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SOBRE O TRÁGICO, O CÔMICO E O CRÍTICO
Imaculada Kangussu (UFOP)
“O emprego do riso como arma contra
os demônios e a morte são
extraordinariamente disseminados nas
crenças de todos os povos. Um rito
esquimó visa literalmente a „matar
pelo ridículo‟ as tempestades de
neve.”
Maria Ramondt, Studien über das Lachen

As diferenças entre o trágico e o cômico nunca foram tão bem delineadas como na
Grécia Clássica, quando a tragédia ática alcançou a forma mais perfeita e o máximo do
esplendor. Na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia assemelham-se quando são
apresentadas como “mimesis” (1447a), e diferem porque autores cômicos “imitam” homens
piores e os trágicos os “imitam” melhores do que realmente são na realidade (1448a).
Sendo a mimesis considerada pelo filósofo como congênita à natureza humana – que com
ela se compraz e aprende –, a poesia naturalmente tomou as formas da índole particular dos
poetas: os de ânimo mais elevados mimetizavam ações nobres, através de hinos e
encômios, e os de mais baixas inclinações compunham vitupérios (1449a). Vindo à luz
através da poesia, a mesma distinção estendeu-se ao teatro: dos ditirambos em honra a
Dionísio originou-se a tragédia, e nos cantos fálicos – que também evocavam o mesmo
Deus – pode-se perceber as sementes da comédia.
Na cena teatral, a comédia apresentava o que os homens têm de ridículo,
caracterizado como “defeito, torpeza anódina e inocente”, a máscara cômica era disforme,
mas não possuía expressão de dor. Por sua vez, a tragédia ática mimetizava homens
superiores, em ações de caráter elevado, que suscitavam terror (phobos) e compaixão
(eleas), e provocavam o prazer que é próprio desses sentimentos. Sem desconsiderar que
uma localização muito rigorosa das origens seria um erro metodológico, ressalto a origem
comum da tragédia e da comédia – nos coros dionisíacos – ainda que, predominantemente,
a filosofia demonstre muito menos apreço por essa última. Se a tragédia surgiu dos
ditirambos, a comédia começou com os komoi, uma espécie de procissão jocosa, das quais
2

a mais famosa era realizada nas festas dionisíacas para celebrar a fertilidade da natureza
através de homenagens a reproduções de falos descomunais – costume ainda vivo em
algumas regiões da Grécia. Os comediantes (komazein) andavam de aldeia em aldeia por
não serem tolerados na cidade, registrou Aristóteles (1448b). Oficialmente, as
representações cômicas tiveram origem nas Dionísias Urbanas (486a.C.), em Atenas, mas
cenas pintadas em vasos revelam sua existência bem antes da data oficial.
“A tragédia surgiu do coro trágico”, pode-se ler em O nascimento da tragédia (NT
§7, p.52)1. Nietzsche interpreta a origem da tragédia no coro dos sátiros de um modo
bastante específico, tomando como arma a luta contra a idéia de naturalismo na arte. O coro
mesmo é percebido “como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de
isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética”
(NT §7, p.54). E o faz preservando as semelhanças com os antigos coros satíricos gregos e
sua errância por terrenos mais elevados, “muito acima das sendas reais do perambular dos
mortais” (NT §7, p.54). O sátiro – “ser natural e fictício” – é percebido em relação ao
homem grego civilizado do mesmo modo que a música dionisíaca em relação à civilização.
O coro satírico suspende, eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a
claridade do sol faz com as luzes das lâmpadas, escreve Nietzsche.
Expressão do próprio querer, com sua errância original, o coro satírico criava um
território transcendente, distanciado da realidade cotidiana, não apenas tolerado como
“liberdade poética” e sim considerado, pelo menos por Nietzsche, a própria “essência de
toda poesia” (NT §7, p.54). O mesmo filósofo escreveu:
O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da
existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda
vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através esse abismo
do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca (NT §7, p.55).

É difícil dizer por que, a partir de uma origem comum – a experiência dionisíaca –,
o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou expressões tão diversas a
ponto de constituírem gêneros até hoje existentes, como o cômico e o trágico. Ainda de
acordo com Nietzsche, este último é, com ajuda de Apolo, a “domesticação artística do
horrível”, enquanto o primeiro seria uma “descarga da náusea do absurdo” (NT §7, p.56).
1

NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J.Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras,
1992. Citarei como NT.
3

Pode-se, entretanto perceber, ao longo da história, o entrelaçamento de ambos no que ficou
conhecido como “tragicômico”, a ponto de tornar-se popular a idéia expressa pelo ditado
“seria cômico se não fosse trágico”. Como tantos outros, os termos originais foram
banalizados, esvaziados de conteúdo, tornados difusos.
Se em sua origem o cômico era o outro do trágico, também desde esses tempos já
tinha a sátira como companhia. A chamada “Comédia Antiga” (425-404a.C.) caracteriza-se
pela mordacidade caustica na mimesis dos cidadãos proeminentes e das instituições da
pólis. Virar o mundo ao avesso para revelar de modo jocoso as farsas da vida parece ter
sido, desde o nascimento, o motor das sátiras – de Aristófanes, Esopo, Apuleio, Luciano,
Marcial, até Swift, Butler, Orwell, por exemplo.
Também nos textos filosóficos, o recurso ao cômico, à ironia e à sátira, com intuito
crítico, não está ausente, conforme se percebe em algumas passagens dos diálogos
platônicos e nas bravatas atribuídas a Diógenes. Cifrar o sério no risível é sempre uma
forma de defesa – e de ataque – portadora da astúcia ambígua capaz de evidenciar as
simpatias entre comédia e crítica. Ciente dessa familiaridade, o humanismo renascentista
assimilou a figura do louco para evidenciar um tipo especial e perspicaz de expressão da
consciência de si, atribuindo-lhe algumas funções essenciais: (1) servir de espelho à
verdadeira natureza da humanidade; (2) encarar o infra-humano, o aquém do homem; (3)
comentar os acontecimentos e deles extrair uma lição, conforme assinala Robert Klein, no
belo ensaio sobre “O tema do louco e a ironia humanista”2.
Obscura como outros símbolos e projeções coletivas, a figura do louco é cômica e
crítica. Durante a Idade Média, “o homem que „se fantasiava de louco‟ parece haver
reclamado o direito de „bancar o idiota‟ sem controle, esquecendo a lógica e as
conveniências”, ressalta Klein (FI, p.418). No século XIII, aparecem na França as “festas
eclesiásticas dos loucos”, dias em que os subdiáconos assentavam-se nos lugares de seus
superiores, nos coros das catedrais, e “parodiavam o serviço divino cantando errado e
fazendo sermões grotescos; usavam máscaras de animais, passeavam nus ou vestidos como
mulheres ou como representantes de profissões infamantes; acontecia também introduzirem
solenemente na igreja um burro vestido de padre” (FI, p.418). Mas, além da gargalhada
pela tolice, formas mais sutis eram conhecidas, pois, ao imitar o alienado mental ou o pobre
2

KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. Citarei como FI.
4

de espírito, mesmo o mais tosco dos “loucos” medievais podia enunciar impunemente
aquilo que tinha na cabeça. Revela-se assim um desdobramento da consciência, ao mesmo
tempo a do idiota e a do bufão que a utiliza como máscara. A dualidade cômica implica
certa ambigüidade constitutiva na figura do louco: ele é estúpido e sábio, grosseiro e sutil,
escravo das pulsões e senhor de si mesmo, menos e mais humano. O autoconhecimento
expresso com a máscara da loucura implica o conhecimento da condição humana,
considerado pelos humanistas do Renascimento como a grande tarefa da humanidade. E a
ironia distanciadora aparecia-lhes como arma para denunciar a cegueira e a loucura que
regiam as condições “normais”. Humanistas conceberam a situação do homem no mundo
sob a luz cômica de uma história de loucos. “O mundo inteiro é louco, e o louco tem por
nome Chascun, Elckerlijk, Everyman, Jedermann – o herói mergulhado em um lamaçal em
que se compraz, mas lutando desesperadamente, com o que lhe resta de lucidez, para se
desvencilhar e manter o controle” (FI, p.421). Foi grande o sucesso alcançado pela Nau dos
insensatos, de Brant, cuja idéia central é a de que estamos todos “embarcados” e a única
salvação é a sabedoria, definida como lucidez. Se nessa obra, apoiada no neoplatonismo
cristão, a loucura é condição universal da humanidade e doença ou vício necessitados de
cura, de outra perspectiva ela pode também ser percebida como expressão do avesso
inevitável – e debochado – das ambições da consciência que aspirava à totalidade. O
arrebatamento pelo burlesco permite uma apresentação mais rica da vida do que as
modalidades do “pensamento sério”, ridicularizado pelo louco. A ironia é tão múltipla que
impede, naturalmente, as conclusões (FI, p.429).
Porque os loucos não podem ser imputados pelo que dizem, a este expediente
recorreu Geer Geertsz, sob o nome de Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdam, no
Encomium, id est, Stultitiae Laus, escrito em 1508, na casa de Thomas Morus, e traduzido
como Elogio da Loucura3. No século XV, sobre a filosofia nominalista, a evasão idealista,
e sobre todas as formas de naturalismo estético, reinava “certo sentimento da opacidade do
real” (FI, p.427). Sentimento que levou a cultura humanista a adotar um fundo comum do
que pode ser chamado de cultura popular. A partir dessa perspectiva, Klein observa que
“Erasmo partilha infinitamente mais idéias e sentimentos com a gente do povo de sua época
do que um Duns Scot com a da sua” (FI, p.427). O filósofo de Roterdam desenvolve a
3

ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M.Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril
Cultural, 1972. Citarei como EL.
5

semente de ironia contida na literatura popular que o antecedeu, ao apresentar o louco como
imagem da humanidade e o mundo como gigantesca loucura. Ao fazer Loucura pronunciarse na primeira pessoa, ninguém sabe se o que ela critica é criticado pelo filósofo e se seu
elogio é verdadeiro. Intelectual independente, vivendo da própria seiva, Erasmo tentou
evitar perseguições dissimulando sua opinião. Zombou dos monges, do culto mecânico, das
rezas excessivas, da idolatria e do dogmatismo degenerado em especulações vazias, sem
nunca ter se declarado inimigo da Igreja. Ao contrário, acredita na revelação através da
Bíblia e da literatura clássica, para ele não menos sacra. Segundo Carpeaux, “um semivagabundo vivendo da sua pena, sem pátria como o próprio Espírito, Erasmo é também, em
certo sentido, o último dos goliardos”.4 Nas páginas de Rouanet, aparece a silhueta de um
“vagabundo exercendo sua soberania intelectual por toda a Europa, o cérebro, o coração e a
consciência do seu tempo, correspondendo-se com reis, imperadores e papas, desfechando
dardos mortíferos contra padres corruptos e reformadores fanáticos, invencível „campeão
da verdade‟, nas palavras de Rabelais, armado apenas com as armas da razão e da ironia”.5
Na obra destinada a criticar a Igreja, mas de modo diverso do de Lutero, e
principalmente a visão escolástica da filosofia, a alegoria da loucura começa seu autoelogio proclamando:
Embora os homens costumem ferir minha reputação e eu saiba muito bem quanto o
meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta
Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e
os mortais [...] Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira
distribuidora de bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos, Moria [...] Se
há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-me por Minerva ou pela
Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu
me sirva das palavras, que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em
mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração (EL, p.1316).

Filha de Plutão e Neotetes, a juventude, “a mais bonita e alegre ninfa do mundo”
(EL, p.19), Loucura conta ter sido amamentada por Mete, a embriaguês e Apédia, a
imperícia; e ter como companheiras as ninfas: Philautia, o amor-próprio, Kolaxia, a
adulação, Lethes, o esquecimento, Misoponia, a languidez, Hedoné, a volúpia, Ania, a
irreflexão, Trophis, a delícia; e os deuses Komo, o riso, e Nigreton Hypnon, o sono
profundo.
4
5

CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. 2. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985; p.406.
ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do iluminismo; p.278.
6

“A meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria” (EL, p.23), revela a insensata dama,
pródiga em auto louvar-se, “só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude e retardar
a malfadada velhice” (EL, p.27). A partir da definição dos estóicos, segundo a qual “sábio é
aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa
arrastar ao sabor de suas paixões” (EL, p.31), Loucura afirma que Júpiter, com receio de
que a vida do homem se tornasse triste e infeliz aumentou a dose das paixões e legou à
razão apenas um cantinho na cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à confusão e
a desordem. E Plutão hesitou se deveria incluir a mulher no gênero dos animais racionais
ou irracionais, não porque a mulher fosse um bicho, mas por sua imensa dose de loucura.
“Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia só fará mostrarse duplamente louca [...] E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é
sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher, isto
é, sempre louca” (EL, p.32), pensava o deus. Entretanto, mesmo sendo “um animal inepto e
estúpido”, a mulher sabe, alegre e suavemente, “temperar com sua loucura o humor áspero
e triste” do homem (EL, p.32). Na misoginia aí presente, ressoam ecos do neoplatonismo
cristão que via em Eva, como alegoria do corpo e da sensibilidade, a raiz de todos os vícios
e loucuras. E das possíveis conseqüências públicas de tal posição, Erasmo – pela boca de
Loucura – defende-se antecipadamente:
Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se
aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou Loucura.
Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o
associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que
saibam agradecer-me pelo fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens
(EL, p.33).

