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INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA

                  UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO




             Mestrando: ANDRÉ LUIZ SICILIANO (IRI-USP)




                             ARTIGO:

“O CASO DE BELO MONTE NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS
              HUMANOS: ANÁLISE EM DOIS NÍVEIS”




                           São Paulo, SP

                           Outubro/2011
Índice




Resumo.....................................................................................................................................03

Objetivo....................................................................................................................................03

Introdução.................................................................................................................................04

Ambiente Internacional............................................................................................................06

Ambiente doméstico.................................................................................................................12

           Urgência energética......................................................................................................12

           Histórico de Belo Monte..............................................................................................14

           Outros interesses...........................................................................................................17

           A recente polêmica.......................................................................................................18

                      O Relatório dos Especialistas...........................................................................19

                      Ameaça aos Direitos Humanos (dos indígenas)...............................................20

Direitos Humanos.....................................................................................................................25

A Revogação da MC-382/10....................................................................................................26

Conclusão.................................................................................................................................27

Bibliografia...............................................................................................................................29
Resumo




       O governo brasileiro recentemente iniciou as obras para a construção da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará. A construção dessa usina irá
forçar a remoção de milhares de pessoas de suas terras, inclusive a remoção de índios de seus
respectivos Territórios Indígenas devidamente reconhecidos pelo governo brasileiro. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando proteger os direitos dos povos
indígenas, concedeu uma Medida Cautelar solicitando ao governo brasileiro a imediata
suspensão das obras da Usina, a fim de que fossem evitados danos irreparáveis aos direitos
humanos das comunidades indígenas afetadas. O resultado desse embate foi um enorme
retrocesso nas relações entre o governo do Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos e o possível enfraquecimento desta no sistema internacional.




Objetivo: O presente artigo tem o propósito de demonstrar que a análise minunciosa do
ambiente doméstico por uma instituição internacional é absolutamente necessária, não apenas
para se alcançar os objetivos pretendidos, mas, principalmente, para evitar que suas ações
desencadeiem resultados indesejados.




Palavras-chave: “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, “Belo Monte”, “Jogo de
dois níveis” e “Comunidades indígenas”.
Introdução




        A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), visando proteger
comunidades indígenas localizadas na Volta Grande do rio Xingu, concedeu, em 1º de abril
de 2011, Medida Cautelar de nº382/2010 (MC-382/10), solicitando ao governo brasileiro que
suspendesse as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE-Belo Monte), para que não
houvesse risco de dano irreparável às comunidades que serão atingidas pelas obras da usina.
No dia 05 de abril, o governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores,
emitiu nota de nº142/2011, dizendo que considerava a MC-382/10 injustificável e
precipitada. Dois dias depois, o governo brasileiro retirou a indicação do ex-ministro Paulo
Vannuchi como candidato brasileiro para integrar a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, o que foi percebido como uma retaliação brasileira ao órgão internacional 1. A
decisão do governo brasileiro foi considerada por parte da sociedade como truculenta e
equivocada, incompatível com o que se esperava de um governo democrático.

        O impasse verificado não se trata, evidentemente, de oposição entre interesses
doméstico e estrangeiro, pois a CIDH defende, legitimamente, interesses de comunidades
brasileiras, que, no entanto, não têm força suficiente no ambiente político interno. Ou seja, o
confronto ocorre entre grupos nacionais, sendo que um deles é representado pela CIDH, que é
órgão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos 2. Embora os interesses
em questão digam respeito apenas a brasileiros, sejam dos atingidos pelas obras da Usina ou
dos beneficiados por ela, a questão da defesa dos direito humanos é matéria de interesse




1
 “Cotado para ser o candidato do Brasil ao cargo de representante brasileiro na Comissão Interamericana de
Direitos Humanos (CIDH), vinculada da Organização dos Estados Americanos (OEA), o ex-ministro Paulo
Vannuchi teve a indicação retirada no último dia 7 de abril. A mudança ocorreu dois dias depois que a Comissão
emitiu uma recomendação para o governo brasileiro suspender as obras da Usina Hidrelétrica Belo Monte, no
Pará.” Fonte: Agência Brasil, in http://exame.abril.com.br/economia/brasil/noticias/brasil-retira-candidatura-
de-vannuchi-para-cargo-na-oea.
2
  O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto, basicamente, pelos seguintes
instrumentos normativos: Carta da OEA, 1948; Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem,
1948; Declaração de San Tiago, 1959; Protocolo de Buenos Aires, 1967; Pacto de San José da Costa Rica, 1969;
Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e Protocolo de San Salvador, 1988; Protocolo
de Cartagena das Índias, 1985; e Protocolo de Washington, 1992.
global 3, o que faz do episódio em tela um excelente exemplo de como a política doméstica e
as relações internacionais podem ser imbricadas.

        Analisando o caso concreto, pode-se concluir que a estratégia adotada pela CIDH
levou o governo a adotar uma postura de divergência 4, não acolhendo seus pedidos e
adotando postura de distanciamento da em relação a ela. Atentando para essa problemática, e
analisando a questão sob os dois níveis de análise (Putnam, 1988), o que restará demonstrado
a seguir é que: i) em nível internacional, o governo brasileiro não correspondeu às
expectativas no que se refere à proteção dos direitos humanos, adotando uma postura de
divergência em relação à CIDH; e ii) em nível doméstico, o governo brasileiro agiu de forma
coerente e previsível, em consonância com a vontade da maioria dos eleitores. Por sua vez, a
CIDH agiu de acordo com os novos valores da ordem global, mas ignorou o cenário e as
forças domésticas nacionais e permitiu que houvesse o embate direto com o governo
brasileiro. A divergência entre a postura do governo brasileiro e o pedido da CIDH fez com
que a CIDH revogasse sua Medida Cautelar, o que demonstra o desgaste a que a CIDH se
submeteu.

        Embora a reconsideração da edição da MC-382/10 demonstre uma inflexão acertada
por parte da CIDH, que se coloca em direção a uma base mais sólida para a futura decisão de
mérito do caso, resta evidenciado o enfraquecimento político da entidade no episódio.
Portanto, é imprescindível analisar os fatores que criaram essa situação para que se possa
buscar, no futuro, um posicionamento estratégico mais eficiente na defesa dos Direitos
Humanos no continente americano.




3
 Especialmente depois de ter sido objeto da Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10
de Dezembro de 1948. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”.
4
 O conceito de convergência e divergência aqui adotado é o utilizado por BOTCHEVA, Liliana e MARTIN,
Lisa. 2001. In “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies
Quarterly, vol. 45, nº 1. March.
Ambiente Internacional

          O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto pela Corte
Interamericana de Direitos Humanos, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos,
ambas pertencentes ao arcabouço institucional da Organização dos Estados Americanos 5, e
por diversos tratados específicos 6. Essa especialização temática em âmbito internacional
permitiu uma atuação mais precisa e mais efetiva para a proteção dos Direitos Humanos no
continente americano, que teve enorme projeção regional com o fim das ditaduras militares
na América Latina, no final do século passado. Historicamente, a CIDH atuou de maneira
exemplar em diversos casos, tais como no de Barrios Altos (Peru, 1991) e Araguaia (Brasil,
2001), em que as demandas foram levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com
ampla repercussão internacional e influência significativa, tanto política, quanto judicial, em
seus respectivos âmbitos domésticos.

          Entre o final do século XX e o início do século XXI, percebe-se a conformação de
uma nova ordem global 7, composta pela multiplicidade de instituições e de locais para o
diálogo, em que temas como direitos humanos, meio ambiente, normatização financeira,
dentre outros, tornam-se cada vez mais autônomos em relação aos Estados Nacionais. Os
padrões que sustentam essa ordem global, segundo Rosenau, podem ser divididos em três
níveis de atividade: i) o nível ideal, ou intersubjetivo, que seria o dos valores e das ideias; ii)
o nível comportamental, ou objetivo, que seria o da forma de agir; e iii) o nível agregado ou
político, que seria o da governança, das normas, das instituições, que orientam as políticas
decorrentes dos padrões das ideias e dos comportamentos. A ordem global, portanto,
apresenta-se como indivisível, pois seus três níveis se inter-relacionam, impedindo que
alguma causa, ou alguma consequência que se pretenda estudar, seja perfeitamente isolada.

          Desse modo, considerando a nova ordem global, em que homicídios, torturas,
desaparecimentos e cárceres promovidos por governos ditatoriais deixaram de ser a tônica na
realidade americana, a CIDH buscou ocupar um novo espaço de atuação, atendendo a


5
    Conforme Carta de Havanna, 1948 (Criação da OEA).
6
 Pacto de San José, 1969; Protocolo de San Salvador, 1988; Convenção sobre o Reconhecimento dos Direitos
Civis e Políticos à Mulher; Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, dentre outros.
7
 Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-
Otto (eds.). Governance without government: Order and Change in World Politics. Cambridge University
Press, 2000, pp. 1-29.
solicitações de minorias que se veem reprimidas pelos seus governos e cujos direitos
humanos estejam ameaçados. No Brasil, este novo posicionamento da CIDH se materializou
na defesa dos povos indígenas do Xingu perante o Estado brasileiro. Essa guinada é
pertinente e necessária, e condiz com os novos valores e desafios da humanidade, tais como o
desenvolvimento sustentável e a democracia cosmopolita 8, que, segundo Archibugi (2004),
consiste na ampliação e no aprofundamento da participação de cidadãos e de grupos de
pessoas em âmbito global, desencadeando certo enfraquecimento do Estado Nacional
enquanto representante legítimo e unitário do interesse das pessoas.

           O fenômeno observado no caso de Belo Monte demonstra que certas comunidades
interessadas em um número considerável e crescente de questões específicas não
necessariamente coincidem com as fronteiras territoriais dos estados, bem como que a
globalização produz novos movimentos sociais engajados em questões que afetam outros
indivíduos e comunidades, mesmo que estes estejam geograficamente e culturalmente muito
distantes de sua própria comunidade política. Desta forma, o framework observado no caso
concreto é o mesmo que o tratado por Rosenau (2000), quando identifica o processo de
Fragmegration 9, que consiste no quadro de fragmentação do Estado, cumulado com o de
integração de grupos sociais. A fragmentação se verifica quando os grupos e os indivíduos
deixam de ter no Estado a expressão legítima de seus interesses, de modo que passam a agir
de forma autônoma em defesa de seus interesses, que não mais são atendidos pelos Estados.

           Isso é exatamente o que se verifica na questão de Belo Monte, em que grupos
indígenas locais se manifestam contra a opinião e às iniciativas do governo brasileiro quanto
ao uso dos recursos da região da Volta Grande do Xingu, no Pará 10. Tais grupos, por sua vez,
identificam-se com outros grupos igualmente isolados em outros Estados, de modo que
ambos se unem para obter maior força, num movimento de integração entre os pares de
diversas regiões, ou nações. Observa-se, ainda, que esses indígenas brasileiros da região do
Xingu se uniram a indígenas da região de Rondônia e também do Peru 11 para, com maior


8
 Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of International Relations,
vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473.
9
 Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in a turbulent
world. Cambridge University Press, 2000, pp. 174-188.
10
     In: http://www.socioambiental.org/esp/bm/index.asp
11
     In: http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/7070
envergadura, manifestarem-se na esfera internacional 12 contra os projetos de uso de suas
terras pelos seus respectivos governos nacionais. Assim, temos a fragmentação dentro do
Estado (vertical) e a integração social (horizontal), tal como apontado por Rosenau. Nesse
contexto, provoca-se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que passa a ter o
dever de agir em defesa dos direitos humanos das minorias afetadas, no caso, de alguns povos
indígenas da região do rio Xingu.

           É de se observar que a governança existente a nível local não atendeu às demandas
deste mundo global, que clama por uma diligência muito maior no que diz respeito aos
direitos humanos. Destaque-se, entretanto, que não existe uma governança supranacional,
global ou regional, legitimada para resolver estas novas questões, de modo que se verifica um
desencontro entre a vontade da comunidade internacional e a operacionalidade da autoridade
local e, enquanto não houver convergência, uma irá se sobrepor à outra.

           Essa interação entre instituições domésticas e internacionais (Drezner, 2003) possui
duas dimensões: a primeira é a forma como as instituições internacionais são utilizadas para
influenciar a política doméstica, que pode ocorrer através do estabelecimento de pactos, da
coerção ou da persuasão (no caso, foi a tentativa de coerção materializada na MC-382/10); a
segunda dimensão define quais atores usam a instituição internacional para alcançar seus
próprios fins (em Belo Monte, foram as comunidades indígenas citadas na MC-382/10).
Entretanto, existe a possibilidade de atores externos usarem as instituições internacionais para
influenciar a política doméstica de outros países, o que também ocorre com frequência 13.

           Andrew P. Cortell e James W. Davis Jr., em artigo publicado em 1996 14, também
abordam o como as instituições internacionais podem ser usadas por agentes nacionais na
defesa de seus próprios interesses, com a finalidade de implementar mudanças domésticas
que sozinhos não teriam condições de realizar. Liliana Botcheva e Lisa L. Martin 15, por sua

12
     In: http://www.nytimes.com/2010/04/11/world/americas/11brazil.html?ref=world

13
  Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic Politics”. Locating the
Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International Institutions. Ann Arbor: Michigan University
Press, 2003, pág. 02.
14
  Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The domestic impact
of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40, pp. 451-478.
15
  BOTCHEVA, Liliana; MARTIN, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and
Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001.
vez, analisam que tipo de efeitos as instituições internacionais podem produzir sobre os
Estados em determinado tipos de circunstâncias, classificando esses comportamentos como
convergentes ou divergentes. Ambos os trabalhos se debruçam sobre a interação crescente
entre as esferas doméstica e global e sobre as variantes dessa interação, quando é maior ou
menor, quando é mais ou menos eficiente e sob quais justificativas.

