Este documento apresenta um prefácio para o livro de poemas "Arcano Dezenove" da autora Renata Bonfim. O prefácio resume três aspectos essenciais do livro: 1) A erudição e sensibilidade poética de Renata Bonfim é evidenciada através de referências culturais e citações de seus poemas; 2) Os poemas abordam temas sociais, políticos e religiosos de forma lírica e profunda; 3) A linguagem usada nos poemas é saborosa e celebra a língua portuguesa at
2. Copyright 2010 by Renata Bonfim
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9610/98.
Editor: Christoph Schneebeli
Capa e Projeto Gráfico: Roberto Nicolau
Revisão: José Augusto Carvalho
Fotografia: Jove Fagundes
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Modelos:
Canino: Chicão
Humana: a poeta
Catalogação:
Dados internacionais da Catalogação-na-Publicação (CIP)
Bonfim, Renata
Arcano Dezenove/Renata Bonfim - Vitória:
Helvética Produções Gráficas e Editora, 2010.
98 pag.
ISBN 978-85-8809-71-7
1- Arcano Dezenove. Título
CDD: B869.1
(2010)
HELVÉTICA PRODUÇÕES GRÁFICAS E EDITORA LTDA
Rua Antonio Aleixo, 645 - Consolação
CEP: 29050-150 - Vitória - ES
Telefone: (27) 3322-4777
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7. ÍNDICE
11
PREFÁCIO
17
Poeta adâmico
18
Dionísio
19
O poeta
20
Guernica Hoje
21
Despertar
22
Eu canto a pátria-planeta
23
Nó na garganta
24
Há vagas
26
Poesia I
26
Poesia II
26
Eu e o mar
27
Nossa Senhora dos raios multicoloridos
28
Um dia após o outro
29
?
30
Gênese compartilhada
30
Tara moderna
31
Nada
32
Poemas
33
A doçura da carne
34
Humanoide
8. 35
Arcano dezenove
36
Memória38
37
Cicatriz
38
Post Mortem I
39
Post Mortem II
40
Poema inacabado
41
Versos de orgulho e solidão
42
Gato
43
Canção Para Rubén Darío
44
Saturnais: Mito de origem
45
Florbela em canto
46
Entre a luz e a escuridão
47
Orgânica
48
Despedida
50/51 Não-materialidade
52
Quintessência
52
Transluzir
53
Confissões de uma apaixonada
54
Lilás
56
A fúria de Eros
57
O gato rei
58
Carnaval
59
Terra Santa
9. 60
Brutal singeleza
61
Onde os tempos se encontram
62
Efeito Borboleta
63
Jesus Cósmico
66
Antes do Éden
67
Gente da era da Luz
68
Humanidade Nata
70
Prece
71
Rituais
71
Desejos de feiticeira
72
Terra
72
Semear
73
O açafrão e seu destino
74
Impotenza strumentale
75
Barba Azul
76
Filtros mágicos
77
Banho de limpeza
78
Patuás
79
Cerimônia do chá
80
Cadê o uru?
81
Poesia vegetal
81
Imago
83
POSFÁCIO
11. PREFÁCIO
Renata Bomfim não é estreante. Seu primeiro livro de
poemas, Mina, foi bem recebido pelo público capixaba. Agora, com este Arcano Dezenove, ela se renova,
revelando sua verve, seu talento, sua cultura, sua erudição, sua enorme sensibilidade.
A cultura de uma pessoa se caracteriza pela
capacidade que ela tem de multiplicar as conotações
e de mostrar novas leituras do mundo. E é o que faz
Renata Bomfim, revelando-nos sua leitura múltipla
do mundo. E mostra, sem pedantismo, com simplicidade, sua visão de Bakhtin, de Ítalo Calvino, de Cecília Meireles, de clássicos como Virgílio e Plínio, e não
apenas nas epígrafes bem-escolhidas.
Assim, os versos seguintes, que ilustram o
conceito de polifonia, numa releitura de Bakhtin:
“As letras que, a duras penas, saltam
dos dedos para o papel condensam vozes.”
(poema “Poemas”)
“Será que a poesia do século XVI era
minha?” (poema “?”)
Ou esta afirmação pungente que lembra Cecília Meireles ou Marly de Oliveira:
“Não sou alegre nem triste, apenas
sou!”
(poema “Jesus Cósmico”)
Ou quando define o poeta, numa alusão à famosa
dicotomia de Forster, que, em Aspectos do romance,
classificou os personagens de ficção:
Arcano Dezenove
11
12. “Este ser esquisito, redondo e plano...”
(poema “O poeta”)
Aliás, esse poema – “O poeta” – é uma das muitas
pérolas deste livro extraordinário. Veja-se o seguinte
verso:
“Ele [o poeta] necessita beber da alma
alheia.”
O que lembra Newton Braga, em Lirismo perdido, quando diz que a sensibilidade do poeta é uma
antena delicadíssima que capta as dores do mundo e
que o “fará morrer de dores que não são suas”.
Há ao longo do livro versos que se constituem
em pensamentos de elevado sabor, em que se mesclam
o social, o político e o lírico:
“Dor dentro e fora do tempo que me
atinge e te atinge, e fingimos que não a temos.
Letargia ignorante:
Nem pão nem circo.
Guernica atualiza-se:
Iraques, Palestinas, Brasis (...)”
(poema “Guernica hoje”)
“(...) este ser da confusão
perdido no mar da indiferença,
ansiando por salvação,
compaixão,
benevolência;
por um gesto simples,
um sorriso,
para aplacar a sede de amor
que se sente na ilha seca
em que cada um de nós se transformou.”
12
Renata Bonfim
13. (poema “Tara moderna”)
“O alimento é comum:
Miséria, angústia, esperança...”
(poema “Despertar”)
“O silêncio é a voz que sonha e não
realiza.”
(poema “Brutal singeleza”)
Ao falar de uma prostituta, a definição do que há de
mais puro na impureza:
“Dentro de uma caixa preta,
Seu coração blindado.
A boca é virgem, não beija,
É da vida que não é fácil
Que é pureza de alma
Mesmo que padeça sob
O olhar enlameado.”
(poema “Há vagas”)
Se fiz tantas citações, foi não apenas para mostrar ao leitor o encanto desta obra de Renata Bomfim,
para quem a poesia “desce redondillha / garganta
abaixo” (poema ”Poeta II”), mas também para sentir
a alegria e o prazer de repetir essas belezas. Se casualmente privei o leitor do prazer da surpresa de descobrir
por conta própria, pelo menos fiz com que repetisse,
em sua leitura, os momentos que revelei aqui de puro
encantamento.
Outros aspectos há a ressaltar neste livro, além
do lirismo, do social, do político: a fé, a religiosidade.
Os poemas “Nossa Senhora dos Raios MulticoloriArcano Dezenove
13
14. dos”, “Post Mortem I” e “Post Mortem II” são sua
profissão de fé, “não a fé que só enxerga $” (poema
“Gente da Era da Luz”), mas a fé sem a qual, nada
germina (poema “Semear”), a fé de quem despetala
flores uma a uma “como quem ama pela primeira
vez” (poema “A doçura da carne”).
Acrescente-se a isso a linguagem saborosa, com
jogo de antíteses (“Vamos discriminar sem discriminação”, “Somos Adão e Eva sem o sermos” – poema
“Antes do Éden”), e paronomásias (tememos/trememos; escorre/corre – “Mesmo lugar”; voz e vez –“Antes
do Éden”; pavor/porvir – “Cicatriz”), numa veneração
pela língua, patente no poema “Gênese compartilhada”: “Vamos conjugar verbos,/ Formar palavras-imagens, (...) / Subverter o alfabeto. / Enunciar as boas
novas, / Gozar nas texturas plurais / Dos domínios
da sintaxe.” A fim de celebrar “os milagres da língua
/ que se realizam em múltiplas e / paradisíacas miragens.”