O auto-elogio de Loucura é atravessado por ambigüidades nem sempre elogiosas.
Por exemplo, ao falar da guerra, para mostrar que tudo o que nela poderia haver de célebre,
estupendo e glorioso é obra sua, afirma que “os parasitas, os proxenetas, os ladrões, os
sicários, os boçais, os estúpidos, os falidos” podem aspirar muito mais à imortalidade da
glória guerreira do que os dedicados à contemplação. E recorre à teoria de Aristóteles,
segundo a qual a efervescência e a densidade do sangue produzem a força, a audácia e
também a estupidez, e, distintamente, a frieza e sutileza produzem a fraqueza, a
pusilanimidade e o talento (EL, nota 36). Recorda ainda que Arquíloco gabava-se pelo
mérito de, tão logo avistou o inimigo, ter abandonado o escudo para correr em fuga mais
7

depressa. Loucura parece assim estar presente tanto nos audaciosos e tolos quanto nos
covardes talentosos.
O texto insiste na idéia de que há algum teor de loucura no motor de toda ação
humana e de que a loucura é mais divertida e, por isso, capaz de mover o ânimo com mais
facilidade do que os discursos sóbrios. Em seu auto-elogio, Loucura ressalta que basta ela
aparecer para que as fisionomias se transformem, basta sua presença para conseguir o que
os retóricos “mais valentes” mal obtém com seus longos discursos, isto é, expulsar das
almas o tédio, o vazio e a tristeza. Se isto é ser louca, arremata a Dama, “convém-me às mil
maravilhas”. Definir – “encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites” – e dividir –
“separar uma coisa em suas diversas partes” – não lhe convêm posto que seu poder
“estende-se a todo o gênero humano” (EL, p.16). Ridicularizando o estoicismo, Loucura
zomba também dos filósofos afirmando que “os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão
próximos e afins dos deuses” (EL, p.21), a ela recorra se quiser tornar-se pai:
Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, as
partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus
senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela
parte, tão deselegante e ridícula que não se pode lhe dizer o nome sem provocar o
riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e
os mortais (EL, p.22).

Erasmo apresenta diversas formas de loucura: às vezes a condena, outras vezes
exalta seu valor, às vezes a revela como ilusão humana, e outras como elemento
indispensável à vida. O elogio irônico traz registros de elogios reais e também de
afirmações parcialmente verdadeiras, parcialmente satíricas. Sempre portadora de
conhecimentos que neutralizam o prosaísmo, a personagem investe contra tudo o que se
antepõe à compreensão mais profunda e, simultaneamente, defende a necessidade de
fantasia e ilusão. Em inspirada passagem, pergunta:
Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse
desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os
espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria
ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos
mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança
um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à toa. Querer, porém, acabar com essa
ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores
se divertiam justamente com a troca de roupas e das fisionomias. Vamos à
aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia [...] Para dizer a verdade,
tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que
esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma (EL, p.49).
8

A visão do mundo como palco onde a humanidade desempenha papéis é tão antiga
quanto o próprio teatro. Platão, no Filebo (50b), menciona “a tragédia e a comédia da
vida”, onde as dores e os prazeres estão misturados; nas Sátiras de Horácio, o homem
aparece como um fantoche, e na Sátira Terceira, Livro I, pretende-se provar que quase
todos os homens são loucos; em uma das Epístolas (Ep.,80,7), Sêneca reflete sobre “esta
farsa da vida humana, que nos designa papéis, os quais desempenhamos mal”: “hic
humanae vitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat”6. “Quando em vida,
então em cena”, “cum in vita, tum in scena”, registrou Cícero (Cato maior, XVIII, 65)7.
Durante o século XVI, a metáfora da scena vitae reaparece, com força, como theatrum
mundi: na Alemanha, Lutero, o adversário visado por Erasmo, considerava a história como
uma espécie de comédia de Deus (Spiel Gottes); na França, Ronsard escreveu que “o
mundo é um teatro e os homens, atores. A Fortuna é diretora e prepara as roupas, e da vida
humana, os céus e os destinos são espectadores” (“Le monde est un théâtre, et les hommes
acteurs./ La Fortune est maîtresse de la scene/ Apprête les habits, et de la vie humaine/ Les
cieux et les destins en sont les spectateurs”).8 Totus mundus agit histrionem, era a divisa do
famoso Globe Theatre, onde um personagem shakespeareano comparava o mundo ao palco
e homens e mulheres a atores, “all the world’s a stage,/And all the men and women merely
players” (As you like it, II, VII, 141-142) 9. E na Espanha, no século seguinte ao de Erasmo,
o theatrum mundi é elemento fundamental nas obras de Cervantes, Baltasar Gracián e,
sobretudo, Calderón de la Barca.
No teatro do mundo, a desmedida dama descrita por Erasmo revela as máscaras e,
assim, a verdadeira face dos que sob elas se escondem e, mais ainda, a comédia e tragédia
da vida, ao mesmo tempo em que mostra a necessidade do palco e dos atores. Loucura
representa a verdade. Talvez por isso, “a loucura tem uma força maior do que a razão,
aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com um chiste” (EL,
6

SÉNÈQUE. Lettres a Lucilius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres,
1965; p.88.
7
CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P.Wuilleumier. Paris: Les
Belles Lettres, 1955; p.171.
8
RONSARD, apud CURTIUS, E.R. Literatura européia e Idade média latina. Trad. T. Cabral e P. Rónai.
São Paulo: Edusp, 1996; p.192-193. A tradução é de responsabilidade minha, como também o são as
anteriores e as próximas.
9
SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Work. New York:
Barnes & Noble, 1994; p.622.
9

