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GentedeOuro
Nasceu em Coimbra mas é de
Ançãquesediz–éláqueestãoassuas
raízes e foi lá que viveu grande parte
da sua vida.Cresceu na vila histórica,
de onde é natural a sua progenitora,
com visitas regulares ao Seixo (Mira),
terra de origem de seu pai. Filho de
funcionários públicos — a mãe era
professora e o pai chefe de secretaria
—recordaumainfânciafeliz,marcada
porumafortevivênciadafénoseioda
família. “Cresci numa família estável.
Emcasaéramoscincoirmãos,osmeus
pais e os meus avós maternos; três ge-
rações, portanto. Isso foi muito impor-
tante, pois passávamos muito tempo
com os nossos avós enquanto os nossos
paistrabalhavam”.
Para além dessa partilha inter-
geracional tão enriquecedora, havia
uma outra particularidade que Pedro
Miranda evoca: “Apesar dos nossos
pais serem funcionários públicos,
aquelacasaestavabastanteenraizada
no mundo agrícola e rural: foi pensa-
da para ter animais e tinha adega,
onde o meu avô fazia vinho. Permitiu-
-me viver uma infância que hoje prezo
muito”, garante.“As pessoas da minha
geração são as que assistiram à passa-
gem definitiva de uma sociedade agrí-
cola e rural para outra, completamen-
te diferente. Há muitas coisas que os
meussobrinhosjánãoviram”.
Pedro Miranda e os seus irmãos
– dois rapazes e duas raparigas – ex-
perienciaram os primeiros anos de
escolaridade de uma forma singular:
“Como a minha mãe era professora,
nós fomos frequentando a escola onde
ela estava. Por isso não estudei em
Ançã, mais perto de casa, mas sim em
Balsas, Febres. Daí que em Ançã não
sejammuitasaspessoasdaminhaida-
de que eu conheço. Os meus vizinhos e
as pessoas que andassem à sombra da
Igreja, eu ainda vou conhecendo, mas
muito mais do que isso, não”, refor-
ça. Quanto à experiência de ser alu-
no da própria mãe, não recomenda:
“O professor que tem um filho na sua
turma tem que mostrar a si mesmo e
aos outros que não faz distinção entre
alunos.Nomeucaso,creioqueabitola
de exigência acabou por ser superior”,
confessa, entre sorrisos. De todo o
modo a história acabou bem, pois o
padre foi sempre um aluno aplicado e
interessado.
Auto de fé
A sua formação académica pros-
seguiu num colégio jesuíta que existia
em Cernache, estabelecimento em
que contactou com excelentes mes-
tres e viu crescer dentro de si uma
grande paixão pela música. Continu-
ava a ser um estudante dedicado mas
desenvolveu uma espécie de animosi-
dade para com a Matemática. De tal
forma que,quando concluiu o ensino
secundário e entendeu que não mais
iria precisar dessa disciplina non
grata, tomou uma atitude drástica:
“Fiz um auto de fé com todos os livros
de Matemática, todos os cadernos e
apontamentos. Uma fogueira tal que
ficou tudo reduzido a cinzas”, garan-
te, bem-humorado. “Pensava que era
o ‘adeus’ à Matemática, mas no meu
primeiro ou segundo ano da universi-
dade ainda tive Matemática aplicada
às Ciências Sociais. Felizmente era
permitido usar calculadora, pelo que
lámesafei”.
Em Cernache, no colégio, come-
çou a aprofundar o seu conhecimen-
to do mundo da música, que tanto o
fascinava, e pensou seriamente em
dedicar-se a essa área. Autodidacta,
foi aprendendo por sua conta e risco.
