1. Os demônios da outra dimensão
Daniel não era dotado de dons premonitórios. Para ele, conseguir adivinhar o
resultado final até mesmo de um jogo de futebol de botão era algo inimaginável. No
entanto, ele sabia que a sua namorada iria franzir o cenho e em seguida
responderia “só sob tortura eu assisto a um filme estúpido como esse”. Mas ainda
assim, ciente da resposta negativa, ele ousou fazer a pergunta que estava entalada
na garganta dele:
- Alê, o que tu acha da gente assistir a um filme de terror chamado Os Demônios da
outra dimensão?
Alessandra Schwartz direcionou os seus olhos para o seu namorado e falou:
- Só sob tortura eu assisto a um filme com um título como esse.
O rapaz insistiu, decepcionado por sua namorada julgar um filme pelo título:
- Mas, meu amor, essa é uma produção raríssima lá dos anos setenta. Deve ter sido
um verdadeiro parto achar uma cópia decente. Na verdade, acho até que foi um
milagre acharem uma cópia, pois nem mesmo na internet esse filme era
encontrado.
- E demônios de outra dimensão, que merda de título é esse?
- Alê, é um filme da década de setenta em que um bando de demônios entra em
nossa dimensão por meio de um portal dimensional criados por cientistas fodões
que queriam decifrar enigmas sobre as partículas da matéria e o tecido do espaço-
tempo. Ah, Alê, eu já expliquei para ti que esses roteiros onde cientistas fodem com
tudo são comuns na ficção científica, principalmente nos anos 70. Naquela época,
vários filmes desse gênero criticavam as cagadas dos cientistas que ousavam
brincar de Deus.
Alessandra, naquele momento, já esperava mais um longo monólogo de Daniel
acerca da visão apocalíptica de alguns filmes antigos de fantasia e terror. Enquanto
o rapaz falava, ela estava fechando a porta do estúdio de tatuagem onde atuava
como uma das funcionárias. Eram dezoito horas e dali a trinta minutos Alessandra
deveria estar na universidade para mais uma noite de aula.
Enquanto girava a chave para trancar a porta do estúdio e depois digitar a senha
do alarme, Alessandra, com uma paciência estoica, ouvia Daniel despejar os seus
argumentos:
2. - O filme será exibido semana que vem, dá tempo da gente se programar. Os
Demônios da outra dimensão é uma raridade do cinema classe Z.
- Se hoje em dia eu mal tenho paciência para o cinema classe A.
- Mas Alê, querida, esse é um filme lendário, todos pensavam que ele estava
perdido.
- É mesmo? Pena que estavam errados.
Daniel insistiu:
Alê, para quem, como eu, é fã dessas ma... ma...luquices do fil... filmes undergound,
vai ser uma experiência incrível assistir com você esse longa-metragem em te... te...
la grande.
Alessandra sabia que tais argumentos eram mais uma tentativa do seu amado em
convertê-la para a sua seita dos fanáticos por filmes ruins. Para piorar, o rapaz
começou a gaguejar. Esse era o sinal de que Daniel estava ficando apreensivo.
Ela e o rapaz então entraram no elevador do prédio onde estava localizado o
estúdio TatooArt, o local onde Alessandra trabalhava. Nesse estúdio, a garota
passava o dia inteiro gravando na pele das pessoas as mais variadas tatuagens,
desde frases como “mamãe, eu te amo” até desenhos de mulheres voluptuosas e
monstros horrendos.
Dentro do elevador, Alessandra apertou o botão que levaria ela e o namorado para
o primeiro andar. Enquanto isso, Daniel continuou a martelar os ouvidos dela com
os seus insistentes argumentos:
- Querida, Os De... Demônios da outra di... dimensão é... é...
- É uma merda.
- Pelo contrário, dizem que o fi... filme é gen... genial.
Alessandra uma vez já caiu na cilada de acompanhar o namorado em uma sessão
do Cineclube do Terror, que era o nome do evento onde ele e mais um bando de
fissurados por filmes obscuros se reuniam para assistir produções que o resto da
humanidade nem sabia que existia (e nem fazia questão de saber).
- Dani, meu amor, da última vez que eu te acompanhei nesse cineclube, vi um filme
em que na cena final a guria vomitou as próprias tripas.
- Ah sim, eu lembro, era o Pavor na Cidade dos Zumbis. Caralho, nesse filme o
italiano Lucio Fulci, que Deus o tenha, estava no auge da criatividade. Aquela ce...
3. ce... na da guria vo... vomitando os intestinos é po... poesia pura! – Daniel afirmou
antes da porta do elevador ser aberta diante dele e da garota.
- Poesia merda nenhuma, Dani, eu lembro apenas que aquele filme era só um
amontoado de cenas nojentas. Eu até hoje nem sei do que se trata aquilo lá.
O casal saiu do elevador enquanto Daniel, apesar de tropeçar nas palavras, tentava
justificar:
- Mas aquilo é a essência do cinema de te... terror italiano dos anos oi... oitenta. O
objetivo do Lucio Fulci era criar cenas de vi... violência para fazer o espectador
pensar que estava em um pe... pesadelo desconexo.
- Sim, concordo, pois ao assistir aquela porcaria eu realmente me senti em um
pesadelo.
- En... então isso é sinal de que o fi... filme cumpriu com a fun... função dele. – Daniel
explicou.
Já fora do prédio, na calçada, Alessandra concluiu o óbvio: fazer o Daniel mudar de
ideia era uma tarefa impossível.
Além disso, enquanto ela não dissesse “sim, eu vou assistir com você esse Os
demônios da outra dimensão”, ele iria continuar gaguejando.
E foi assim que Alessandra finalmente proferiu a frase que Daniel tanto almejava
ouvir:
- Sim, você venceu. Eu vou com você assistir a essa merda.
Daniel sorriu, deu um beijo apaixonado em sua namorada e a viu cobrir o rosto
sorridente com um capacete. Ela então montou na moto dela que estava ali
estacionada e disse que ia para a faculdade.
- Alê, eu sabia que você não iria recusar o convite. Obrigado, eu te amo. – O rapaz
afirmou, dessa vez, sem gaguejar.
- Convite? Convite é o caralho, você apenas não apontou uma arma na minha
cabeça para me obrigar a ir porque você não tem uma arma. Mas foda-se. Eu
também te amo. A gente se vê mais tarde. – Ela falou sorrindo. Aquela foi a única
situação naquele dia em que Daniel viu a garota sorrir. Aliás, se tinha uma coisa
que a namorada dele raras vezes fazia era sorrir.
Alessandra saiu então guiando a sua moto, uma Honda Biz amarela. Restou para
Daniel apenas testemunhar a sua namorada desaparecer nas esquinas da cidade,
4. deixando para trás carros e outras motos com a mesma destreza de um atacante
driblando zagueiros adversários.
Pouco tempo depois, na universidade, Alessandra estava a perambular solitária
pelos corredores da biblioteca. A garota, que cursava o terceiro semestre de
psicologia, procurava por algum livro que abordasse um tema bem específico: o
fascínio que o medo exerce nas pessoas.
Ela olhava os títulos da estante enquanto pensava:
- Vamor ver aqui... O Livro dos Sonhos, do Sigmund Freud... Por enquanto esse não.
Transformações e Símbolos da Libido, do Carl Jung, por enquanto também não.
Alessandra não sabia exatamente porque optou por cursar psicologia. A jovem, que
tinha um talento natural para o desenho, poderia optar por algo relacionado a essa
área, no entanto, ela sabia que isso desagradaria aos seus pais, que nunca viram
com bons olhos uma filha se dar bem com linhas e curvas em um papel, não com
matemática.
Apesar da óbvia reprovação dos pais, Alessandra lembrava apenas que, no dia de
marcar no cartão de inscrição qual faculdade almejava cursar, escolheu qualquer
coisa que não a obrigasse a calcular seno, hipotenusa, raíz quadrada e outras
chatices.
O fato é que Alessandra nunca se deu bem diante da exatidão dos cálculos
matemáticos, pelo contrário, ela sempre sentiu uma ligeira inclinação por tentar
compreender a subjetividade do comportamento humano. Ao optar por tal
carreira, Alessandra entrou em atrito com os pais, que a queriam ver
administrando a empresa da família.
- Psicologia, mas que merda é essa filha? É realmente isso o que você quer? Ficar
ouvindo gente reclamar da vida? – O pai dela perguntava, mas o fato é que nem
mesmo Alessandra sabia exatamente o que queria na época.
Já na universidade, Alessandra permaneceu alguns meses se sentindo uma
estranha em uma terra estranha. A estudante apenas realmente se sentiu atraída
pelo curso que escolheu quando ouviu falar em Carl Gustav Jung, um psiquiatra
suíço que fundou a psicologia analítica e também...
- Caralho, esse sujeito também se interessava por mitos! – Alessandra exclamou na
primeira vez em que leu a respeito do interesse de Jung pelos diversos mitos ao
5. redor do mundo e a sua relação com os arquétipos que formam o famoso
inconsciente coletivo.
