SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 3
Descargar para leer sin conexión
FIM FELIZ OU
                INFELIZ?


  O abutre, no ar, e o chacal, na terra, têm uma grande
parecença. Ambos se alimentam de detritos, restos
putrefactos que os outros animais, mais destemidos na
caça, abandonam, depois de saciados. Este gosto comum
por tudo o que mete nojo é que os une.
   Mas não lhe queiramos mal. Estes e outros bichos que
tais, como o condor, que é da família do abutre, ou a hiena,
parente próxima do chacal, são essenciais à vida. Não
fossem eles e a carne em putrefacção ou os animais doentes
contaminariam a natureza e provocariam epidemias.
   Tudo certo, mas não deixam de ser repugnantes.
   Na nossa história, o abutre e o chacal associados
acompanhavam o rasto de uma velha zebra combalida.
Faziam apostas:

                             1
– É para hoje – dizia o chacal.
  – É para amanhã – dizia o abutre.
  – Em qualquer dos casos, temos banquete para de aqui a
um mês – concluia o chacal.
  A zebra velha atardava-se e as restantes da manada
encurtavam o passo, para se não despegarem dela.
  Uma zebrinha, neta da zebra doente, animava-a.
  – Coragem, avó. Já pouco falta até chegarmos ao rio.
  – Não chego lá – queixava-se a velha zebra. – Sinto
aproximar-se de mim o cheiro nojento do chacal.
  Longe, espiando, o chacal avisou o abutre:
  – A velha está a falar de mim.
  – E o que diz? Diz bem? – quis saber o passaroco.
  – O melhor possível – respondeu o chacal, com um riso
maldoso.
  A zebra encostou a cabeça à terra, pronta para tudo.
Relançou um olhar resignado à volta, como que a
despedir-se. Nisto reparou num pequeno cacto, encimado
por uma flor roxa de pétalas carnudas. Chamou a neta:
  – Vai colher-me aquela flor, mas, cuidado, não te piques.
  A zebrinha trouxe-lhe a flor na boca.
  – Abençoada flor – disse a velha zebra, mastigando-a,
demoradamente, e deglutindo-a, depois, enquanto as
lágrimas lhe escorriam pelo focinho.
  – Está a chorar porquê, avó? – afligiu-se a neta.
  – De felicidade – respondeu a zebra.
  E explicou, então, que aquela flor era muito rara e tinha
propriedades maravilhosas. Dava nova vida aos
moribundos, força aos fracos, saúde aos doentes.
Providencialmente, encontrara-a, quando já estava
disposta a morrer.

                            2
A velha zebra saltou como nova. Cabriolou, trotou,
galopou e tanto correu que a zebrinha teve dificuldade em
acompanhá-la.
   – Estás a ver o que eu estou a ver? – abismou-se o
chacal que, de longe, a tudo assistira.
   – Estou e não acredito – disse o abutre. – Fomos
enganados. Esta história não devia acabar assim.
   Talvez não, mas quem a escreveu teve de tomar partido.
Um fim feliz para zebras e zebrinhas não pode ser um fim
feliz para chacais e abutres.
   É sempre assim, na vida.


  FIM




                            3

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

La actualidad más candente (18)

O espantalho enamorado
O espantalho enamoradoO espantalho enamorado
O espantalho enamorado
 
E os 4 meninos cresceram
E os 4 meninos cresceramE os 4 meninos cresceram
E os 4 meninos cresceram
 
E os 4 meninos cresceram !
E os 4 meninos cresceram !E os 4 meninos cresceram !
E os 4 meninos cresceram !
 
