindo pão de graça. Poucos anos atrás, tinham engabelado muita gente no mesmo pacote. Seu Mulambinho era conhecido como o maior velhaco das redonde- zas. Vivia encalacrado com Deus e o mundo. Cinicamente, adotava o 1964 O Julgamento de Deus.indd 31 10/03/2014 13:32:57
  • 4. [2]Revoluçãooupiada? lema “devo, não nego, pago quando puder”. Andava todo engomado e com banha nos cabelos pelas ruas da cidade de cabeça erguida, na- riz empinado, farejando a próxima vítima. Quem não te conhece que te compre, falava o povo. Agia como se fosse a criatura mais correta do Universo. Um dos muitos enganados por ele espalhou a falsa notícia de que seu Mulambinhotinhaacertadonamilhardojogodobicho.Receberaum dinheirão e estava se preparando para arribar. Foi um desadouro. Os credores em peso correram para receber o seu pedaço. Comerciantes, prestadores de pequenos serviços, profissio- nais liberais, agiotas, amigos ludibriados de boa-fé, dirigiram-se em bandos à sua casa para não perderem a chance. Até diversas raparigas daAvenida,comosechamavaazonadebaixomeretríciodeBoiPinta- do, acorreram ao evento. Não eram poucas que tinham levado o popu- lar xexo de seu Mulambinho. Ou seja, prestaram seus peculiares ser- viços sem receber a remuneração acordada. Agora, engrossavam com toda razão a malta irada que encurralou o homem na sua própria casa. A enfurecida multidão destruiu todo o precário patrimônio do deve- dor. Não sobrou um pote para contar a história. Nem mesmo os avi- sos colocados às pressas no alto-falante da igreja matriz, alertando a população de que se tratava de uma brincadeira de primeiro de abril, fizeram efeito sobre a fúria do populacho. Seu Mulambinho só não embarcou dessa para pior graças primeiramente a Deus e depois à intervenção providencial da polícia, que dispersou a turba com tiros para o alto, conforme a insuspeita narrativa de dona Mimosa, esposa do caloteiro. Por isso, não se pode dizer que, nesse caso, os ideólogos do golpe estivessem desprovidos de razão. Caso admitissem o dia correto do golpe,estariamdandocabimentoaumapiadaprontaqueomundoin- teiro cuidaria de ironizar. Fecharam questão no 31 de março, quando 1964 O Julgamento de Deus.indd 32 10/03/2014 13:32:57
  • 5. 32 – 33 comprovadamente ocorreram muitas reuniões conspiratórias, mas não aconteceu nenhuma ação golpista. Uma das maiores provocações que se podiam fazer na época aos mili- tares era dizer que a Revolução Redentora deles foi uma piada de pri- meiro de abril. Muita gente levou trompaços e até acabou no xilindró por falar tão cândida verdade. Depois da redemocratização, a data equivocada continuou sendo repetida. Talvez porque a polêmica naquele momento não valesse a pena. Podia soar como revanchismo ou até provocação; na época realmente existiam coisas mais importantes para tratar. Por outra, tal- vez realmente porque não fizesse mais nenhuma diferença o golpe ter ocorrido no dia tal ou qual. Interessava ao País era estar livre dele. Pelosim,pelonão,atéhojeprevaleceadataerrada.Énodia31demar- ço que velhos milicos saudosistas se reúnem em clubes decadentes para festejar a merda que fizeram com o País. Autoridades militares, fazendoouvidosdemercadoràorientaçãodosgovernoscivis,emitem Ordens do Dia louvando o golpe que persistem chamando de revo- lução. E ainda por cima, a data é comemorada em quartéis País afora. As crianças continuam aprendendo nas escolas o dia errado por con- ta do desconhecimento de muitos professores e principalmente em decorrência do pouco caso e da falta de pulso das autoridades da área educacional. A data exata é incontestável. Cada dia tem 24 horas, como todo mun- do sabe, e acaba à meia-noite. A partir daí, já é madrugada de um outro dia. E até meia-noite do dia 31 de março de 1964 não havia nenhum sinal de estripulia pelas ruas do País. Nas altas horas da madrugada de primeiro de abril, na calada da noite, como se diz, é que algumas tropas acenderam o estopim, saindo dos quartéis, em Minas Gerais, se deslocando em comboio na direção do Rio de Janeiro. 1964 O Julgamento de Deus.indd 33 10/03/2014 13:32:57