A garota, desde a tenra infância, alimentava um curioso interesse por mitologia.
Inclusive ela adquiriu boa parte do seu talento no desenho porque passava horas e
horas desenhando as imagens de deuses e heróis que via em um livro resgatado de
um baú com coisas que o pai dela jogou fora.
- Espere um pouco, mãe, deixa eu terminar o contorno do martelo do Thor, eu juro
que não vou demorar. – Era o que a pequena Alê respondia quando a mãe dela
aparecia no quarto a convocando para o jantar.
- Mitos são besteiras. – O pai dela dizia. – Eles não são reais.
Alessandra fazia questão de retrucar:
- Pai, eu sei que eles não são reais, mas também não são irreais. Os mitos, na
verdade, são só símbolos, entendeu? Eles são apenas símbolos. – A pequena
Alessandra um dia tentou explicar, embora ela soubesse que o único símbolo que o
pai dela conhecia era o cifrão do dinheiro.
Lembranças à parte, o fato é que, naquela noite, na universidade, Alessandra estava
na biblioteca. O silêncio no recinto era tanto que a garota tinha a impressão que, se
permanecesse mais tempo ali, poderia ouvir até o barulho dos seus cabelos
crescendo.
- Só eu mesma para, em pleno século vinte e um, ficar andando nos corredores de
uma biblioteca. – Alessandra pensou ao imaginar todos os seus colegas, naquele
instante, efetuando pesquisas na frente de um monitor de computador.
Mas a estudante, assim como o namorado, apreciava coisas antigas. Ela, por
exemplo, demorou a substituir o seu obsoleto telefone celular por um mais
moderno que só faltava disparar raio laser.
Daniel também nutria um notório apreço por quinquilharias jurássicas. Ele, por
exemplo, ainda mantinha no apartamento um vídeo-cassete onde assistia aqueles
seus filmes de terror que Alessandra tanto repugnava.
E foi justamente essa curiosa característica do namorado que fez Alessandra
chegar até ali, diante daqueles livros.
- Por que o medo fascina tanto algumas pessoas? – Era o que ela se perguntava
quando se deparou com um título interessante na estante:
6. Os demônios da outra dimensão – O filme maldito
A capa do livro era deveras simples e apresentava apenas o título centralizado em
letras amarelas sob um fundo escuro. Na parte inferior da capa, também em letras
amarelas, porém em fonte bem mais reduzida, estava apenas a seguinte inscrição:
“Escrito por Mestre do Desconhecido”
- Que porra de escritor usaria um pseudônimo tão cafona como Mestre do
Desconhecido? – Alessandra pensou.
Ela olhou para a capa do livro e não encontrou nenhuma informação relevante.
Não havia nome de editora, não havia alusões sobre a obra, nem mesmo um ínfimo
parágrafo a respeito do referido autor a garota encontrou.
A estudante abriu o livro e aferiu que aquela estranha publicação tinha apenas
cento e seis páginas. Aparentemente, em nenhuma daquelas páginas, havia sequer
informações a respeito do ano de publicação, nem quantas edições daquele livro já
foram lançadas.
Os demônios da outra dimensão – O filme maldito apresentava textos divididos em
capítulos. Cada capítulo tecia comentários referentes a aspectos obscuros
relacionados ao filme. Tais aspectos envolviam magia, ocultismo e fenômenos
inexplicáveis.
A futura psicóloga, ali mesmo, em pé na biblioteca, movida então por uma
crescente curiosidade, começou a ler alguns trechos do livro:
Pouca coisa se sabe a respeito do longa-metragem Os demônios da outra dimensão.
É sabido que essa película apareceu para um seleto público em mil novecentos e
setenta e nove e acredita-se que é uma produção oriunda da Bélgica.
- Olha só, nunca eu iria imaginar que os belgas se prestariam a fazer um filme trash
assim, envolvendo gambás mutantes ou qualquer bobagem do tipo. Eu jurava que a
Bélgica era apenas uma França que sabia fazer chocolates! - Alessandra pensou
enquanto passava os olhos em alguns trechos do texto.
Ela prosseguiu a leitura:
As filmagens e o elenco desse longa-metragem estão envoltos por uma nuvem de
mistérios. Até hoje não há fontes seguras a respeito da real identidade do diretor
7. desse filme, assim como não há informações concretas sobre o elenco do mesmo.
Porém, é notório salutar que, em mil novecentos e setenta e nove, as poucas
pessoas que assistiram a tão obscura produção, desapareceram literalmente no
local da exibição.
O referido filme, assim como os seus negativos, também nunca foram encontrados.
- Puta merda, isso aqui só pode ser brincadeira! – Alessandra disse, imaginando
que tal absurdo não poderia ser parido nem mesmo pelo cérebro de algum autor
de contos desconexos.
A estudante então continuou a sua leitura:
Suspeita-se que Os demônios da outra dimensão foi dirigido por um ocultista
conhecido como Sirlov Van Masten, um profundo conhecedor de conceitos
gnósticos e herméticos, praticante de alta magia e estudioso da cabala.
A sinopse do referido longa-metragem gira em torno de um grupo de cientistas que
almejavam abrir um vórtice na tessitura espaço-temporal. O intuito dos incautos
estudiosos era desvendar um possível elo de ligação entre a nossa realidade e um
mundo paralelo que, suspeitavam, era o céu cristão. Tal oportunidade poderia
consolidar a prova da existência de Deus, aliando conceitos díspares como a
ciência e a religião.
Porém, o que acreditavam ser o paraíso, era, na verdade, a porta de entrada para
demônios monstruosos invadirem a nossa realidade.
- Esse texto definitivamente só pode ser brincadeira. – Concluiu a estudante. Ainda
assim ela prosseguiu lendo:
Essa abordagem, que sinaliza a humanidade almejando atingir o terreno da
divindade por meio do conhecimento científico, denota uma referência clara ao
mito grego de Prometeu, o titã que roubou o fogo protegido pelos deuses do
Olimpo para dá-lo aos humanos mortais. Tal ato perpetrado pelo titã Prometeu,
assegurou a supremacia da raça humana perante todos os mortais, por outro lado,
despertou a ira dos deuses.
8. - Na boa, quem escreveu esse livro? – Era a pergunta que pairava na mente de
Alessandra. A estudante, mesmo diante do teor absurdo da obra, continuou a
leitura, ainda mais quando o texto já havia pisado em um terreno que ela tanto
apreciava: mitologia.
... Zeus, a grande divindade do Olimpo, puniu Prometeu pelo seu ato de ousadia e o
acorrentou no cume do monte Cáucaso. Ali, naquele local, uma águia diariamente
se aproximaria dele com o mórbido intuito de devorar o seu fígado.
A lenda de Prometeu e a sua punição funcionam como uma metáfora que simboliza
a busca da humanidade pelo conhecimento e as suas drásticas consequências.
Os demônios da outra dimensão remete a esse arquétipo prometeico da busca
irrefreável que a raça humana tem pelo conhecimento e...
- Caralho, esse livro é muito estranho! – Alessandra concluiu. Até que, de repente,
ela ouviu a voz de alguém que acabara de se aproximar dela:
- Alê, o quê você está fazendo aqui? – Perguntou uma afável e infantilizada voz
feminina. A estudante olhou para trás. Ela então viu que a dona da voz era uma
moça que estava de mãos dadas com um rapaz. A moça era Giovana, colega de
Alessandra.
- Oi Gio, eu vim aqui fazer uma pesquisa e encontrei esse livro aqui...
- Que livro? – Indagou a colega.
Alessandra olhou para a tal publicação e viu apenas os braços dela levantados no
ar, como se estivessem a segurar um livro invisível.
- Que merda é essa, eu tenho certeza que estava segurando um livro. – Alessandra
pensou.
Giovana e o seu acompanhante esboçaram um leve sorriso. Ao ver que Alessandra
ficou deveras constrangida, Gio falou:
- Como assim, amiga, eu é que fumo maconha e é você que fica viajando? Aí na tua
mão não tem merda nenhuma de livro!
Alessandra estava tão confusa diante daquela situação surreal que mal conseguia
formular um argumento para a colega. Afinal, ela acabara de ler um texto referente
a um filme obscuro e, de repente, o tal texto (se é que realmente existiu) sumiu das
mãos dela.
9. De qualquer forma, de pelo menos algo Alessandra tinha plena convicção: aquele
local ali na biblioteca só era frequentado por casais que queriam encontrar um
local silencioso e discreto para transar.
Alessandra então ensaiou o seu sorriso mais cara-de-pau e falou:
- Ah é, tem razão. Eu não tenho livro porcaria nenhuma. Pois então, amigos,
sintam-se à vontade aqui dentro. Divirtam-se.
E imediatamente a garota saiu do recinto deixando para trás o casal apaixonado
entre beijos e abraços. Naquele instante, Alessandra tinha em mente apenas uma
coisa: conversar com o Dani a respeito desse tal de Os demônios da outra dimensão.