       Botcheva e Martin (2001) chamam a atenção para um outro aspecto da interação entre
as esferas doméstica e internacional, que é o da influência das instituições internacionais na
postura que os Estados adotam perante o sistema internacional. Segundo as autoras, existem
casos em que as instituições incentivam a cooperação, influenciando os Estados a cooperarem
em circunstâncias em que eles normalmente encontrariam grandes dificuldades para isso, de
modo a gerar um efeito de convergência entre os atores internacionais. Em outros casos, em
que os Estados não percebem tão fortemente esse incentivo à cooperação, simplesmente
optam por não cooperar e verifica-se o efeito de divergências entre eles.

              Para que haja convergência, argumentam, é preciso que os Estados percebam a
existência de externalidades substanciais que podem gerar altos custos de deserção, pois
dessa forma, haveria incentivo para a cooperação. No caso em tela, o histórico recente do
Brasil em temas ligados aos direitos humanos (postura do STF no caso Araguaia, que não
incorporou no ordenamento juridico brasileiro a tipificação de desaparecimento forçado, ou
mesmo a postura brasileira no caso Batisti), certamente é um bom indicativo de que a
retaliação moral externa não é considerada uma externalidade substancial. Assim, além das
baixas externalidades no cenário internacional, haveria um enorme custo doméstico
decorrente de eventual interrupção da obra da UHE-Belo Monte, que será mais bem
detalhado a seguir quando for analisado o ambiente doméstico.

       Quanto às baixas externalidades no cenário internacional, vale esclarecer que não se
trata de relativizar os direitos humanos enquanto conjunto de valores, enquanto marco teórico
ou enquanto instituto normativo, mas de compreender que em cada situação a abordagem
deverá ser feita de modo específico, visando obter um resultado ótimo. Há que se considerar,
por exemplo, que lidar com um problema relacionado aos direitos humanos em Honduras é
muito diferente do que lidar com um problema semelhante no Peru, no Brasil, ou no Canadá.
Há numerosas diferenças que tornam cada situação particular, tanto em nível doméstico como
em nível internacional, tais como, o histórico de cooperação de cada Estado com as
instituições internacionais, o comprometimento de cada Estado com o Sistema Internacional
de Proteção aos Direitos Humanos, o espaço para diálogo em âmbito doméstico, a existência
e a efetividade de instituições internas, ou, mesmo, o poder de cada Estado no sistema
internacional.

        Assim, uma atuação em Honduras provavelmente exigirá uma intervenção externa
consentida, dada a falta de estrutura mínima para uma resolução eficiente, enquanto que no
Canadá o simples questionamento promovido por uma instituição internacional poderá levar
ao debate de ideias que, provavelmente, possibilitará uma solução satisfatória em âmbito
doméstico. Entretanto, se a discussão fosse sobre proteção aos Direitos Humanos nos Estados
Unidos, dado o histórico norte-americano de adotar uma postura autonomista e soberanista,
bem como o seu incomparável poder internacional, provavelmente, nenhuma atitude adotada
pelo Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos seria eficiente.

        E é nessa complexidade que a Governança Global 16 se desenvolve, com a
multiplicidade de atores e de instituições que se inter-relacionam, com pesos diferentes,
buscando certa padronização de valores, conforme a possibilidade de cada local. Significa
dizer que, dentro dessa multiplicidade, cada instituição ou Estado deve considerar não apenas
os fatores que lhes são intrínsecos, mas também os fatores que influenciam e determinam a
atuação dos outros atores com quem interagem, sob pena de provocar reações adversas e
indesejadas.

        Observa-se, no caso de Belo Monte, que dois fatores foram determinantes para que a
reação do governo brasileiro à solicitação da CIDH fosse das mais indesejadas, um externo e
um doméstico: o primeiro, foi a inovação no padrão de atuação da CIDH, que
originariamente atuava em casos de torturas, homicídios, chacinas, desaparecimentos,
cárceres, etc. e passou a atuar com a questão da proteção a povos nativos e da defesa do meio
ambiente, fato reconhecido pelo próprio secretário-geral da Organização dos Estados
Americanos, José Miguel Insulza:

                           “Quando a comissão de direitos humanos começou a atuar nesses
                           temas, quase como um tribunal, ainda que não tenha força
                           obrigatória, os temas de que falava eram homicídio, tortura,
                           desaparecimento, cárcere, etc. O surgimento dos temas ambientais e

16
  Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”. Global
governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no 2. April-June 2006, pp.
185-203.
dos povos nativos abre um espaço que deve ser tratado com muito
                            cuidado. Não creio que nenhum governo democrático tenha a
                            intenção de criar problemas aos seus povos nativos.

                            Acho que o pior que se pode fazer neste caso é exacerbá-lo e tratar o
                            tema como se um fosse a vítima, e os outros a ditadura, como ocorreu
                            a princípio. Espero que Belo Monte sirva para calibrar bem a coisa e
                            entender que, quando se trata de projetos dessa envergadura, a
                            CIDH pode perfeitamente chegar aos governos para dar assessoria,
                            opiniões, mas não tratar como um tema semijudicial.” 17




             É preciso fazer uma consideração importante sobre essa mudança de atuação, pois se,
por um lado, essa nova postura reflete adequadamente os novos valores dessa ordem global,
por outro, ainda não se sabe qual o tamanho e a força do apoio que a comunidade
internacional dará à CIDH em sua nova modalidade de atuação. Percebe-se que, certamente,
não será igual aos dados aos temas anteriores. Prova disso é o discurso do secretário-geral da
OEA, que acredita que a postura da CIDH foi equivocada e que deve ser revista:




                            “Tenho a impressão de que o governo brasileiro apresentou alguns
                            antecedentes e que provavelmente a comissão revise a sua decisão.
                            Agora, como vai revisar eu não posso dizer, porque não estou
                            autorizado. Espero que o faça, sinceramente. Acho que quando
                            falamos de algo com a envergadura de Belo Monte, as coisas
                            provavelmente teriam que ser vistas e conversadas com muito mais
                            calma, essa é a minha opinião.” 18




17
  José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA
deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011.
18
     Idem.
O segundo fator determinante para a reação do governo brasileiro à solicitação da
CIDH foi o elevadíssimo custo doméstico que a decisão de suspender as obras do AHE-Belo
Monte acarretaria e que, muito provavelmente, não foi previamente identificado pela CIDH.




Ambiente doméstico

A urgência energética




             A potência instalada do Sistema Integrado Nacional (SIN), que é a potência máxima
de energia elétrica que hipoteticamente se poderia produzir, como é sabido, deve
corresponder, aproximadamente, ao dobro da demanda nacional, pois a produção média real
corresponde a pouco mais da metade da capacidade instalada e isso se deve a diversos
fatores, seja ao regime de chuvas, ao regime de ventos, à manutenção de equipamentos, à
impossibilidade técnica de cada planta operar constantemente em capacidade plena, etc. A
potência instalada no SIN prevista para dezembro de 2011 é de 118.375Mw 19 e a demanda
energética do SIN prevista para o mesmo período é de aproximadamente 58.000Mw 20. Ou
seja, em 2011, não sobra, nem falta, energia elétrica ao SIN. O país, entretanto, experimenta
crescimento regular e o parque energético precisa ser ampliado para que não haja o
estrangulamento do sistema. Para o ano de 2019, a demanda prevista é de 85.000Mw 21 (já
descontada a redução ocasionada pela crise econômica mundial de 2008/2009), o que
significa que a potência instalada deverá ser de aproximadamente 170.000Mw, ou seja, o
Brasil precisa acrescentar 50.000Mw ao seu sistema nos próximo 7 (sete) anos.

             A produção de energia elétrica estimada em Belo Monte é de mais de 11.000Mw/h (3ª
maior do mundo), em uma região cujo regime de chuvas é inverso ao do Sul/Sudeste. Ou
seja, quando o sistema hidrelétrico do Sul/Sudeste está sob o período de chuvas, com
reposição dos reservatórios e aumento da capacidade de geração de energia, o sistema
hidrelétrico do Xingu estará no período de seca. Quando o sistema hidrelétrico do sudeste

19
  Projeção apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia da USP, em
palestra realizada em 08 de junho de 2011, no auditório da Biologia, do campus da Cidade Universitária-SP.
20
     Idem.
21
     Idem.
estará sob o regime de seca, com restrições energéticas, o do Xingu estará no de chuvas, com
abundante produção energética. Além disso, o custo da energia hidroelétrica ainda é o mais
vantajoso dentre todos os modelos, custando R$78,00/MWh 22. Outras vantagens das usinas
hidroelétricas para o SIN é que sua produção energética é relativamente intensiva, uma única
usina produz grande quantidade de energia, e trata-se de uma energia considerada limpa, com
baixa emissão de gases causadores do efeito estufa no longo prazo.

             Em relação à produção de energia eólica, é importante esclarecer que ela representa,
hoje, 0,5% de toda a energia produzida no país, ou seja, 900Mw/h. Estima-se que em 2015,
caso todos os 164 (cento e sessenta e quatro) projetos existentes sejam concluídos e entrem
em operação, teremos 5.300Mw/h (ou 4%) 23. Além disso, vale salientar que, tal como as
chuvas, os ventos também não são constantes e que, via de regra, quando há chuvas, não há
ventos; quando há ventos, não há chuva. Ou seja, a quantidade de energia elétrica planejada
de origem eólica é muito pequena em relação às necessidades do país.

             Em verdade, há uma enorme defasagem no planejamento de geração energia eólica no
Brasil. Caso tivesse ocorrido a opção política 24 de se investir em energia eólica há 10(dez) ou
15(quinze) atrás, hoje talvez fosse possível considerar substituir a energia que Belo Monte vai
agregar ao SIN por energia eólica, mas o fato é que esse investimento não ocorreu e não é
possível atender à demanda prevista para os próximos 7 anos sem que Belo Monte entre em
operação.

             A energia nuclear, igualmente, represente muito pouco ao SIN, porque a entrada em
funcionamento da Usina Nuclear de Angra III irá somar apenas mais 1.400Mw. Além disso,
o recente episódio de Fukushima torna politicamente impraticável inverter elevado montante
de recursos na produção de energia nuclear. Como se percebe, sem muita dificuldade, a
questão energética no Brasil, quanto ao aumento da capacidade instalada, é crítica. E outras
fontes de energia renovável, como a eólica ou nuclear, produzem muito pouca energia
quando comparadas à hidroelétrica. Existem alternativas mais poluentes, como as




22
     Idem.
23
     Folha de S. Paulo, 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5.
24
  Há dez anos, o custo do MW/h eólico era significativamente mais alto do que o de hoje, de modo que sua
escolha seria uma opção política, não econômica.
termelétricas, mas cada vez mais se torna impopular projetar a produção futura de energia a
partir de fontes não renováveis.

        Some-se a isso o peso político que envolve o tema e os interesses econômicos, pois
considerando que a construção de hidroelétricas será realizada por empresas como Queiroz,
Galvão, Camargo Corrêa, OAS, dentre outras, pode-se perceber o quanto a tramitação no
Congresso Nacional será influenciado pelo lobby dessas grandes empreiteiras. A energia
eólica ainda carece dessa “virtude” política. Acrescente-se, ainda, o episódio do apagão
elétrico de 2001, que permanece na memória do eleitorado nacional e, evidentemente,
transforma a questão da infraestrutura para produção de energia elétrica um dos temas mais
caros aos políticos brasileiros.




Histórico de Belo Monte

        A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte 25 vem, há muitos anos,
despertando fervorosas discussões nos meios políticos e acadêmicos brasileiros,
recrudescendo posições desenvolvimentistas, humanitárias, preservacionistas, nacionalistas e
tantas outras. Justamente por esta questão ser tão complexa, talvez seja possível explorar suas
diversas facetas e revelar o entrelaçamento dos interesses que compõe o quadro que se
esconde por baixo de posições dogmáticas e, às vezes, ingênuas. O projeto original,
denominado Kararaô, foi produzido ainda no período militar e previa um reservatório 3(três)
vezes maior, com maior aproveitamento hidrelétrico, mas com impactos ambientais e sociais
inaceitáveis.

        Para compreender os conflitos despertados por esse projeto é preciso analisar com
mais cuidado a região em que está inserido: a área em litígio situa-se ao norte do estado do
Pará, próximo a Altamira, a Carajás, a Serra Pelada e ao sul da rodovia Transamazônica (BR-
230) e está inserida em uma região de enorme riqueza mineral, pois nessa região se
encontram as maiores jazidas de minérios metálicos do país 26 e, um pouco ao sul, encontram-
se impressionantes reservas medidas de minério de estanho, manganês, níquel, cobre e


25
    Vídeo institucional de apresentação do projeto do AHE de Belo Monte, produzido pelo governo:
http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g
26
  Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil, Ed. Moderna, 1ª
Ed., 2005. pág.67.
bauxita 27. A chamada Volta Grande do Xingu, que será afetada pelas obras da Usina
Hidrelétrica de Belo Monte, encontra-se situada entre a Serra dos Carajás e o Rio Amazonas,
distante aproximadamente 200 km de cada. Esta é uma região de Floresta Amazônica,
situada no Planalto da Amazônia Oriental, também riquíssima em sua diversidade
biológica 28, onde vivem entre 2822 29 e 6000 30 índios e onde estão demarcadas 8 Terras
Indígenas 31.