p.95). A possível superioridade do gracejo sobre a argumentação para apresentar a verdade
é semelhante àquela das obras de arte, capazes de produzir expressões não enfeitiçadas pelo
desejo de um fundamento ontológico a ser usado como critério. Nas obras de arte, a
verdade aparece como ficção, e na filosofia pode aparecer como loucura: em expressões
que produzem um sentido tão sutil que nem mesmo existia antes de ser expresso. Na
Dialética Negativa10, Adorno declara preferir os loucos aos tolos: Aux sots je préfère les
fous (“A semelhança da alteridade”, DN, p.404). Tolice seria não perceber que
“representado na mais interior das células do pensamento está o que não é pensamento”
(“Auto-reflexão da dialética”, DN, p.408). A razão sábia sabe-se portadora de um substrato
irracional. E trágico é o reconhecimento do limite irredutível posto por tal percepção ao
pensar, i.e, a autoconsciência do pensamento relativa a suas limitações é trágica, no sentido
forte do termo.
Parece-me pertinente, portanto, pensar a hipótese de que, hoje em dia, considerando
que o trágico e o cômico se entrelaçaram – sobretudo na dramaturgia e na literatura –,
talvez seja mais rico perceber como oposto complementar do trágico, nas reflexões
filosóficas, não o cômico, e sim o crítico. E vice-versa.
Proponho então que, em analogia com o clássico par necessidade e liberdade,
acolhamos o conhecimento trágico e a Teoria Crítica como opostos complementares. Para
esclarecer melhor a terminologia, vale lembrar que, segundo Horkheimer11, a teoria crítica
é uma forma de conhecimento que se distingue da teoria tradicional pela forma específica
de se relacionar com o objeto: não se trata apenas de mudar de objeto e sim de perceber os
limites cognitivos da teoria tradicional. Neste sentido, a Teoria é Crítica no sentido
kantiano do termo, quer dizer, ciente de seus próprios limites. Ela critica a si e as condições
sociais determinantes para a teoria e para os fatos, nos quais se incluí. Constitui-se, portanto
como uma forma de hermenêutica e interpretação. A interpretação crítica da práxis social,
para ser verdadeira, ao mesmo tempo em que dissolve as necessidades aparentes, implica a
afirmação trágica de uma necessidade constitutiva.

10

ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B.Ashton. New York: The Seabury Press, 1979. Citarei
como ND.
11
HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” em Benjamin, Habermas, Horkheimer,
Adorno. Trad. Edgard A.Malagodi et al.. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
10

Para abandonar a idéia idealista de uma reconciliação absoluta é necessário à teoria
crítica o conhecimento trágico, sem o qual poderia considerar-se portadora de uma
liberdade capaz de ultrapassar todas as necessidades e recair no ideal romântico de um
saber transparente, julga Christophe Menke, no ensaio “Teoria Crítica e Conhecimento
Trágico”. E este último, sempre entrelaçado com o reino feroz da necessidade, sem a crítica
à teoria corre o risco de deixar-se sufocar pelos limites percebidos e transformar-se em
aceitação conformista do sofrimento e da infelicidade ou em adoção – não menos
conformista – de um relativismo randômico.
Em outras palavras, no terreno da inteligibilidade, o trágico está ligado à existência
de limites irredutíveis inerentes a todo processo de pensamento – e de sua enunciação – que
se vê, diante disso, forçado a abrir mão das confortáveis idéias de totalidade, absoluto,
fundamento último, e outras do mesmo campo semântico, e a apresentar cesuras e
demarcações. Quanto à crítica, cabe-lhe atuar no interior dessa instância reflexiva,
tragicamente delimitada, apresentando parâmetros capazes de neutralizar a idéia do “vale
tudo”. Enquanto o trágico diz respeito à percepção e ao reconhecimento das delimitações, o
crítico atua no interior da região delimitada. E pode ser enriquecedor para a teoria se a
crítica mantiver viva a memória de suas ligações primevas com a sátira, a ironia, o chiste e
outras manifestações do cômico. A filosofia pode ficar mais engraçada, ou graciosa. Apesar
de ser esse um atributo talvez desconsiderado como pouco viril, vale lembrar que a Graça é
sempre um ganho.
Para concluir, recorro ao final do texto de Erasmo: “Se tagarelei demais e com
demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura” (EL, p.157).

BIBLIOGRAFIA:
ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B. Ashton. New York: The Seabury Press,
1979.
ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1991.
CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume 2. Rio de Janeiro:
Alhambra, 1985.
CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad.
P.Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955.
11

ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São
Paulo: Abril Cultural, 1972.
HORÁCIO. Sátiras. Trad. Antônio L.Seabra. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d.
HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, em Benjamin, Habermas,
Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A. Malagodi et al.. Coleção “Os pensadores”.
São Paulo: Abril Cultural, 1983.
KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998.
MENKE, Christophe. “Critical Theory and Tragic Knowledge”, in RASMUSSEN, D.M.
(Ed.) The Handbook of Critical Theory. Oxford: Blackwell Publishers, 1996.
NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo:
Companhia das Letras, 1992.
PLATON. Philèbe. Trad. Émile Chambry. Paris: Flammarion, 1969.
ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do iluminismo. São Paulo:Cia
das Letras, 1987.
SÉNÈQUE. Lettres a Luculius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris:
Les Belles Lettres, 1965.
SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete
Works. New York: Barnes & Noble, 1994.

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Sobre o trágico, o cômico e o crítico