Na manhã seguinte, Daniel estava no seu apartamento, que nada mais era que um
espaço constituído apenas por uma sala, uma cozinha e um banheiro.
Não se tratava exatamente de uma moradia espaçosa. Na verdade, era o típico local
para alguém sem filhos e sem cachorro habitar. O que realmente importava para o
rapaz era que ali coubessem um guarda-roupa, um computador e uma cama, móvel
este que era essencial para quando a sua amada Alessandra viesse lhe fazer visitas.
Daniel estava, naquela manhã, sentado na frente do seu computador. Ele estava a
concluir a etapa final de um trabalho da faculdade.
Nas paredes do quarto dele, havia uma infinidade de cartazes referentes a vários
filmes do gênero de terror. Ali era possível encontrar desde os famosos longas
estrangeiros como O Exorcista e A Profecia, até pérolas nacionais, como o À Meia-
noite levarei a sua alma, clássico do Zé do Caixão.
Daniel era fã de filmes de terror. A prova disso era que no guarda-roupa dele era
possível encontrar muito mais fitas VHS do que roupas.
- ... E mesmo que todo mundo diga que as fitas VHS sejam quinquilharias de museu,
eu não as trocaria nem pelo DVD mais completo, cheio de extras e tudo mais. – Era
o que Daniel dizia para qualquer um que o considerasse um homem das cavernas.
Daniel estava na conclusão de um trabalho da faculdade. Quem via aquele rapaz ali
naquele quarto, cercado de pôsters por todos os lados, vestindo apenas cueca e
com uma rasteira barba ruiva suja de catch-up, não imaginava que ele era um
aluno exemplar de arquitetura.
10. Daniel, na contemplativa solidão do seu quarto, apontou os seus olhos para o
pôster do filme Hellraiser e imediatamente a sua mente foi invadida por agradáveis
lembranças.
Era até irônico aferir que um filme sanguinolento como Hellraiser pudesse resgatar
lembranças afáveis do inconsciente de alguém, mas para Daniel, aquele não era
apenas o primeiro longa-metragem de terror que o impediu de dormir por duas
longas madrugadas.
Hellraiser não era apenas a obra-prima do escritor e cineasta Clive Barker, não era
apenas o filme protagonizado por um vilão de visual sadomasoquista e de rosto
repleto de pregos pontiagudos. Hellraiser era principalmente o filme que colocou
Alessandra em seu caminho.
O encontro do casal aconteceu há dois anos, quando Daniel estava em busca de um
estúdio de tatuagem. O rapaz queria carregar gravada na pele do seu braço
esquerdo a imagem do Pinhead, o mestre da dor e do sofrimento, o protagonista do
Hellraiser.
E foi em um gélido dia de inverno, desses em que uma fina neblina fazia as pessoas
se sentirem como se fossem personagens de algum conto do Edgar Allan Poe, que
Daniel viu na porta de um prédio uma inscrição avisando que o estúdio de
tatuagem TatooArt ficava no sexto andar.
- Pa... Para isso existe e... elevador. – Ele pensou. O rapaz estava tão nervoso diante
da sua primeira tatuagem que gaguejava até em seu pensamento. Aliás, gaguejar
quando ficava nervoso era comum para Daniel.
Ele entrou no prédio e pressionou o botão para chamar o elevador. Dentro do
elevador, a temperatura não era tão congelante quanto na rua, mas ainda assim
Daniel tremia. Era óbvio que nem era tanto pelo frio, mas principalmente, pela
tensão.
- Cara, é só uma ta... ta... tuagem, vai desistir agora? Vai de... desistir igual você
desistiu das aulas de gui... guitarra? Igual você desistiu do curso de ve...
veterinária? Igual você desistiu do... Ah, foda-se. – Era o que Daniel falava solitário
no elevador. Ele apenas não recordou de mais situações abandonadas por ele
porque até para isso o rapaz achou por bem desistir.
11. A porta do elevador se abriu diante dele e Daniel caminhou por um corredor onde,
na última porta, estava a inscrição indicando que ali era o estúdio de tatuagem.
- Porra, seu imbecil, tente demonstrar mais coragem, você está parecendo um
adolescente que é a primeira vítima a morrer em um filme de terror. – Ele disse
instantes antes de apertar na campainha do estúdio.
O estudante de arquitetura acreditava que, quando aquela porta fosse aberta, ele
iria se deparar com um tatuador barbudo, da altura do Jason Vorhees, vestido com
uma camiseta com estampa do Cannibal Corpse e uma cara de pouquíssimos
amigos. Contudo, para a completa surpresa dele, quem o atendeu foi uma moça de
cabelos loiros. Daniel não sabia se era o efeito do nervosismo ou qualquer coisa
que o valha, porém, ele sabia que viu na atendente uma enorme semelhança com a
atriz...
- Barbara Crampton! – Ele disse, fazendo um esforço hercúleo para evitar que o seu
queixo caísse no chão com o mesmo impacto de uma bigorna abandonada do
quinto andar de um prédio.
A moça, vestindo um moleton rosa com estampa da Hello Kitty, estendeu a mão
para o abobalhado indivíduo na frente dela.
- Hã... Não... Eu sou a Alessandra. Meu nome é Alessandra.
- É que... que... eu te co... confundi com uma amiga, quero dizer, confundi com uma
atriz. – Daniel respondeu, quase solicitando para a moça na frente dele um
autógrafo. Ele evitou dizer para Alessandra que ela tinha uma significativa
semelhança com Barbara Crampton, a atriz que, em mil novecentos e oitenta e sete,
protagonizou o longa-metragem Re-Animator.
- Duvido que ela saiba quem seja Barbara Crampton. Aliás, duvido que ela saiba o
que seja Re-Animator. - Ele pensou enquanto ainda apertava a mão da moça.
- Então tu deves ser o Daniel Oliveira, certo? – Ela largou a mão dele. Daniel, por
sua vez, quase esqueceu o próprio nome.
- Eu? Si... Sim... Sou o Daniel.
Ela nem cogitou indagar se era a primeira tatuagem dele, pois a julgar pelo
nervosismo do rapaz, isso parecia ser óbvio.
- Esse é o meu turno e eu vou ser a tatuadora. – Ela disse sorridente.
E assim Alessandra solicitou para que Daniel adentrasse no recinto enquanto ela
iria preparar o material para fazer a tatuagem.
12. Finalizado os preparativos, Daniel, conforme solicitou a garota, sentou em uma
cadeira, expôs o braço esquerdo, mais precisamente a parte de fora do braço onde
seria feito o desenho, um pouco abaixo do ombro.
O rapaz viu a moça colocar as obrigatórias luvas cirúrgicas e preparar a pequena
máquina que iria gravar um desenho na pele dele. Ele, que tinha medo até de
injeção, se sentiu um tanto desconfortável diante daquele ritual.
Mas Daniel era assim, ele se sentia fascinado pelo medo. Nos parques de diversões
ele era sempre o primeiro na fila da montanha-russa. E se ele estivesse a bordo de
um avião prestes a pular de paraquedas, certamente seria o primeiro a querer
despencar lá do alto para sentir o seu corpo ser atraído pela força da gravidade.
Aliás, o medo era uma força que atraía Daniel assim como a gravidade atrai
qualquer coisa que ouse sair do chão.
- O medo é uma sensação causada pela liberação de hormônios, entre eles a
adrenalina. – Foi o que Daniel leu, certa vez, em um artigo. Ele sabia que o medo
era também um instinto de sobrevivência e se a espécie humana chegou até ali, foi
um pouco, graças ao medo.
Mas Daniel apreciava a sensação do medo. Ele sabia que esse sentimento liberava
no sangue uma dose excessiva de adrenalina, provocando no organismo uma série
de sensações. Eram essas sensações que, para ele, eram viciantes.
Alessandra, percebendo que o rapaz parecia assustado, falou com o seu tom de voz
mais tranquilizador possível:
- Não precisa se assustar, você vai sentir sua pele sendo picada por várias
formiguinhas. Essa máquina aqui nada mais é que um brinquedinho com ponta
afiada que vai despejar tinta na sua pele. Ela vai atravessar a epiderme várias vezes
e deixar ali, em cada furinho, uma gotinha mínima de tinta. Mas me diga aí, quem é
esse cara aí que você vai tatuar no braço?
Alessandra exalava tanta tranquilidade que Daniel, ainda que desejasse
permanecer assustado, gradativamente se sentiu contagiado pela serenidade da
moça e respondeu sem gaguejar:
- Esse sujeito aqui é o Pinhead, aquele cara que aparece nos filmes da franquia
Hellraiser.
- Eu não conheço esse filme.
13. - Porra, é o Hellraiser, filmaço feito na década de oitenta, dirigido pelo Clive Barker
e baseado em um conto escrito por ele.
- Eu não entendo nada de filmes de terror.
- Nem mesmo os filmes da Sexta-Feira Treze do Jason Vorhees tu conhece?
- Eu acho que assisti um que ele voltou dos mortos e saiu matando um bando de
adolescentes assustados.