Que o leitor se extasie com as belezas que descobrir neste livro. Afinal, a poesia existe em toda parte.
Mas, para descobri-la, são necessárias essa sensibilidade que só os poetas têm e a sintonia com o leitor, que
só um grande livro de poemas pode proporcionar.
José Augusto Carvalho
Doutor em Letras e professor da Universidade Federal
do Espírito Santo
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Renata Bonfim
15. Como perfume que se detém
no corpo que o coloca, também
a tua lembrança se detendo
no fundo de minha mente
não me deixará, tudo me deixa
e você se detém...
(Arthur Symons)
Arcano Dezenove
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17. Poeta adâmico
No paraíso da linguagem,
O poeta, com desvelo,
Inclina-se para amar a letra.
Nesse momento, ele é Adão,
Ansiando companhia, à espera
De que a fêmea se submeta.
Cometidos os pecados,
Do outro lado, a pena:
“Ganharás o pão com trabalho,
Com o suor de tuas mãos,
E também, com teus pulmões,
Rins, fígado e coração."
O homem se pega em desatino,
A sua vida será labor e sacrifício,
Mas estava escrito:
Havia de ser assim
Para que pudesse seguir nomeando
As coisas e povoando a terra
Com Abeis e Cains.
Arcano Dezenove
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18. Dionísio
Á memória de Rubén Darío
Na selva sagrada
os instintos afloram.
Cada planta, cada bicho, o ar,
tudo é vivo, tudo fala.
Do verde brotam
movimentos sinuosos,
sussurros, risos...
É a ninfa que do deus imponente
bebe o vinho.
Ela se torna a própria taça
transbordante de desejos.
Dionísio, em desalinho, a enreda
arrastando-a, furtivo, por entre a relva,
para que desabroche, caprichosa e perfumada.
Ela cede aos seus apelos e se deixa possuir.
Seu corpo agora é fluidez entre mãos ásperas.
É gazela. Impiedosa,
a sua lança a transpassa.
Fustigada, ela quer mais...
Agora os dentes do deus a carne se adentram
marcam-na signos criados
por seus chifres reluzentes.
A ninfa ascende entre agonias,
a selva orquestra gemidos de prazer.
Em êxtase, comungam contentes.
Ela reverencia o deus pagão
senhor dos seres desse reino.
Depois, descansa recordando o idílio,
até que a noite a cubra
com seu manto de prata.
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Renata Bonfim
19. O poeta
O poeta julga-se superior e,
no momento da criação,
sente-se plutão,
atingido por meteoritos.
Ele necessita beber da alma alheia e
plainar seus versos com os ventos norte e sul.
Banhar-se na chuva mansa, regozijar na tempestade
e dormir ao relento, onde o frio adensa;
buscar veios de ouro e água doce no deserto;
ser natural e urbano, humano a se desfazer
em materiais vários.
Este ser esquisito, redondo e plano, preto e branco,
traz no sangue as linhagens de reis,
de putas, de soldados e de santos.
Possui grande olhos azuis e orelhas atentas,
faróis que iluminam a existência
e captam sentidos no vazio, esvaziando
outros tantos.
É um mago condenado.
É tantos e todos que é ninguém.
Bruma solitária que vaga
entre pepitas de ouro e cadáveres.
Arcano Dezenove
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20. Guernica hoje
Para aqueles que têm sede de justiça
Alivia-me dessa dor!
Seca o sangue que escorre e corre,
manchando a terra, a água e a flor.
Livra-me da força do império da agonia,
Livra-me do medo dessa corte maldita,
consagrada à fantasmagoria,
à vergonha!
Dor dentro e fora do tempo
que me atinge e te atinge,
e fingimos que não a temos.
Letargia ignorante:
nem pão, nem circo.
Guernica atualiza-se:
Iraques, Palestinas, Brasís,
tsunamis, maremotos, terremotos
Haitís, favelas, esquinas, praças escuras,
instituições mesquinhas.
Nada vemos, temos ou queremos,
nada de ventos, nem de brisa ou de Paz!
Tememos!
Trememos!
Alivia-me do grito que está preso nas entranhas!
Liberta-o!
Conjuga os fragmentos dessa tragédia cardeal,
estranha: sem nome, sem rosto e sem norte.
Revela o poder pulverizado que faz chover sangue.
Alivia-me dessa dor que fede,
anestesia e tem gosto de morte.
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Renata Bonfim
21. Despertar
Desperta!
Acorda pleno e olha,
És imagem:
Traços, cores, texturas,
Contornos espetaculares.
Tua tribo anseia e canta,
Nasce a música
Brota a dança
Coreografia de milhares.
O alimento é comum:
Miséria, angústia, esperança...
Desperta!
Acorda pleno e sente
És letra!
Símbolos e marcas
Adornam teu corpus,
te abençoam com a imortalidade.
Recorda teu sonho, mito:
Astros em conjunção,
Rituais de vida e de morte.
Pariste fantasia!
A alma existe?
Desperta e ama o saber: filosofia!
Desperta tudo o que dormita:
Emoção, mímica, interjeição...
Transita no ritmo
Explode e goza num grito:
Poesia!
Arcano Dezenove
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22. Eu canto a Pátria-Planeta
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua que por acaso de gerações
nasci.
(Jorge de Sena)
Eu canto a Pátria-planeta,
antes que o pensamento,
Divagando entre futilidades,
se perca.
Pátria amada!
Mãe gentil!
Assim também te cantam Cains
de bocas encarniçadas.
Pátria armada!
Suor, sangue, lágrimas:
Salve! salve!
Salve-se quem puder...
Pátria refém,
Povoada por motosserras.
A minha alma anseia,
ao som do mar,
e a luz do céu profundo,
ver brotar de ti poesia.
Já cultivamos de sobra
desencanto, tristezas,
soja, eucalipto e café.
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Renata Bonfim
23. Nó na garganta
Revelo-te meus sonhos mais íntimos
porque são não- sonhos.
Se te engulo em dias de calor e te
enrolo nas cobertas da saudade no frio,
é porque minhas lembranças clamam
das profundezas.
Não sou especial!
Sou apenas eu
de mãos vazias,
versos translúcidos,
Sou
apenas eu.
O
pretérito
a
preterida.
Sou
apenas eu
embalada por verbos- pirações,
me derramando sobre o papel
em fantasias enriquecidas pela paranoia.
Esse nó na garganta difícil de desatar
é a minha vida.
Sou eu buscando ar, espaço, acolhida,
tentando ser gente, precisando de amor.
Fazendo como cachorro pulguento,
buscando dono e lambendo as feridas.
Arcano Dezenove
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24. Há vagas
Um quarto e muitas cadeias,
Espelhos, febres.
Lá fora o letreiro avisa:
Há vagas!
Ela brilha mais que o letreiro
Por entre as plumas.
Vestido de cetim surrado,
Sorriso zombeteiro,
Finge ser freira, santa, mártir.
É puta.
Vende a carne flamejante,
Como um joalheiro, diamantes.
A oferta é especial:
Fantasias e sonhos delirantes.
Ela segue uma estrela
O infinito a invade.
Sonha com Hollywood,
Guarda recortes de revistas.
Dentro de uma caixa preta,
Seu coração blindado.
A boca é virgem, não beija,
É da vida que não é fácil
Que é pureza de alma
Mesmo que padeça sob
O olhar enlameado.
Mulher de fumaça e de pedra;
A razão bambeia.
Verdadeira, é natureza.
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Renata Bonfim
25. O que dizer do amor que sente?
Que é também ódio, dor, ternura...
Lilases a atravessam até a medula.
Ângulos oblíquos emergem
de suas curvas atraentes.
Sua espinha emocional
Desenha formas indecentes:
Mosaico, plural...
Como julgar decadente
Essa flor que resiste e brota
Do asfalto frio, inclemente?