             Conforme dados informados no Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento
Hidrelétrico de Belo Monte (EIA-AHE Belo Monte, 2009) 32, a área alagada será de
aproximadamente 400km2, dos quais cerca de 200km2 são naturalmente alagados nos
períodos de cheia dos rios. Isso significa que o lago previsto para o aproveitamento
hidrelétrico em pauta é 1/3(um terço) do tamanho daquele inicialmente previsto, na década de
1980, em projeto rejeitado pela sociedade brasileira à época. A capacidade de
Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (AHE - Belo Monte) prevista é de
11.233,1MW 33, permitindo gerar 4.796MW médios de energia firme 34. A média de energia
firme é a quantidade média de energia mensal garantida ao longo de um ano, pois os períodos
de chuva e de estiagem influenciam significativamente na produção energética, havendo
maior produção durante as chuvas e menor durante a estiagem. A produção mínima mensal
produzida ao longo do ano é a chamada média de energia firme, ou seja, a quantidade mensal
com a qual o SIN poderá contar ao longo do ano, independente da regularização da vazão do
rio Xingu.


27
     Idem.
28
  Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia do Brasil
(Encarte).
29
     EIA – Belo Monte, 2009, p.23/24, vol. 23.
30
  No EIA, estima-se 3,4 pessoas por família, em Santos, Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M.,
Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte, Belém,
2009, pág.29, estima-se 7 pessoas por família.
31
     Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, pág. 30;
32
  O nome “Usina Hidrelétrica” foi substituído por “Aproveitamento Hidrelétrico”, ambos significam o conjunto
de obras que serão realizados na região do Volta Grande do Xingu para obtenção de energia elétrica proveniente
da força das águas do rio Xingu.
33
     Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, Eletrobrás e Ministérios de Minas e Energias, Maio/2009, p.07.
34
  XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte
– Evolução Dos Estudos. P. 01.
Ainda segundo o governo, o AHE-Belo Monte será integrado ao SIN, permitindo que
a energia produzida seja direcionada para outras regiões do país, de modo que todas as
regiões do país se beneficiem do projeto. Para compreender os significados desses números,
basta dizer que a capacidade instalada de Itaipu, que é uma usina binacional (apenas 50% é
nacional), é de 14.000MW (com 7.590MW médios de energia firme 35). Os projetos existentes
para aproveitamento do potencial energético eólico do Nordeste brasileiro, segundo o Centro
Brasileiro de Energia Eólica, em torres de 50 metros, somam aproximadamente
5.300MW/h36.

        Outro aspecto relevante, é que a região que será afetada pelas obras do AHE-Belo
Monte abriga uma população bastante heterogênea. Historicamente, o vale do Xingu e a
região de Altamira se destacam por importantes fluxos migratórios 37, que envolve: i) cerca de
9 (nove) povos indígenas nativos, que habitam Terras Indígenas, quase todas regularmente
demarcadas; ii) população ribeirinha, descendentes de imigrantes nordestinos do ciclo da
borracha, que sobrevivem da caça e da pesca; iii) população rural e urbana da periferia da
cidade de Altamira; e iv) população indígena em isolamento voluntário, que são grupos
nômades que perambulam pela região e de raríssimo contato com os demais povos 38. A área
afetada inclui Terras Indígenas (TI), Reservas Extrativistas (Resex), áreas rurais e urbanas
dos municípios de Altamira, de Vitória do Xingu, de Senador José Porfírio e de Anapu.

        Essa diversidade não se reflete apenas na composição étnica, mas também nos
constantes conflitos de interesse na região, desde a exploração de minérios à pecuária, da
coleta seletiva à indústria madeireira, dos direitos dos povos indígenas de permanecerem em
seu habitat, preservando sua cultura e seus costumes, ao garimpo ilegal e predatório 39. No


35
  Dados publicados por Itaipu Binacional, em junho de 2011, referente a média dos últimos cinco anos,
disponível em: http://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/projecao-itaipu-devera-fechar-2011-com-
mais-de-90-milhoes-de-mwh
36
    Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica-15.php
37
  Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise crítica do EIA
do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009, p.29.
38
   Vídeo utilizado como prova pela sociedade civil acerca de existência de povos em isolamento voluntários:
http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI
39
       Outro caso recente de garimpo ilegal em reservas indígenas na Bacia do Xingu, em
http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2010/11/10/garimpo-de-ouro-ilegal-nas-terras-dos-indios-kaiapos-fechado-
no-para-922993933.asp
caso de Belo Monte, embora as comunidades indígenas do Xingu tenham direitos legítimos a
defender, existem muitas outras comunidades e muitos outros interesses que se apropriam dos
argumentos e da discussão, o que torna a situação, politicamente, significativamente mais
complexa.




Interesses outros

           Dentre os que defendem a construção da UHE-Belo Monte, há importantes indústrias
eletrointensivas ligadas a exploração mineral, especialmente a do alumínio. Conforme
apontado acima, a região é riquíssima em minérios, mas apresenta como principal entrave ao
seu desenvolvimento a limitada oferta de energia. Não é coincidência que as indústrias
eletrointensivas – não apenas às ligadas à produção de alumínio, mas também as ligadas à
indústria de cimento, e à produção siderúrgica - estão entre os principais investidores no setor
elétrico do país, e as empresas que formam o consórcio que disputou o leilão de Belo Monte
comprovam isso: Vale, Neoenergia, Votorantim Alumínio e Andrade Gutierrez 40. Glenn
Switkes, que foi coordenador da ONG International Rivers Network, já alertava, em 2002,
que as empresas de alumínio utilizam 8% de toda a energia elétrica do país e cerca de 2% no
mundo. Se falarmos em alternativas energéticas, não existe uma alternativa para uma grande
fábrica de alumínio.

           O mesmo autor, em trabalho apresentado em 2003, esclareceu que:

                            “Mais da metade da produção mundial de alumínio depende das
                            hidrelétricas para fornecer a imensa quantidade de energia necessária
                            ao processo de eletrólise, que foi desenvolvido separadamente por
                            Charles Martin Hall e Paul Héroult em 1886. O processo transforma a
                            alumina (óxido de alumínio) em alumínio fundido. A enorme
                            quantidade de energia utilizada na indústria do alumínio é o principal
                            fator que determina a rentabilidade das novas usinas de fundição.
                            Embora o minério de bauxita e a alumina possam ser enviados a
                            qualquer refinaria de alumínio primário no mundo inteiro a custos
                            accessíveis, a energia elétrica não pode ser transportada para outros

40
     http://www.socioambiental.org/esp/bm/esp.asp
continentes. Sendo assim, o acesso à energia de baixo custo é um fator
                         determinante para o estabelecimento de novas usinas de fundição. (...)
                         A indústria do alumínio é o maior consumidor mundial de energia
                         elétrica. (...) A produção dos lingotes de alumínio equivale à cerca de
                         7% de toda a energia consumida na indústria mundial.”
                         (Switkes, Glenn, 2003. A conexão hidrelétricas e alumínio, p.3)


        A construção da Usina de Belo Monte é um evidente aceno para que essas indústrias
eletrointensivas retomem os planos de investimentos no norte do Brasil, porque o país
oferecerá, em breve, energia suficiente e a baixo custo. O mercado compreendeu o gesto e,
não sem propósito, recentemente a Alcoa firmou um protocolo de intenções com a chinesa
China Power Investmient Corporation (CPI) para investir na região 41. Isso, na verdade, não é
fato novo, pois no caso de Tucuruí, inaugurada em 1984, cujo reservatório alagou área de
aproximadamente 2.860 km2, metade da energia gerada vai para as fábricas Alumar (São Luís
- Alcoa, Billiton, Alcan) e Albrás (Companhia Vale do Rio Doce, consórcio japonês inclusive
a Nippon Amazon Aluminum Company). Mais de 24.000 pessoas foram deslocadas, e houve
impactos sérios na qualidade de vida de milhares de pescadores e agricultores de várzea à
jusante. O povo indígena Parakanã foi reassentado duas vezes (devido a erros de engenharia
quanto ao cálculo da área de inundação da sua reserva). Os indígenas Gavião também foram
atingidos. Estima-se que as fábricas receberam entre US$193 milhões - $411 milhões por ano
em energia subsidiada 42.


A recente polêmica sobre Belo Monte


        No caso de Belo Monte, dois problemas substanciais foram levantados: 1- A produção
de um Relatório por especialistas que desqualificaria totalmente o EIA/RIMA apresentado
pelo governo e aponta a inviabilidade técnica, ambiental e social do projeto; e 2- Que haveria
grave ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas, que motivou um pedido de parte da
Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao governo brasileiro para a imediata
suspensão das obras.

41
  http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/01/18/alcoa-vai-explorar-projetos-de-aluminio-com-chinesa-cpi-
923538421.asp
42
  Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre a Indústria de
Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003. P.14.
Relatório de especialistas 43

        O Relatório, intitulado “Painel de especialistas – análise crítica do Estudo de Impacto
Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte”, foi produzido por especialistas
vinculados a diversas instituições de ensino e pesquisa, que identificam e analisam, de acordo
com a sua especialidade, graves problemas e sérias lacunas no EIA de Belo Monte. Trata-se
de um rico documento acadêmico, que desconstrói o Estudo de Impacto Ambiental e o
Relatório de Impacto ao Meio Ambiente produzidos pelo Governo. Apresenta críticas
contundentes, aponta deficiências metodológicas e imprecisões das mais diversas. Em que
pese tudo isso, a utilidade deste documento se demonstrou extremamente limitada.
        O primeiro equívoco, que de plano chama atenção, é que quando se intitula um
relatório de um Painel de Especialistas, supõe-se que haja especialistas em todas as áreas
cobrindo os mais diversos ramos do projeto. Entretanto, metade da equipe é composta por
biólogos (sete) e antropólogos (seis), tendo apenas 2 (dois) economistas, 2 (dois) cientistas
sociais, 1 (um) oceanólogo, 1 (um) médico, 3 (três) que não é possível identificar a formação,
1 (um) engenheiro elétrico, 1 (um) engenheiro mecânico que trabalha com geografia humana
e ocupação do espaço e apenas 1 (um) engenheiro civil. E aquilo que se poderia pressupor de
uma equipe com tal formação se confirma com a leitura do estudo, muita qualidade em
alguns aspectos (biológico e antropológico, especialmente), muito pouca em outras
(engenharia, especialmente), o que prejudica sobremaneira o potencial impacto do estudo na
sociedade.
        O segundo equívoco consiste no fato de o relatório apenas apontar os defeitos sem
oferecer melhores respostas. Por exemplo, ao demonstrar que o número de pessoas atingidas
está subestimado não se informa qual seria o número correto, ou seja, apenas aponta as
disparidades entre o estudo do governo e outros provavelmente mais precisos. Além disso, a
intencionalidade do discurso tão criticada pelos especialistas, está também fortemente
presente no próprio painel, pois é inegável que a motivação do painel, antes mesmo de ter os
trabalhos iniciados, era a de buscar argumentos para rejeitar os estudos do governo. Observa-
se que o painel é restrito a dizer que o estudo produzido pelo governo é impreciso, mas os
dados supostamente verdadeiros não são apresentados.




43
   O documento “Painel de Especialistas: Análise crítica do EIA-AHE Belo Monte” encontra-se disponível, na
íntegra, em: http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo_Monte_Painel_especialistas_EIA.pdf
Portanto, o melhor resultado que este painel de especialistas pode vir a produzir seria
convencer o governo a revisar seus estudos, provavelmente pelas mesmas pessoas que os
elaboraram, o que não iria alterar substancialmente o curso das coisas. Certamente, caso
houvesse melhor equilíbrio na composição da equipe de especialistas e se o relatório fosse
apresentado como um Estudo de Impacto Ambiental substitutivo, poder-se-ia obter um peso
político muito maior a favor da não execução da obra.
       Por fim, existe uma limitação que é intrínseca ao painel de especialista, qual seja, que
o painel apresentado não se ocupa do dilema que o governo enfrenta, apenas refuta os dados
técnicos do projeto que foi apresentado. É preciso esclarecer, contudo, que o governo,
juntamente com a deliberação do Congresso Nacional, ao decidir executar uma obra, adota
uma posição política, considerando diversos fatores de âmbito nacional, sejam eles técnicos,
econômicos ou sociais. Caso o painel de especialista oferecesse, por exemplo, uma
alternativa tecnicamente melhor para resolver o eminente gargalo energético do país,
conciliando isto à proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos das comunidades
indígenas, certamente se abriria um novo diálogo, pois a sociedade brasileira seria
apresentada a uma nova situação em que não haveria a dicotomia entre produção de energia e
o resguardo aos direitos humanos dos povos indígenas.
       Os especialistas que desenvolveram o painel, entretanto, não pretenderam resolver o
problema do país, o que teria sido uma contribuição infinitamente maior, mas apenas
ofereceram um ponto de vista técnico considerando a situação regional. Não ofereceram uma
alternativa viável e realista ao dilema político, limitaram-se a apresentar um crítica técnica,
permitindo, assim, que a decisão permanecesse na esfera política.