- Acredite em mim, em se tratando de Jason Vorhees, essa resposta é muita
abrangente. – Daniel concluiu, tendo a certeza de que a moça diante dele entendia
de cinema de terror tanto quanto um canguru poderia compreender cálculo
estequiométrico.
- Então explica para mim, como esse tal de Jason Vorhees sempre ressuscita? Como
ele consegue fazer isso? Isso é algum tipo de gás especial ou é apenas algum feitiço.
- Nem uma coisa nem outra.
- Então o que é?
- É o senso de desprendimento da realidade.
- O quê?
- Senso de desprendimento da realidade. Isso é o que os roteiristas acreditam que
todas as pessoas possuem quando vão assistir a algum filme. Ou seja, eles acham
que não precisam explicar porque diabos o Jason revive, pois eles acreditam que o
senso de desprendimento da realidade que as pessoas possuem vão fazê-las
embarcar no enredo. Tipo, por exemplo, as histórias do Super-Homem. A gente
aceita o fato de que a Lois Lane não vê que atrás daqueles óculos do Clark Kent está
o Homem de Aço, entendeu? A gente acredita nisso porque nós temos um certo
desprendimento da realidade. E isso não faz ninguém parecer burro ou qualquer
coisa assim. Isso é apenas a capacidade que a pessoa tem para abrir a sua
imaginação e curtir uma história.
Alessandra, interessada pelo que Daniel estava falando, ligou a máquina de fazer
tatuagem e disse:
- Deixa ver seu entendi. O que tu está dizendo é, mais ou menos, como aceitar
numa boa que Hércules realizou doze trabalhos fodões porque se trata de uma
lenda da mitologia, certo?
- Exato.
- Eu me interesso por mitologia, sabia?
14. - Ah, pois é. Alguns filmes de terror são baseados em lendas, criaturas e heróis da
mitologia. – Daniel respondeu. A conversa entre os dois se prolongou durante a
sessão da tatuagem. Ao final da sessão, Daniel saiu não apenas com o rosto do
Pinhead desenhado em seu braço, mas também com um encontro marcado com a
moça que acabara de tatuar o seu braço. Foi naquele estúdio que nasceu o
relacionamento deles.
Daniel então deixou o seu mundo de recordações e retornou para a realidade
solitária do seu quarto, onde ele estava a finalizar um trabalho para a faculdade.
Sentado diante do monitor do computador, tudo permanecia tranquilo, mas eis que
de repente, ocorreu uma queda de energia elétrica. Como consequência o
computador foi desligado de forma súbita, deixando para Daniel apenas a imagem
vazia e escura do monitor. O estudante concluiu que tal queda de luz ocorreu
apenas no apartamento dele, pois ele ouviu, no vizinho do quatrocentos e dois, Axl
Rose berrando Sweet Child’O Mine para o prédio inteiro ouvir.
Diante do computador que foi desligado subitamente, o coração do rapaz bateu
com tanta intensidade que ele teve a impressão de possuir um alien almejando
pular para fora do seu tórax, mas ao lembrar que já havia salvo o trabalho no HD,
os batimentos cardíacos do rapaz retornaram ao seu ritmo normal.
Já com a respiração normalizada e com os efeitos do susto passando, Daniel
testemunhou surgir no monitor do seu computador uma imagem estranha.
Inicialmente a referida imagem era apenas um borrão de cores, era como se
alguma pintura de Jackson Pollock aparecesse ali, ignorando o fato do computador
estar desligado.
Considerando aquilo tudo muito estranho, o rapaz aos poucos enxergou esse
borrão adquirir forma. Foi então que os olhos de Daniel viram ali o surgimento do
que parecia ser uma cena de filme.
O estudante, diante da imagem já mais nítida, visualizou uma garota em um local a
céu aberto. Acima dela havia apenas nuvens cinzas e abaixo estava um gramado
que mais parecia um tapete verde. A jovem, de olhar cabisbaixo, jazia sentada em
um túmulo.
Ao redor dela, Daniel percebeu que haviam mais túmulos, tantos túmulos que
pareciam sumir ao longo do horizonte.
15. A moça, de longos cabelos loiros, era a única imagem humana em meio a uma
multidão de túmulos. Ela, de olhar cabisbaixo, tinha em mãos o que parecia ser um
pequeno estojo semelhante aos utilizados para guardar filmes VHS. Daniel apontou
os olhos para o estojo e viu que era a embalagem do longa-metragem Os demônios
da outra dimensão.
Naquelas circunstâncias o rapaz pouco estava se importando em saber como o
computador conseguia exibir tão funesta imagem em seu apartamento desprovido
de energia elétrica. Ele mandou a lógica às favas e sentiu o seu cérebro escorrer
pelos ouvidos ao perceber que a protagonista daquela cena, na frente dele, era...
- Alessandra!
Daniel continuou com os olhos fixos na tela do computador. Na cena, ele viu a
namorada abrir o estojo do filme maldito como alguém abre um livro. Ao fazer isso,
um braço de aparência monstruosa e repleto de escamas emergiu do interior da
ínfima caixa. A mão era esverdeada e contava com cinco dedos de unhas tão afiadas
que poderiam rasgar o ventre de alguém como se fosse algodão-doce. Em questão
de segundos aquela garra grotesca envolveu o rosto de Amanda.
Daniel, sentado na frente do seu computador, viu ali o rosto que ele tanto já beijou
ser esmigalhado como uma laranja podre. O rapaz se sentiu preso em uma rede
desespero e então gritou. Ele não sabia se o seu grito foi alto o suficiente para
abafar o Guns and Roses no aparelho de som do vizinho. A única coisa que ele sabia
era que todos os filmes de terror juntos que ele vira durante a sua vida não
conseguiam ser mais perturbadores que aquela hedionda cena na frente dele.
De repente a energia elétrica retornou. A horrenda imagem no monitor do
computador cedeu lugar para a tela de reinício do Windows. Daniel se sentiu como
se estivesse acabado de despertar de um pesadelo mesmo sem estar adormecido.
Ainda confuso diante de tão inusitada situação, o rapaz escutou a trilha sonora do
filme Psicose, mais precisamente a famosa canção que acompanha o assassinato da
mocinha Marion Crane no chuveiro.
A trilha dessa cena era o toque de chamada do telefone celular de Daniel. O rapaz
então pegou o telefone e viu o sorridente rosto de Alessandra na tela. O rosto jovial
dela estava intacto, bem como ele sempre fazia questão de ver.
- Oi, amor. – Ele disse ao atender o aparelho. Do outro da linha ele ouviu a
indefectível voz da namorada:
16. - Dani, querido, ontem de noite na biblioteca eu encontrei um livro. Aliás, eu acho
que encontrei. Enfim, o fato é que precisamos conversar sobre Os demônios da
outra dimensão.
- Eu também, querida, preciso muito falar contigo sobre esse filme. – Ele disse.
Meio-dia, antes de Alessandra ir para o estúdio de tatuagem e Daniel partir para o
local onde ele estagiava, eles decidiram se encontrar na Big Lanches, a lanchonete
próxima do prédio onde Alessandra morava. E era um dos raros estabelecimentos
alimentícios na cidade que, caso tivesse ratos, eles ficavam perambulando apenas
pela cozinha, longe do olhar dos fregueses.
Entre goles de refrigerante e uma considerável quantia de batatinhas fritas,
Alessandra relatou a experiência sobrenatural (se é que poderia ser chamada de
sobrenatural) vivida por ela na biblioteca.
Daniel, como um bom e compreensível namorado, escutou com atenção as palavras
da amada:
- ... E depois disso esse livro escrito, por sabe-se lá quem, desapareceu
misteriosamente das minhas mãos, contrariando tudo o que a gente aprendeu
sobre as leis da física.
Após o reato da garota, Daniel, gaguejando como o usual, falou para ela acerca da
visão que ele teve durante a manhã.
- ... E por isso eu acho que esse fi... filme maldito e esse livro que você encontrou na
biblioteca não são desse mun... mundo. Agora o que eles fazem aqui eu
sinceramente não sei. – Daniel concluiu.
Alessandra, ciente de que o namorado estava confuso diante de toda aquela
celeuma sobrenatural, decidiu fazer a pergunta derradeira:
- E então, ainda pretende assistir a esse filme?
Daniel desviou o olhar e não respondeu. Amanda detectou na expressão dele a
ausência daquela euforia que ele demonstrou quando a convidou para assistir o
misterioso longa-metragem. O fato do rapaz ter desviado o olhar e ter apeado para
o silêncio fez a garota interpretar que aquilo era um “não”.
Segundos depois Daniel voltou a encarar a namorada dizendo:
- Eu preciso falar com o Roberto, o foda é que aquela cara, sei lá, é tão... tão
estranho que eu tenho a... a... impressão de que ele a qualquer momento vai botar a
17. mão no rosto, tirar uma máscara e se... e se revelar o Freddie Krueger. – O rapaz
disse.
- Espere aí um pouco, você vai falar com quem?
- Falar com... com o Roberto, um sujeito estranho que de repente começou a fazer
parte do... do Cineclube. O... O cara é tão influente que hoje o pessoal da
organização não dá mesmo um espirro sem pedir permissão para ele.