“Haviaunslivrosantigosealgunsins-
trumentos musicais e eu fui estudando
e experimentando”. Mas foi apenas
quando rumou a Coimbra para fre-
quentar o 12.º ano que investiu seria-
mentenessaárea.“Amúsicaeraomeu
sonho de adolescência. Tinha noção de
que estava a começar tarde [tinha 17
anos],porissoescolhiaprenderumins-
trumento que estivesse ao meu alcance
– como não tinha piano nem órgão,
estudei flauta”. Completou o décimo
grau no Conservatório de Música de
Coimbra, tendo sido depois convi-
dado para leccionar. “Estava no meu
último ano de curso na Faculdade de
Letras quando recebi o convite para
dar aulas no Conservatório. Aceitei e
confessoquefoimuito‘puxado’dopon-
to de vista físico, pois estava também
inscritonaEscolaSuperiordeMúsica,
em Lisboa”. Durante três anos, a mú-
sica foi a sua profissão,pelo que o seu
sonho de adolescência não ficou por
cumprir.
PedroCarlosLopes deMirandanasceu no dia 17 de Maio de 1964 em Coimbra, mas é em
Ançã – terra de onde é natural a sua mãe e onde cresceu e se fez homem – que tem as suas raízes. A religião
esteve sempre muito presente na sua vida familiar, uma experiência que o aproximou, desde tenra idade, de
Deus e da Igreja. Ainda assim, o sacerdócio só se configuraria como a sua vocação aos 25 anos – já depois
de concluída uma licenciatura em História de Arte e de alguns anos enquanto professor no Conservatório de
Música de Coimbra. Foi pároco em diversas localidades, tendo sido recentemente nomeado Vigário-Geral
da Diocese de Coimbra pelo Bispo D. Virgílio Antunes.
BI
Brincava às missas com os irmãos, em criança, e as viagens
para a escola, no automóvel da família, eram feitas ao
ritmo das orações diárias. A fé esteve sempre presente
na vida de Pedro Miranda, o homem que o Bispo de
Coimbra escolheu para ser o seu braço direito – o vigário-
geral da Diocese. Na região de Cantanhede, é talvez mais
conhecido por ser um dos fundadores do Grupo Vocal
Ançãble, projecto em que vai mantendo viva a sua grande
paixão pela música.
Filipa do Carmo
filipadocarmo@aurinegra.pt
Lamenta que se possam estar a perder excelentes padres por não se dar oportunidade aos jovens
para descobrirem a sua vocação, mas não nega que também possa haver quem tenha seguido o
caminho da fé sem grande convicção – ainda que essa não seja a regra. “No tempo em que só havia
liceus nas capitais de distrito, nem todos tinham possibilidade de estudar. Os seminários foram, para
muitos, a única oportunidade que tiveram para prosseguir estudos. Nessa altura passaram realmente
muitos jovens pelo Seminário, mas estou convencido de que não houve muitas vocações mal dis-
cernidas por causa disso”, considera, aproveitando para esclarecer que o que faz um padre não são
os estudos, mas sim o sacramento. “Nesse aspecto, para que esse sacramento seja válido, tem que
ser absolutamente livre. A liberdade dessa decisão sempre foi escrupulosamente respeitada pela
Igreja”, atesta. “Às vezes podia não ser escrupulosamente respeitada por quem depositava muitas
esperanças naquele rapazinho, mas isso é outra questão”. Vocações bem discernidas, é certo, mas
diferentes da sua pelo contexto em que se manifestaram: “Surgiram em ambiente controlado, como
que num tudo de ensaio ou laboratório, que é, num certo sentido, o seminário”.
De 2010 a 2012 assumiu funções no Seminário Maior de Coimbra, testemunhando o último ano em
que essa estrutura teve alunos em regime de internato. “Vive-se uma crise de vocações porque se
vive uma crise de fé. Faltam padres nalgumas paróquias da Diocese de Coimbra, mas faltam tam-
bém leigos, sobretudo leigos consagrados, com sensibilidade evangelizadora, um trabalho que é
muito necessário no seio da Igreja”, reforça.
Da vocação
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Fazer germinar
a semente
A vivência da fé na família do
nosso entrevistado foi, como já re-
ferimos, muito intensa. Em termos
práticos e concretos,essa experiência
manifestava-se de variadas formas:
“Em primeiro lugar, a oração diária.