O patinho feio
O patinho feioO patinho feio
O patinho feio
 
O patinho feio
O patinho feioO patinho feio
O patinho feio
 
2004 04-01 - dia mentiras
2004 04-01 - dia mentiras2004 04-01 - dia mentiras
2004 04-01 - dia mentiras
 
62379 Galo Velho
62379 Galo Velho62379 Galo Velho
62379 Galo Velho
 
0 galo velho
0  galo velho0  galo velho
0 galo velho
 
O Patinho Feio
O Patinho FeioO Patinho Feio
O Patinho Feio
 
Galo velho
Galo velhoGalo velho
Galo velho
 
Galo Velho
Galo VelhoGalo Velho
Galo Velho
 
A raposa e a cegonha
A raposa e a cegonhaA raposa e a cegonha
A raposa e a cegonha
 
O patinho feio
O patinho feio O patinho feio
O patinho feio
 
Naturegirls1000
Naturegirls1000Naturegirls1000
Naturegirls1000
 
X o patinho feio
X o patinho feioX o patinho feio
X o patinho feio
 
Apresentação Rato do campo e rato da cidade
Apresentação Rato do campo e rato da cidadeApresentação Rato do campo e rato da cidade
Apresentação Rato do campo e rato da cidade
 
O patinho feio adaptação patrícia amorim
O patinho feio adaptação patrícia amorimO patinho feio adaptação patrícia amorim
O patinho feio adaptação patrícia amorim
 
50560569 clarice-lispector-como-nasceram-as-estrelas-pdf-rev
50560569 clarice-lispector-como-nasceram-as-estrelas-pdf-rev50560569 clarice-lispector-como-nasceram-as-estrelas-pdf-rev
50560569 clarice-lispector-como-nasceram-as-estrelas-pdf-rev
 

Similar a 02.21 fim feliz ou infeliz

Doze lendas brasileiras como nasceram as estrelas - clarice lispector -
Doze lendas brasileiras   como nasceram as estrelas - clarice lispector -Doze lendas brasileiras   como nasceram as estrelas - clarice lispector -
Doze lendas brasileiras como nasceram as estrelas - clarice lispector -VALERIADEOLIVEIRALIM
 
Recontando em português as fábulas de la fontaine
Recontando em português as fábulas de la fontaineRecontando em português as fábulas de la fontaine
Recontando em português as fábulas de la fontaineIsabel DA COSTA
 
Fábulas La Fontaine.pdf
Fábulas La Fontaine.pdfFábulas La Fontaine.pdf
Fábulas La Fontaine.pdfbiblioteca123
 
Patativa - Lieratura de Cordel
Patativa - Lieratura de CordelPatativa - Lieratura de Cordel
Patativa - Lieratura de CordelWilson Barbieri
 
O Sabiá "Chama" - Série Recanto Taliesin
O Sabiá "Chama" - Série Recanto TaliesinO Sabiá "Chama" - Série Recanto Taliesin
O Sabiá "Chama" - Série Recanto TaliesinMariangela Braga
 
O galo que logrou a raposa
O galo que logrou a raposaO galo que logrou a raposa
O galo que logrou a raposaguesteab80e
 
A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)guestf6f50d9
 
A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)guestf6f50d9
 
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdfPauloPereira34163
 
O sapo maluquinho
O sapo maluquinhoO sapo maluquinho
O sapo maluquinhoLULILAURA17
 
A sementinha alves redol (1)
A sementinha alves redol (1)A sementinha alves redol (1)
A sementinha alves redol (1)Sandra Pinheiro
 
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriosos
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriososGuiao de leitura_dos_ovos_misteriosos
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriososbibliotecap
 

Similar a 02.21 fim feliz ou infeliz (20)

Doze lendas brasileiras como nasceram as estrelas - clarice lispector -
Doze lendas brasileiras   como nasceram as estrelas - clarice lispector -Doze lendas brasileiras   como nasceram as estrelas - clarice lispector -
Doze lendas brasileiras como nasceram as estrelas - clarice lispector -
 
Recontando em português as fábulas de la fontaine
Recontando em português as fábulas de la fontaineRecontando em português as fábulas de la fontaine
Recontando em português as fábulas de la fontaine
 
Fábulas de monteiro lobato
Fábulas de monteiro lobatoFábulas de monteiro lobato
Fábulas de monteiro lobato
 