Lírio entre espinhais.
Eu e o mar
As ondas me constituem
Parentesco que me abisma
E me pego, assim, mareada,
Ansiando tons de cinza e azul
Enquanto, silenciosamente,
quebro na praia.
Arcano Dezenove
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26. Poesia I
Poesia é
a palavra
dando cria,
germinando,
brotando e
despontando
a guia.
Poesia II
O grego e o latim
encharcam a minha língua
com veneno,
Produzindo a poesia
que desce redondilha
garganta abaixo.
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Renata Bonfim
27. Nossa Senhora dos
raios multicoloridos
A tua face, Bendita,
Como posso vê-la?
Como atravessar os teus portais?
A minh’alma te canta e deseja,
Clama pelo teu calor
Do mais escuro abismo.
Fazes com que eu encontre a paz.
Erro por terras distantes.
Te sonho infinitamente.
Te busquei no mais alto das montanhas
Cujos picos eram branco- azulados
E lembravam aqueles que partiram sem se despedir.
Clamei por teu nome, doce e secreto,
Do abissal de minhas entranhas e,
Nos meus pensamentos, armadilhas intangíveis,
Te procurei.
Meu canto, aprendiz, foi marcado
Pelo ritmo da natureza.
Bendita, adorada,
Como posso tocar o teu manto de luzes
Multicoloridas e vislumbrar a tua rara santidade?
Mil sóis estão explodindo, estrelas colidem ruidosas,
O caos se instaura dentro de mim.
Vem plena de amor, iluminada.
Eu não resistirei e serei a flor
Colhida e fresca, perfumosa,
à mercê de tua sábia providência.
Arcano Dezenove
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28. Um dia após o outro
É como mergulhar lúcido,
sem a necessidade de ar
ou de terra para plantar os pés.
Lançar-se infinitamente,
rastejar... Ou seria nadar?
Até não poder mais.
Flutuar na espuma acinzentada.
Entregue...
É assim o ânimo, sangra violento,
ri, gargalha irônico.
Surpreende e estarrece essa visão.
Bater os braços e as pernas,
explorar, sem fôlego, o conhecido.
Cansar, estar atento e relaxado,
Contradizer-se e morrer,
por excesso de opção.
Assim o cotidiano invade a carne,
um dia após o outro:
mata as células, esmaga os sonhos.
Nele, milagrosamente,
tudo se quebra e se reconstrói,
tudo, se não igual, bem parecido:
um pouco mais do mesmo.
Mas dos dedos brotam letras
que não se repetem jamais!
Cada uma delas com consciência de si,
algumas alienadas das outras, mas vivas,
vibrantes e prenhes de inéditos.
Letras de carne, de osso e de sangue.
28
Renata Bonfim
29. ?
Serão meus os versos que escrevo,
ou apenas palavras- frags que conjugo e organizo?
Serão estas palavras partes de mim que desconheço?
A poesia que gesto é embate, é utopia, é também,
filosofia: de onde vim, para onde vou?
Era eu ou a era a letra em esgarço noutros tempos?
Será que a poesia do século XVI era minha?
Pois as trovas são, para mim, tão familiares.
Vejo rostos, sinto cheiros, dialogo com reis, rainhas,
observo os elementais dando o tom à natureza.
São estes os amigos secretos da contadora de histórias
que recria o próprio mundo e brinca
dando voz ao cinema mudo, preto e branco e opaco
da vida.
Teria sido eu uma amazona, lançando palavras- setas
buscando atingir sem pedir licença?
Serão antipoesia os sentidos desconexos
buscados no mistério de ser outro?
Quem se habilita a ser eu noutro corpo?
Quem ousa ser paralelo e unir versos criando supernovas?
Quem arrisca a própria vida rabiscando folhas em
branco,
garatujando e recriando o verbo?
Metapoesia.
Arcano Dezenove
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30. Gênese compartilhada
Companheiro,
Vamos conjugar verbos,
Formar palavras-imagens,
Flexibilizar rígidas frases,
Subverter o alfabeto.
Enunciar as boas novas,
Gozar nas texturas plurais
Dos domínios da sintaxe.
Celebremos os milagres da língua,
Que se realizam em múltiplas e
Paradisíacas miragens.
Tara moderna
É obsceno produzir lixo em profusão,
degradando a natureza.
Elogiar a razão indolente
estruturada sob o signo da incerteza.
É triste ser este ser da confusão,
perdido no mar da indiferença,
ansiado por salvação,
compaixão,
benevolência,
por um gesto simples,
um sorriso.
para aplacar a sede de amor
que se sente na ilha seca
em que cada um de nós se transformou.
30
Renata Bonfim
31. Nada
Tristeza
é nada
é vazio
é ausência.
Voltar no tempo
Parar o tempo
oco
buraco
eco
espaçamento.
Longe daqui
longe do agora
sem lembranças
branco total
nem eu
nem você.
Não saber
Não querer
nada, não
Várzea
Charco
Lodo
Chão.
Atoleiro
Vão
Vácuo
Despovoamento total
Deserto.
Sem fim.
Arcano Dezenove
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32. Poemas
As letras que, amorosamente,
coloco sobre o papel
não fazem o poema e o
ritmo embalado
que se alterna em toques
não lhe confere musicalidade.
A minha pena guarda segredos.
Ela tem um quê de mistério e maldade.
Assim, o poema nasce, em parte,
em lugar que desconheço.
Eu também nasço dessa poesia
que não é resquício de um dia
como outro qualquer ou
reminiscências, lembranças.
As letras que, a duras penas, saltam dos
dedos para o papel condensam vozes
e formam uma corrente, poética, que ata
o medo, liberta. E a palavra Insurrecta
triunfa.
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Renata Bonfim
33. A doçura da carne
A carne apodrece de tanta doçura,
as palavras, torrões, desenham cadeias de montes,
cujos picos, cobertos de açúcar, convidam.
No sangue as plaquetas enfraquecidas se rendem.
Há fenda na carne, líquido carmim jorra abundante.
Quem sequer imagina penetrar este ermo que me
invade?
Caminho só, essa é a lei. Caminho...
De tanta doçura as mãos derretem,
se fazem arredias frente ao Jardim.
Sufoquei Íris, Lírios, Cravos, Violetas, Margaridas,
de tanto desejo, embriagada pela falta.
Despetalei uma a uma
como quem ama pela primeira vez.
Essa carne à mostra, afável de brandura
está em decomposição e exsuda licores.
É a beleza revelando a sua outra face.
Arcano Dezenove
33
34. Humanoide
Plenos de macheza.
Os humanoides repudiam o som
de suas próprias letras.
Criam confusões.
Desejam tudo o que é vão.
Estão prenhes de ambições:
Sempre mais, mais, mais...
À beira de um precipício,
as ilusões.
Rodam perdidos:
−A terra parou?
Haverá saída desse escarpado?
Há face possível para esse horror?
Quem cala?
Escala Hishister?
“Um vulcão na Islândia explodiu.”
A arrogância explodirá em breve,
unindo desgraças, aproximando
seres, humanidades transformadas.
Assim que a face da terra
estiver condenada,
os humanoides se escutarão
e aos outros também.
34
Renata Bonfim
35. Arcano dezenove
Sim! Despi-me de tudo
Não foi fácil abrir mão da dor
esquecer a solidão
o banimento.
Estive olhando o mar
no horizonte.
Uma linha perfeita
como jamais serei.
Sou tortuosa.
Com esta visão,
garatujei.
Tornei-me esboço, cálice.
Estou pronta para receber todo o amor
desde sempre, a mim, destinado:
Despertar misterioso no infinito
de olhos cinzentos e de sorriso largo.
Inunda a minh’alma um sol de sétima grandeza
e te desejo toda, inteira,
Terra amada, Santa, Natureza!
Despi-me toda para recebê-la.
Veste-me de lírios
lilases e caprichosos.