Alessandra não conhecia esse tal de Roberto. Aliás, foi ali que ela aferiu que se
conhecia pessoalmente dois ou mais amigos do namorado, era muito.
- Dani, então converse com esse cara a respeito desse filme. Hoje, inclusive, depois
do estágio eu não terei aula, se você quiser, nós podemos ir juntos na biblioteca.
-Tá entendi... entendi. Eu vou junto contigo. – O fã de filmes de terror respondeu.
E então um beijo apaixonado selou a conversa e o casal se despediu.
Daniel conhecia bem a garota que várias vezes já dormiu ao lado dele. O rapaz,
durante a conversa, viu no olhar de Alessandra que ela falou com convicção. Por
mais non sense que parecesse a história narrada por ela, o estudante sabia que a
garota não parecia estar brincando. Além disso, o curioso fenômeno que ocorreu
no computador dele pela manhã também estava a anos-luz de ser uma brincadeira.
Daniel, apesar de ser um apreciador de filmes de terror, não mantinha contato com
os organizadores do Cineclube de Terror. Isso porque ele possuía algumas
divergências com um dos organizadores do grupo e preferia restringir a sua
participação a mero espectador.
Mas ao ouvir o relato da namorada acerca do referido filme misterioso, o então
estudante de arquitetura achou por bem investigar essa história mais a fundo.
Daniel tinha ciência que Os demônios da outra dimensão era um filme obscuro e que
foi gravado sob circunstâncias misteriosas por um diretor que ninguém viu
pessoalmente.
- Então como esse filme foi parar nas mãos dos organizadores do cineclube? – Ele
pensou enquanto pegava o seu telefone celular e ligava para um conhecido dele.
- Fala aí, brother Daniel. – Respondeu uma voz no outro lado da linha.
- Alô, André, tudo bem? Cara, eu tenho uma dúvida: Como os atuais organizadores
que coordenam o cineclube encontram Os demônios da outra dimensão?
18. - Boa pergunta. Eu só sei que aquele tal de Roberto ganhou esse filme em formato
VHS com um desses seres estranhos que ele conhece pela internet. – André
respondeu dando risada.
- E ele assistiu o filme?
- Não sei não, brother, tu sabe que o cara não fala muito. Até parece que o maluco
nem é desse mundo.
- Sei sim... Então é isso. Valeu, André.
- Sempre às ordens, brother. Semana que vem tu vai assistir a essa raridade do
cinema fuleiro, não vai?
- Vou... Vou sim. – Daniel falou sem muita convicção antes de desligar o telefone
celular.
Daniel foi um dos fundadores do Cineclube do Terror e auxiliava na seleção de
filmes, organização de cronogramas e outras atividades. No entanto, a partir do
momento que um sujeito que atendia pelo nome de Roberto apareceu, Daniel se
afastou dos assuntos relacionados a organização e preferiu se manter apenas como
um mero participante e espectador.
Roberto, se é que esse era o nome dele, era um cara intransigente, nada aberto ao
diálogo e parecia exercer uma influência quase hipnótica sobre as pessoas. Daniel
sabia que tal influência não tinha relação nenhuma com carisma, até porque esse
tal de Roberto não era nenhum pouco carismático. Pelo contrário, esse cidadão era
dono de um olhar tão sombrio que deixaria o ser mais mal humorado da Terra
parecendo um animador de auditório.
Além disso, o que exacerbava a animosidade entre Roberto e Daniel era o fato de
que o segundo, inexplicavelmente, se sentia mal apenas de estar a trinta
centímetros perto do primeiro.
- Sei lá de onde esse ca... cara veio, mas ele pa... passa para mim uma energia muito
ruim. – Certa vez Daniel confessou para um outro interante durante uma sessão do
cineclube.
Daniel, por enquanto, deixou de lado as batatinhas fritas, o refrigerante, suas
divergências e o suposto livro misterioso de Alessandra. Ele apenas se dirigiu ao
atendente da lanchonete, efetuou o pagamento e foi embora. Naquele instante, o
rapaz teria mais um dia inteiro no escritório onde ele atuava como estagiário.
19. Mais tarde, mais precisamente às seis e meia da noite, o casal se encontrou
novamente. Alessandra levou Daniel para a biblioteca. Ela ainda tinha uma nesga
de esperança de que encontraria o estranho livro.
Na recepção da biblioteca, Alessandra, visivelmente constrangida, solicitou para a
atendente verificar no banco de arquivos do computador se havia cadastrado
algum livro cujo título era O Segredo dos Filmes Amaldiçoados.
A atendente, uma senhora de quase cinquenta anos, fez um esforço hercúleo para
não rir e, após alguns cliques no mouse e uma rápida olhada no monitor do
computador, respondeu:
- Moça, esse título não consta em nossos arquivos. Você pode informar para mim o
nome do autor, talvez assim seja possível...
- Não, não obrigada, já é o bastante. Eu e o meu namorado vamos procurar então
por outro livro. – Alessandra disse. Ela não queria passar pelo constrangimento de
dizer que estava a procurar uma publicação redigida por um tal de Mestre
Desconhecido.
A estudante apenas puxou Daniel pela mão e desapareceu em meio a estantes e
corredores de livros.
Dentro da biblioteca, perambulando entre corredores silenciosos, Daniel aferiu que
os cineastas estavam perdendo um precioso tempo ao não utilizarem aquela
biblioteca soturna e silenciosa para um algum filme de terror.
Daniel, que tinha um fascínio pela sensação do medo, naquele instante não estava
amedrontado, mas apreciaria sentir medo ao passar uma madrugada ali, naquele
local ermo e já com pouca iluminação.
- Aos poucos eu sentiria que todas essas estantes repletas de livros se tornariam
sufocantes, claustrofóbicas. Talvez, no meio da escuridão, criaturas estranhas
poderiam aparecer e...
- É aqui ó, é nesse setor dos livros de psicologia onde estamos que eu encontrei O
Segredo dos Filmes Amadiçoados – O Filme Maldito. – Alessandra disse. – É
exatamente nesse final de corredor. – Alessandra concluiu.
Diante da estante de livros, a moça estendeu o braço para verificar o título de
algumas publicações, no entanto, encontrou apenas títulos de psicologia. Alguns
livros até despertaram interesse nela. Contudo, tais publicações ali eram o que
20. menos importava e a garota ficou deveras decepcionada ao ver que o enigmático
livro que ela procurava não estava ali.
Daniel viu a expressão constrangida da namorada e, no seu íntimo, chegou a torcer
para que aquele livro absurdo realmente estivesse ali.
- Alê, vamos embora, eu acredito em você e tal...
Daniel então foi interrompido por duas garotas que se aproximaram deles. As
jovens aparentavam ter a mesma idade do casal e ambas estavam de mãos dadas.
Uma das moças, morena e de cabelos até os ombros, falou:
- Gente, eu nem sei como dizer isso, mas se vocês não forem ocupar agora esse
território, eu e ela vamos ocupar, está certo?
Aquele local ermo da biblioteca, pouco frequentado e silencioso, era o lugar
predileto de casais ávidos para dar uma trepadinha. Alessandra assim que
compreendeu o recado da moça, pegou Daniel pela mão e saiu dali, deixando para
trás o casal de moças à vontade. Elas então ficaram ali, entrelaçando as suas
respectivas línguas em um beijo intenso e apaixonado.
Daniel ignorava o que casais faziam ou deixavam de fazer naquele setor esquecido
da biblioteca. Ele estava mesmo era preocupado com os eventos sobrenaturais
envolvendo aquele filme:
- É claro que Os demônios da outra dimensão não é um filme normal, é um longa-
metragem de ficção que tem demônios. E demônios de um outro mundo. Se fosse
uma produção da Disney a gente até poderia esperar ursinhos fofinhos realizando
uma incrível jornada em busca das fadinhas azuis ou qualquer coisa assim, mas é
um filme de terror dos anos setenta. E se for um filme amaldiçoado? Bom, qualquer
filme ignorado por crítica e público é amaldiçoado. - Daniel pensava enquanto
caminhava de mãos dadas com a namorada.
Quando o casal estava prestes a cruzar pela porta de saída da biblioteca, um sujeito
alto, de corpo esguio e vestido de preto, apareceu e ficou em pé, estagnado, na
frente dos dois.
Todas as peças de roupa que cobriam o corpo do indivíduo eram escuras, desde as
botinas, passando pela calça jeans, pelo casaco sobretudo e culminando no capuz
que envolvia o pálido rosto. Daniel bem que tentou encarar nos olhos aquele
cidadão de quase dois metros de altura, mas eles estavam cobertos por óculos
escuros. Apesar disso, Daniel teve a impressão de que o conhecia.
21. Antes que qualquer um dos dois pudesse pedir com licença, o sujeito falou:
- E se de repente vocês descobrissem que a realidade é tão estranha quanto a
ficção, o que vocês fariam?