  • 6. [2]Revoluçãooupiada? É bom assinalar que, embora o golpe viesse sendo preparado pelo me- nos desde a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, tudo acabou acon- tecendo de modo bastante improvisado. Havia muitas divergências no interior das próprias forças armadas e principalmente na relação dessas com os norte-americanos sobre a ocasião, a forma e a intensidade do golpe. Prevaleceram as desavenças, o consenso não foi alcançado. Quando chegou a informação de que uma frota ianque estava a caminho para tomar a frente da derrubada do governo, a situação fugiu do controle. Considerando inaceitável a presença descarada dos Estados Unidos no comando e para não ficar a reboque dos estrangeiros, um grupo golpista, nacionalista e anticomunista resolveu agir por conta própria. Naquelamadrugadade1ºdeabril,umcertogeneralOlímpioMourão, sediadoemMinasGerais,pôsastropasquecomandavaemmovimen- to, por sua conta e risco. Forçou a barra, iniciou o levante e deu o golpe como fato consumado. O resultado de uma manobra dessas não acontece como num passe demágica.Tantoqueaomeio-diaopresidenteJoãoGoulart,quetodo mundo chamava de Jango, estava chegando em Brasília vindo do Rio de Janeiro e continuava no poder. O mesmo acontecia com Miguel Arraes em Pernambuco, Seixas Dória em Sergipe e diversos outros governadores e prefeitos que depois seriam depostos pelos golpistas. Até o começo da tarde do dia primeiro, em Minas, no Rio de Janeiro, no Recife, em São Paulo, em Brasília, além de outras capitais, apenas nos círculos mais enfronhados da política, sabia-se que um possível golpe estava em curso. As pessoas bem informadas sentiam que algo estranho estava se passando, embora ninguém fosse capaz de relatar exatamente o quê. Em Boi Pintado, por exemplo, localidade onde as pessoas eram infor- madas e ouviam todas as edições do repórter Esso, inclusive porque 1964 O Julgamento de Deus.indd 34 10/03/2014 13:32:57
  • 7. 34 – 35 o noticiário era reproduzido pela Rádio Surubim, um serviço de alto-falantes instalado nos postes da cidade, ninguém sabia absoluta- mente de nada. Era um dia de quarta-feira como outro qualquer. Naquele começo de tarde, quente como uma lambida do diabo, por- que o inverno teimava em não chegar, um grupo de rapazes cochilava em plena via pública. Como de hábito, descansavam do almoço na calçada da matriz, quase em frente à casa paroquial. Aproveitavam a agradável sombra proporcionada pela alta torre da igreja nova. O mo- vimento da rua era quase nenhum, já que a maioria da população tam- bém tirava um cochilo depois do almoço. Nada os incomodava. Tratava-se de um grupo heterogêneo, conhecido pelo apelido de Pen- sadores Tetéus, como eles mesmos se chamavam. O povo dizia sim- plesmente que eram os Tetéus, nome de uma ave noturna da região, aparentada com o quero-quero. Costumavam discutir madrugada adentro os assuntos mais variados. Do sexo dos anjos à Guerra Fria, das questões fundamentais da filosofia a um pênalti não marcado no Clássico das Multidões. Por isso, durante a tarde, estavam sempre so- nolentos, aproveitavam a modorra do horário para tirar um ronco. De repente, chega todo esbaforido, suado feito tirador de espírito e com a cara espantada de quem acabara de ver assombração, nada mais nada menos que Továrish Lói. 1964 O Julgamento de Deus.indd 35 10/03/2014 13:32:57