Respiro profundamente
Te sinto mistério maior:
Quasares, buracos negros, estrelas
tudo, tudo, tudo me leva a ti.
Estou nua, sim!
E preparada para tudo o que,
a partir de agora,
Venha a acontecer.
Arcano Dezenove
35
36. Memória
Ó língua onde as línguas acabam.
Ó tempo
posto a prumo sobre o sentido
dos corações transitórios.
(Rainer Maria Rilke)
Ó felicidade de entender, maior que a de imaginar ou a de sentir! Vi o universo e vi os desígnios
íntimos do universo. Vi as origens que o livro do
Comum narra. [...] Que morra comigo o mistério que está escrito nos tigres.
(Jorge Luiz Borges, O aleph)
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Renata Bonfim
37. Cicatriz
Marca de Caim
Sua e de mim
Mulher
Colher
Flor
Bordado
Seda
Cetim
Diu
Calcinha
Sutiã
Meia- calça
Filha da puta
Filha da mãe
Clichê
Pavor
Porvir?
Arcano Dezenove
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38. Post mortem
“Ao chegar a este outro lado do mistério, achei-me
com um pequeno saldo, que é a derradeira negativa
deste capítulo de negativas: - Não tive filhos, não
transmiti a nenhuma criatura o legado da nossa
miséria”.
(Machado de Assis, Brás Cubas)
Pos mortem I
Estou morta, mas
pensem que fui viajar.
Quem sabe voltei para o lugar
de onde, um dia, vim.
Fazer o quê? Ainda não sei.
Confeccionei bibelôs em gesso,
elaborei mosaicos dos infernos,
tão belos que Gaudí invejaria.
Criei joias, contei histórias, pintei,
bordei, toquei violão, fiz mandingas,
macumbas. Aprendi dança de salão,
dança do ventre, escrevi versos.
Fiz amor, fiz guerra e muita caridade,
fiz o dobro de maldades...
E rezei todos os dias, com a Bíblia
em uma mão e cristais e incensos na outra.
Cultivei ervas e produzi patuás.
Dei graças, todos os dias.
Cantei com toda a força dos pulmões
o mantra que escolhi:
Obrigada, obrigada...
E pela humanidade que me assolou
mais “obrigadas”, e cânticos de louvor.
Vivi: experiência única e irrepetível.
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Renata Bonfim
39. Post Mortem II
Amigos, não sejam mesquinhos
quando eu passar desta
para outra muito melhor,
me levem flores e chorem bastante.
Se possível, contratem carpideiras.
Vocês sabem como eu gosto de uma cena.
Mas, por favor, não sofram
nem fiquem tristes.
Experimentei da dor, da violência,
da solidão, da amizade e de incontáveis alegrias.
E amei, amei... não o suficiente, mas
o bastante, se é que isso é possível.
Não fui mais porque não quis
nunca pensei no amanhã
Então, digam de mim:
"Inventou muita arte e, cansada,
foi dormir.”
Arcano Dezenove
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40. Poema inacabado
O amanhecer está aí
despontando
arrebentando na abóbada chumbo
Da minha catedral
contrariando aqueles que profetizaram
a ruína da minha vida.
Carpe Diem!
Sorvo até a última gota este dia
Hoje vou aproveitar
vou ser feliz agora
Estrangular a hidra
Estrapolar
Ser criativa
sem medo de errar
acolher o erro
e gritar bem alto
"Não me importo com isso!"
Vou me importar
apenas com os riscos
de não arriscar
Vou Rabiscar
lambuzar
vira o disco!
Traduzir para a língua dos homens
sonhos utópicos
jamais pensados ou vistos.
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Renata Bonfim
41. Versos de orgulho e solidão
Que me julguem!
Prefiro o inferno a me dobrar
Prefiro a morte à sujeição,
Prefiro este frio na alma.
Até que tudo se abrande
Silencio a consciência.
Calo completamente a voz.
Não há lamentos, nem murmúrios,
Não permitirei intromissões
Nos campos dos meus desejos.
Nem que colham os morangos
Da minha dignidade.
Recolho os sonhos
guardo com cuidado.
Respeitosamente espero a chuva cair.
Experimento o sabor do perdão
Por serem meus os pés e as mãos
Que constroem rápido o próprio buraco:
Minha sepultura-solidão.
Arcano Dezenove
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42. Gato
Para felinos e gatófilos
Amigo macio e misterioso,
o que anima a tua essência?
Qual motivação divina te fez assim:
Astúcia, graça e beleza?
Vens até mim e te vejo transmutado.
Enxergo-te como ninguém mais.
Tu és um ser alado,
és gigante, tremendo, feroz...
Companheiro generoso e de boa linhagem,
quais valores adornam a tua face brilhante?
O que faz com que, num átimo, o tempo pare
para que seu pulo seja perfeito e preciso?
Observo teus bigodes elegantes e
tua postura altiva, interrogo-me...
Os outros não conhecem as tuas marcas,
as tuas sombras
e as idas e vindas de outras dimensões.
Para eles és apenas linhas duras.
Para mim és perfeito,
És ∏.
42
Renata Bonfim
43. Canção para Rubén Darío
Para Ester Abreu Vieira de Oliveira
Poeta do Azul, quem te cantará?
Quem entrará na selva sagrada
para desembruxar o Fauno que,
surdo, já não escuta Orfeu?
Quem desvendará teus mistérios? Eu?
Não! A América te cantará!
Não aquela, hipócrita de dentes de ouro,
mas esta, a minha, a tua, a nossa América!
Central nos nossos corações,
periférica e excitada como
os nossos sexos.
Arcano Dezenove
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44. Saturnais: mito de origem
Antes era Nada.
E de dentro do Tudo nasceu o Sol.
A grande roda brilhante se alimentava
nas generosas tetas cósmicas
das mulheres galáxias, que eram, também
filhas do Tudo e netas do Nada.
Gotas de leite estelar caíram,
pingaram abundantes e
deram forma a inúmeras raças:
os Syrios, os Krianos
e também, a humana,
de complexidade rara.
Para louvar o grande Nada
e agradar ao Sol,
organizavam festas que duravam
sete luas.
Ocasião em que essa raça,
que ainda não conhecia a sabedoria,
não roubava, nem matava, mas
cantava celebrando a vida e
fazia amor na alvorada.
Um banquete público era o que, ao contrário,
amor traduzia, ato que refletia o lampejo da origem.
E, durante a festa, essa rude criatura
revelava o que, da sua face, a rotina ocultava.
De tanto arranhar a Terra e violar os Rios
ofendendo o grande Nada,
Tudo veio ensinar-lhes a compaixão e,
resgatando-os da ignorância,
ensinou coisas de partículas brilhantes.
Essa raça de pés sujos vive olhando para o céu,
esperando voltar ao seio da mãe primordial.
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Renata Bonfim
45. Florbela em canto
Para a Sóror Saudade.
No claustro, o silêncio ensurdece.
Fado? A alma resiste e canta.
Da mouraria chegam ecos de vozes distantes.
Torres de marfim e vitrais formam
paços adornados com lágrimas e cristais,
gotas brilhantes que correm pela face das monjas
e são, caprichosamente, colhidas
pelas mulheres e por homens que versejam em Portugal.
Ouço dizer de Princesas ornadas.
De virgens pálidas e febris
refletidas em vitrais espetaculares.
Seus sexos são cobertos por violetas maceradas
que perfumam e inebriam os pensamentos,
desviando os caminhos de quem passa.
Seus sonhos sensuais aquecem o frio das celas de ouro.
A simplicidade de seus gestos contrasta com
o tesouro: pérolas e jades que saem de suas bocas rosadas.
- Oh! Roseirais e lírios que perfumam os campos!
- Oh! Árvores que guardam os ninhos dos rouxinóis,
levem este canto, espalhem este odor e retornem plenos.