  • 1. SOBRE O TRÁGICO, O CÔMICO E O CRÍTICO Imaculada Kangussu (UFOP) “O emprego do riso como arma contra os demônios e a morte são extraordinariamente disseminados nas crenças de todos os povos. Um rito esquimó visa literalmente a „matar pelo ridículo‟ as tempestades de neve.” Maria Ramondt, Studien über das Lachen As diferenças entre o trágico e o cômico nunca foram tão bem delineadas como na Grécia Clássica, quando a tragédia ática alcançou a forma mais perfeita e o máximo do esplendor. Na Poética de Aristóteles, tragédia e comédia assemelham-se quando são apresentadas como “mimesis” (1447a), e diferem porque autores cômicos “imitam” homens piores e os trágicos os “imitam” melhores do que realmente são na realidade (1448a). Sendo a mimesis considerada pelo filósofo como congênita à natureza humana – que com ela se compraz e aprende –, a poesia naturalmente tomou as formas da índole particular dos poetas: os de ânimo mais elevados mimetizavam ações nobres, através de hinos e encômios, e os de mais baixas inclinações compunham vitupérios (1449a). Vindo à luz através da poesia, a mesma distinção estendeu-se ao teatro: dos ditirambos em honra a Dionísio originou-se a tragédia, e nos cantos fálicos – que também evocavam o mesmo Deus – pode-se perceber as sementes da comédia. Na cena teatral, a comédia apresentava o que os homens têm de ridículo, caracterizado como “defeito, torpeza anódina e inocente”, a máscara cômica era disforme, mas não possuía expressão de dor. Por sua vez, a tragédia ática mimetizava homens superiores, em ações de caráter elevado, que suscitavam terror (phobos) e compaixão (eleas), e provocavam o prazer que é próprio desses sentimentos. Sem desconsiderar que uma localização muito rigorosa das origens seria um erro metodológico, ressalto a origem comum da tragédia e da comédia – nos coros dionisíacos – ainda que, predominantemente, a filosofia demonstre muito menos apreço por essa última. Se a tragédia surgiu dos ditirambos, a comédia começou com os komoi, uma espécie de procissão jocosa, das quais
  • 2. 2 a mais famosa era realizada nas festas dionisíacas para celebrar a fertilidade da natureza através de homenagens a reproduções de falos descomunais – costume ainda vivo em algumas regiões da Grécia. Os comediantes (komazein) andavam de aldeia em aldeia por não serem tolerados na cidade, registrou Aristóteles (1448b). Oficialmente, as representações cômicas tiveram origem nas Dionísias Urbanas (486a.C.), em Atenas, mas cenas pintadas em vasos revelam sua existência bem antes da data oficial. “A tragédia surgiu do coro trágico”, pode-se ler em O nascimento da tragédia (NT §7, p.52)1. Nietzsche interpreta a origem da tragédia no coro dos sátiros de um modo bastante específico, tomando como arma a luta contra a idéia de naturalismo na arte. O coro mesmo é percebido “como uma muralha viva que a tragédia estende à sua volta a fim de isolar-se do mundo real e de salvaguardar para si o seu chão ideal e a sua liberdade poética” (NT §7, p.54). E o faz preservando as semelhanças com os antigos coros satíricos gregos e sua errância por terrenos mais elevados, “muito acima das sendas reais do perambular dos mortais” (NT §7, p.54). O sátiro – “ser natural e fictício” – é percebido em relação ao homem grego civilizado do mesmo modo que a música dionisíaca em relação à civilização. O coro satírico suspende, eleva e supera o grego civilizado da mesma forma como a claridade do sol faz com as luzes das lâmpadas, escreve Nietzsche. Expressão do próprio querer, com sua errância original, o coro satírico criava um território transcendente, distanciado da realidade cotidiana, não apenas tolerado como “liberdade poética” e sim considerado, pelo menos por Nietzsche, a própria “essência de toda poesia” (NT §7, p.54). O mesmo filósofo escreveu: O êxtase do estado dionisíaco, com sua aniquilação das usuais barreiras e limites da existência, contém, enquanto dura, um elemento letárgico no qual imerge toda vivência pessoal do passado. Assim se separam um do outro, através esse abismo do esquecimento, o mundo da realidade cotidiana e o da dionisíaca (NT §7, p.55). É difícil dizer por que, a partir de uma origem comum – a experiência dionisíaca –, o distanciamento arrebatador do mundo cotidiano prosaico gerou expressões tão diversas a ponto de constituírem gêneros até hoje existentes, como o cômico e o trágico. Ainda de acordo com Nietzsche, este último é, com ajuda de Apolo, a “domesticação artística do horrível”, enquanto o primeiro seria uma “descarga da náusea do absurdo” (NT §7, p.56). 1 NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J.Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. Citarei como NT.
  • 3. 3 Pode-se, entretanto perceber, ao longo da história, o entrelaçamento de ambos no que ficou conhecido como “tragicômico”, a ponto de tornar-se popular a idéia expressa pelo ditado “seria cômico se não fosse trágico”. Como tantos outros, os termos originais foram banalizados, esvaziados de conteúdo, tornados difusos. Se em sua origem o cômico era o outro do trágico, também desde esses tempos já tinha a sátira como companhia. A chamada “Comédia Antiga” (425-404a.C.) caracteriza-se pela mordacidade caustica na mimesis dos cidadãos proeminentes e das instituições da pólis. Virar o mundo ao avesso para revelar de modo jocoso as farsas da vida parece ter sido, desde o nascimento, o motor das sátiras – de Aristófanes, Esopo, Apuleio, Luciano, Marcial, até Swift, Butler, Orwell, por exemplo. Também nos textos filosóficos, o recurso ao cômico, à ironia e à sátira, com intuito crítico, não está ausente, conforme se percebe em algumas passagens dos diálogos platônicos e nas bravatas atribuídas a Diógenes. Cifrar o sério no risível é sempre uma forma de defesa – e de ataque – portadora da astúcia ambígua capaz de evidenciar as simpatias entre comédia e crítica. Ciente dessa familiaridade, o humanismo renascentista assimilou a figura do louco para evidenciar um tipo especial e perspicaz de expressão da consciência de si, atribuindo-lhe algumas funções essenciais: (1) servir de espelho à verdadeira natureza da humanidade; (2) encarar o infra-humano, o aquém do homem; (3) comentar os acontecimentos e deles extrair uma lição, conforme assinala Robert Klein, no belo ensaio sobre “O tema do louco e a ironia humanista”2. Obscura como outros símbolos e projeções coletivas, a figura do louco é cômica e crítica. Durante a Idade Média, “o homem que „se fantasiava de louco‟ parece haver reclamado o direito de „bancar o idiota‟ sem controle, esquecendo a lógica e as conveniências”, ressalta Klein (FI, p.418). No século XIII, aparecem na França as “festas eclesiásticas dos loucos”, dias em que os subdiáconos assentavam-se nos lugares de seus superiores, nos coros das catedrais, e “parodiavam o serviço divino cantando errado e fazendo sermões grotescos; usavam máscaras de animais, passeavam nus ou vestidos como mulheres ou como representantes de profissões infamantes; acontecia também introduzirem solenemente na igreja um burro vestido de padre” (FI, p.418). Mas, além da gargalhada pela tolice, formas mais sutis eram conhecidas, pois, ao imitar o alienado mental ou o pobre 2 KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. Citarei como FI.