  • 8. [2]Revoluçãooupiada? Negro vai virar macaco, branco vai virar banana Továrish, como se sabe, é a palavra russa para designar camarada, o tratamento oficial que os comunistas de qualquer escalão adotavam entre si para transmitir a ideia de que todos eram iguais. Não que Lói fosse comunista, ninguém acreditaria em tal acusação. Para falar a verdade, o elemento não tinha ideologia de nenhuma na- tureza. Não puxara ao pai, vermelho de carteirinha, comunista decla- rado e afamado. Tanto que para demonstrar sua afeição à União Soviética, o velho registrou a penca de filhos com nomes de personagens gloriosos da história do socialismo, todos com o seu sobrenome, Almeida e Silva. O mais velho, por exemplo, era Karl Marx, conhecido como Marqui- nhos. O segundo, Frederico Engels, era Fredinho para todo mundo. O terceiro, Luiz Carlos Prestes, era Lulinha. As duas mulheres eram Rosinha, de Rosa Luxemburgo, e Guinha, como chamavam Olga Be- nário de Almeida e Silva. O caçula carregava o nome de Vladimir Uilianov Lenine. Chamado pelopaidesdeoberçodeTovárish,ganhounaescolaaalcunhadeLói, o apelido pegou composto. Továrish tinha pressa, muita pressa. Contudo sabia muito bem que não adiantava tentar acordar a cambada de um por um, com sacudi- delas ou modos educados. Como a turma era bruta e brincava pesa- do, ele utilizou a objetiva solução de aplicar um chute com o bico do sapato no vão das costelas de um dos líderes do grupo, o indigitado Cumpade Deca. Registre-se que daqui por diante, sempre que for mencionado, Deca vai ser tratado por Cumpade, que era como todo mundo o chamava. Escrever compadre, conforme os padrões da última flor do Lácio, in- culta e bela, seria uma adulteração imperdoável. Então, como prega 1964 O Julgamento de Deus.indd 36 10/03/2014 13:32:57
  • 9. 36 – 37 o filósofo Zadock dos Muros Altos, inspirado na poética de Manuel Bandeira, a bem da comunicação fuzilemos a gramática. Despertado dessa forma eficaz, Cumpade berrou um palavrão que acordou não apenas toda a canalha do grupo como qualquer um que porventura estivesse dormindo nas casas das imediações. Até dona Severina do Padre, que tomava conta da residência do monsenhor Afonso, deu um pulo da cama, espantada como se estivesse sendo ten- tada pelo demônio em pessoa. Tão logo os parceiros abriram os olhos, espantados, Lói foi anuncian- do, com as palavras entrecortadas pela respiração ofegante, que tinha sete notícias estranhas, e cada uma pior do que a outra, para comparti- lhar com a turma. Querem ouvir? De imediato, veio à cabeça de todos que Továrish tinha imaginado uma mentira de sete modas, como se falava. Ou seja, um molho de quengadas, para usar expressão da época. Na linguagem televisiva de hoje, se diria que Lói tinha armado um pacote de pegadinhas, logo sete, que é a conta do mentiroso. Constatado isso, todos acordados, ninguém era besta de acreditar em mais nada do que ele afirmasse em seguida. Só podia ser impostura do safado para tentar engabelar o grupo. Não era tarefa fácil. A totalidade dos presentes, se excluirmos da lis- ta o notável professor Natércio Pai dos Burros, carregava nas costas um histórico muito pouco recomendável de brincadeiras pesadas e de mau gosto, em qualquer dia do ano. Eram capazes de reconhecer uma lorota de longe. Coisascomoenfiarumpedaçodecigarroacesonaorelhadeumburro carregado de panelas de barro e ficar espiando de longe, esperando o resultado, eram comuns. Imaginem o espetáculo do animal pulan- do ensandecido pela dor, as panelas voando e se espatifando no chão. 1964 O Julgamento de Deus.indd 37 10/03/2014 13:32:57