Alessandra olhou para Daniel piscando os olhos sucessivas vezes, algo que ela fazia
sempre que tentava compreender alguma coisa. Daniel, por sua vez, olhou para
Alessandra tentando disfarçar o pouco de medo que crescia dentro dele.
Quando ambos levantaram os olhos para encarar o homem mais uma vez, ele
simplesmente não estava mais lá. No lugar, quase em cima dos pés do casal, jazia o
livro que ambos procuravam.
Daniel se agachou para juntar o livro do chão. Era exatamente a publicação que a
namorada não encontrou momentos antes. A garota reconheceria aquela capa
escura adornada com o título em fontes amarelas até mesmo de olhos fechados.
- Tudo isso, esse livro, aquele cara, tudo isso. É bizarrice de... demais para eu te...
tentar entender! - Daniel falou enquanto ele e a namorada saíam da biblioteca.
– Eu tenho ce.. certeza que aquele sujeito es.. estranho é o Ro... Roberto, se é que
Roberto é o nome dele. Mas como ele conseguiu aparecer e desaparecer como se
fosse o Mestre dos Magos eu ainda não co... consigo entender. – Daniel concluiu.
Alessandra caminhava pela calçada ao lado de Daniel. Já era noite e apesar da
iluminação precária do bairro, ela olhava atenta para tudo que ocorria ao seu
redor, temendo ser surpreendida mais uma vez pelo misterioso homem de preto.
- Pelo jeito você quer levar esse livro para a sua casa, certo? – Alessandra indagou.
- Sim, eu quero analisar ele com calma, isso se ele não de... desaparecer das minhas
mãos, é óbvio.
Daniel, tal qual a sua namorada, estava intrigado diante de tudo aquilo que acabara
de ocorrer:
- Como esse cara surgiu e desapareceu de repente? Eu sempre achei esse tal de Ro..
Roberto sinistro pra caralho. Desde que ele che... chegou para integrar o ci...
cineclube, eu senti algo perturbador nele. De... De onde será que ele veio? Será que
ele é o autor desse livro aqui?
- Dani, por favor, peço que não faça as mesmas perguntas que eu tenho em mente.
Dez minutos depois
22. No minúsculo apartamento de Daniel, uma preocupada Alessandra estava na sala,
mais precisamente sentada na cama, o único móvel ali mais parecido com um sofá,
pois caso não sentasse na cama, deveria se contentar com o chão.
Alessandra observava o namorado andar de um lado para outro na frente dela. Ele
permanecia com o livro aberto nas mãos. O rapaz folheava páginas, lia alguns
trechos e ficava ali, absorto em seus pensamentos, tentando compreender, afinal, o
que era Os demônios da outra dimensão, aquele filme que por décadas era uma
raridade, mas de repente apareceu na cidade, trazido por um sujeito igualmente
misterioso.
E então Daniel quebrou o silêncio:
- Porra, mas quem é esse Mestre Desconhecido que assina como autor desse livro?
- E você acha que eu sei, Dani?
Alessandra sempre nutriu interesse pela fantasia, pelo surreal e pelo fantástico,
não por caso, os contos de mitos e deuses sempre a fascinaram desde a tenra
infância. Ela apenas nunca imaginou que um dia viveria uma situação semelhante
ao que encontrava nas histórias surrealistas das antigas lendas.
- Cara, eu lembro como se fosse agora, aquele livro estranho desapareceu das
minhas mãos! Até parece que os deuses, espíritos, ou seja lá como chamam, estão
brincando com a gente. – Ela pensava enquanto observava o namorado andar
afoito pela sala.
- Dani, se facilitar, tu já andou o equivalente a duas voltas daqui até a Grécia. – Ela
falou para o namorado.
O rapaz então largou o livro sobre o HD do computador, sentou ao lado da
namorada e, olhando para frente, como se estivesse em uma espécie de transe,
falou:
- Eu acho que esse filme é uma espécie de portal para uma realidade paralela e
quem está tentando acessar a essa realidade é esse sujeito estranho, o Roberto, se
é que esse é o nome verdadeiro desse ser.
Alessandra até pensou em parabenizar Daniel por ele não ter gaguejado, mas tal
situação não apresentava espaço para tais brincadeiras. E então ela apenas
perguntou:
- Aquele sujeito na biblioteca não era esse tal de Roberto, que você faz questão de
manter distância?
23. - Era sim, eu tenho ce... certeza que era aquele maluco.
Alessandra já ouvira o namorado dela afirmar que Roberto foi o sujeito que
simplesmente chegou nas reuniões do cineclube e, em pouco tempo, já dava ordens
e a palavra final era sempre dele.
Roberto (ou seja lá quem for) chegou sorrateiro no cineclube. Em um primeiro dia
ele era apenas o sujeito desconhecido de jaqueta jeans que sentava na última
classe da sala. A primeira vez que ele abriu a boca foi para sugerir a exibição do
longa-metragem Phenomena.
- Pessoal, Phenomena é um clássico do Dario Argento. – Ele disse antes de proferir
um vasto monólogo acerca daquele longa-metragem. Todos pareciam
mesmerizados quando viam e ouviam o rapaz falar, exceto Daniel, que desde o
primeiro dia que o encarou, sentiu uma energia estranha. A princípio Daniel
acreditava que estava tomado pela inveja, mas mais tarde ele aferiu que ele não
estava cometendo esse pecado capital, o da preguiça ele às vezes até se permitia
cometer, mas não a inveja. Ele se considerava muito mais forte que isso.
Enfim o fato é que Daniel sentia que havia uma coisa sinistra naquele cara,
principalmente pelo fato de que os outros integrantes do cineclube acatavam as
ordens dele como se fossem os ratos seguindo o flautista de Hamelin.
Diante dessa situação e para evitar maiores celeumas, Daniel se distanciou do
grupo coordenador do cineclube. Ele preferiu apenas participar sendo somente um
assíduo espectador das sessões fílmicas.
Daniel, sentado na cama ao lado da namorada, falou:
- Na bi... biblioteca, Roberto, ou seja lá quem for, pe... perguntou o que a gente faria
se descobrisse que a re... realidade é tão estranha quanto a ficção.
- E o que isso quer dizer, afinal? O que isso tem a ver com o filme dos demônios da
outra dimensão?
- Sei lá, talvez queira dizer que esses demônios da outra dimensão existam e que
exibir o filme poderá trazer essas coisas para o nosso mundo.
Alessandra ficou pensativa. De repente ela imaginou que todos aqueles deuses e
monstros que via nas páginas dos livros de mitologia existiam em algum lugar.
Talvez longe dali, talvez perto dela ou, quem sabe, dentro da mente dela a vigiando
vinte e quatros por dia. A futura psicóloga percebeu que vivia em um mundo de
incertezas e já não tinha mais convicção do que era plausível.
24. Daniel, que sempre apreciou sentir medo do perigo fictício dos filmes de terror,
ficou desconfortável diante da possibilidade do perigo ser tão real e palpável
quanto a mão de Alessandra que segurava a dele.
- Saudades de um tempo em que os monstros eram de borracha e ficavam apenas
do outro lado da tela. – Ele pensou enquanto sentia em seu ombro a namorada
apoiar o rosto dela.
A aproximação de Alessandra deu ao rapaz uma leve sensação de segurança. Ele,
como retribuição, abraçou a moça e a beijou de forma apaixonada. Não demorou
muito e ambos jaziam sobre a cama pouca espaçosa, entrelaçando os seus corpos
como se fossem um yng-yang humano.
Deitado adormecido na cama, Daniel era observado por Alessandra, que também
estava deitada e abraçada nele.
- E se de repente aparecesse um daqueles monstrengos nojentos de filmes de
terror e atacasse eu e o Dani? – Ela pensou ao lembrar que casais em pleno coito
são vítimas em potencial nas produções cinematográficas de terror.
Certa feita, Daniel explicou para ela a teoria que ele tinha sobre isso:
- É que no inconsciente moralizante das pessoas o ato de foder é um pecado. E os
filmes de terror expressam esse pensamento punitivo, portanto, pode ter certeza
que os roteiristas vão dar um jeito de matar todo e qualquer casalzinho que se
separa do grupo e entra em uma floresta fechada para transar. – O rapaz explicou.
Alessandra lembrou também da mitologia judaico-cristã, mais precisamente do
livro Gênesis no antigo testamento bíblico, onde há a metáfora da maçã
simbolizando o pecado sexual que provocou a expulsão de Adão e Eva.
A garota observava Daniel deitado ao seu lado. Ela ficava a pensar o que os pais
dela achariam do seu namorado. O senhor Schwartz, por exemplo, não gostaria de
saber que o cara que dorme ao lado da filha estaria pensando em abandonar a
faculdade de arquitetura para conseguir uma bolsa de estudos de cinema em
Boston. E o pior, o Senhor Schwartz teria um enfarte ao saber que o cara que
dorme ao lado da filha é gremista.
A senhora Schwartz, cristão convicta, não apreciaria as opiniões religiosas do
genro.