Lembro-me da oração da manhã nas
viagens de carro que fazíamos juntos
para a escola. Das mais simples às
mais complexas, todas íamos interio-
rizando. Rezávamos o terço em casa
muitíssimo frequentemente e a missa
ao domingo não falhava”, diz. “De
facto, Deus estava sempre presente em
nossa casa. Tínhamos realmente a
percepção, como espero que as crian-
ças de hoje possam ter também, de que
DeuseaIgrejanãosãocoisasqueestão
lá fora quando lá vamos ao domingo.
Deusestápresenteemtudo,emtodosos
aspectos da vida. O que não quer dizer
que tenhamos que estar sempre a falar
d’Ele”, concretiza. Para Pedro Miran-
da,só interiorizando esta “máxima”é
que se pode dar futuro e plenitude à
fé. “Lembro-me de pensar em termos
religiosos tudo aquilo que fazia desde
pequenino”.
Apesar de não ter abraçado o
sacerdócio desde logo, era como se
tivesse escrito no seu ADN que esse
haveria de ser o seu caminho – como
se de uma característica inata se tra-
tasse. “Brincava às missas com os
meus irmãos; tinha, do lado paterno,
um tio padre e duas tias monjas; ha-
via, por parte desse ramo da família,
preocupações de enriquecer a Igreja
com gente que se lhe oferecesse. Tanto
que eu era frequentemente interpelado
nessesentidodesdepequenino.Pergun-
tavam-me se eu queria ser padre e eu
lembro-me de ficar incomodado com
a pergunta, pensar que não tinham
nadaquevercomisso.Agorareconheço
que esse incómodo que eu sentia era o
começo, que a semente de eu ter vindo
aserpadreestavaaí.Esseincómodojá
eraNossoSenhorachamar-me”.
FoidepoisdefrequentaraUniver-
sidade de Coimbra,onde se licenciou
em História de Arte, e de se dedicar,
durante alguns anos, à música, que
entendeu ter chegado a hora. Tinha
25 anos quando decidiu consagrar a
sua vida a Deus. Estava, finalmente,
maduro.“O chamamento manifestou-
-se na minha infância e depois houve
oportunidades na vida que eu soube
aproveitar, tendo-me deixado levar
pelas exigências do espírito, até chegar
o momento certo para me consagrar”.
Em Agosto de 1989 apresentou-se ao
Bispo de Coimbra. “Fiz o meu per-
curso, tive a minha vida académica e
profissional, um namoro sério que não
teve sequência… até cair como uma
pêra madura. Foi uma decisão muito
amadurecida”.
Cargo
de responsabilidade
Seis anos depois, em 1995, foi
ordenado sacerdote, mas a respon-
sabilidade e solenidade do momento
não lhe trouxeram grande nervosis-
mo. Essa inquietude tinha sido vivi-
da algum tempo antes, quando foi
ordenado diácono. “É aí que fazemos
os votos e que fica tudo arrumado. Foi
o momento decisivo – cerca de 15 dias
antesperdiumpoucoosonoeoapetite.
Na ordenação de sacerdote, foi mais a
expectativa de finalmente poder cele-
brar missa e confessar, por exemplo”,
distingue. Contudo, foi com a segun-
da ordenação que sentiu finalmente
unificada a sua vida e viu consubstan-
ciadoosentidodasuaexistência.
Foi pároco em Midões (Tábua),
Pedrógão Grande (Leiria) – onde
esteve durante seis anos naquela que
foi a sua “comissão de serviço” mais
longa –, Penela e Lorvão (Penaco-
va), onde em tempos funcionou um
Hospital Psiquiátrico tutelado pelo
Centro Hospitalar de Coimbra, que
encerrou precisamente no ano em
que o padre Pedro Miranda assumiu
funções nessa paróquia. Esses cerca
de 15 anos de experiência foram de-
terminantes na sua carreira eclesiásti-
ca: “Permitiram-me conhecer tipos de
povo de Deus diferentes, com diferentes
idiossincrasias e diferentes graus de
práticareligiosa”.