  • 10. [2]Revoluçãooupiada? Podia ser muito engraçado para quem assistia, mas representava um grande prejuízo para o proprietário da carga. Outra brincadeira da turma era afrouxar a cilha da sela do cavalo de algum matuto parado na porta de uma bodega para tomar a bicada saideira. Quando a vítima, geralmente já bem melada, tentava montar, levava uma queda desajeitada e muitas vezes perigosa para a integrida- de de braços, costelas e até do pescoço. Maldade maior era colocar uma mutuca, ou seja, um pedacinho de fósforo aceso, na cara de alguém que estivesse dormindo de papo para o ar. Na reação instintiva à dor, o sujeito levava às mãos ao rosto com toda a força, provocando uma forte pancada. Recentemente, Risalvo Pezão, direitista assumido e desafeto declara- do do grupo, estava dormindo numa mesa do bilhar de seu Janoca, com os braços abertos. Colocaram uma mutuca no seu rosto, enfia- ram-lhe um par de tamancos nas mãos. A pancada foi tão forte que Risalvo quebrou o nariz e passou uns dois meses de cara inchada. Noprimeirodeabril,sofisticavamaspatranhas.Noanoanterior,apro- veitando que falar em marcianos estava na moda, aquele mesmo gru- po adaptou a ideia de um americano que anos atrás, através do rádio, disseminou o pânico nos Estados Unidos. Em plena madrugada de 1º de abril, soltaram na Chã do Marinheiro, localmaisaltodacidade,umbalãoemformadediscovoador.Tiveram a astúcia de amarrar a peça a um jumento que carregava uma bateria para alimentar luzes piscando em torno do artefato, feito uma árvore de Natal. À medida que o animal andava, a impressão era a de que o OVNI se deslocava lentamente. Em seguida, eles mesmos se encarregaram de sair acordando as pes- soas para mostrar o fenômeno. Em pouco tempo todo mundo estava na rua em pânico, muitos pensando que 60 chegara com atraso. 1964 O Julgamento de Deus.indd 38 10/03/2014 13:32:57
  • 11. 38 – 39 Essa menção a 1960 não é por acaso. 1959 coincidiu com o final de uma das severas secas periódicas que até hoje atormentam os nordes- tinos. Portanto, foi ano de enorme pobreza e sofrimento. Na cultura apocalíptica nordestina, bastava um fenômeno pouco con- vencional da natureza ou qualquer acontecimento fora do normal e logo alguém desencavava a ideia de que o mundo ia acabar ou alguma coisa estranha estava para acontecer. Naquela época não existia o politicamente correto. Muito menos as leisAfonsoArinosouMariadaPenhaeoutrosavançosdaconvivência civilizada. Ninguém que tivesse uma característica de raça ou defeito físico esperasse a condescendência de um eufemismo. Negro era ne- gro. Aleijado era aleijado. Cego era cego. Cotó era cotó. Doido era doi- do. Anão era anão. Gago era gago. Fanho era fanho. Manco era manco. Mouco era mouco. Velho era gagá. Baixinho era tampinha, rodapé de puteiro, meio fio ou tamborete de forró. Um sujeito alto era grampão, espanador da lua ou tira coco sem vara. Se fosse magro, o apelido era Mói de Ferro. Expressões amenas como afrodescendente, deficiente auditivo, por- tador de necessidades especiais e outras do mesmo teor sequer eram cogitadas. Dentro desse espírito, um bando de gaiatos espalhou que quando 60 chegasse os negros iam virar macacos. Cantavam pelas ruas: Pisa na fulô/pisa no buraco/60 vem aí/nego vai virar macaco. Os atingidos revidaram. Ser preto, por aquelas bandas, não era sinô- nimo de subserviência. A escravidão quase não existira naquelas pa- ragens. Além disso, a maioria dos negros da região vivia ou era prove- niente da localidade de Umari, antigo, duradouro e invicto quilombo formado por escravos fugidos do litoral. 1964 O Julgamento de Deus.indd 39 10/03/2014 13:32:58
  • 12. [2]Revoluçãooupiada? De modo que ali sobrevivia quase intocada uma população preta re- tinta, altiva e desaforada. Com a história de que os negros iam virar macacos, os umarizenses invadiam aos bandos a feira nos sábados, provocandoefazendoalgazarra.Parodiavam,cantarolandoaltoebom som: “Pega na fulô/fica bem bacana/ negro vai virar macaco/branco vai virar banana”. E, quando passavam perto de uma ou várias mocinhas, ameaçavam abocanhar os pescoços virginais, dizendo: “Te prepara, branquela, quem vai te comer sou eu”. Troco bem aplicado. Foi preciso a polícia pedir reforço e interferir com energia para acabar aquela libertinagem. 1964 O Julgamento de Deus.indd 40 10/03/2014 13:32:58