25. Alessandra, ao contrário da mãe, não possuía uma religião, mas ela tinha
religiosidade e, de certa forma, nutria a crença de que a alma repousava em algum
local após se desvencilhar do corpo físico. Por isso a garota suspeitava que os
falecidos pais, onde quer que eles habitassem naquele momento, estivessem a
olhar para ela com aquela típica expressão de reprovação que só os pais
conseguem fazer para os filhos. Afinal, Alessandra cometeu a travessura de se
apaixonar por um rapaz “desviado do bom caminho”.
- Filha, ele tem uma tatuagem horrível no braço! – A mãe dela iria protestar.
- Eu sei mãe, eu a desenhei. – Alessandra responderia com uma naturalidade
irritante.
Deitada e abraçada em seu namorado, Alessandra olhava os detalhes do
personagem Pinhead que ela mesma desenhou no braço do amado.
Esse horrendo personagem, de rosto pálido, desprovido de cabelos e com vários
pregos cravados na face, era o principal antagonista do filme Hellraiser. Pinhead,
um torturador implacável, marcou profundamente a memória de Daniel e, por
causa disso, o jovem um dia decidiu ter ele marcado em sua epiderme.
Alessandra observava os contornos do personagem tatuado no braço de Daniel:
- Acho que hoje, se eu fizesse esse desenho, reforçaria mais o sombreamento nas
laterais. – Ela pensou enquanto passava a ponta dos seus dedos levemente no
braço de Daniel, fazendo de tudo para não despertá-lo.
E foi então que mais um surreal fenômeno ocorreu para brindar aquela noite de
bizarrices: Alessandra viu a tatuagem no braço do rapaz falar com ela.
- E se de repente vocês descobrissem que a realidade é tão estranha quanto a
ficção, o que vocês fariam? – A tatuagem questionou.
Ao ver aquilo, Alessandra contorceu o rosto em uma expressão de espanto que ela
nunca mais conseguiria repetir, por mais que se esforçasse. Afinal, os olhos dela
não estavam habituados a testemunhar uma tatuagem efetuar perguntas, os
ouvidos dela não estavam acostumados a ouvir palavras oriundas de um desenho
inanimado. Portanto, restou para o cérebro dela, confuso e perdido, dar para ela o
comando para gritar. E a garota assim o fez.
A estudante de psicologia mandou às favas o fato do namorado dela estar
dormindo. Ela gritou o mais alto que as cordas vocais dela permitiam.
- Alê, o que foi? – Indagou um assustado Daniel.
26. - Essa porra de desenho aí no teu braço falou.
- Como assim? Ele fa... falou o quê?
- Sei lá, ele fez aquela pergunta. Ele perguntou, ah merda... – Alessandra então
cobriu os olhos com as palmas das mãos. Aquele era um gesto de quem faz um
esforço hercúleo para acordar de um sonho. – Ele perguntou o que a gente faria se
descobrisse que a realidade é tão estranha quanto a ficção. – A jovem concluiu.
Daniel acreditou nas palavras da namorada. O fato da tatuagem dele ter falado não
o surpreendeu. Pelo contrário, para Daniel, esse era mais um fenômeno estranho a
preencher a cota das esquisitices ocorridas desde o momento que a Alessandra
descobriu, nos recônditos locais da biblioteca, um livro estranho referente a um
filme mais estranho ainda.
- Qual fato surreal falta acontecer agora? Um guaxinim falante perito em álgebra
invadir essa sala? – Daniel pensou desnorteado e um tanto quanto sonolento.
Afinal, ele estava adormecido quando os tímpanos dele quase foram estraçalhados
pelo grito da namorada.
O rapaz apenas se sentiu desperto ao reparar que Alessandra olhava com notória
atenção para o HD do computador. Daniel sabia o que os olhos da garota tentavam
enxergar. Era o livro, aquele maldito livro que teimava em desaparecer em todas as
situações em que ele era procurado.
- Onde esse livro foi parar agora? – Alessandra indagou.
- Eu vou pro... procurar o Roberto, o cara que encontrou e trouxe esse mal...
maldito filme dos demônios da... da outra dimensão. Eu tenho certeza que todas
essas merdas ocorrendo com a gente são por... por causa desse filme. – Daniel falou
vestindo uma jaqueta, já saindo do apartamento.
- Mas agora são quase duas horas da madrugada! – Alessandra o alertou.
- Não importa, eu... eu... quero saber quem ou o quê esse cara é. Eu sinto que esse
cara tem relação com tudo isso que está acontecendo, por isso eu… eu quero saber
de onde veio esse... esse filme. – Daniel disse. O rapaz saiu do apartamento,
deixando Alessandra ouvindo os passos dele ecoando pelo corredor enquanto ele
descia as escadas. A garota, sem a mínima disposição para apenas aguardar o
desenrolar dos fatos, seguiu o namorado.
27. Daniel já estava na calçada em frente ao prédio quando pegou o seu telefone
celular e efetuou uma chamada para o ponto de táxi. Enquanto o rapaz esperava o
carro, ele viu Alessandra aparecer do lado dele.
A lua, que naquele momento parecia uma bola colada no escuro céu noturno, era
uma das poucas fontes de luz em uma rua de iluminação precária. Alessandra e
Daniel eram as únicas pessoas na calçada.
- Você não vai comigo a lugar nenhum nessa... nessa... hora da noite. – O jovem
ordenou.
- Não adiante me olhar com essa cara. Eu vou junto contigo.
- Mas...
- Não, não tem “mas”. Lembra daquela vez de quando eu te falei sobre aquele mito
do Teseu, o cara que matou o monstro Minotauro? Pois é, ele fez isso com ajuda de
uma mocinha chamada Ariadne. Eu não sei se esse cara misterioso que você vai
visitar não vai se revelar algum monstro tão fodão quanto os da mitologia grega,
mas saiba que, se precisar, eu serei a sua Ariadne.
Daniel não retrucou, até porque diante de tal argumento, ele apenas iria, como de
praxe, tropeçar nas palavras.
O táxi então apareceu. Era um Escort Hobby branco. Daniel e Alessandra entraram
no carro.
- Rua dos... dos... Anjos, número quatrocentos e quinze.
Naquela hora, com o mínimo de carros transitando pelas ruas, o taxista chegou ao
destino solicitado em poucos minutos.
O casal saiu do carro e Daniel efetuou o pagamento da corrida.
Alessandra nem reparou no automóvel que se despediu em alta velocidade
quebrando o silêncio com a nada afável sinfonia de pneus cantando. Ela estava em
pé, na calçada, mesmerizada ao ver o nome do prédio na frente dela: Hades.
- É aqui onde esse tal de Roberto mora? – Ela questionou.
- Sim, por quê?
- Não, nada. É apenas uma sincronicidade.
- Uma o quê?
- Sincronicidade… Como eu posso explicar… Bom, sincronicidade é um negócio que
Jung falava. Ela é um conceito que define esses acontecimentos cotidianos que
podem até parecer coincidência, mas não são bem ao certo coincidências, são
28. eventos que se ligam não por uma relação causal e sim por relação de significado e
por isso... Ah, esquece. – Alessandra achou por bem não se prolongar mais na
explicação.
O fato é que ela encontrou sincronicidade no nome do prédio, pois Hades, na
mitologia grega, era o deus que governava um reino subterrâneo. E era ali naquele
prédio que o Roberto, um sujeito misterioso, morava.
Daniel sabia que enigmático integrante do cineclube morava ali, no apartamento
trezentos e dois, porque um dia esse cidadão convidou (na verdade “convidou” é
um mero eufemismo), Roberto, na verdade, dono de um hipnotizante poder
persuasivo, convocou alguns integrantes do cineclube para uma reunião. No
entanto, Daniel recusou tal convite, visto que o rapaz nunca se sentiu bem diante
da presença do anfitrião. Além disso, ele, de alguma forma, parecia estar imune aos
desígnios daquele cara que até então ninguém conhecia.
- Dani, afinal, o que tu pretende fazer no apartamento desse maluco. Por acaso você
vai acordar o sujeito, encher a cara dele de soco até ele confessar que ganhou o
filme das mãos do próprio demônio? É isso? - Alessandra perguntou agarrando o
braço do namorado, que não tremia tanto desde que aquela vez que ele colocou os
pés no estúdio de tatuagem onde ela trabalhava.
- Eu só quero entender o que esse… esse cara é. Eu… Eu… quero entender o que
esse filme tem.
Daniel então se desvencilhou dos braços da amada e se aproximou da porta do
prédio diante dele. Foi quando uma abafada voz oriunda do interfone falou:
- Quem bom que vocês vieram, eu estava esperando por vocês.
A porta então se abriu.
Daniel olhou para Alessandra. O rapaz nem precisou falar nada para a garota saber
que ele estava a se perguntar até onde iam os poderes do morador do trezentos e
dois.
Daniel adentrou o corredor do prédio. Ao ver que a moça ficou para trás, ele
perguntou:
- E então, não é você que disse que será a... a minha Ariadne?
Alessandra não respondeu. Ela apenas o acompanhou se sentindo Alice caindo na
toca do coelho.