Os ovos misteriosos
Os ovos misteriososOs ovos misteriosos
Os ovos misteriosos
 
Fábulas La Fontaine.pdf
Fábulas La Fontaine.pdfFábulas La Fontaine.pdf
Fábulas La Fontaine.pdf
 
Patativa - Lieratura de Cordel
Patativa - Lieratura de CordelPatativa - Lieratura de Cordel
Patativa - Lieratura de Cordel
 
O Sabiá "Chama" - Série Recanto Taliesin
O Sabiá "Chama" - Série Recanto TaliesinO Sabiá "Chama" - Série Recanto Taliesin
O Sabiá "Chama" - Série Recanto Taliesin
 
O galo que logrou a raposa
O galo que logrou a raposaO galo que logrou a raposa
O galo que logrou a raposa
 
A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)
 
A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)A galinha dos ovos misteriosos)
A galinha dos ovos misteriosos)
 
A Polegarzinha
A PolegarzinhaA Polegarzinha
A Polegarzinha
 
Os ovos misteriosos
Os ovos misteriososOs ovos misteriosos
Os ovos misteriosos
 
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf
02. O Patinho Feio Autor Hans Christian Andersen.pdf
 
Histórias Infantis
Histórias InfantisHistórias Infantis
Histórias Infantis
 
Fabula.pptx
Fabula.pptxFabula.pptx
Fabula.pptx
 
O sapo maluquinho
O sapo maluquinhoO sapo maluquinho
O sapo maluquinho
 
A sementinha alves redol (1)
A sementinha alves redol (1)A sementinha alves redol (1)
A sementinha alves redol (1)
 
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriosos
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriososGuiao de leitura_dos_ovos_misteriosos
Guiao de leitura_dos_ovos_misteriosos
 
Fabulas de-sempre
Fabulas de-sempreFabulas de-sempre
Fabulas de-sempre
 
01.07 bons amigos
01.07   bons amigos01.07   bons amigos
01.07 bons amigos
 

Más de Masterliduina Moreira

Más de Masterliduina Moreira (20)

04.14 as mazonas da gata borralheira
04.14   as mazonas da gata borralheira04.14   as mazonas da gata borralheira
04.14 as mazonas da gata borralheira
 
04.14 as mazonas da gata borralheira
04.14   as mazonas da gata borralheira04.14   as mazonas da gata borralheira
04.14 as mazonas da gata borralheira
 
04.13 uma historia de viriato
04.13   uma historia de viriato04.13   uma historia de viriato
04.13 uma historia de viriato
 
04.12 o rato e a lua
04.12   o rato e a lua04.12   o rato e a lua
04.12 o rato e a lua
 
04.11 pegadas de gaivota
04.11   pegadas de gaivota04.11   pegadas de gaivota
04.11 pegadas de gaivota
 
04.10 o mar e o caracol
04.10   o mar e o caracol04.10   o mar e o caracol
04.10 o mar e o caracol
 
04.09 o salpico
04.09   o salpico04.09   o salpico
04.09 o salpico
 
04.03 o lobo e o mocho
04.03   o lobo e o mocho04.03   o lobo e o mocho
04.03 o lobo e o mocho
 
04.08 sapatos de passeio
04.08   sapatos de passeio04.08   sapatos de passeio
04.08 sapatos de passeio
 
04.07 no tempo dos mosqueteiros
04.07   no tempo dos mosqueteiros04.07   no tempo dos mosqueteiros
04.07 no tempo dos mosqueteiros
 
04.06 a côr dos gatos
04.06   a côr dos gatos04.06   a côr dos gatos
04.06 a côr dos gatos
 
04.05 a tina aflita
04.05   a tina aflita04.05   a tina aflita
04.05 a tina aflita
 
04.04 o chorão e a trepadeira
04.04   o chorão e a trepadeira04.04   o chorão e a trepadeira
04.04 o chorão e a trepadeira
 