  • 4. 4 de espírito, mesmo o mais tosco dos “loucos” medievais podia enunciar impunemente aquilo que tinha na cabeça. Revela-se assim um desdobramento da consciência, ao mesmo tempo a do idiota e a do bufão que a utiliza como máscara. A dualidade cômica implica certa ambigüidade constitutiva na figura do louco: ele é estúpido e sábio, grosseiro e sutil, escravo das pulsões e senhor de si mesmo, menos e mais humano. O autoconhecimento expresso com a máscara da loucura implica o conhecimento da condição humana, considerado pelos humanistas do Renascimento como a grande tarefa da humanidade. E a ironia distanciadora aparecia-lhes como arma para denunciar a cegueira e a loucura que regiam as condições “normais”. Humanistas conceberam a situação do homem no mundo sob a luz cômica de uma história de loucos. “O mundo inteiro é louco, e o louco tem por nome Chascun, Elckerlijk, Everyman, Jedermann – o herói mergulhado em um lamaçal em que se compraz, mas lutando desesperadamente, com o que lhe resta de lucidez, para se desvencilhar e manter o controle” (FI, p.421). Foi grande o sucesso alcançado pela Nau dos insensatos, de Brant, cuja idéia central é a de que estamos todos “embarcados” e a única salvação é a sabedoria, definida como lucidez. Se nessa obra, apoiada no neoplatonismo cristão, a loucura é condição universal da humanidade e doença ou vício necessitados de cura, de outra perspectiva ela pode também ser percebida como expressão do avesso inevitável – e debochado – das ambições da consciência que aspirava à totalidade. O arrebatamento pelo burlesco permite uma apresentação mais rica da vida do que as modalidades do “pensamento sério”, ridicularizado pelo louco. A ironia é tão múltipla que impede, naturalmente, as conclusões (FI, p.429). Porque os loucos não podem ser imputados pelo que dizem, a este expediente recorreu Geer Geertsz, sob o nome de Desiderius Erasmus, ou Erasmo de Roterdam, no Encomium, id est, Stultitiae Laus, escrito em 1508, na casa de Thomas Morus, e traduzido como Elogio da Loucura3. No século XV, sobre a filosofia nominalista, a evasão idealista, e sobre todas as formas de naturalismo estético, reinava “certo sentimento da opacidade do real” (FI, p.427). Sentimento que levou a cultura humanista a adotar um fundo comum do que pode ser chamado de cultura popular. A partir dessa perspectiva, Klein observa que “Erasmo partilha infinitamente mais idéias e sentimentos com a gente do povo de sua época do que um Duns Scot com a da sua” (FI, p.427). O filósofo de Roterdam desenvolve a 3 ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M.Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1972. Citarei como EL.
  • 5. 5 semente de ironia contida na literatura popular que o antecedeu, ao apresentar o louco como imagem da humanidade e o mundo como gigantesca loucura. Ao fazer Loucura pronunciarse na primeira pessoa, ninguém sabe se o que ela critica é criticado pelo filósofo e se seu elogio é verdadeiro. Intelectual independente, vivendo da própria seiva, Erasmo tentou evitar perseguições dissimulando sua opinião. Zombou dos monges, do culto mecânico, das rezas excessivas, da idolatria e do dogmatismo degenerado em especulações vazias, sem nunca ter se declarado inimigo da Igreja. Ao contrário, acredita na revelação através da Bíblia e da literatura clássica, para ele não menos sacra. Segundo Carpeaux, “um semivagabundo vivendo da sua pena, sem pátria como o próprio Espírito, Erasmo é também, em certo sentido, o último dos goliardos”.4 Nas páginas de Rouanet, aparece a silhueta de um “vagabundo exercendo sua soberania intelectual por toda a Europa, o cérebro, o coração e a consciência do seu tempo, correspondendo-se com reis, imperadores e papas, desfechando dardos mortíferos contra padres corruptos e reformadores fanáticos, invencível „campeão da verdade‟, nas palavras de Rabelais, armado apenas com as armas da razão e da ironia”.5 Na obra destinada a criticar a Igreja, mas de modo diverso do de Lutero, e principalmente a visão escolástica da filosofia, a alegoria da loucura começa seu autoelogio proclamando: Embora os homens costumem ferir minha reputação e eu saiba muito bem quanto o meu nome soa mal aos ouvidos dos mais tolos, orgulho-me de vos dizer que esta Loucura, sim, esta Loucura que estais vendo é a única capaz de alegrar os deuses e os mortais [...] Sou eu mesma, como vedes; sim, sou eu aquela verdadeira distribuidora de bens, a que os latinos chamam Stultitia e os gregos, Moria [...] Se há alguém que desastradamente se tenha iludido, tomando-me por Minerva ou pela Sabedoria, bastará olhar-me de frente, para logo me conhecer a fundo, sem que eu me sirva das palavras, que são a imagem sincera do pensamento. Não existe em mim simulação alguma, mostrando-me eu por fora o que sou no coração (EL, p.1316). Filha de Plutão e Neotetes, a juventude, “a mais bonita e alegre ninfa do mundo” (EL, p.19), Loucura conta ter sido amamentada por Mete, a embriaguês e Apédia, a imperícia; e ter como companheiras as ninfas: Philautia, o amor-próprio, Kolaxia, a adulação, Lethes, o esquecimento, Misoponia, a languidez, Hedoné, a volúpia, Ania, a irreflexão, Trophis, a delícia; e os deuses Komo, o riso, e Nigreton Hypnon, o sono profundo. 4 5 CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Vol. 2. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985; p.406. ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do iluminismo; p.278.