Ameaça aos direitos humanos (dos povos indígenas)

       A concessão da Medida Cautelar 382/2011 pela Comissão Interamericana de Direitos
Humanos despertou grande polêmica e por isso merece ser analisada também sob uma
perspectiva doméstica. O pedido da CIDH encaminhado ao governo brasileiro solicitava a
imediata suspensão do processo de licenciamento da UHE de Belo Monte e que se impedisse
a realização de qualquer obra material de execução das obras até que se observassem as
seguintes medidas:

                      “(1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações
                      internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre,
informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de
                           chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades
                           indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares;

                           (2) garantir, previamente a realização dos citados processos de
                           consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades
                           indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto
                           Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a
                           tradução aos idiomas indígenas respectivos;

                           (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos
                           membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia
                           do Xingu, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias
                           entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares
                           como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto
                           daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona,
                           como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças
                           como a malária.”

                           (os grifos adicionados)




         Entretanto, em que pese a correta motivação dos membros da CIDH e o louvável
objetivo, a decisão tomada contém gravíssimos erros, inclusive o de negligência quanto a
proteção dos direitos humanos de uma grande população atingida pelas obras da UHE de
Belo Monte. A decisão da CIDH ignora que existem na região mais de cem mil pessoas que
serão atingidas pelas obras da UHE de Belo Monte, que sofrerão “a exacerbação dos vetores
de transmissão aquática de doenças”, que serão desabrigados, que terão que ser
reacomodados, reinseridos em suas atividades econômicas, ter suas famílias reacomodadas,
etc. Dentre essas pessoas, existem milhares de agricultores e de ribeirinhos atingidos 44, em
situação de extrema fragilidade econômica e social. Existem comunidades miscigenadas, nas
quais não é possível determinar quem são indígenas e quem são ribeirinhos. E, também


44
   Muitos agricultores e ribeirinhos tem situação de extrema fragilidade, fato registrado pelo Ministério Público
e amplamente divulgado pela sociedade civil, veja em: http://www.xinguvivo.org.br/2011/04/20/mp-recomenda-
respeito-aos-direitos-dos-agricultores-e-ribeirinhos-na-regiao-de-belo-monte/
dentre essas pessoas, existem cerca de 2.800 índios, que são os únicos com os quais a CIDH
se ocupou.

        O argumento de que a fragilidade dos povos indígenas seria maior do que a dos outros
povos absolutamente não se sustenta, tampouco justifica que CIDH não tenha se ocupado dos
demais povos afetados 45. Em primeiro lugar, porque frente ao governo brasileiro qualquer
população local é igualmente frágil, dada a disparidade de poder entre governados e o
governo. Em segundo, porque dentre os afetados pelas obras há numerosos povos não-
indígenas, ribeirinhos, população rural e urbana das cidades próximas, que igualmente não
têm acesso às informações e igualmente não têm assegurado o direito de discutir e de
compreender o projeto e o impacto deste em suas vidas. Em terceiro, a questão do idioma
também não se justifica enquanto argumento de maior fragilidade, pois os povos indígenas
têm representantes capazes de dialogar com o governo, com instituições, com organismos
internacionais, de compreender documentos, de se articular com outros grupos nacionais e
estrangeiros. O próprio requerimento feito pelos indígenas à Comissão Interamericana de
Direitos Humanos é evidência de sua capacidade de intelecção e de articulação com outros
povos não-indígenas.

        Evidentemente, seria louvável se o governo brasileiro, num exemplo democrático,
providenciasse a tradução do EIA/RIMA para os talvez 9 (nove) idiomas indígenas das
comunidades afetadas, isso tornaria o diálogo mais franco. A CIDH não pode, entretanto,
exigir isso como requisito para execução da obra, pois: i) O único idioma oficial no Brasil é o
português; e ii) ela mesma não traduziu sua decisão para os idiomas dos povos a que visa
proteger. Da mesma forma, a Organização Internacional do Trabalho também não traduziu a
sua Convenção sobre os povos Indígenas e Tribais para todos os idiomas dos povos afetados
por ela, a OEA, igualmente, não traduz seus documentos para que todas as minorias das
Américas possam compreendê-la e, pelos mesmos motivos, o governo brasileiro tão tem o
dever de traduzir os documentos oficiais para idioma que não seja o português, embora, frise-
se, seria muito bom que o fizesse.

        A decisão da CIDH, enquanto visa proteger cerca de 2800 pessoas indígenas, ignora
aproximadamente outras 97.000 pessoas, igualmente afetadas e isso enfraquece sobremaneira


45
  Depoimento de não-indígenas, membros de uma das comunidades que será atingida pelas obras da UHE de
Belo    Monte,      em:    http://www.xinguvivo.org.br/2010/12/21/video-belo-monte-violando-direitos-das-
comunidades-no-rio-xingu/
seu posicionamento. É certo que apenas os indígenas recorreram à CIDH (o que, aliás, nos
sugere que talvez não seja esta a parcela mais frágil dentre os afetados), mas a CIDH deve
investigar a denúncia in loco e, ao fazê-lo, não pode ignorar a realidade que presencia e,
considerando a possibilidade deveria agir moto próprio 46, deveria estender sua atenção a
todos aqueles que tenham seus direitos humanos potencialmente afetados com as obras da
UHE de Belo Monte, mesmo que isso envolva grupos que não foram os autores do apelo,
como, por exemplo, os habitantes da comunidade do Morro do Félix ou de São Sebastião 47.

           É inegável que os indígenas têm um status e uma condição diferente dos demais
brasileiros e isso está assegurado, tanto na Constituição Federal do Brasil, como em
legislação específica 48. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes,
línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente
ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens
(CF/1988, art.231, e ss.). Além disso, suas terras são consideradas inalienáveis e
indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (CF/1988, art.231, pár.4º.), exceto para
os casos de pesquisa, lavra de riquezas minerais e aproveitamento hidrelétrico, todos quando,
e se, aprovados pelo Congresso Nacional(CF/1988, art.231, pár.3º.). Vale dizer, a legislação
brasileira reconhece que o índio, diferente dos demais brasileiros, tem no meio ambiente em
que vive, na natureza que o cerca, não apenas a sua forma de sobrevivência (pois muitos
outros brasileiros sobrevivem da caça, da pesca, em condições de subsistência), mas
principalmente sua cultura, sua estrutura social e sua fé.

           A organização da vida indígena está intrinsecamente ligada ao meio ambiente, seus
valores, a estrutura de suas tribos, tudo depende da natureza que os cercam. Porém, para o
Brasil, mais importante do que isso são as riquezas minerais da terra e o aproveitamento




46
     Conforme previsto no artigo 24, do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.
47
  Lisa Feder, antropóloga, narra o seu contato com algumas comunidades do Xingu, em:
http://www.fvhd.org.br/forum/topics/os-ribeirinhos-do-medio-xingu
48
  Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário.
(http://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas%
20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf)
hidrelétrico desses rios. Mesmo que pareça absurda, essa é a verdade positivada no texto
constitucional. Estes são os valores da sociedade brasileira refletido em suas leis 49.

        Portanto,      a    discussão       sobre     direitos     indígenas      demonstra-se        superada.
Democraticamente superada. Na região da Volta Grande do Xingu, existem Terras Indígenas
demarcadas que deveriam ser protegidas por se tratarem de terras indisponíveis e
inalienáveis. Entretanto, a discussão no Congresso Nacional teve o seu momento e prevaleceu
o entendimento de que o aproveitamento hidrelétrico para obtenção de energia é mais
importante para o país e, consequentemente, que isso justificaria a utilização excepcional das
Terras Indígenas para este fim.

        Assim, a discussão que permanece quanto aos Direitos Humanos não diz respeito
apenas aos índios, mas a todos os seres humanos que habitam a região da Volta Grande do
Xingu e que serão igualmente afetados pelas obras da UHE de Belo Monte.

        Caso pretendesse se ater a defesa dos povos indígenas, deveria ter a Comissão
Interamericana de Direitos Humanos se debruçado sobre a questão da constitucionalidade do
parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição Federal, bem como sobre a discussão que
ocorreu, e que se encerrou, junto ao Congresso Nacional. É inegável, contudo, que o texto
constitucional parece desatualizado e desumano, incompatível com a superação das crises
soberanistas do período militar e, especialmente, com o desenvolvimento tecnológico
experimentado, quanto mais quando observada a evolução da sociedade brasileira nos últimos
20 (vinte) anos. Sendo assim a CIDH deveria estar questionando a sociedade brasileira, de
forma mais direta, sobre os valores eleitos e positivados em sua Carta Magna e sobre a forma
como se está tratando a questão dos direitos humanos dos povos indígenas, especialmente
sobre a inalienabilidade de suas terras, sem exceções. Destaque-se que este é um
questionamento a ser feito à sociedade brasileira, não ao seu governo. Essa discussão,
contudo, jamais foi proposta.




49
  Vide Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo VIII -
Dos Índios, art. 231, e ss.
Direitos Humanos

        É imperioso frisar que nenhum desenvolvimento econômico pode justificar a não
observância estrita da proteção aos direitos humanos. A área que será direta ou indiretamente
afetada, conforme mencionado acima, contém povos indígenas, população não indígena
ribeirinha, população rural e urbana de alguns municípios e todos, sem exceção, devem ter
protegidos os direitos que a Constituição Federal e, principalmente, que os Direitos Humanos
em âmbito internacional lhes asseguram. Além disso, não se pode admitir que no Brasil, país
reconhecidamente democrático, o processo de debate de projetos com a população seja
restrito, que suas instituições sejam manipuladas, ou que seus procedimentos sejam
adulterados para favorecer qualquer grupo de interesses. O Ministério Público, o Congresso
Nacional, a FUNAI, o IBAMA, as Organizações Não-Governamentais, o Poder Judiciário e,
sem dúvida alguma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devem exercer
vigilância permanente sobre cada passo dado pelo governo e assegurar que nenhum dos
atingidos tenha seus direitos, de qualquer natureza, violados. Toda e qualquer forma de
aumentar a accountability 50 das ações do governo deve ser estimulada.

        Os fatos que motivaram a outorga da MC-382/10 são prova de que o governo não
dialoga devidamente com a sociedade civil, bem como que, por vezes, impõe seus projetos
com certa brutalidade 51. Há que se considerar, mesmo assim, que houve evolução nos últimos
anos e que atualmente a sociedade brasileira experimenta um novo patamar em sua relação
com governo brasileiro, embora haja limites claros a esse diálogo. Basta observar a própria
revisão do projeto de Belo Monte, reduzindo-se para quase um terço o tamanho do
reservatório previsto no projeto inicial, a fim de diminuir o impacto ambiental. O projeto
inicial alagaria boa parte da área indígena Paquiçamba e do vale do rio Bacajá (ambos agora
preservados). Isso resulta em 0,04 km2 alagados por MW instalado – uma das melhores
relações do país para empreendimentos implantados acima de 1.000 MW de potência




50
  Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American
Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43.
51
  A opinião de parte da sociedade civil que vê brutalidade nas atitudes do governo é bem ilustrada por Darci
Bergmann em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe-belo-monte-com.html
instalada 52. Além disso, mesmo que controversos, oficialmente foram promovidos encontros
para diálogo com a população 53.




A revogação da MC-382/10

         Em 29 de julho de 2010, a CIDH reavaliou a MC 382/10 com base na informação
enviada pelo Estado brasileiro e pelos peticionários, e modificou o objeto da medida,
solicitando ao Brasil que:

                         1) Adote medidas para proteger a vida, a saúde e integridade pessoal
                         dos membros das comunidades indígenas em situação de isolamento
                         voluntario da bacia do Xingu, e da integridade cultural de
                         mencionadas       comunidades,       que    incluam      ações    efetivas     de
                         implementação e execução das medidas jurídico-formais já
                         existentes, assim como o desenho e implementação de medidas
                         especificas de mitigação dos efeitos que terá a construção da represa
                         Belo Monte sobre o território e a vida destas comunidades em
                         isolamento;

                         2) Adote medidas para proteger a saúde dos membros das
                         comunidades indígenas da bacia do Xingu afetadas pelo projeto
                         Belo Monte, que incluam

                                 (a) a finalização e implementação aceleradas do Programa
                         Integrado de Saúde Indígena para a região da UHE Belo Monte, e

                                 (b) o desenho e implementação efetivos dos planos e programas
                         especificamente requeridos pela FUNAI no Parecer Técnico 21/09,
                         recém enunciados; e




52
   XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte –
Evolução Dos Estudos. P. 14-15.
53
   Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade:
http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre-
belo-monte
3) Garantisse a rápida finalização dos processos de regularização das
                      terras ancestrais dos povos indígenas na bacia do Xingu que estão
                      pendentes, e adote medidas efetivas para a proteção de mencionados
                      territórios ancestrais ante apropriação ilegítima e ocupação por não-
                      indígenas, e frente à exploração ou ao deterioramento de seus recursos
                      naturais.