Tudo o que vejo é santo, é vivo, causa espanto:
O universo, o caos, a beleza...
- Astros dispersos iluminam verbos e letras e inquietam
amantes que nunca se tocaram, e despertam na memória
imagens que insistem em ir para além de mim.
Arcano Dezenove
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46. Entre a luz e a solidão
Entre a luz e a escuridão
há um rasgo,
uma fissura,
por onde o tempo espia.
De lá se contrai,
em dores, a ternura.
E já nascemos na bruteza,
com um grito embargado na garganta,
que, quando liberto,
revela ecos de outras vidas,
palavras-trama. E
somos postos entre
o estro e a afasia.
Sempre em busca da beleza,
a alma só na arte se encontra,
aprende a plasmar a terra e a si;
sua ferramenta, o coração.
E, para validar a existência,
transforma o caos em esperança,
recria, pariu a si mesma fora do tempo,
nas asas da poesia.
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Renata Bonfim
47. Orgânica
Orgânica
A mulher era verde
E sem veneno.
Nem a flor da laranjeira,
A lavanda,
O sândalo
Se comparavam ao seu cheiro.
Ela se comunicava
Com os bichos.
Fotossintesemente
Trocava seus fluidos
Com o ambiente.
Um dia, ela se abriu toda,
De uma forma diferente,
Ninguém entendeu nada.
Mas ela estava, milagrosamente,
Soltando brotos e
Parindo alvoradas.
Arcano Dezenove
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48. Despedida
À memória de Lili
Você está aqui comigo,
mas, aos poucos,
como uma vela brilhante,
se apaga...
Quanta luz você fez, chama perfumada!
Quanta luz vertida em cascata sobre mim,
em forma de amor!
Temo não ter mais lágrimas
quando você se for,
apenas poemas encharcados.
Esta é a nossa despedida!
Amar é se esvair, eu acho,
é se esgotar devagarzinho...
Me sinto assim, reduzida, mas, realizada.
Amei e cuidei de você.
E você me amou e cuidou de mim.
Fechou-se um ciclo...
Uma dor lancinante, querida,
parte daqui de dentro e lança
do meu peito, raios errantes.
O que restará de mim depois de tudo isso?
Matéria seca?
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Renata Bonfim
49. Oh! Deus, por que comigo?
Por que com ela ?
Por que agora?
Por que assim, dessa forma?
Por quê? Por quê? Por quê?
Por que precisamos aguentar, firmes,
quando a estrutura é frágil e ameaça ruir?
Estou olhando para você, meu amor,
com doçura e atenção.
Arrancando de dentro tudo o que é luz
para lhe ofertar com alegria,
em agradecimento
pelo tempo que você me dedicou,
pelos sorrisos que fez brotar no meu jardim.
Mesmo em meio à dor
eu acolho você nos meus braços
e canto: “fica, fica, fica...”
Mas o meu poder vai, somente, até aí:
cantar, cantar, cantar... sou poeta.
Mas ponho no tempo ainda não cantado
esperanças e novas letras, banho os versos
que não fiz com utopia e crio um não-canto:
“Vá em Paz, amor”.
Arcano Dezenove
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50. Não materialidade
Para o abade Daiju Bitti
Eu-pedra preciso cindir,
quebrar,
partir,
fazer-me em mil,
mas não posso.
Seria mais fácil cultivar a glória que,
sob o Sol, é vã.
Eu-água preciso derramar-me,
fluir,
inundar,
mas não posso.
Seria mais fácil empoçar-me em desejos
e vontades sem sentido que,
sob o Sol,
são apenas vaidades.
Eu-planta poderia florir,
nutrir,
multiplicar,
mas não posso.
Seria mais fácil entregar-me à força
do egoísmo parasita
que corrói a carne e intoxica o sangue.
Sim, seria mais fácil escutar a voz
de um eu enganoso
que cala outras vozes entusiastas,
mascarando a verdadeira identidade,
a cósmica.
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Renata Bonfim
51. Eu superior, big bang latente
de ações de paz e solidariedade:
Eu-não-eu, Tu!
Que brote de nós a luz necessária.
Que saltem das cabeças e dos corações
de homens e mulheres letras benditas
agrupadas em palavras que apontam para o
porvir.
Que surjam frases que confluam
Para os rios do bem-dizer.
Que nasça austero o outro ser e desfaça
mal-entendidos. Que surja um novo tempo
de brotação sobre a terra
para acabar com a fome de sentido,
para colhermos o fruto, poesia, que será
liberado, acessível e nunca mais o saber
será proibido.
Arcano Dezenove
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52. Quintessência
“Pelos lábios de uma possível alma amorosa
eu canto a mim mesmo”.
(Mikhail Bakhtin)
“Quem somos nós, quem é cada
um de nós se não uma combinatória
de experiências, de informações,
de leituras, de imaginações?”.
(Ítalo Calvino)
Transluzir
Tudo se dissolve ao sabor do momento
No instante, tudo se desfaz.
O que era, já não é mais
O que fui, sou, e serei
Aquarela!
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Renata Bonfim
53. Confissôes
de uma apaixonada
O sol toca a minha face
aquecendo o peito resistente.
Lança luz sobre o maior tesouro,
meu coração dourado e ardente.
No compasso das estações,
este órgão apaixonado
e tenro,
pende entre o derretimento
e a evaporação.
Não sei mais se tenho um coração
ou se o cárdio-bandido
subverteu a ordem
e é quem me detém,
refém de sentimentos
que me engolem.
Arcano Dezenove
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54. Lilás
À Maria Lúcia Dal Farra
Explosões de lilases.
Ela é exibida,
invade as retinas
domina os sentidos.
Começamos a sentir e
a cheirar lilases.
Deliramos de estranheza ao seu
sabor.
Tudo, tudo, tudo se destina a ser
lilás:
a casa, o rio, a montanha,
a árvore, o passarinho, o gato.
Mas é no jardim que ela impera.
Vence o poderoso verde dos arbustos
com a singeleza de seu manto
com o perfume suave extraído pelo
vento.
Ela é legião, uma diaba de mil
flores.
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Renata Bonfim
55. Excita os desavisados
com seus micropistílos
coloridos e açucarados
Não dá paz à grama, sobre a qual,
se lança, pois ela jamais,
involuntariamente, cai.
Eis a flor insurrecta do Éden
situada ao lado da árvore da sabedoria,
era ela que incitava Eva a provar do fruto:
- Come, danada, e enxerga o mundo.
A rosa ela despreza; o cravo, ignora,
é amiga do joio, mas o bambu ela adora.
A Hortênsia é assim, excêntrica,
cheia de vontades e manias.
Decifra-a, se fores capaz!
Arcano Dezenove
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56. A fúria de Eros
Desejo a luz azulada
do teu peito
abrasado
Dá-me o teu gozo
o teu coração
Dá-me também o teu pulmão
teu baço
pernas e braços
Sê meu por inteiro
sem sombras, nem saudades.
Deixa para trás
pai
mãe
irmão
Deixa de comer e beber
Vem para mim com cuidado e
sem demora
Traze o fogo de Prometeu e
de Zeus, a chuva de ouro.
Vem dissimulado,
Deita com os olhos semicerrados,
finge que não me viste.
Vou te dar todo o ódio contido
em férreos beijos e abraços,
cacos afiados de antigas convenções.
Nesse delírio de posse, Sê meu,
Antes que a noite acabe,
e se desfaça a fantasia,
Antes que vire dia,
Dá-me a fonte de luz
que o teu sexo irradia.
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Renata Bonfim
57. O gato rei
Para Elvis
O gato rei aproximou-se
exangue. Seu olhar,
di(amante),
dizia que fora picado
pelo mesmo bicho
que vitimara Romeu,
Júlio César, Garibaldi e
Abelardo.
Pulou sobre o meu peito,
com a ferocidade de um leão.