  • 13. 40 – 41 As pegadinhas de Lói Acostumados a presenciar e participar de acontecimentos dessa natu- reza e com enorme vivência na aplicação de pulhas as mais diversas, nenhum Tetéu ia cair em armadilha tão óbvia como as sete conversas da carochinha anunciadas por Továrish Lói. Porém, para não estragar a brincadeira, todos fingiram entrar no clima e autorizaram o pilantra a contar as tais novidades surpreendentes. Passava pela cabeça de todos ouvir o rosário de invenções para, em seguida, jogar o feitiço contra o feiticeiro e dar o troco, deixando Lói com cara de rapariga. Recuperando um pouco o fôlego, olhos esbugalhados e coração ainda aos saltos, o mensageiro fez primeiramente a menção à fonte, que é re- gra básica de todo bom mentiroso para dar credibilidade às suas patra- nhas. Segundo Lói, ele soube das coisas porque ouviu uma conversa de seu Marcondes Telegrafista, um dos comunistas mais conhecidos da cidade, na oficina do seu pai, que era ferreiro conceituado, além de comunista de carteirinha, como a gente já sabe. Segundo ele disse, seu Marcondes reuniu os camaradas de maior con- fiança e contou terríveis novidades que estavam acontecendo no País. O telegrafista fazia parte de uma rede de profissionais comunistas que trocavam informações de interesse geral e particularmente do PCB. Estava sempre um passo adiante na maioria das notícias. Lói disse que ouviu escondido no quintal da oficina e por isso mui- tos detalhes escaparam. Mas quando todos saíram às pressas, ele en- controu no chão uma tira dos registros do telégrafo. Graças à amizade com o seu pai, o telegrafista ensinou a ele rudimentos do Código Mor- se. Foi graças a esse conhecimento superficial que ele complementou o que tinha escutado decifrando em parte, notícias pavorosas. 1964 O Julgamento de Deus.indd 41 10/03/2014 13:32:58
  • 14. [2]Revoluçãooupiada? Mostrou a tira do telégrafo cheia de furinhos e, como um cego semia- nalfabeto lendo em braile, foi decifrando e anunciando as novidades pela ordem. Primeiro, diz aqui que está em curso uma operação chama- da Brother Sam, com o objetivo, parece, de anexar o Brasil aos Estados Unidos. A gargalhada geral não quebrou a seriedade de Lói. Logo Cumpade Deca repreendeu de mentirinha a todos. Espera aí gente, o assunto é sério mesmo, deixa Továrish continuar. Bem, prosseguiu o mensageiro, a segunda entendi menos ainda, mas está impresso. Com certeza o marinheiro Popeye tem alguma coisa a ver com isso. Pelo menos faz parte do alto comando das tropas. Aí foi danado. Deca reforçou os pedidos de silêncio. Agora ele esta- va mesmo curioso para saber até onde ia a safadeza de Továrish. O marinheiro Popeye, sempre com seu cachimbo escorado no canto da boca, eterno pretendente de Olívia Palito, era figura popular nos dese- nhos animados da televisão. Entre isso e participar de uma operação militar no Brasil, vai uma distância enorme. Se ainda fosse Zé Carioca, personagem brasileiro, vá lá, podia ter sido adotado como mascote de algum pelotão. Mas um boneco americano, era mesmo hilariante. Por isso mesmo, com essa ninguém se aguentou. Outra sonora garga- lhada dominou o ambiente. Vai ver que teremos que comer espinafre todo dia, comentou um gaiato. A muito custo, a ordem foi restabelecida, porque, além das risadas, já semultiplicavamoscomentários.Finalmente,comoprecáriosilêncio, Lói pôde prosseguir. A terceira notícia conforme diz aqui é que tropas do Exército marcham pela Via Dutra lideradas por uma vaca fardada. A risadagem redobrou de tal maneira que começou a juntar gente, em pouco tempo já parecia um pequeno comício. 1964 O Julgamento de Deus.indd 42 10/03/2014 13:32:58