                      (grifos e destaques adicionados)




       Adicionalmente, a CIDH decidiu que o debate entre as partes no que se refere a
consulta previa e ao consentimento informado em relação ao projeto Belo Monte se
transformou em uma discussão sobre o mérito do assunto, reconhecendo que transcende o
âmbito do procedimento de medidas cautelares. Esta nova postura da CIDH demonstra-se
mais apropriada do que a anterior, pois se dedica a temas significativamente menos
controversos e é baseada em decisões domésticas. Embora se distancie da atuação universal
que pretendia adotar, essa nova postura possivelmente trará resultados mais eficientes.
Permitindo ao governo voltar a adotar posturas convergentes no âmbito do Sistema
interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.




Conclusão

       O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pode ser
análisado por dois viéses: internacional e doméstico. Pelo primeiro, observa-se que a CIDH
inovou em seu foco de atuação, passando a agir em questões que correspondem às demandas
apresentadas pela nova ordem global. Tais demandas, contudo, ainda não haviam sido
testadas e legitimadas frente a governos nacionais o que, possivelmente, deixou a CIDH em
posição menos favorável no enfrentamento em que se lançou contra o governo brasileiro ao
editar a MC-382/10.

       Pelo segundo, observa-se que, considerando a pletora de interesses envolvidos sobre o
caso de Belo Monte, o governo brasileiro, com a aprovação do Congresso Nacional, decidiu
levar a diante o projeto da UHE-Belo Monte. Neste aspecto, vale dizer que, por maiores que
fossem os custos envolvidos nessa decisão, e após intenso debate político, a opção adotada
foi pelo prosseguimento das obras. Além disso, outro ponto que mereceria maior cuidado é a
força que o Brasil veio a adquirir recentemente na arena global, que o deixou muito menos
sujeitos à influência dos agentes internacionais e, por consequência, fortalecido no embate em
que se viu lançado contra a CIDH.

       Não causa espanto, portanto, que a decisão da CIDH de editar a MC-382/10,
solicitando ao governo brasileiro a imediata suspensão das obras de Belo Monte, tenha levado
o governo brasileiro a adotar uma postura divergente, soberanista e refratária à atuação da
CIDH. No momento seguinte, ao revisar sua decisão e ao retroceder quanto ao pedido feito
ao governo brasileiro, a CIDH reconhece a decisão do governo de prosseguir com as obras de
Belo Monte, mas sinaliza que permanecerá vigiando a estrita proteção aos direitos humanos
das comunidades afetadas pelas obras.

       Este novo posicionamento adotado após a revogação da MC-382/10, de vigilância e
não de controle, permite a CIDH continuar diálogando com o governo brasileiro e, mais
importante que isso, possibilitará o acompanhamento das obras e a supervisão internacional
quanto à proteção dos direitos humanos das pessoas afetadas pela obra. Embora a CIDH
adote, agora, uma postura menos vanguardista e menos ambiciosa, a mudança de estratégia
facilita para que a reação do governo brasileiro seja de convergência em relação ao Sistema
Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
Bibliografia:

Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of
International Relations, vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473.

Bergmann, Darci em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe-
belo-monte-com.html.

Botcheva, Liliana; Martin, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and
Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001.

Carta de Havana, 1948.

Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in
http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica-
15.php .

Constituição Federal da República do Brasil, 1988.

Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais.

Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The
domestic impact of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40,
pp. 451-478.

Declaração de José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados
Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma
secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011.

Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948.

Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”.
Global governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no
2. April-June 2006, pp. 185-203.

Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic
Politics”. Locating the Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International
Institutions. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003.

Estudo de Impacto Aambiental – Belo Monte, 2009, Ministério de Minas e Energias.

Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World
Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43.
Jornal Folha de S. Paulo, edição de 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5.

Jornal O Globo. Edição de 10 de novembro de 2010, Caderno Cidades.

_____. Edição de 18 de janeiro de 2011, Caderno Economia.
Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil,
Ed. Moderna, 1ª Ed., 2005.

Pacto de San José da Costa Rica, 1969.

Palestra apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia
da USP, em 08 de junho de 2011, na Cidade Universitária-SP.

Povos em isolamento voluntário na região do Xingu, vídeo utilizado como prova de sua
existência pela sociedade civil em: http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI .

Projeto do AHE - Belo Monte, vídeo institucional produzido pelo governo brasileiro:
http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g .

Protocolo de San Salvador, 1988.

Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade:
http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre-
belo-monte .

Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos.

Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, Ministério de
Minas e Energia.

Resolução 217 A(III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1948.
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Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia
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Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James &
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Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in
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Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise
crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009.

Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre
a Indústria de Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003.

XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In
AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos.

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PROGRAMA NACIONAL DE DIREITOS HUMANOS (PNDH-3)
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O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH): Análise em dois níveis