As suas (benditas) garras
lanharam a minha carne,
rasgaram as fibras,
marcaram pulmões, coração.
Agora sou súdita fiel,
sempre pronta a satisfazer-lhe
os desejos mais peludos.
Sou sua humana
de estimação.
Arcano Dezenove
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58. Carnaval
Canto, brinco, vibro,
é carnaval, o corpo está autorizado,
redimido pelos desejos mais loucos.
Nada é profano,
nada é pecado,
Simplesmente canto, brinco, vibro, danço,
seduzo e sou desejada.
Entrego-me à orgia.
Liberadas as fantasias,
expludo brilho e cores que
nem sabia que existiam.
Sou quem não sou,
sou quem gostaria de ser,
sou um ser que jamais seria.
Esbanjo fluidos divinos,
no êxtase pagão dessa alegria.
Na terça, sob máscaras,
sem terço nem mordaça,
coberta pela fantasia
festejo o dia de reis. Sou Rainha,
executo ritos e entoo ladainhas,
Tudo é santo, especialmente a carne
que vibra e goza até o pranto.
Experimento vislumbrar,
no rosto, a face esquecida.
Amanhã será outro dia,
outro início, ou o fim...
Vão-se os gritos, os brilhos e os véus,
vão-se os poderes todos.
Fica o resquício desse eu carnal,
pele bendita, prenhe de vontades,
epiderme espacial, onde,
coletiva, existo.
58
Renata Bonfim
59. Terra Santa
Terra santa
bendita,
adorada
O que fizemos contigo?
Tua dor me trespassa.
Vejo as fissuras
na tua carne azul e parda.
Ouço teus gritos,
Mas o medo me paralisa.
Estarreço, silencio.
Sinto o cheiro e os sons da morte
dos teus rios, sonâmbulos e errantes.
Veios desviados por húmus mutantes
humanos, desvio da tua própria natureza.
Esperamos o banho ritual,
águas santas que nos lavarão
do pior mal:
a indiferença.
Arcano Dezenove
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60. Brutal singeleza
Queimaram as bruxas
desencantaram o mundo.
Depois disso, ficou difícil fazer poesia.
Depois de tanta dor,
Como não silenciar?
Depois de silenciar,
como vencer o medo?
Avanço e recuo
conjugando a mulher da minha sombra.
Na língua há asperezas;
no coração, esperanças;
e a carne, essa,
sangra por natureza.
Que status plural e confuso!
Que peso e que pena
sustentar esse Ser
de brutal singeleza
que quer ouvir o inaudito que
brota do verbo luminoso!
Quero poetizar o cinismo
que oprime e mata.
Busco forças em Safo, Dal Farra, Ester
Colho Florbela
Escolhendo a mim mesma.
O silêncio é a voz que sonha e não realiza,
Foi assim que a sombra acordou
resgatando da sombra as outras
que o tempo silenciou.
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Renata Bonfim
61. Onde os tempos se encontram
“Triste de quem é feliz”.
(Fernando Pessoa)
“Na vasta sintaxe do mundo,
os seres diferentes
ajuntam-se uns aos outros;
a planta comunica com o animal;
a terra com o mar;
o homem com tudo o que o rodeia!”.
(Michel Foucault)
Arcano Dezenove
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62. Efeito borboleta
“Entre o planeta e o Sem-Fim,
A asa de uma borboleta”
(Cecília Meireles)
Buscar salvação para o abandono,
Desenterrar forças para mudar o mundo,
Revelar o mundo descoberto no subterrâneo
De sorrisos frios e olhares cínicos.
Testemunhar o diálogo entre a ausência e a morte.
Conhecer a si mesmo de um outro jeito,
Libertar a borboleta aprisionada
Dentro da larva e voar em curvas,
Levantando poeira bem longe.
Fazer o caos!
A minha errância é como a água turva
De um rio caudaloso:
Não permite que lhe encontre a fonte
Ou que lhe desnude os mistérios do fundo.
A minha alegria,
Árvore carregada de tristezas,
Labirinto com minotauros anões...
Não há fio com que contar.
Preciso tear um casulo e adormecer,
Já sinto as dores da transformação.
Minha pele começa a romper.
Essa mutação é necessária?
Guardarei o silêncio para quando
Abrir misteriosas asas.
Buscarei a luz que ainda não conheci.
Assim como o néctar, a essência,
Irei desvendar a flor,
Com tudo isso eu sonho,
Enquanto me arrasto pelo chão.
Arranhada e faminta.
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Renata Bonfim
63. Jesus cósmico
Eu sou Dele e Ele é meu!
Conhecemo-nos há muitas eras.
Eu era apenas uma plantinha inquieta,
fazendo sombra e alimentando bois.
Nessa época, cada estrela eu conhecia,
e girava, girava, a cada volta que o Sol fazia.
Lembro que cada célula do meu corpo vegetal
vibrava com a sua presença angelical.
Depois, por entre mistérios e forças,
Encontrei- me dura e brilhante, pedra.
Chamavam- me diamante.
Eu precisava aprender tantas coisas,
mas algo em mim resistia.
Estranhamente, essa bruteza
encantava e seduzia.
Muitas sombras, fluxo, vertigem...
Senti meu corpo flutuando; bailarina,
conheci o mar e, entre criaturas irmãs,
cantei com a maré: Água-Viva!
Em sintonia com os ciclos lunares,
seguimos juntos a poderosa voz do oceano,
e conhecemos muitos lugares.
Um menino eu fui também,
pobre e alegre.
Nasci na seca, filho da fome do agreste,
não sei bem do verde,
nem ouvi barulho de fonte.
Mas a barriga vazia conheci,
aprendi que lutar é preciso,
quando escolhemos viver.
Arcano Dezenove
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64. Acho que foi nesse lugar
que comecei a entender o sentido do perdão.
Então, perdoei a mim mesmo,
por ser fraco, coberto de poeira e solidão.
Sob o Sol, acariciavas-me os cabelos
Em códigos celestiais, sussurravas:
jamais te abandonarei!
Estavas comigo sempre.
Mesmo que o chão tremesse,
ardesse o Sol ou chovesse,
estavas ali, comigo...
Fui tantos e tantas que desconheço...
Trago gostos adquiridos,
Alguns procuro esquecer.
Lembro-me de coisas que preciso rever.
Viva! Posso fazer novas escolhas.
Anseio descodificar esta existência.
Qual o sentido da busca?
Veja que, há muitos séculos,
fui moça e passava
horas a esperar por alguém à janela,
alguém que nunca chegava.
Outra vez, achei um tesouro.
Com ele aprendi que a felicidade
não se compra nem se vende.
Vale mais que ouro.
Sou hoje os vestígios dessas vidas
e dessas mortes, vidas e mortes, e vidas...
E vivo e morro a cada dia.
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Renata Bonfim
65. Que privilégio, o teu amor!
Que honra ser este mosaico
ainda em construção,
obra do teu capricho e cuidado.
Reúnes-me em partes conflitantes,
Fazes-me sombra e luz.
Assim, reflito tudo o que existe,
Não sou alegre nem triste,
apenas sou!
Amo-te pura e santamente,
Jesus Cósmico!
Que meu corpo e mente sejam ainda
mil vezes plasmados!
Que eu seja um rio caudaloso,
cujos afluentes invadam outros mosaicos,
regando outras plantinhas e
saciando os bois que têm sede,
almas mais nobres que a minha.
Sinto você aqui, agora, do meu lado.
De dimensão em dimensão,
seguimos, unidos por este laço sagrado,
guias-me , sigo-te.
Viajamos pelo infinito,
vou cantando um canto novo
em cada novo canto.
Arcano Dezenove
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66. Antes do Éden
Para Luiz Alberto
Desejo a tua essência:
Música!
Ah! Meu bardo, poeta...
Vem para mim
nessa madrugada,
quando o espírito das coisas
repousa sobre o Nada.
Vem comigo, vamos nomear ad infinitum.