29. Daniel e Alessandra subiram as escadas do prédio. Até que no terceiro andar se
depararam com a porta do apartamento trezentos e dois.
- É aqui o reduto da criatura. – Daniel falou.
- Então vamos apertar a campainha. – Alessandra sugeriu, se perguntando o que
ela veria ali dentro quando aquela porta se abrisse diante dela. A garota pensou em
várias coisas estranhas. Ela cogitou que aquela sala poderia ser uma espécie de
congelador adornado com corpos humanos nus pendurados em ganchos no teto. E
que diante disso o morador ali apareceria dando as boas vindas, no meio da
fumaça de gelo, vestindo um avental branco pintado com manchas de sangue.
Alessandra também imaginou que naquela sala ela veria inúmeras estátuas,
esculturas mostrando pessoas nas mais variadas poses, algumas ajoelhadas, outras
sentadas e, quem sabe, até mesmo uma réplica do David de Michelangelo estaria
ali.
No meio de tantas obras de arte, surgiria então anfitrião, segurando a cabeça da
Medusa em uma das mãos tal qual o herói grego Perseu.
- Vejo que tenho mais peças para a minha coleção. – O morador ali diria antes da
cabeça decepada na sua mão brilhar os olhos diante dos incautos visitantes.
Desde a tenra infância, quando Alessandra passou a se interessar por mitos, a
Medusa era o monstro geco-romano que ela mais temia.
A garota conhecia a lenda daquele monstro e sabia que a Medusa um dia foi uma
bela mulher que, diante da ira da deusa Atena, adquiriu aquela face tão horrenda
que era capaz de petrificar qualquer criatura.
Alessandra não sabia o que a esperava do outro lado daquela porta, mas ainda
assim, o medo crescente nela a fazia sentir as suas pernas tão pesadas quanto dois
blocos de pedra.
Daniel apertou a campainha e depois de quatro segundos (que para o ansioso casal
pareceram quatro séculos) a porta finalmente foi aberta por um rapaz magro, de
alta estatura, calça jeans, tênis e uma camiseta escura com o Alfred Hitchcock
estampado.
Alessandra olhou para o ambiente atrás do rapaz e viu uma sala normal de
apartamento. Ela não detectou nada de estranho, nem corpos esquartejados,
morcegos esvoaçantes ou criaturas de dentes afiados. O que o campo de visão da
30. garota conseguiu enxergar foi uma mesa, um sofá, um aparelho televisor e todos
aqueles apetrechos inexistentes no apartamento do seu namorado.
- Esse é o tal de Roberto? – A garota pensou.
- E então, vão ficar aí parados iguais a duas estátuas? Vamos, entrem. – O rapaz
falou. Apesar da Alessandra não ter gostado da metáfora, ela observou o namorado
com uma expressão de quem diz “agora que estamos nas portas do inferno, não
custa nada entrar”.
Daniel estava visivelmente desconfortável diante daquele sujeito. Alessandra
aferiu que o namorado não exagerava quando dizia não se sentir muito bem perto
daquele cidadão. E assim, se sentindo sem alternativas, o rapaz entrou no
apartamento e foi seguido por Alessandra.
Dentro do recinto, o estudante de arquitetura falou:
- Algumas coisas estranhas ocorreram comigo e com a Alessandra desde que você
encontrou o Os demônios da outra dimensão. Cara, são coisas bem esquisitas e...
- E se de repente vocês descobrissem que a realidade é tão estranha quanto a
ficção, o que vocês fariam? – Roberto interrompeu Daniel.
O casal ficou sem reação diante da pergunta.
- E se eu dissesse agora que durante a vida inteira vocês foram atores de um filme
de terror?
- Então eu... eu... concluiria que trata-se de um filme com uma história mal contada
para caralho. – Daniel disse.
- E com um roteiro com mais furos que um queijo suíço. – Alessandra completou.
Daniel, ansioso para resolver a situação, falou em um tom mais áspero:
- Porra, cara, diz de uma vez por todas por que aquela manhã eu... eu vi, no monitor
do meu computador fodido a... a Alessandra em um ce... cemitério. E que merda,
afinal, é aquele livro que ela encontrou na bi... biblioteca?
- Ah, esse livro aqui. – Roberto, com a precisão de um mágico, levantou o seu braço
esquerdo e, de repente, na mão dele apareceu o livro que até havia desaparecido
do apartamento de Daniel.
Ao presenciar aquela façanha, Alessandra e Daniel trocaram olhares que acusava
assombro e incompreensão.
Roberto então explicou:
- Esse livro é só um McGuffin.
31. - E o que é isso? – Alessandra perguntou. Daniel se antecipou:
- McGuffin era alguma coisa que o Alfred Hitchcok falava. McGuffin era... era uma
coisa no enredo que faz com que os personagens... personagens ajam em torno
dela, mas que no final se revela não ter assim tanta importância. O McGuffin, tipo,
pode ser qualquer coisa, desde um objeto, uma... uma pessoa ou até uma palavra.
- No filme Cidadão Kane o McGuffin era uma palavra. – Roberto concluiu.
Alessandra interrompeu a conversa dos dois rapazes:
- Está certo... Eu já entendi, mas e esse filme dos Demônios da outra dimensão
existe?
- Não apenas existe como você estão dentro dele.
- Não dá para acreditar em uma coisa dessas. – Daniel concluiu, o que fez Roberto
perguntar:
- Onde está o seu senso de desprendimento da realidade, rapaz?
- Então prove então aí que a gente é personagem de um filme. – Alessandra
ordenou para Roberto.
- O seu desejo é uma ordem, moça. – Roberto andou até a janela da sala e levantou
a persiana da janela. O casal de namorados esperava ver do lado de fora do
apartamento o céu noturno em sua majestosa escuridão, mas se deparou apenas
com um auditório mal iluminado e repleto de cadeiras. Daniel e Alessandra
repararam que a maioria das cadeiras estava ocupada por pessoas que os
observavam, na verdade, elas contemplavam o casal, imersas em uma espécie de
transe catártico.
- Por que eles... eles estão olhando a gente? – Foi a pergunta de Daniel.
- Eles nem piscam. – Alessandra completou.
- É porque agora esse pessoal todo está esperando a cena final. Que é justamente a
cena da carnificina que será perpetrada pelos demônios da outra dimensão, até
porque que esse filme apenas tem esse nome por causa deles. – Roberto afirmou
com uma tranquilidade assaz irritante.
Antes que Alessandra pudesse convidar o seu namorado para sair dali, ela escutou
uma espécie de estalo no teto do apartamento. A garota apontou os seus olhos para
cima e enxergou uma rachadura no concreto. A rachadura, que iniciou como um
pequeno risco semelhante a uma linha desenhada por alguém com mal de
32. Parkinson, se propagou pelo concreto se dividindo em várias direções iguais as
artérias de um corpo humano.
Daniel também olhou para o teto e viu o concreto ser rompido, liberando um
monstro que caiu em pé no chão da sala.
A criatura era um ser humanóide da altura de um adulto, possuía a pele coberta de
escamas e mãos com garras poderosas. Daniel já viu garras iguais aquelas antes,
quando teve aquela horrenda visão no monitor do seu computador.
Alessandra, por sua vez, estava paralisada devido ao medo e nem gritar ela
conseguiu.
Já Roberto assistia a tudo com uma complacência digna de uma ovelha indo para o
abate.
Mais duas criaturas iguais a que veio do teto surgiram, porém essas duas vieram
do chão do apartamento, rasgando a estrutura de concreto como se ela fosse reles
pedaços de papel cartolina.
Daniel tentou esboçar uma reação e agarrou Alessandra pelo braço. O intento dele
era sair dali, junto com a namorada, inteiro.
Roberto viu o desespero estampado no semblante do casal e falou:
- Aceitem o destino de vocês que será mais fácil. Vocês são os protagonistas de um
filme de terror e não de uma comédia romântica. É perfeitamente normal que no
final o casal tenha uma morte trágica.
Mais demônios da outra dimensão surgiram e a sala ficou tomada por tais seres.
Roberto foi o primeiro a ser desmembrado parecendo um boneco Lego aos olhos
do casal.
Daniel ainda conseguiu abrir a porta para sair do apartamento, fato esse que
apenas liberou a passagem para mais demônios ocuparem o recinto. Garras
destruidoras cobriram o casal, que se viu envolvido em um círculo de dor e
pesadelo.
Daniel tentava de forma desordenada juntar o que restou do seu intestino grosso
enquanto via a cabeça decepada de Alessandra ser jogada de um lado para o outro
até ser esmigalhada. Ele não conseguia crer que o que restou da sua amada foram
apenas os cabelos loiros como se fossem os restos de uma peruca.
33. O ex-estudante de arquitetura pensou na frase popular que diz que poucos
instantes antes da morte, a pessoa consegue ver flashes da sua vida como se fosse
um filme. Pois para Daniel, aquela frase soou verdadeira.
E ali o casal foi dilacerado para o deleite do público presente.
THE END