  • 15. 42 – 43 Que negócio engraçado e absurdo. Essa, nem Chico Anysio era capaz de criar. Lói inventa cada uma! Esse 1º de abril vai ser campeão. E o pior é que ele interpreta com uma seriedade tão grande que se a gente não conhecesse bem a peça era capaz de acreditar. Cada mentira mais cabe- luda que a outra, e o danado mantém a cara totalmente compenetrada, nem um risinho. Grande ator que ele é. Provoca mais gargalhadas do que Mazzaropi. Está se perdendo por aqui, era o que se falava. Àquelas alturas, a curiosidade da plateia estava aguçada. Deca nem precisava pedir silêncio, era a própria plateia que fazia sinal com as mãos e repetia: Psiu, cala a boca gente, ainda tem mais, conta a próxi- ma, Továrish. A próxima era a seguinte: Os Estados Unidos enviaram uma frota com um porta aviões e vários destróieres entupidos de marines para atacar Brasília pelo meio da floresta e depor o presidente Jango. Imagine o leitor que naquele momento tinha gente chorando de tanto rir. Como é que é? Uma frota naval vem da América do Norte para atacar Brasília, que fica, como todo mané buchudo sabe, a mais de 2 mil quilômetros do mar? E por uma floresta, que só pode ser a Ama- zônica? Que confusão dos diabos. Essa merece entrar no Livro dos Re- cordes como a maior mentira de todos os tempos. A próxima! A próxima! Era a solicitação da plateia insaciável. Logo a assistência parecia a torcida num jogo da seleção de Lagoa Nova, de- pois de um golaço de Cici ou Inácio Torototó. Mais uma, mais uma, gritavam e batiam palmas. A balbúrdia se generalizou de novo. A mui- to custo, testando sua liderança e seu vozeirão, Cumpade Deca conse- guiu impor algo parecido com silêncio. Lói, sério feito um porco mijando, cumpria sua histórica missão com toda a galhardia. Ainda passando os dedos pela fitinha do telégrafo, com cara de decifrador, teve que gritar para ser ouvido, que o Rio de Janeiro estava sendo atacado pelo general Cruel. 1964 O Julgamento de Deus.indd 43 10/03/2014 13:32:58
  • 16. [2]Revoluçãooupiada? A essas alturas todos tinham perdido as contas das notícias e achavam que a mentirada, embora hilariante, já estava passando dos limites. Invadir o Rio de Janeiro já seria um absurdo. E botar um cara chama- do Cruel para fazer isso, só se os hipotéticos conspiradores fossem humoristas. Tinha gente embolando no chão de tanto gargalhar. O público só fazia crescer, cada qual que chegava querendo saber as conversas de caro- chinha para rir também. Os privilegiados ouviam do próprio Lói, que repetia tudo pacientemente com a cara mais séria desse mundo. Os que ouviram, no todo ou em parte, rememoravam tentando lembrar uma a uma. Nem Cumpade Deca, do alto de sua liderança, que em matéria de furdunço era reconhecida por todos, foi capaz de restaurar o silêncio. Impossível prosseguir. E ninguém deixava de elogiar o desempenho e a criatividade do men- tiroso. Essas foram realmente muito boas, Továrish merece ganhar o Oscar pelo desempenho. Mas nem por isso ninguém ia acreditar em nenhuma daquelas invenções despropositadas, apesar de muito perti- nentes para aquela data. Até que alguém contou nos dedos e anunciou bem alto, reabrindo a sessão de gargalhadas: Gente, as sete mentiras de Lói são cinco. Que cara mais gaiato. 1964 O Julgamento de Deus.indd 44 10/03/2014 13:32:58
  • 17. 44 – 45 Morra a caterva vermelha Depois de serenada a risadagem, só para render com o assunto, os mais próximos procuravam argumentar, mostrando ao mensageiro as pernas curtas das suas conversas fiadas. Não tás vendo que isso não tem pé nem cabeça, Lói? Argumentavam pelo caminho da razão. Primeiro, os militares não se- riam tão idiotas a ponto de derrubarem um governo que, além de fra- codaspernas,tinhadatamarcadaparaacabar.OpresidenteJoãoGou- lart, do PTB, era um rico latifundiário, não tinha nada de comunista. Defendia reformas de base, importantes para a modernização do país, mas, como não