  • 6. 6 “A meu ver, loucura é o mesmo que sabedoria” (EL, p.23), revela a insensata dama, pródiga em auto louvar-se, “só a loucura tem a virtude de prolongar a juventude e retardar a malfadada velhice” (EL, p.27). A partir da definição dos estóicos, segundo a qual “sábio é aquele que vive de acordo com as regras da razão, e louco, ao contrário, é o que se deixa arrastar ao sabor de suas paixões” (EL, p.31), Loucura afirma que Júpiter, com receio de que a vida do homem se tornasse triste e infeliz aumentou a dose das paixões e legou à razão apenas um cantinho na cabeça, deixando todo o resto do corpo entregue à confusão e a desordem. E Plutão hesitou se deveria incluir a mulher no gênero dos animais racionais ou irracionais, não porque a mulher fosse um bicho, mas por sua imensa dose de loucura. “Se, porventura, alguma mulher meter na cabeça a idéia de passar por sábia só fará mostrarse duplamente louca [...] E isso porque, segundo o provérbio dos gregos, o macaco é sempre macaco, mesmo vestido de púrpura. Assim também a mulher é sempre mulher, isto é, sempre louca” (EL, p.32), pensava o deus. Entretanto, mesmo sendo “um animal inepto e estúpido”, a mulher sabe, alegre e suavemente, “temperar com sua loucura o humor áspero e triste” do homem (EL, p.32). Na misoginia aí presente, ressoam ecos do neoplatonismo cristão que via em Eva, como alegoria do corpo e da sensibilidade, a raiz de todos os vícios e loucuras. E das possíveis conseqüências públicas de tal posição, Erasmo – pela boca de Loucura – defende-se antecipadamente: Não quero, todavia, acreditar jamais que o belo sexo seja tolo ao ponto de se aborrecer comigo pelo que eu lhe disse, pois também sou mulher, e sou Loucura. Ao contrário, tenho a impressão de que nada pode honrar tanto as mulheres como o associá-las à minha glória, de forma que, se julgarem direito as coisas, espero que saibam agradecer-me pelo fato de eu as ter tornado mais felizes do que os homens (EL, p.33). O auto-elogio de Loucura é atravessado por ambigüidades nem sempre elogiosas. Por exemplo, ao falar da guerra, para mostrar que tudo o que nela poderia haver de célebre, estupendo e glorioso é obra sua, afirma que “os parasitas, os proxenetas, os ladrões, os sicários, os boçais, os estúpidos, os falidos” podem aspirar muito mais à imortalidade da glória guerreira do que os dedicados à contemplação. E recorre à teoria de Aristóteles, segundo a qual a efervescência e a densidade do sangue produzem a força, a audácia e também a estupidez, e, distintamente, a frieza e sutileza produzem a fraqueza, a pusilanimidade e o talento (EL, nota 36). Recorda ainda que Arquíloco gabava-se pelo mérito de, tão logo avistou o inimigo, ter abandonado o escudo para correr em fuga mais
  • 7. 7 depressa. Loucura parece assim estar presente tanto nos audaciosos e tolos quanto nos covardes talentosos. O texto insiste na idéia de que há algum teor de loucura no motor de toda ação humana e de que a loucura é mais divertida e, por isso, capaz de mover o ânimo com mais facilidade do que os discursos sóbrios. Em seu auto-elogio, Loucura ressalta que basta ela aparecer para que as fisionomias se transformem, basta sua presença para conseguir o que os retóricos “mais valentes” mal obtém com seus longos discursos, isto é, expulsar das almas o tédio, o vazio e a tristeza. Se isto é ser louca, arremata a Dama, “convém-me às mil maravilhas”. Definir – “encerrar a idéia de uma coisa nos seus justos limites” – e dividir – “separar uma coisa em suas diversas partes” – não lhe convêm posto que seu poder “estende-se a todo o gênero humano” (EL, p.16). Ridicularizando o estoicismo, Loucura zomba também dos filósofos afirmando que “os bobalhões dos estóicos, que se reputam tão próximos e afins dos deuses” (EL, p.21), a ela recorra se quiser tornar-se pai: Dizei-me, por favor: serão, talvez, a cabeça, a cara, o peito, as mãos, as orelhas, as partes do corpo reputadas honestas, que geram os deuses e os homens? Ora, meus senhores, eu acho que não: o instrumento propagador do gênero humano é aquela parte, tão deselegante e ridícula que não se pode lhe dizer o nome sem provocar o riso. Aquela, sim, é justamente aquela a fonte sagrada de onde provêm os deuses e os mortais (EL, p.22). Erasmo apresenta diversas formas de loucura: às vezes a condena, outras vezes exalta seu valor, às vezes a revela como ilusão humana, e outras como elemento indispensável à vida. O elogio irônico traz registros de elogios reais e também de afirmações parcialmente verdadeiras, parcialmente satíricas. Sempre portadora de conhecimentos que neutralizam o prosaísmo, a personagem investe contra tudo o que se antepõe à compreensão mais profunda e, simultaneamente, defende a necessidade de fantasia e ilusão. Em inspirada passagem, pergunta: Se alguém se aproximasse de um cômico mascarado, no instante em que estivesse desempenhando o seu papel, e tentasse arrancar-lhe a máscara para que os espectadores lhe vissem o rosto, não perturbaria assim toda a cena? Não mereceria ser expulso a pedradas, como um estúpido e petulante? No entanto, os cômicos mascarados tornariam a aparecer; ver-se-ia que a mulher era um homem, a criança um velho, o rei um infeliz e Deus um sujeito à toa. Querer, porém, acabar com essa ilusão importaria em perturbar inteiramente a cena, pois os olhos dos espectadores se divertiam justamente com a troca de roupas e das fisionomias. Vamos à aplicação: que é, afinal, a vida humana? Uma comédia [...] Para dizer a verdade, tudo neste mundo não passa de uma sombra e de uma aparência, mas o fato é que esta grande e longa comédia não pode ser representada de outra forma (EL, p.49).
  • 8. 8 A visão do mundo como palco onde a humanidade desempenha papéis é tão antiga quanto o próprio teatro. Platão, no Filebo (50b), menciona “a tragédia e a comédia da vida”, onde as dores e os prazeres estão misturados; nas Sátiras de Horácio, o homem aparece como um fantoche, e na Sátira Terceira, Livro I, pretende-se provar que quase todos os homens são loucos; em uma das Epístolas (Ep.,80,7), Sêneca reflete sobre “esta farsa da vida humana, que nos designa papéis, os quais desempenhamos mal”: “hic humanae vitae mimus, qui nobis partes, quas male agamus, adsignat”6. “Quando em vida, então em cena”, “cum in vita, tum in scena”, registrou Cícero (Cato maior, XVIII, 65)7. Durante o século XVI, a metáfora da scena vitae reaparece, com força, como theatrum mundi: na Alemanha, Lutero, o adversário visado por Erasmo, considerava a história como uma espécie de comédia de Deus (Spiel Gottes); na França, Ronsard escreveu que “o mundo é um teatro e os homens, atores. A Fortuna é diretora e prepara as roupas, e da vida humana, os céus e os destinos são espectadores” (“Le monde est un théâtre, et les hommes acteurs./ La Fortune est maîtresse de la scene/ Apprête les habits, et de la vie humaine/ Les cieux et les destins en sont les spectateurs”).8 Totus mundus agit histrionem, era a divisa do famoso Globe Theatre, onde um personagem shakespeareano comparava o mundo ao palco e homens e mulheres a atores, “all the world’s a stage,/And all the men and women merely players” (As you like it, II, VII, 141-142) 9. E na Espanha, no século seguinte ao de Erasmo, o theatrum mundi é elemento fundamental nas obras de Cervantes, Baltasar Gracián e, sobretudo, Calderón de la Barca. No teatro do mundo, a desmedida dama descrita por Erasmo revela as máscaras e, assim, a verdadeira face dos que sob elas se escondem e, mais ainda, a comédia e tragédia da vida, ao mesmo tempo em que mostra a necessidade do palco e dos atores. Loucura representa a verdade. Talvez por isso, “a loucura tem uma força maior do que a razão, aquilo que não se pode conseguir com nenhum argumento se obtém com um chiste” (EL, 6 SÉNÈQUE. Lettres a Lucilius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1965; p.88. 7 CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P.Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955; p.171. 8 RONSARD, apud CURTIUS, E.R. Literatura européia e Idade média latina. Trad. T. Cabral e P. Rónai. São Paulo: Edusp, 1996; p.192-193. A tradução é de responsabilidade minha, como também o são as anteriores e as próximas. 9 SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Work. New York: Barnes & Noble, 1994; p.622.