  • 1. INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS DA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO Mestrando: ANDRÉ LUIZ SICILIANO (IRI-USP) ARTIGO: “O CASO DE BELO MONTE NA COMISSÃO INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE EM DOIS NÍVEIS” São Paulo, SP Outubro/2011
  • 2. Índice Resumo.....................................................................................................................................03 Objetivo....................................................................................................................................03 Introdução.................................................................................................................................04 Ambiente Internacional............................................................................................................06 Ambiente doméstico.................................................................................................................12 Urgência energética......................................................................................................12 Histórico de Belo Monte..............................................................................................14 Outros interesses...........................................................................................................17 A recente polêmica.......................................................................................................18 O Relatório dos Especialistas...........................................................................19 Ameaça aos Direitos Humanos (dos indígenas)...............................................20 Direitos Humanos.....................................................................................................................25 A Revogação da MC-382/10....................................................................................................26 Conclusão.................................................................................................................................27 Bibliografia...............................................................................................................................29
  • 3. Resumo O governo brasileiro recentemente iniciou as obras para a construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu, Estado do Pará. A construção dessa usina irá forçar a remoção de milhares de pessoas de suas terras, inclusive a remoção de índios de seus respectivos Territórios Indígenas devidamente reconhecidos pelo governo brasileiro. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos, visando proteger os direitos dos povos indígenas, concedeu uma Medida Cautelar solicitando ao governo brasileiro a imediata suspensão das obras da Usina, a fim de que fossem evitados danos irreparáveis aos direitos humanos das comunidades indígenas afetadas. O resultado desse embate foi um enorme retrocesso nas relações entre o governo do Brasil e a Comissão Interamericana de Direitos Humanos e o possível enfraquecimento desta no sistema internacional. Objetivo: O presente artigo tem o propósito de demonstrar que a análise minunciosa do ambiente doméstico por uma instituição internacional é absolutamente necessária, não apenas para se alcançar os objetivos pretendidos, mas, principalmente, para evitar que suas ações desencadeiem resultados indesejados. Palavras-chave: “Comissão Interamericana de Direitos Humanos”, “Belo Monte”, “Jogo de dois níveis” e “Comunidades indígenas”.
  • 4. Introdução A Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), visando proteger comunidades indígenas localizadas na Volta Grande do rio Xingu, concedeu, em 1º de abril de 2011, Medida Cautelar de nº382/2010 (MC-382/10), solicitando ao governo brasileiro que suspendesse as obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte (UHE-Belo Monte), para que não houvesse risco de dano irreparável às comunidades que serão atingidas pelas obras da usina. No dia 05 de abril, o governo brasileiro, por meio do Ministério das Relações Exteriores, emitiu nota de nº142/2011, dizendo que considerava a MC-382/10 injustificável e precipitada. Dois dias depois, o governo brasileiro retirou a indicação do ex-ministro Paulo Vannuchi como candidato brasileiro para integrar a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, o que foi percebido como uma retaliação brasileira ao órgão internacional 1. A decisão do governo brasileiro foi considerada por parte da sociedade como truculenta e equivocada, incompatível com o que se esperava de um governo democrático. O impasse verificado não se trata, evidentemente, de oposição entre interesses doméstico e estrangeiro, pois a CIDH defende, legitimamente, interesses de comunidades brasileiras, que, no entanto, não têm força suficiente no ambiente político interno. Ou seja, o confronto ocorre entre grupos nacionais, sendo que um deles é representado pela CIDH, que é órgão do Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos 2. Embora os interesses em questão digam respeito apenas a brasileiros, sejam dos atingidos pelas obras da Usina ou dos beneficiados por ela, a questão da defesa dos direito humanos é matéria de interesse 1 “Cotado para ser o candidato do Brasil ao cargo de representante brasileiro na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), vinculada da Organização dos Estados Americanos (OEA), o ex-ministro Paulo Vannuchi teve a indicação retirada no último dia 7 de abril. A mudança ocorreu dois dias depois que a Comissão emitiu uma recomendação para o governo brasileiro suspender as obras da Usina Hidrelétrica Belo Monte, no Pará.” Fonte: Agência Brasil, in http://exame.abril.com.br/economia/brasil/noticias/brasil-retira-candidatura- de-vannuchi-para-cargo-na-oea. 2 O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto, basicamente, pelos seguintes instrumentos normativos: Carta da OEA, 1948; Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948; Declaração de San Tiago, 1959; Protocolo de Buenos Aires, 1967; Pacto de San José da Costa Rica, 1969; Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos; e Protocolo de San Salvador, 1988; Protocolo de Cartagena das Índias, 1985; e Protocolo de Washington, 1992.
  • 5. global 3, o que faz do episódio em tela um excelente exemplo de como a política doméstica e as relações internacionais podem ser imbricadas. Analisando o caso concreto, pode-se concluir que a estratégia adotada pela CIDH levou o governo a adotar uma postura de divergência 4, não acolhendo seus pedidos e adotando postura de distanciamento da em relação a ela. Atentando para essa problemática, e analisando a questão sob os dois níveis de análise (Putnam, 1988), o que restará demonstrado a seguir é que: i) em nível internacional, o governo brasileiro não correspondeu às expectativas no que se refere à proteção dos direitos humanos, adotando uma postura de divergência em relação à CIDH; e ii) em nível doméstico, o governo brasileiro agiu de forma coerente e previsível, em consonância com a vontade da maioria dos eleitores. Por sua vez, a CIDH agiu de acordo com os novos valores da ordem global, mas ignorou o cenário e as forças domésticas nacionais e permitiu que houvesse o embate direto com o governo brasileiro. A divergência entre a postura do governo brasileiro e o pedido da CIDH fez com que a CIDH revogasse sua Medida Cautelar, o que demonstra o desgaste a que a CIDH se submeteu. Embora a reconsideração da edição da MC-382/10 demonstre uma inflexão acertada por parte da CIDH, que se coloca em direção a uma base mais sólida para a futura decisão de mérito do caso, resta evidenciado o enfraquecimento político da entidade no episódio. Portanto, é imprescindível analisar os fatores que criaram essa situação para que se possa buscar, no futuro, um posicionamento estratégico mais eficiente na defesa dos Direitos Humanos no continente americano. 3 Especialmente depois de ter sido objeto da Resolução 217 A (III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1948. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. 4 O conceito de convergência e divergência aqui adotado é o utilizado por BOTCHEVA, Liliana e MARTIN, Lisa. 2001. In “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March.
  • 6. Ambiente Internacional O Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos é composto pela Corte Interamericana de Direitos Humanos, pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos, ambas pertencentes ao arcabouço institucional da Organização dos Estados Americanos 5, e por diversos tratados específicos 6. Essa especialização temática em âmbito internacional permitiu uma atuação mais precisa e mais efetiva para a proteção dos Direitos Humanos no continente americano, que teve enorme projeção regional com o fim das ditaduras militares na América Latina, no final do século passado. Historicamente, a CIDH atuou de maneira exemplar em diversos casos, tais como no de Barrios Altos (Peru, 1991) e Araguaia (Brasil, 2001), em que as demandas foram levadas à Corte Interamericana de Direitos Humanos, com ampla repercussão internacional e influência significativa, tanto política, quanto judicial, em seus respectivos âmbitos domésticos. Entre o final do século XX e o início do século XXI, percebe-se a conformação de uma nova ordem global 7, composta pela multiplicidade de instituições e de locais para o diálogo, em que temas como direitos humanos, meio ambiente, normatização financeira, dentre outros, tornam-se cada vez mais autônomos em relação aos Estados Nacionais. Os padrões que sustentam essa ordem global, segundo Rosenau, podem ser divididos em três níveis de atividade: i) o nível ideal, ou intersubjetivo, que seria o dos valores e das ideias; ii) o nível comportamental, ou objetivo, que seria o da forma de agir; e iii) o nível agregado ou político, que seria o da governança, das normas, das instituições, que orientam as políticas decorrentes dos padrões das ideias e dos comportamentos. A ordem global, portanto, apresenta-se como indivisível, pois seus três níveis se inter-relacionam, impedindo que alguma causa, ou alguma consequência que se pretenda estudar, seja perfeitamente isolada. Desse modo, considerando a nova ordem global, em que homicídios, torturas, desaparecimentos e cárceres promovidos por governos ditatoriais deixaram de ser a tônica na realidade americana, a CIDH buscou ocupar um novo espaço de atuação, atendendo a 5 Conforme Carta de Havanna, 1948 (Criação da OEA). 6 Pacto de San José, 1969; Protocolo de San Salvador, 1988; Convenção sobre o Reconhecimento dos Direitos Civis e Políticos à Mulher; Carta Internacional Americana de Garantias Sociais, dentre outros. 7 Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst- Otto (eds.). Governance without government: Order and Change in World Politics. Cambridge University Press, 2000, pp. 1-29.
  • 7. solicitações de minorias que se veem reprimidas pelos seus governos e cujos direitos humanos estejam ameaçados. No Brasil, este novo posicionamento da CIDH se materializou na defesa dos povos indígenas do Xingu perante o Estado brasileiro. Essa guinada é pertinente e necessária, e condiz com os novos valores e desafios da humanidade, tais como o desenvolvimento sustentável e a democracia cosmopolita 8, que, segundo Archibugi (2004), consiste na ampliação e no aprofundamento da participação de cidadãos e de grupos de pessoas em âmbito global, desencadeando certo enfraquecimento do Estado Nacional enquanto representante legítimo e unitário do interesse das pessoas. O fenômeno observado no caso de Belo Monte demonstra que certas comunidades interessadas em um número considerável e crescente de questões específicas não necessariamente coincidem com as fronteiras territoriais dos estados, bem como que a globalização produz novos movimentos sociais engajados em questões que afetam outros indivíduos e comunidades, mesmo que estes estejam geograficamente e culturalmente muito distantes de sua própria comunidade política. Desta forma, o framework observado no caso concreto é o mesmo que o tratado por Rosenau (2000), quando identifica o processo de Fragmegration 9, que consiste no quadro de fragmentação do Estado, cumulado com o de integração de grupos sociais. A fragmentação se verifica quando os grupos e os indivíduos deixam de ter no Estado a expressão legítima de seus interesses, de modo que passam a agir de forma autônoma em defesa de seus interesses, que não mais são atendidos pelos Estados. Isso é exatamente o que se verifica na questão de Belo Monte, em que grupos indígenas locais se manifestam contra a opinião e às iniciativas do governo brasileiro quanto ao uso dos recursos da região da Volta Grande do Xingu, no Pará 10. Tais grupos, por sua vez, identificam-se com outros grupos igualmente isolados em outros Estados, de modo que ambos se unem para obter maior força, num movimento de integração entre os pares de diversas regiões, ou nações. Observa-se, ainda, que esses indígenas brasileiros da região do Xingu se uniram a indígenas da região de Rondônia e também do Peru 11 para, com maior 8 Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of International Relations, vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473. 9 Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in a turbulent world. Cambridge University Press, 2000, pp. 174-188. 10 In: http://www.socioambiental.org/esp/bm/index.asp 11 In: http://www.survivalinternational.org/ultimas-noticias/7070
  • 8. envergadura, manifestarem-se na esfera internacional 12 contra os projetos de uso de suas terras pelos seus respectivos governos nacionais. Assim, temos a fragmentação dentro do Estado (vertical) e a integração social (horizontal), tal como apontado por Rosenau. Nesse contexto, provoca-se a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, que passa a ter o dever de agir em defesa dos direitos humanos das minorias afetadas, no caso, de alguns povos indígenas da região do rio Xingu. É de se observar que a governança existente a nível local não atendeu às demandas deste mundo global, que clama por uma diligência muito maior no que diz respeito aos direitos humanos. Destaque-se, entretanto, que não existe uma governança supranacional, global ou regional, legitimada para resolver estas novas questões, de modo que se verifica um desencontro entre a vontade da comunidade internacional e a operacionalidade da autoridade local e, enquanto não houver convergência, uma irá se sobrepor à outra. Essa interação entre instituições domésticas e internacionais (Drezner, 2003) possui duas dimensões: a primeira é a forma como as instituições internacionais são utilizadas para influenciar a política doméstica, que pode ocorrer através do estabelecimento de pactos, da coerção ou da persuasão (no caso, foi a tentativa de coerção materializada na MC-382/10); a segunda dimensão define quais atores usam a instituição internacional para alcançar seus próprios fins (em Belo Monte, foram as comunidades indígenas citadas na MC-382/10). Entretanto, existe a possibilidade de atores externos usarem as instituições internacionais para influenciar a política doméstica de outros países, o que também ocorre com frequência 13. Andrew P. Cortell e James W. Davis Jr., em artigo publicado em 1996 14, também abordam o como as instituições internacionais podem ser usadas por agentes nacionais na defesa de seus próprios interesses, com a finalidade de implementar mudanças domésticas que sozinhos não teriam condições de realizar. Liliana Botcheva e Lisa L. Martin 15, por sua 12 In: http://www.nytimes.com/2010/04/11/world/americas/11brazil.html?ref=world 13 Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic Politics”. Locating the Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International Institutions. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003, pág. 02. 14 Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The domestic impact of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40, pp. 451-478. 15 BOTCHEVA, Liliana; MARTIN, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001.
  • 9. vez, analisam que tipo de efeitos as instituições internacionais podem produzir sobre os Estados em determinado tipos de circunstâncias, classificando esses comportamentos como convergentes ou divergentes. Ambos os trabalhos se debruçam sobre a interação crescente entre as esferas doméstica e global e sobre as variantes dessa interação, quando é maior ou menor, quando é mais ou menos eficiente e sob quais justificativas. Botcheva e Martin (2001) chamam a atenção para um outro aspecto da interação entre as esferas doméstica e internacional, que é o da influência das instituições internacionais na postura que os Estados adotam perante o sistema internacional. Segundo as autoras, existem casos em que as instituições incentivam a cooperação, influenciando os Estados a cooperarem em circunstâncias em que eles normalmente encontrariam grandes dificuldades para isso, de modo a gerar um efeito de convergência entre os atores internacionais. Em outros casos, em que os Estados não percebem tão fortemente esse incentivo à cooperação, simplesmente optam por não cooperar e verifica-se o efeito de divergências entre eles. Para que haja convergência, argumentam, é preciso que os Estados percebam a existência de externalidades substanciais que podem gerar altos custos de deserção, pois dessa forma, haveria incentivo para a cooperação. No caso em tela, o histórico recente do Brasil em temas ligados aos direitos humanos (postura do STF no caso Araguaia, que não incorporou no ordenamento juridico brasileiro a tipificação de desaparecimento forçado, ou mesmo a postura brasileira no caso Batisti), certamente é um bom indicativo de que a retaliação moral externa não é considerada uma externalidade substancial. Assim, além das baixas externalidades no cenário internacional, haveria um enorme custo doméstico decorrente de eventual interrupção da obra da UHE-Belo Monte, que será mais bem detalhado a seguir quando for analisado o ambiente doméstico. Quanto às baixas externalidades no cenário internacional, vale esclarecer que não se trata de relativizar os direitos humanos enquanto conjunto de valores, enquanto marco teórico ou enquanto instituto normativo, mas de compreender que em cada situação a abordagem deverá ser feita de modo específico, visando obter um resultado ótimo. Há que se considerar, por exemplo, que lidar com um problema relacionado aos direitos humanos em Honduras é muito diferente do que lidar com um problema semelhante no Peru, no Brasil, ou no Canadá. Há numerosas diferenças que tornam cada situação particular, tanto em nível doméstico como em nível internacional, tais como, o histórico de cooperação de cada Estado com as instituições internacionais, o comprometimento de cada Estado com o Sistema Internacional