tinha apoio, nem isso ia conseguir fazer. Além disso, faltava pouco mais de um ano para a eleição. Juscelino Kubitschek, o ex-presidente que fez o Brasil andar 50 anos em cinco, construiu Brasília, é membro antigo do Partido Social Democrata, o PSD, portanto totalmente confiável para as elites e liderava disparado todas as pesquisas. Estava praticamente nomeado presidente da Re- pública por antecedência, qual o sentido de um golpe militar agora? Os norte-americanos, era sabido, estavam interessados em colocar no Brasil um governo subalterno a eles, acabar com a independência nacional e transformar nosso país no maior quintal do mundo. Mas seriam por acaso idiotas a ponto de não estarem informados de que havia quatro anos a capital do País tinha sido transferida do Rio de Ja- neiro para o Planalto Central? E que Brasília não tem ligação aquática de qualidade nenhuma com o Oceano Atlântico? Como um país tão inteligente como os Estados Unidos ia mandar uma frota para atacar a capital se esta nem tinha como chegar lá? Através da floresta, eles iam, quando muito, parar em Manaus. Isso sem falar de outras invenções engraçadas, porém desproposita- das. As gloriosas Forças Armadas brasileiras são muito ciosas da sua história,dassuasvitóriasemcamposdebatalhaedoseunacionalismo. 1964 O Julgamento de Deus.indd 45 10/03/2014 13:32:58
  • 18. [2]Revoluçãooupiada? Imagine se iriam se submeter e aceitar um nome-código estrangeiro e desmoralizante como Brother Sam para seu improvável movimento. Na remota hipótese do golpe acontecer algum dia, teria certamente um nome genuinamente verde-amarelo, patriótico e ufanista. Mais despropositado ainda é esse negócio de Popeye participar do co- mandodatropa.Logoele,umbonecoamericanoquesóexistenosdese- nhos animados, que não tem nada a ver com a realidade brasileira. Aqui a gente sabe que ele fuma cachimbo e come espinafre, que parece uma espécie de bredo. Mas ninguém jamais viu um bregueço desses sendo vendido em alguma feira e muito menos servido em qualquer prato. Eumavacafardadanocomandodeummovimentomilitar?Realmen- te a ideia é muito engraçada. Mas alguém já ouviu falar de vaca farda- da? Nem mesmo no Carnaval de Olinda, onde se abusa da criativida- de e irreverência, nunca se viu qualquer folião fantasiado de vaca, com farda, quepe, espada e tudo o mais. Aqueles comentários eram uma forma de valorizar a performance. Foi sensacional, camarada. Espetacular. Muito criativo. Mas nada daquilo podia ser verdade. Em vez de se curvar para receber os merecidos aplausos e usufruir do seu momento de glória, o mentiroso não se dava por vencido, tentava prosseguir sem dar o braço a torcer. Agora, já correndo o risco de en- cher o saco. Todo mundo sabe que depois de rir muito a pessoa fica meioenjoada,porissonãotemnadamaischatodoquebrincadeirain- sistente. Minha gente, eu não estou brincando, repetia. O general Cruel está invadindo o Rio de Janeiro, juro pela alma da minha mãe. Achando que a brincadeira já tinha dado o que tinha que dar, Cum- pade Deca fez valer a sua autoridade. Tá bom, minha gente, foi muito engraçado, mas basta por hoje. E, imitando Chacrinha, o Velho Guer- reiro, um dos orgulhos de Boi Pintado, gritou o bordão: Palmas pra 1964 O Julgamento de Deus.indd 46 10/03/2014 13:32:58