Desde Outubro que ocupa um
cargo de elevada responsabilidade
e visibilidade no seio da estrutura
diocesana: foi nomeado vigário-geral
pelo Bispo da Diocese, D. Virgílio
Antunes.Masquaissão,afinal,asatri-
buições de um vigário-geral? “O Bis-
po tem vários vigários episcopais para
áreasespecíficas–territoriaisoudeac-
ção da Igreja – e tem, obrigatoriamen-
te,umvigário-geral.OBisporeúneem
sitodaaresponsabilidadedoquesefaz
na Diocese, mas não o pode fazer sozi-
nho.Ovigário-geralécomoqueasom-
bradoBispo,queosubstituiemmuita
coisa. Vamos conversando e ele vai-me
dizendo aquilo que posso decidir e fa-
zer sem o consultar”, explica. “Se os
párocos têm uma dificuldade na sua
paróquia, vêm ao vigário-geral; se há
um diferendo entre pároco e fiéis, quer
um quer outros recorrem ao vigário-
-geral; se uma paróquia ou outra ins-
tituição pública da Igreja pretendem
realizar algum acto jurídico para o
qual não têm autonomia, decidem-no
com o vigário geral, e por aí adiante”,
exemplifica. O seu mandato é de três
anos, sendo possível e normalmente
expectável a renovação tantas vezes
quantas o bispo quiser— o seu ante-
cessor esteve cerca de quatro décadas
no cargo.
Aos 50 anos, assume um papel
preponderante no seio da hierarquia
eclesiástica, mas nem por isso perde
a humildade e afabilidade que quem
o conhece sempre lhe atribui. Amá-
vel, sorridente, vai respondendo a
todas as nossas perguntas, tornando
acessíveis ao nosso entendimento de
leigos conceitos e realidades que nos
ultrapassam e que tantas vezes nos
soam incompreensíveis.É essa,afinal,
a missão de um sacerdote: ser a ponte
entreDeuseosseusmistérioseosou-
tros.Paraquemaisdoqueserouvida,
a sua palavra possa ser entendida.
“No tempo em que só havia liceus nas capitais de distrito, nem todos
tinham possibilidade de estudar. Os seminários foram, para muitos, a única
oportunidade que tiveram para prosseguir estudos. Nessa altura passaram
realmente muitos jovens pelo Seminário, mas creio que não tenha havido
muitas vocações mal discernidas”
“
Por destino
PUBPUB
Em adolescente chegou a sonhar com uma carreira de músico
– desejo que ainda concretizou durante alguns anos, antes de
se entregar em plenitude a Deus. Desde criança que, em famí-
lia, a música marcava presença nos mais variados momentos.
Aprofundou os estudos no Conservatório de Coimbra, onde
também leccionou, mas o mais duradouro projecto musical em
que se envolveu chama-se Grupo Vocal Ançãble. É um “ne-
gócio” de família, que começou por integrar Pedro Miranda e
os seus irmãos, mas que hoje conta já com as gerações mais
recentes. “Começou com os três rapazes – eu e os meus dois
irmãos – quando ainda estávamos no colégio jesuíta. Mais tar-
de juntámos as manas e começámos a acampar no Verão para
cantar. Como já todos tínhamos iniciado estudos musicais, co-
meçámos a fazer a coisa mais a sério. Hoje já somos 14 ele-
mentos”, conta. Há 25 anos que se formou o grupo, ainda hoje
em actividade com uma média de cinco ou seis espectáculos
anuais. O repertório versa, sobretudo, música sacra e erudita,
a que se juntaram, com o nascimento de (muitas) crianças na
família, alguns temas infantis. “É um grupo rigorosamente fa-
miliar, com todas as vantagens e desvantagens”, brinca. “Nós
temo-nos agarrado mais às vantagens”.
Amor à música