Observa as formas e as cores.
Vem sentir os nossos cheiros e
experimentar o sabor dos nossos sexos juntos.
Vamos discriminar sem discriminação,
dar voz e vez ao menor dos seres.
Somos Eva e Adão sem o sermos.
Une teus lábios aos meus.
Selemos um pacto para a eternidade.
Apenas eu e tu, meu bardo, poeta,
neste mundo verde sem pecados,
sem culpa, nem frutas,
sem deus, nem diabo.
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Renata Bonfim
67. Gente da era da luz
A natureza pelo prisma do não.
O mal maior, a degradação:
planeta devastado,
valores corrompidos.
A fé só enxerga $.
Trememos diante dessas verdades.
Melhor seria não conhecê-las.
Optamos pela estratégia:
Não saber para não sofrer.
A única certeza é a de que
vamos morrer.
Variadas questões
assombram de formas diferentes.
Quando os polos da Terra se inverterem
e o dia chover raios luminescentes,
uma nova gente vai nascer.
Gente da Era da Luz,
formas transformadas,
filhos que resgatarão
a nossa dívida
e viverão o que perdemos.
Os fótons de um grande Sol
nos atravessam.
A mudança é iminente!
O DNA está mudando também.
Já sinto lampejos de esperança e esclarecimento.
Que nasça essa gente bendita.
Que rebentem novas sementes.
Arcano Dezenove
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68. Humanidade nata
A flauta toca o peito e
abre buracos
no tempo/espaço
(aproveito)
Afasto os pensamentos limitadores,
sombras,
A leveza me invade.
Viajo nas asas do vento.
Sou Ulisses nos braços de Circe,
Eva cantando triste
(desejosa)
pela fruta de que tanto gosta.
AH! se eu pudesse beber do Letes
e ser inaugural como a alvorada,
ser Divina,
e não essa fêmea bruta,
mulher em construção,
alterada
e mesquinha
trazendo a humanidade nata.
As mãos tecerão desafios
abro os olhos
(tímida)
68
Renata Bonfim
69. Construo estes versos,
andorinhas que voam em direção a você.
Me empresta a sua voz?
Cante com aminha lira,
escreva um poema sobre este.
Vivo e lúcido
Rizoma que justifica
o meu intento.
Estou descansada,
respiro suavemente,
a cabeça está erguida,
as mãos estendidas.
Amigo,
somos flechas,
mirando o infinito.
Arcano Dezenove
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70. Prece
Jesus Cósmico,
fonte de misericórdia,
Ajuda-nos a trilhar
o caminho do teu amor.
Desperta os nossos sentidos
para a beleza. Abre nossos ouvidos
para teus discípulos:
as árvore e os animais,
emissários divinos que
assassinamos com crueldade,
assim como fizemos contigo,
quando estavas encarnado.
Quebra as certezas arrogantes
e ensina-nos a desaprender,
para que possamos mudar e romper
as barreiras do ódio e da indiferença.
Reavive a fé em nós mesmos
e a esperança de que podemos
ser e fazer diferente.
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Renata Bonfim
71. Rituais
“Não faltaram as injúrias. Chamavam-nas de
sujas, indecentes, impudicas, imorais. No entanto, os seus primeiros passos nessa via foram,
pode-se dizer, uma feliz revolução no que é mais
moral, a bondade e a caridade”.
(Jules Michelet)
Desejos de feiticeira
Eu quero tocar os espírito alheios
com encantos luminosos.
Acordar dormentes e sonâmbulos,
com fluidos escândalo-viscosos,
colhidos nas veias dos cristais
e das ervas.
Lançar bênçãos,
Distribuir afagos e,
justificando a minha natureza,
distribuir, também,
olhares de secar pimenteiras
Arcano Dezenove
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72. Terra
Amo a Terra
Das entranhas ao infinito
E aos seus arabescos
Conflitantes
Divinamente pintados
Semear
Não despreze a natureza,
Não pise a grama,
Nem arranque a flor.
Se brigar com esses seres,
Será amaldiçoado e perseguido.
Não adiantarão rezas, nem filtros.
O segredo é simples:
Semeie, plante, cultive
Amizades, flores, árvores, ideias de luz.
Plante e acredite.
Sem fé, amigo, nada germina.
Não há fotossíntese.
Tudo morre, definha.
Anote esta dica:
Não arranque nem erva daninha.
Pense que elas estão aqui por alguma razão.
Mesmo que desconheçamos sua utilidade.
Talvez estejam aqui para nos ensinar que
A perfeição não existe,
Que jardim bonito é plural,
Alegre e triste,
Florido na primavera e
Sem folhas no tempo outonal.
72
Renata Bonfim
73. O açafrão e seu destino
A crocina está dentro das plantas,
assim como a crocetina,
substância semelhante aos hormônios
feminino e masculino.
São os estigmas dessa planta
rara, cor de ouro.
Deles, pistilos que também são suculentos,
se obtém uma matéria corante,
o açafrão.
O poeta Virgílio cantou o seu poder e seu odor.
Plínio chamou-a de Croci.
Desses pistilos também vinham
os vinhos, que eram derramados
no chão dos teatros:
“Recte crocum perambulare”,
Traduzindo: “Tenha sucesso em cena”.
O açafrão só pode ser colhido bem cedinho,
quando desabrocha junto com o Sol.
Os estigmas de ouro são depositados
sobre papéis como as palavras sobre os corações.
Depois são fechados em caixas como joias.
Arcano Dezenove
73
74. Impotenza strumentale
Para todos os machões
O homem fazia um grande esforço:
mentalizava,
desfolhava rezas fervorosas,
e nada acontecia.
Para acordar sua masculinidade trágica,
fruto da fatalidade.
Nada adiantava.
Coitado. Seu órgão não mais o atendia.
Seu orgulhoso instrumento
não se elevava.
Ficava ali, estático. Parecia um cadáver,
só que mais rosado.
Ele fez de tudo para retardar
o advento sombrio.
Recorreu à magia,
Mas de nada adiantou.
Seu mundo havia caído.
Iniciou uma peregrinação,
para mudar sua história,
reverter a situação.
Foi ao mangue sagrado da Birmânia
e afundou os testículos na lama.
Nada aconteceu.
Depois, passou a comer ostras
todos os dias e a esfregar
nas partes pudendas
óleos, essências, que também
não surtiram efeito.
74
Renata Bonfim
75. Ele recorreu a gorduras fedorentas que,
além da vergonha, atraíram moscas.
Emplastos, a cartada final.
De desatino em desatino,
Buscou a felicidade, se concentrando
em outras partes do corpo,
até mesmo no coração.
Barba Azul
O meu sangue é ávido, inflamado
E premente. Aperta meu coração
A natureza libidinosa do que penso,
Ao tocar a terra e recolher seus frutos.
Sou pouco rica, ao contrário da nobreza.
Mas posso curar, predizer, adivinhar e
Evocar almas.
Tudo isso faz de mim
o que mais desejas:
Teu objeto absoluto.
Fantasias em tua maldade.
na soberba que oculta sua verdadeira face,
As formas de me reduzir.
Barba Azul.
Fujo de tua rude presença,
Antes que o tempo clareie e tudo
que é luz em mim anoiteça.
Arcano Dezenove
75
76. Filtros mágicos
Se você ama alguém,
mas não é correspondido;
Se perdeu todas as esperanças
de ser feliz e de ter prazer;
Se está triste, doente, e precisa
desesperadamente foder,
esqueça as promessas
ao santo de devoção.
Ele tem mais o que fazer.
Deixe também de lado os despachos.
Deixe as encruzilhadas limpas.
Por favor, as ruas já estão bastante sujas,
e a cidade poluída. Recorra à magia:
faça um filtro.
Os filtros são a regra no jogo do sexo.
Pode acreditar: eles funcionam.
Pegue uma ervinha brejeira,
catuaba ou coentro.