04.03 o lobo e o mocho
04.03   o lobo e o mocho04.03   o lobo e o mocho
04.03 o lobo e o mocho
 
04.02 livro fechado
04.02   livro fechado04.02   livro fechado
04.02 livro fechado
 
04.01 o risco das mentiras
04.01   o risco das mentiras04.01   o risco das mentiras
04.01 o risco das mentiras
 
02.29 os favores do borda d'agua
02.29   os favores do borda d'agua02.29   os favores do borda d'agua
02.29 os favores do borda d'agua
 
02.29 os favores do borda d'agua
02.29   os favores do borda d'agua02.29   os favores do borda d'agua
02.29 os favores do borda d'agua
 
02.28 não sou capaz
02.28   não sou capaz02.28   não sou capaz
02.28 não sou capaz
 
02.27 os dois feiticeiros
02.27   os dois feiticeiros02.27   os dois feiticeiros
02.27 os dois feiticeiros
 

02.21 fim feliz ou infeliz

  • 1. FIM FELIZ OU INFELIZ? O abutre, no ar, e o chacal, na terra, têm uma grande parecença. Ambos se alimentam de detritos, restos putrefactos que os outros animais, mais destemidos na caça, abandonam, depois de saciados. Este gosto comum por tudo o que mete nojo é que os une. Mas não lhe queiramos mal. Estes e outros bichos que tais, como o condor, que é da família do abutre, ou a hiena, parente próxima do chacal, são essenciais à vida. Não fossem eles e a carne em putrefacção ou os animais doentes contaminariam a natureza e provocariam epidemias. Tudo certo, mas não deixam de ser repugnantes. Na nossa história, o abutre e o chacal associados acompanhavam o rasto de uma velha zebra combalida. Faziam apostas: 1
  • 2. – É para hoje – dizia o chacal. – É para amanhã – dizia o abutre. – Em qualquer dos casos, temos banquete para de aqui a um mês – concluia o chacal. A zebra velha atardava-se e as restantes da manada encurtavam o passo, para se não despegarem dela. Uma zebrinha, neta da zebra doente, animava-a. – Coragem, avó. Já pouco falta até chegarmos ao rio. – Não chego lá – queixava-se a velha zebra. – Sinto aproximar-se de mim o cheiro nojento do chacal. Longe, espiando, o chacal avisou o abutre: – A velha está a falar de mim. – E o que diz? Diz bem? – quis saber o passaroco. – O melhor possível – respondeu o chacal, com um riso maldoso. A zebra encostou a cabeça à terra, pronta para tudo. Relançou um olhar resignado à volta, como que a despedir-se. Nisto reparou num pequeno cacto, encimado por uma flor roxa de pétalas carnudas. Chamou a neta: – Vai colher-me aquela flor, mas, cuidado, não te piques. A zebrinha trouxe-lhe a flor na boca. – Abençoada flor – disse a velha zebra, mastigando-a, demoradamente, e deglutindo-a, depois, enquanto as lágrimas lhe escorriam pelo focinho. – Está a chorar porquê, avó? – afligiu-se a neta. – De felicidade – respondeu a zebra. E explicou, então, que aquela flor era muito rara e tinha propriedades maravilhosas. Dava nova vida aos moribundos, força aos fracos, saúde aos doentes. Providencialmente, encontrara-a, quando já estava disposta a morrer. 2
  • 3. A velha zebra saltou como nova. Cabriolou, trotou, galopou e tanto correu que a zebrinha teve dificuldade em acompanhá-la. – Estás a ver o que eu estou a ver? – abismou-se o chacal que, de longe, a tudo assistira. – Estou e não acredito – disse o abutre. – Fomos enganados. Esta história não devia acabar assim. Talvez não, mas quem a escreveu teve de tomar partido. Um fim feliz para zebras e zebrinhas não pode ser um fim feliz para chacais e abutres. É sempre assim, na vida. FIM 3