  • 10. de Proteção aos Direitos Humanos, o espaço para diálogo em âmbito doméstico, a existência e a efetividade de instituições internas, ou, mesmo, o poder de cada Estado no sistema internacional. Assim, uma atuação em Honduras provavelmente exigirá uma intervenção externa consentida, dada a falta de estrutura mínima para uma resolução eficiente, enquanto que no Canadá o simples questionamento promovido por uma instituição internacional poderá levar ao debate de ideias que, provavelmente, possibilitará uma solução satisfatória em âmbito doméstico. Entretanto, se a discussão fosse sobre proteção aos Direitos Humanos nos Estados Unidos, dado o histórico norte-americano de adotar uma postura autonomista e soberanista, bem como o seu incomparável poder internacional, provavelmente, nenhuma atitude adotada pelo Sistema Internacional de Proteção aos Direitos Humanos seria eficiente. E é nessa complexidade que a Governança Global 16 se desenvolve, com a multiplicidade de atores e de instituições que se inter-relacionam, com pesos diferentes, buscando certa padronização de valores, conforme a possibilidade de cada local. Significa dizer que, dentro dessa multiplicidade, cada instituição ou Estado deve considerar não apenas os fatores que lhes são intrínsecos, mas também os fatores que influenciam e determinam a atuação dos outros atores com quem interagem, sob pena de provocar reações adversas e indesejadas. Observa-se, no caso de Belo Monte, que dois fatores foram determinantes para que a reação do governo brasileiro à solicitação da CIDH fosse das mais indesejadas, um externo e um doméstico: o primeiro, foi a inovação no padrão de atuação da CIDH, que originariamente atuava em casos de torturas, homicídios, chacinas, desaparecimentos, cárceres, etc. e passou a atuar com a questão da proteção a povos nativos e da defesa do meio ambiente, fato reconhecido pelo próprio secretário-geral da Organização dos Estados Americanos, José Miguel Insulza: “Quando a comissão de direitos humanos começou a atuar nesses temas, quase como um tribunal, ainda que não tenha força obrigatória, os temas de que falava eram homicídio, tortura, desaparecimento, cárcere, etc. O surgimento dos temas ambientais e 16 Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”. Global governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no 2. April-June 2006, pp. 185-203.
  • 11. dos povos nativos abre um espaço que deve ser tratado com muito cuidado. Não creio que nenhum governo democrático tenha a intenção de criar problemas aos seus povos nativos. Acho que o pior que se pode fazer neste caso é exacerbá-lo e tratar o tema como se um fosse a vítima, e os outros a ditadura, como ocorreu a princípio. Espero que Belo Monte sirva para calibrar bem a coisa e entender que, quando se trata de projetos dessa envergadura, a CIDH pode perfeitamente chegar aos governos para dar assessoria, opiniões, mas não tratar como um tema semijudicial.” 17 É preciso fazer uma consideração importante sobre essa mudança de atuação, pois se, por um lado, essa nova postura reflete adequadamente os novos valores dessa ordem global, por outro, ainda não se sabe qual o tamanho e a força do apoio que a comunidade internacional dará à CIDH em sua nova modalidade de atuação. Percebe-se que, certamente, não será igual aos dados aos temas anteriores. Prova disso é o discurso do secretário-geral da OEA, que acredita que a postura da CIDH foi equivocada e que deve ser revista: “Tenho a impressão de que o governo brasileiro apresentou alguns antecedentes e que provavelmente a comissão revise a sua decisão. Agora, como vai revisar eu não posso dizer, porque não estou autorizado. Espero que o faça, sinceramente. Acho que quando falamos de algo com a envergadura de Belo Monte, as coisas provavelmente teriam que ser vistas e conversadas com muito mais calma, essa é a minha opinião.” 18 17 José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011. 18 Idem.
  • 12. O segundo fator determinante para a reação do governo brasileiro à solicitação da CIDH foi o elevadíssimo custo doméstico que a decisão de suspender as obras do AHE-Belo Monte acarretaria e que, muito provavelmente, não foi previamente identificado pela CIDH. Ambiente doméstico A urgência energética A potência instalada do Sistema Integrado Nacional (SIN), que é a potência máxima de energia elétrica que hipoteticamente se poderia produzir, como é sabido, deve corresponder, aproximadamente, ao dobro da demanda nacional, pois a produção média real corresponde a pouco mais da metade da capacidade instalada e isso se deve a diversos fatores, seja ao regime de chuvas, ao regime de ventos, à manutenção de equipamentos, à impossibilidade técnica de cada planta operar constantemente em capacidade plena, etc. A potência instalada no SIN prevista para dezembro de 2011 é de 118.375Mw 19 e a demanda energética do SIN prevista para o mesmo período é de aproximadamente 58.000Mw 20. Ou seja, em 2011, não sobra, nem falta, energia elétrica ao SIN. O país, entretanto, experimenta crescimento regular e o parque energético precisa ser ampliado para que não haja o estrangulamento do sistema. Para o ano de 2019, a demanda prevista é de 85.000Mw 21 (já descontada a redução ocasionada pela crise econômica mundial de 2008/2009), o que significa que a potência instalada deverá ser de aproximadamente 170.000Mw, ou seja, o Brasil precisa acrescentar 50.000Mw ao seu sistema nos próximo 7 (sete) anos. A produção de energia elétrica estimada em Belo Monte é de mais de 11.000Mw/h (3ª maior do mundo), em uma região cujo regime de chuvas é inverso ao do Sul/Sudeste. Ou seja, quando o sistema hidrelétrico do Sul/Sudeste está sob o período de chuvas, com reposição dos reservatórios e aumento da capacidade de geração de energia, o sistema hidrelétrico do Xingu estará no período de seca. Quando o sistema hidrelétrico do sudeste 19 Projeção apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia da USP, em palestra realizada em 08 de junho de 2011, no auditório da Biologia, do campus da Cidade Universitária-SP. 20 Idem. 21 Idem.
  • 13. estará sob o regime de seca, com restrições energéticas, o do Xingu estará no de chuvas, com abundante produção energética. Além disso, o custo da energia hidroelétrica ainda é o mais vantajoso dentre todos os modelos, custando R$78,00/MWh 22. Outras vantagens das usinas hidroelétricas para o SIN é que sua produção energética é relativamente intensiva, uma única usina produz grande quantidade de energia, e trata-se de uma energia considerada limpa, com baixa emissão de gases causadores do efeito estufa no longo prazo. Em relação à produção de energia eólica, é importante esclarecer que ela representa, hoje, 0,5% de toda a energia produzida no país, ou seja, 900Mw/h. Estima-se que em 2015, caso todos os 164 (cento e sessenta e quatro) projetos existentes sejam concluídos e entrem em operação, teremos 5.300Mw/h (ou 4%) 23. Além disso, vale salientar que, tal como as chuvas, os ventos também não são constantes e que, via de regra, quando há chuvas, não há ventos; quando há ventos, não há chuva. Ou seja, a quantidade de energia elétrica planejada de origem eólica é muito pequena em relação às necessidades do país. Em verdade, há uma enorme defasagem no planejamento de geração energia eólica no Brasil. Caso tivesse ocorrido a opção política 24 de se investir em energia eólica há 10(dez) ou 15(quinze) atrás, hoje talvez fosse possível considerar substituir a energia que Belo Monte vai agregar ao SIN por energia eólica, mas o fato é que esse investimento não ocorreu e não é possível atender à demanda prevista para os próximos 7 anos sem que Belo Monte entre em operação. A energia nuclear, igualmente, represente muito pouco ao SIN, porque a entrada em funcionamento da Usina Nuclear de Angra III irá somar apenas mais 1.400Mw. Além disso, o recente episódio de Fukushima torna politicamente impraticável inverter elevado montante de recursos na produção de energia nuclear. Como se percebe, sem muita dificuldade, a questão energética no Brasil, quanto ao aumento da capacidade instalada, é crítica. E outras fontes de energia renovável, como a eólica ou nuclear, produzem muito pouca energia quando comparadas à hidroelétrica. Existem alternativas mais poluentes, como as 22 Idem. 23 Folha de S. Paulo, 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5. 24 Há dez anos, o custo do MW/h eólico era significativamente mais alto do que o de hoje, de modo que sua escolha seria uma opção política, não econômica.
  • 14. termelétricas, mas cada vez mais se torna impopular projetar a produção futura de energia a partir de fontes não renováveis. Some-se a isso o peso político que envolve o tema e os interesses econômicos, pois considerando que a construção de hidroelétricas será realizada por empresas como Queiroz, Galvão, Camargo Corrêa, OAS, dentre outras, pode-se perceber o quanto a tramitação no Congresso Nacional será influenciado pelo lobby dessas grandes empreiteiras. A energia eólica ainda carece dessa “virtude” política. Acrescente-se, ainda, o episódio do apagão elétrico de 2001, que permanece na memória do eleitorado nacional e, evidentemente, transforma a questão da infraestrutura para produção de energia elétrica um dos temas mais caros aos políticos brasileiros. Histórico de Belo Monte A construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte 25 vem, há muitos anos, despertando fervorosas discussões nos meios políticos e acadêmicos brasileiros, recrudescendo posições desenvolvimentistas, humanitárias, preservacionistas, nacionalistas e tantas outras. Justamente por esta questão ser tão complexa, talvez seja possível explorar suas diversas facetas e revelar o entrelaçamento dos interesses que compõe o quadro que se esconde por baixo de posições dogmáticas e, às vezes, ingênuas. O projeto original, denominado Kararaô, foi produzido ainda no período militar e previa um reservatório 3(três) vezes maior, com maior aproveitamento hidrelétrico, mas com impactos ambientais e sociais inaceitáveis. Para compreender os conflitos despertados por esse projeto é preciso analisar com mais cuidado a região em que está inserido: a área em litígio situa-se ao norte do estado do Pará, próximo a Altamira, a Carajás, a Serra Pelada e ao sul da rodovia Transamazônica (BR- 230) e está inserida em uma região de enorme riqueza mineral, pois nessa região se encontram as maiores jazidas de minérios metálicos do país 26 e, um pouco ao sul, encontram- se impressionantes reservas medidas de minério de estanho, manganês, níquel, cobre e 25 Vídeo institucional de apresentação do projeto do AHE de Belo Monte, produzido pelo governo: http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g 26 Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil, Ed. Moderna, 1ª Ed., 2005. pág.67.
  • 15. bauxita 27. A chamada Volta Grande do Xingu, que será afetada pelas obras da Usina Hidrelétrica de Belo Monte, encontra-se situada entre a Serra dos Carajás e o Rio Amazonas, distante aproximadamente 200 km de cada. Esta é uma região de Floresta Amazônica, situada no Planalto da Amazônia Oriental, também riquíssima em sua diversidade biológica 28, onde vivem entre 2822 29 e 6000 30 índios e onde estão demarcadas 8 Terras Indígenas 31. Conforme dados informados no Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (EIA-AHE Belo Monte, 2009) 32, a área alagada será de aproximadamente 400km2, dos quais cerca de 200km2 são naturalmente alagados nos períodos de cheia dos rios. Isso significa que o lago previsto para o aproveitamento hidrelétrico em pauta é 1/3(um terço) do tamanho daquele inicialmente previsto, na década de 1980, em projeto rejeitado pela sociedade brasileira à época. A capacidade de Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte (AHE - Belo Monte) prevista é de 11.233,1MW 33, permitindo gerar 4.796MW médios de energia firme 34. A média de energia firme é a quantidade média de energia mensal garantida ao longo de um ano, pois os períodos de chuva e de estiagem influenciam significativamente na produção energética, havendo maior produção durante as chuvas e menor durante a estiagem. A produção mínima mensal produzida ao longo do ano é a chamada média de energia firme, ou seja, a quantidade mensal com a qual o SIN poderá contar ao longo do ano, independente da regularização da vazão do rio Xingu. 27 Idem. 28 Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia do Brasil (Encarte). 29 EIA – Belo Monte, 2009, p.23/24, vol. 23. 30 No EIA, estima-se 3,4 pessoas por família, em Santos, Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte, Belém, 2009, pág.29, estima-se 7 pessoas por família. 31 Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, pág. 30; 32 O nome “Usina Hidrelétrica” foi substituído por “Aproveitamento Hidrelétrico”, ambos significam o conjunto de obras que serão realizados na região do Volta Grande do Xingu para obtenção de energia elétrica proveniente da força das águas do rio Xingu. 33 Relatório de Impacto Ambiental – RIMA, Eletrobrás e Ministérios de Minas e Energias, Maio/2009, p.07. 34 XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos. P. 01.
  • 16. Ainda segundo o governo, o AHE-Belo Monte será integrado ao SIN, permitindo que a energia produzida seja direcionada para outras regiões do país, de modo que todas as regiões do país se beneficiem do projeto. Para compreender os significados desses números, basta dizer que a capacidade instalada de Itaipu, que é uma usina binacional (apenas 50% é nacional), é de 14.000MW (com 7.590MW médios de energia firme 35). Os projetos existentes para aproveitamento do potencial energético eólico do Nordeste brasileiro, segundo o Centro Brasileiro de Energia Eólica, em torres de 50 metros, somam aproximadamente 5.300MW/h36. Outro aspecto relevante, é que a região que será afetada pelas obras do AHE-Belo Monte abriga uma população bastante heterogênea. Historicamente, o vale do Xingu e a região de Altamira se destacam por importantes fluxos migratórios 37, que envolve: i) cerca de 9 (nove) povos indígenas nativos, que habitam Terras Indígenas, quase todas regularmente demarcadas; ii) população ribeirinha, descendentes de imigrantes nordestinos do ciclo da borracha, que sobrevivem da caça e da pesca; iii) população rural e urbana da periferia da cidade de Altamira; e iv) população indígena em isolamento voluntário, que são grupos nômades que perambulam pela região e de raríssimo contato com os demais povos 38. A área afetada inclui Terras Indígenas (TI), Reservas Extrativistas (Resex), áreas rurais e urbanas dos municípios de Altamira, de Vitória do Xingu, de Senador José Porfírio e de Anapu. Essa diversidade não se reflete apenas na composição étnica, mas também nos constantes conflitos de interesse na região, desde a exploração de minérios à pecuária, da coleta seletiva à indústria madeireira, dos direitos dos povos indígenas de permanecerem em seu habitat, preservando sua cultura e seus costumes, ao garimpo ilegal e predatório 39. No 35 Dados publicados por Itaipu Binacional, em junho de 2011, referente a média dos últimos cinco anos, disponível em: http://www.itaipu.gov.br/sala-de-imprensa/noticia/projecao-itaipu-devera-fechar-2011-com- mais-de-90-milhoes-de-mwh 36 Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica-15.php 37 Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009, p.29. 38 Vídeo utilizado como prova pela sociedade civil acerca de existência de povos em isolamento voluntários: http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI 39 Outro caso recente de garimpo ilegal em reservas indígenas na Bacia do Xingu, em http://oglobo.globo.com/cidades/mat/2010/11/10/garimpo-de-ouro-ilegal-nas-terras-dos-indios-kaiapos-fechado- no-para-922993933.asp