  • 9. 9 p.95). A possível superioridade do gracejo sobre a argumentação para apresentar a verdade é semelhante àquela das obras de arte, capazes de produzir expressões não enfeitiçadas pelo desejo de um fundamento ontológico a ser usado como critério. Nas obras de arte, a verdade aparece como ficção, e na filosofia pode aparecer como loucura: em expressões que produzem um sentido tão sutil que nem mesmo existia antes de ser expresso. Na Dialética Negativa10, Adorno declara preferir os loucos aos tolos: Aux sots je préfère les fous (“A semelhança da alteridade”, DN, p.404). Tolice seria não perceber que “representado na mais interior das células do pensamento está o que não é pensamento” (“Auto-reflexão da dialética”, DN, p.408). A razão sábia sabe-se portadora de um substrato irracional. E trágico é o reconhecimento do limite irredutível posto por tal percepção ao pensar, i.e, a autoconsciência do pensamento relativa a suas limitações é trágica, no sentido forte do termo. Parece-me pertinente, portanto, pensar a hipótese de que, hoje em dia, considerando que o trágico e o cômico se entrelaçaram – sobretudo na dramaturgia e na literatura –, talvez seja mais rico perceber como oposto complementar do trágico, nas reflexões filosóficas, não o cômico, e sim o crítico. E vice-versa. Proponho então que, em analogia com o clássico par necessidade e liberdade, acolhamos o conhecimento trágico e a Teoria Crítica como opostos complementares. Para esclarecer melhor a terminologia, vale lembrar que, segundo Horkheimer11, a teoria crítica é uma forma de conhecimento que se distingue da teoria tradicional pela forma específica de se relacionar com o objeto: não se trata apenas de mudar de objeto e sim de perceber os limites cognitivos da teoria tradicional. Neste sentido, a Teoria é Crítica no sentido kantiano do termo, quer dizer, ciente de seus próprios limites. Ela critica a si e as condições sociais determinantes para a teoria e para os fatos, nos quais se incluí. Constitui-se, portanto como uma forma de hermenêutica e interpretação. A interpretação crítica da práxis social, para ser verdadeira, ao mesmo tempo em que dissolve as necessidades aparentes, implica a afirmação trágica de uma necessidade constitutiva. 10 ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B.Ashton. New York: The Seabury Press, 1979. Citarei como ND. 11 HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica” em Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A.Malagodi et al.. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983.
  • 10. 10 Para abandonar a idéia idealista de uma reconciliação absoluta é necessário à teoria crítica o conhecimento trágico, sem o qual poderia considerar-se portadora de uma liberdade capaz de ultrapassar todas as necessidades e recair no ideal romântico de um saber transparente, julga Christophe Menke, no ensaio “Teoria Crítica e Conhecimento Trágico”. E este último, sempre entrelaçado com o reino feroz da necessidade, sem a crítica à teoria corre o risco de deixar-se sufocar pelos limites percebidos e transformar-se em aceitação conformista do sofrimento e da infelicidade ou em adoção – não menos conformista – de um relativismo randômico. Em outras palavras, no terreno da inteligibilidade, o trágico está ligado à existência de limites irredutíveis inerentes a todo processo de pensamento – e de sua enunciação – que se vê, diante disso, forçado a abrir mão das confortáveis idéias de totalidade, absoluto, fundamento último, e outras do mesmo campo semântico, e a apresentar cesuras e demarcações. Quanto à crítica, cabe-lhe atuar no interior dessa instância reflexiva, tragicamente delimitada, apresentando parâmetros capazes de neutralizar a idéia do “vale tudo”. Enquanto o trágico diz respeito à percepção e ao reconhecimento das delimitações, o crítico atua no interior da região delimitada. E pode ser enriquecedor para a teoria se a crítica mantiver viva a memória de suas ligações primevas com a sátira, a ironia, o chiste e outras manifestações do cômico. A filosofia pode ficar mais engraçada, ou graciosa. Apesar de ser esse um atributo talvez desconsiderado como pouco viril, vale lembrar que a Graça é sempre um ganho. Para concluir, recorro ao final do texto de Erasmo: “Se tagarelei demais e com demasiada ousadia, lembrai-vos de que sou mulher e sou a Loucura” (EL, p.157). BIBLIOGRAFIA: ADORNO, Th.W. Negative Dialectics. Trad. E.B. Ashton. New York: The Seabury Press, 1979. ARISTÓTELES. Poética. Lisboa: Calouste Gulbekian, 1991. CARPEAUX, Otto Maria. História da Literatura Ocidental. Volume 2. Rio de Janeiro: Alhambra, 1985. CICÉRON. Caton, l’ancien (de la vieillesse). Cato Maior, de Senectude. Trad. P.Wuilleumier. Paris: Les Belles Lettres, 1955.
  • 11. 11 ERASMO. Elogio da Loucura. Trad. Paulo M. Oliveira. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1972. HORÁCIO. Sátiras. Trad. Antônio L.Seabra. Rio de Janeiro: Ediouro, s/d. HORKHEIMER, Max. “Teoria Tradicional e Teoria Crítica”, em Benjamin, Habermas, Horkheimer, Adorno. Trad. Edgard A. Malagodi et al.. Coleção “Os pensadores”. São Paulo: Abril Cultural, 1983. KLEIN, Robert. A forma e o inteligível. Trad. Cely Arena. São Paulo: Edusp, 1998. MENKE, Christophe. “Critical Theory and Tragic Knowledge”, in RASMUSSEN, D.M. (Ed.) The Handbook of Critical Theory. Oxford: Blackwell Publishers, 1996. NIETZSCHE, Friedrich. O nascimento da tragédia. Trad. J. Guinsburg. São Paulo: Companhia das Letras, 1992. PLATON. Philèbe. Trad. Émile Chambry. Paris: Flammarion, 1969. ROUANET. “Erasmo, pensador iluminista”, em As razões do iluminismo. São Paulo:Cia das Letras, 1987. SÉNÈQUE. Lettres a Luculius. Lvcilio svo salvtem. Tome III. Trad. Henri Noblot. Paris: Les Belles Lettres, 1965. SHAKESPEARE, William. “As you like it”, em William Shakespeare. The Complete Works. New York: Barnes & Noble, 1994.