Besunte no mel e depois
enrole em um lenço de algodão
virgem.
Diga: “Ervinha poderosa e amiga,
faça “fulano”(diga o nome da pessoa)
se entregar aos meus caprichos.”
Repita a frase três vezes
enterre o lencinho na praia
e espere...
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Renata Bonfim
77. Banho de limpeza
Pegue sete galhos de arruda;
Sete de aroeira,
Sete folhas de espada- de- São- Jorge
E de Ogum;
Sete folhas de abre- caminho,
Sete galhinhos de boldo,
E, para finalizar, sete punhados de sal grosso.
Ferva tudo com fé.
Resulta um líquido milagroso!
Deixe esfriar e lave-se.
A cabeça não deve ser molhada.
Se quiser prosperidade,
Acrescente a esta fórmula:
Cravos, sete também.
Erva cidreira, manjericão,
Mel e pétalas de rosas.
Os caminhos se abrirão,
Olho gordo cairá por terra,
Tua sorte voltará,
Tudo isso com um banho,
Ou melhor, com sete banhos,
Respeitando a sabedoria
Do ciclo lunar.
Arcano Dezenove
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78. Patuás
Não precisa de jeito,
Apenas de boa vontade.
O material é barato.
Alguns são de graça.
Basta coragem.
Agora, é botar a mão
na massa.
O patuá pode ser
até mesmo decorativo,
um adorno colorido.
Mas eles são bem mais que isso:
São objetos mágicos de poder e força.
Vamos lá, faça o seu.
Patuá de proteção contra mau olhado:
Pegue alecrim e coloque pra secar.
Pegue um pedaço de fita amarela,
cor do segundo raio
o da Santíssima Trindade.
Pegue também um pedaço de pano.
Faça um saquinho.
Dentro, deposite o alecrim. Junto,
coloque uma pedrinha,
tirada de algum jardim.
Costure e decore, coloque miçangas ,
pendure a fita e passe a contar com
a iluminação e a sabedoria divina
do mestre Confúcio.
Avatar dessa senda.
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Renata Bonfim
79. Cerimônia do chá
O chá deve ser feito de cravos,
noz-moscada,
rum e
folhas de menta.
Deve ser tomado
na Lua crescente,
por pessoas que
desejam recomeçar algo
ou estejam, simplesmente,
descontentes.
Deve ser bebido de forma ritual:
Esteja vestido com roupas brancas,
tenha em mente aquilo que
precisa deixar partir. Imagine-se feliz.
Sonhe com algo bom.
É preciso coragem para abraçar
o inesperado, para receber o novo.
Diga sim e acredite!
Beba e adentre-se em novos caminhos,
Fale novas línguas.
Admire outras cores.
Pluralize.
Depois do chá,
agradeça
à natureza e aos amigos invisíveis.
Arcano Dezenove
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80. Cadê o urú ?
Cadê o uru?
Sumiu.
Caçador pegou,
ninguém viu,
e, se viu,
não se importou.
E o peixe-boi?
Dele, só lembranças,
Vi um, dias desses, em um livro.
Morreu, certamente,
para aumentar alguma pança.
E o corocoró?
Nem có, co, nem piu, piu.
Sumiu também.
Deve estar empalhado
em algum canto da sala de ciências.
E a cutia, o papagaio-moleiro,
o sagui-da-serra, o guigó,
o macaco-prego, o caititu e o catatau?
Escondendo-se por aí, talvez,
em buracos e fendas
de sítios e fazendas, pois,
terra sem dona não há mais.
Rezam, cada um na sua língua,
ensaiando sobreviver,
mas sabem que o caçador
logo vai chegar.
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Renata Bonfim
81. Poesia vegetal
Existe uma poesia que guarda em si
Elementos combinados,
Que suporta invernos inclementes.
Ela dormita. mas, na primavera,
Desperta, trazendo consigo
Coisas antigas que, durante séculos,
Foram silenciadas.ww
Imago
A imagem está prenhe
de inexoráveis sentidos
e de ideias.
Nelas, as palavras dormitam.
Ídolo inclemente
Mãe de inéditos.
Adorada e temida
Gesta coisas que existem
Mas que ainda não foram vistas.
Ima
Arcano Dezenove
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83. O que nos resta, após a leitura de
arcano dezenove?
Mística, lirismo, realismo, simbolismos ocultos, questões do mundo filosófico, da tradição alquímica, do
cotidiano e do ambiental – é por este labirinto poético que Renata Bomfim nos conduziu para formar
as suas (nossas) “palavras-imagens”. Ao término de
nossa leitura fica fácil constatar que o discurso metapoético prevaleceu em alguns poemas, como quem
procura dialogar narcisicamente, buscando alcançar a
essência da poesia. Para isso, a poetisa utilizou várias
formas versificatórias, como forma de seduzir o leitor.
Seduzidos, notamos que foram postas as cartas do seu
jogo poético. Após a primeira carta/parte (Arcano Dezenove), nós, leitores, estupefatos, com a intensidade
da sua linguagem lírica, nos perguntamos: será que
a autora ainda nos surpreenderá? Constatamos que
Renata Bomfim cumpriu – além de questões formais
(as acadêmicas) – o propósito que deve ter todo trabalho artístico. Ou seja, a obra não como objeto acabado
e definido, mas que o seu sentido seja, como elucida
Umberto Eco, de abertura a várias possibilidades; ou
seja, provocar como respostas diferentes, mas confor-
Arcano Dezenove
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84. mes a um estímulo definido em si. É exatamente esta
sensação, caro amigo leitor, que você tem ao terminar
de ler Arcano Dezenove. Compreenderá um emaranhado de sentidos, que já não fazem mais parte da escritora, mas adentra no nosso mundo, ressignificando
as palavras, vemo-nos em seus textos, que nos transportam para o lugar que deve ter toda leitura poética:
a do prazer artístico.
Já embevecidos na sua poética – que cumpriu, ritualisticamente, um percurso estratégico situado em diálogos com outros autores (como, por exemplo, Florbela
Espanca, Rubén Darío, Maria Lúcia Dal Farra), através de um discurso focado na alteridade, proposta importante atual dos estudos literários –, a poetisa mostrou os seus espelhos poéticos, sem, no entanto, perder
a sua originalidade. Pois, afinal, a inovação desta
poética está centrada numa concepção pós-moderna
da poesia, aliada a auto-consciência de seu labor lírico, levantando uma das principais questões que tocam as várias ciências atuais, bem como a sociedade,
a questão do ativismo socioambiental, aliada a um
entendimento e comunhão com o cosmo-natureza. O
ambiente poético inovador de Renata Bomfim é, entretanto, não apenas arraigado às questões de preser-
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Renata Bonfim
85. vação, diálogo e identificação com a natureza, mas
ambienta-se em outros paradigmas, dos quais destaco
uma das grandes questões da sociedade moderna: a
feminização do mundo.
Diz a poetisa-poeta: “Eu quero tocar os espírito alheios/
com encantos luminosos./(…)Distribuir afagos e,
(…)/ olhares de secar pimenteiras.” E ela consegue,
ao final desta obra, através do seu “olhar/cantar” felino, de poesia liricamente fertilizada de desejos, tocar
o mais fundo de nossa alma. Transporta-nos para o
mundo mágico artístico; afaga o nosso coração chagado e arranca, abruptamente, as mais profundas raízes
resistentes às intempéries da nossa incredulidade em
compreender que nasce uma poetisa contemporânea
brasileira que ainda dar-nos-á uma vasta obra de
qualidade para a nossa tão desprestigiada literatura
de autoria feminina.
Fabio Mario da Silva
Doutorando em Literatura pela Universidade de Évora
(Portugal)
Pesquisador do CNPq, num projeto sediado na
Universidade Federal de Sergipe
Professor Convidado da Universidade de Varsóvia
(Polônia)
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