  • 19. 46 – 47 ele, que ele merece. Vocês querem bacalhau? Procurem na venda de seu Lalau. E fez um gesto enfático de que a festa chegara ao fim. Foi realmente divertido, o melhor primeiro de abril de todos os tem- pos, superou o disco voador do ano passado. Mas tava na hora de cada qual ir tratar da sua vida. E assim teria acontecido se não entrasse em cena o elegante vereador Pedro Boi de Raça. Homem fidalgo, alto, forte, de grande saúde e cre- dibilidade, campeão dos campeões de vaquejada, fazendeiro e comer- ciante, ele sempre tinha um bom rádio ligado no seu estabelecimento comercial. Atéentãocompletamentealheioaofuzuê,chegoucomumaexpressão transtornada. Abriu caminho até junto de Cumpade Deca e de Tová- rish Lói e perguntou com seu vozeirão inconfundível: Pessoal, alguém aqui ouviu a edição extra do Repórter Esso, que Edson de Almeida aca- bou de ler na Rádio Jornal? Os militares estão tomando o poder no País inteiro. Claro que ninguém ali tinha ouvido, estava todo mundo na rua e a Rádio Boi Surubim, que reproduzia o noticiário, saía do ar na hora sagrada do descanso depois do almoço. Antes que Pedro Boi de Raça tivesse tempo de debulhar as surpreen- dentes novas, entrou na rua acelerado, no seu carro esporte conversí- vel todo empoeirado, o ricaço mais famoso da região. Tratava-se de Raul Bondinho, filho único de um maiores fazendeiros e produtores de algodão do lugar. Bondinho vivia mais flanando no Recife e no Rio de Janeiro do que em Boi Pintado. O apelido vinha do fato de ele falar muito no bondi- nho do Pão de Açúcar e, sinceramente, com seu corpanzil arredonda- do, meio que parecer com o teleférico carioca. 1964 O Julgamento de Deus.indd 47 10/03/2014 13:32:58
  • 20. [2]Revoluçãooupiada? Embora não se misturasse muito com os locais, ditava moda e exercia forte influência sobre os filhos dos latifundiários e grandes comer- ciantes. De vez em quando aparecia acompanhado por estrangeiros e comandava uma sociedade meio secreta nos moldes da Ku Klux Klan norte-americana. Só que nos Estados Unidos a KKK, como era conhecida, caçava negros. A entidade de Raul era chamada de CCC, quesignificavaComandodeCaçaaosComunistase,segundosedizia, estava se espalhando por todo o País. De acordo com as más línguas, o sujeito, reconhecido como playboy até nas publicações mundanas do Centro-Sul, estava por trás de várias ameaças e violências que eram praticadas contra camponeses e líderes sindicais da região. Casos de espancamento e até sumiços definitivos não eram raros. O povo eximia o coronel Honorato dessas arbitrarie- dades de fundo ideológico. A linha do coronel era outra, como vere- mos adiante. Dizia-se que era mesmo Raul quem estimulava e finan- ciava essas operações cavernosas, embora, naturalmente, ninguém conseguisse provar. Contrariando seu costume de não dar muita trela à gentalha de Boi Pintado, Bondinho chegou buzinando e fazendo o maior alarde. Vestido com seu traje de viagem, que muito se assemelhava ao dos aviadores dos filmes preto e branco, tirou o gorro, levantou os óculos e fez o primeiro e talvez único discurso público da sua vida: Pessoal, fui para o Recife, mas não consegui entrar. Os militares tomaram conta do País, a capital está cercada. O ônibus está voltando, os carros de pra- ça também. Nem Dr. Hidelbrando, que ia levando um paciente, passou pela barreira. Finalmente chegou a nossa vez. É a salvação da Pátria, da família e da propriedade. Ato contínuo, puxou o revólver 38 e disparou seis tiros para o alto, a título de comemoração. Arrogante como sempre, berrou ainda mais alto: Quem tiver fogos pra vender, eu compro. Lolô, pode trazer todo o seu estoque. Eu quero é tudo. Torro dinheiro, mas vou comemorar a 1964 O Julgamento de Deus.indd 48 10/03/2014 13:32:58
  • 21. 48 – 49 derrota desses comunistas filhos da puta que viviam tirando o sossego das famílias de bem. Avistando seu Pacífico do hotel e Doze Dedos do bar, assim chamado por ter mesmo seis dedos em cada mão, ordenou: Podem servir bebida para todo patriota que quiser comemorar. Hoje é tudo por minha conta. E, em clima de apoteose, berrou a planos pulmões: Morra a caterva vermelha. Viva a Revolução Redentora de 1º de abril de 1964... Naquele momento, o golpe invadia a vida pacata de Boi Pintado. Começava a história que desaguaria no julgamento de Deus. 1964 O Julgamento de Deus.indd 49 10/03/2014 13:32:58