  • 17. caso de Belo Monte, embora as comunidades indígenas do Xingu tenham direitos legítimos a defender, existem muitas outras comunidades e muitos outros interesses que se apropriam dos argumentos e da discussão, o que torna a situação, politicamente, significativamente mais complexa. Interesses outros Dentre os que defendem a construção da UHE-Belo Monte, há importantes indústrias eletrointensivas ligadas a exploração mineral, especialmente a do alumínio. Conforme apontado acima, a região é riquíssima em minérios, mas apresenta como principal entrave ao seu desenvolvimento a limitada oferta de energia. Não é coincidência que as indústrias eletrointensivas – não apenas às ligadas à produção de alumínio, mas também as ligadas à indústria de cimento, e à produção siderúrgica - estão entre os principais investidores no setor elétrico do país, e as empresas que formam o consórcio que disputou o leilão de Belo Monte comprovam isso: Vale, Neoenergia, Votorantim Alumínio e Andrade Gutierrez 40. Glenn Switkes, que foi coordenador da ONG International Rivers Network, já alertava, em 2002, que as empresas de alumínio utilizam 8% de toda a energia elétrica do país e cerca de 2% no mundo. Se falarmos em alternativas energéticas, não existe uma alternativa para uma grande fábrica de alumínio. O mesmo autor, em trabalho apresentado em 2003, esclareceu que: “Mais da metade da produção mundial de alumínio depende das hidrelétricas para fornecer a imensa quantidade de energia necessária ao processo de eletrólise, que foi desenvolvido separadamente por Charles Martin Hall e Paul Héroult em 1886. O processo transforma a alumina (óxido de alumínio) em alumínio fundido. A enorme quantidade de energia utilizada na indústria do alumínio é o principal fator que determina a rentabilidade das novas usinas de fundição. Embora o minério de bauxita e a alumina possam ser enviados a qualquer refinaria de alumínio primário no mundo inteiro a custos accessíveis, a energia elétrica não pode ser transportada para outros 40 http://www.socioambiental.org/esp/bm/esp.asp
  • 18. continentes. Sendo assim, o acesso à energia de baixo custo é um fator determinante para o estabelecimento de novas usinas de fundição. (...) A indústria do alumínio é o maior consumidor mundial de energia elétrica. (...) A produção dos lingotes de alumínio equivale à cerca de 7% de toda a energia consumida na indústria mundial.” (Switkes, Glenn, 2003. A conexão hidrelétricas e alumínio, p.3) A construção da Usina de Belo Monte é um evidente aceno para que essas indústrias eletrointensivas retomem os planos de investimentos no norte do Brasil, porque o país oferecerá, em breve, energia suficiente e a baixo custo. O mercado compreendeu o gesto e, não sem propósito, recentemente a Alcoa firmou um protocolo de intenções com a chinesa China Power Investmient Corporation (CPI) para investir na região 41. Isso, na verdade, não é fato novo, pois no caso de Tucuruí, inaugurada em 1984, cujo reservatório alagou área de aproximadamente 2.860 km2, metade da energia gerada vai para as fábricas Alumar (São Luís - Alcoa, Billiton, Alcan) e Albrás (Companhia Vale do Rio Doce, consórcio japonês inclusive a Nippon Amazon Aluminum Company). Mais de 24.000 pessoas foram deslocadas, e houve impactos sérios na qualidade de vida de milhares de pescadores e agricultores de várzea à jusante. O povo indígena Parakanã foi reassentado duas vezes (devido a erros de engenharia quanto ao cálculo da área de inundação da sua reserva). Os indígenas Gavião também foram atingidos. Estima-se que as fábricas receberam entre US$193 milhões - $411 milhões por ano em energia subsidiada 42. A recente polêmica sobre Belo Monte No caso de Belo Monte, dois problemas substanciais foram levantados: 1- A produção de um Relatório por especialistas que desqualificaria totalmente o EIA/RIMA apresentado pelo governo e aponta a inviabilidade técnica, ambiental e social do projeto; e 2- Que haveria grave ameaça aos direitos humanos dos povos indígenas, que motivou um pedido de parte da Comissão Interamericana de Direitos Humanos ao governo brasileiro para a imediata suspensão das obras. 41 http://oglobo.globo.com/economia/mat/2011/01/18/alcoa-vai-explorar-projetos-de-aluminio-com-chinesa-cpi- 923538421.asp 42 Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre a Indústria de Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003. P.14.
  • 19. Relatório de especialistas 43 O Relatório, intitulado “Painel de especialistas – análise crítica do Estudo de Impacto Ambiental do Aproveitamento Hidrelétrico de Belo Monte”, foi produzido por especialistas vinculados a diversas instituições de ensino e pesquisa, que identificam e analisam, de acordo com a sua especialidade, graves problemas e sérias lacunas no EIA de Belo Monte. Trata-se de um rico documento acadêmico, que desconstrói o Estudo de Impacto Ambiental e o Relatório de Impacto ao Meio Ambiente produzidos pelo Governo. Apresenta críticas contundentes, aponta deficiências metodológicas e imprecisões das mais diversas. Em que pese tudo isso, a utilidade deste documento se demonstrou extremamente limitada. O primeiro equívoco, que de plano chama atenção, é que quando se intitula um relatório de um Painel de Especialistas, supõe-se que haja especialistas em todas as áreas cobrindo os mais diversos ramos do projeto. Entretanto, metade da equipe é composta por biólogos (sete) e antropólogos (seis), tendo apenas 2 (dois) economistas, 2 (dois) cientistas sociais, 1 (um) oceanólogo, 1 (um) médico, 3 (três) que não é possível identificar a formação, 1 (um) engenheiro elétrico, 1 (um) engenheiro mecânico que trabalha com geografia humana e ocupação do espaço e apenas 1 (um) engenheiro civil. E aquilo que se poderia pressupor de uma equipe com tal formação se confirma com a leitura do estudo, muita qualidade em alguns aspectos (biológico e antropológico, especialmente), muito pouca em outras (engenharia, especialmente), o que prejudica sobremaneira o potencial impacto do estudo na sociedade. O segundo equívoco consiste no fato de o relatório apenas apontar os defeitos sem oferecer melhores respostas. Por exemplo, ao demonstrar que o número de pessoas atingidas está subestimado não se informa qual seria o número correto, ou seja, apenas aponta as disparidades entre o estudo do governo e outros provavelmente mais precisos. Além disso, a intencionalidade do discurso tão criticada pelos especialistas, está também fortemente presente no próprio painel, pois é inegável que a motivação do painel, antes mesmo de ter os trabalhos iniciados, era a de buscar argumentos para rejeitar os estudos do governo. Observa- se que o painel é restrito a dizer que o estudo produzido pelo governo é impreciso, mas os dados supostamente verdadeiros não são apresentados. 43 O documento “Painel de Especialistas: Análise crítica do EIA-AHE Belo Monte” encontra-se disponível, na íntegra, em: http://www.socioambiental.org/banco_imagens/pdfs/Belo_Monte_Painel_especialistas_EIA.pdf
  • 20. Portanto, o melhor resultado que este painel de especialistas pode vir a produzir seria convencer o governo a revisar seus estudos, provavelmente pelas mesmas pessoas que os elaboraram, o que não iria alterar substancialmente o curso das coisas. Certamente, caso houvesse melhor equilíbrio na composição da equipe de especialistas e se o relatório fosse apresentado como um Estudo de Impacto Ambiental substitutivo, poder-se-ia obter um peso político muito maior a favor da não execução da obra. Por fim, existe uma limitação que é intrínseca ao painel de especialista, qual seja, que o painel apresentado não se ocupa do dilema que o governo enfrenta, apenas refuta os dados técnicos do projeto que foi apresentado. É preciso esclarecer, contudo, que o governo, juntamente com a deliberação do Congresso Nacional, ao decidir executar uma obra, adota uma posição política, considerando diversos fatores de âmbito nacional, sejam eles técnicos, econômicos ou sociais. Caso o painel de especialista oferecesse, por exemplo, uma alternativa tecnicamente melhor para resolver o eminente gargalo energético do país, conciliando isto à proteção ao meio ambiente e aos direitos humanos das comunidades indígenas, certamente se abriria um novo diálogo, pois a sociedade brasileira seria apresentada a uma nova situação em que não haveria a dicotomia entre produção de energia e o resguardo aos direitos humanos dos povos indígenas. Os especialistas que desenvolveram o painel, entretanto, não pretenderam resolver o problema do país, o que teria sido uma contribuição infinitamente maior, mas apenas ofereceram um ponto de vista técnico considerando a situação regional. Não ofereceram uma alternativa viável e realista ao dilema político, limitaram-se a apresentar um crítica técnica, permitindo, assim, que a decisão permanecesse na esfera política. Ameaça aos direitos humanos (dos povos indígenas) A concessão da Medida Cautelar 382/2011 pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos despertou grande polêmica e por isso merece ser analisada também sob uma perspectiva doméstica. O pedido da CIDH encaminhado ao governo brasileiro solicitava a imediata suspensão do processo de licenciamento da UHE de Belo Monte e que se impedisse a realização de qualquer obra material de execução das obras até que se observassem as seguintes medidas: “(1) realizar processos de consulta, em cumprimento das obrigações internacionais do Brasil, no sentido de que a consulta seja prévia, livre,
  • 21. informativa, de boa fé, culturalmente adequada, e com o objetivo de chegar a um acordo, em relação a cada uma das comunidades indígenas afetadas, beneficiárias das presentes medidas cautelares; (2) garantir, previamente a realização dos citados processos de consulta, para que a consulta seja informativa, que as comunidades indígenas beneficiárias tenham acesso a um Estudo de Impacto Social e Ambiental do projeto, em um formato acessível, incluindo a tradução aos idiomas indígenas respectivos; (3) adotar medidas para proteger a vida e a integridade pessoal dos membros dos povos indígenas em isolamento voluntário da bacia do Xingu, e para prevenir a disseminação de doenças e epidemias entre as comunidades indígenas beneficiárias das medidas cautelares como consequência da construção da hidroelétrica Belo Monte, tanto daquelas doenças derivadas do aumento populacional massivo na zona, como da exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças como a malária.” (os grifos adicionados) Entretanto, em que pese a correta motivação dos membros da CIDH e o louvável objetivo, a decisão tomada contém gravíssimos erros, inclusive o de negligência quanto a proteção dos direitos humanos de uma grande população atingida pelas obras da UHE de Belo Monte. A decisão da CIDH ignora que existem na região mais de cem mil pessoas que serão atingidas pelas obras da UHE de Belo Monte, que sofrerão “a exacerbação dos vetores de transmissão aquática de doenças”, que serão desabrigados, que terão que ser reacomodados, reinseridos em suas atividades econômicas, ter suas famílias reacomodadas, etc. Dentre essas pessoas, existem milhares de agricultores e de ribeirinhos atingidos 44, em situação de extrema fragilidade econômica e social. Existem comunidades miscigenadas, nas quais não é possível determinar quem são indígenas e quem são ribeirinhos. E, também 44 Muitos agricultores e ribeirinhos tem situação de extrema fragilidade, fato registrado pelo Ministério Público e amplamente divulgado pela sociedade civil, veja em: http://www.xinguvivo.org.br/2011/04/20/mp-recomenda- respeito-aos-direitos-dos-agricultores-e-ribeirinhos-na-regiao-de-belo-monte/
  • 22. dentre essas pessoas, existem cerca de 2.800 índios, que são os únicos com os quais a CIDH se ocupou. O argumento de que a fragilidade dos povos indígenas seria maior do que a dos outros povos absolutamente não se sustenta, tampouco justifica que CIDH não tenha se ocupado dos demais povos afetados 45. Em primeiro lugar, porque frente ao governo brasileiro qualquer população local é igualmente frágil, dada a disparidade de poder entre governados e o governo. Em segundo, porque dentre os afetados pelas obras há numerosos povos não- indígenas, ribeirinhos, população rural e urbana das cidades próximas, que igualmente não têm acesso às informações e igualmente não têm assegurado o direito de discutir e de compreender o projeto e o impacto deste em suas vidas. Em terceiro, a questão do idioma também não se justifica enquanto argumento de maior fragilidade, pois os povos indígenas têm representantes capazes de dialogar com o governo, com instituições, com organismos internacionais, de compreender documentos, de se articular com outros grupos nacionais e estrangeiros. O próprio requerimento feito pelos indígenas à Comissão Interamericana de Direitos Humanos é evidência de sua capacidade de intelecção e de articulação com outros povos não-indígenas. Evidentemente, seria louvável se o governo brasileiro, num exemplo democrático, providenciasse a tradução do EIA/RIMA para os talvez 9 (nove) idiomas indígenas das comunidades afetadas, isso tornaria o diálogo mais franco. A CIDH não pode, entretanto, exigir isso como requisito para execução da obra, pois: i) O único idioma oficial no Brasil é o português; e ii) ela mesma não traduziu sua decisão para os idiomas dos povos a que visa proteger. Da mesma forma, a Organização Internacional do Trabalho também não traduziu a sua Convenção sobre os povos Indígenas e Tribais para todos os idiomas dos povos afetados por ela, a OEA, igualmente, não traduz seus documentos para que todas as minorias das Américas possam compreendê-la e, pelos mesmos motivos, o governo brasileiro tão tem o dever de traduzir os documentos oficiais para idioma que não seja o português, embora, frise- se, seria muito bom que o fizesse. A decisão da CIDH, enquanto visa proteger cerca de 2800 pessoas indígenas, ignora aproximadamente outras 97.000 pessoas, igualmente afetadas e isso enfraquece sobremaneira 45 Depoimento de não-indígenas, membros de uma das comunidades que será atingida pelas obras da UHE de Belo Monte, em: http://www.xinguvivo.org.br/2010/12/21/video-belo-monte-violando-direitos-das- comunidades-no-rio-xingu/
  • 23. seu posicionamento. É certo que apenas os indígenas recorreram à CIDH (o que, aliás, nos sugere que talvez não seja esta a parcela mais frágil dentre os afetados), mas a CIDH deve investigar a denúncia in loco e, ao fazê-lo, não pode ignorar a realidade que presencia e, considerando a possibilidade deveria agir moto próprio 46, deveria estender sua atenção a todos aqueles que tenham seus direitos humanos potencialmente afetados com as obras da UHE de Belo Monte, mesmo que isso envolva grupos que não foram os autores do apelo, como, por exemplo, os habitantes da comunidade do Morro do Félix ou de São Sebastião 47. É inegável que os indígenas têm um status e uma condição diferente dos demais brasileiros e isso está assegurado, tanto na Constituição Federal do Brasil, como em legislação específica 48. São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens (CF/1988, art.231, e ss.). Além disso, suas terras são consideradas inalienáveis e indisponíveis, e os direitos sobre elas, imprescritíveis (CF/1988, art.231, pár.4º.), exceto para os casos de pesquisa, lavra de riquezas minerais e aproveitamento hidrelétrico, todos quando, e se, aprovados pelo Congresso Nacional(CF/1988, art.231, pár.3º.). Vale dizer, a legislação brasileira reconhece que o índio, diferente dos demais brasileiros, tem no meio ambiente em que vive, na natureza que o cerca, não apenas a sua forma de sobrevivência (pois muitos outros brasileiros sobrevivem da caça, da pesca, em condições de subsistência), mas principalmente sua cultura, sua estrutura social e sua fé. A organização da vida indígena está intrinsecamente ligada ao meio ambiente, seus valores, a estrutura de suas tribos, tudo depende da natureza que os cercam. Porém, para o Brasil, mais importante do que isso são as riquezas minerais da terra e o aproveitamento 46 Conforme previsto no artigo 24, do Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. 47 Lisa Feder, antropóloga, narra o seu contato com algumas comunidades do Xingu, em: http://www.fvhd.org.br/forum/topics/os-ribeirinhos-do-medio-xingu 48 Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, da qual o Brasil é signatário. (http://www.oas.org/dil/port/1989%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20sobre%20Povos%20Ind%C3%ADgenas% 20e%20Tribais%20Conven%C3%A7%C3%A3o%20OIT%20n%20%C2%BA%20169.pdf)
  • 24. hidrelétrico desses rios. Mesmo que pareça absurda, essa é a verdade positivada no texto constitucional. Estes são os valores da sociedade brasileira refletido em suas leis 49. Portanto, a discussão sobre direitos indígenas demonstra-se superada. Democraticamente superada. Na região da Volta Grande do Xingu, existem Terras Indígenas demarcadas que deveriam ser protegidas por se tratarem de terras indisponíveis e inalienáveis. Entretanto, a discussão no Congresso Nacional teve o seu momento e prevaleceu o entendimento de que o aproveitamento hidrelétrico para obtenção de energia é mais importante para o país e, consequentemente, que isso justificaria a utilização excepcional das Terras Indígenas para este fim. Assim, a discussão que permanece quanto aos Direitos Humanos não diz respeito apenas aos índios, mas a todos os seres humanos que habitam a região da Volta Grande do Xingu e que serão igualmente afetados pelas obras da UHE de Belo Monte. Caso pretendesse se ater a defesa dos povos indígenas, deveria ter a Comissão Interamericana de Direitos Humanos se debruçado sobre a questão da constitucionalidade do parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição Federal, bem como sobre a discussão que ocorreu, e que se encerrou, junto ao Congresso Nacional. É inegável, contudo, que o texto constitucional parece desatualizado e desumano, incompatível com a superação das crises soberanistas do período militar e, especialmente, com o desenvolvimento tecnológico experimentado, quanto mais quando observada a evolução da sociedade brasileira nos últimos 20 (vinte) anos. Sendo assim a CIDH deveria estar questionando a sociedade brasileira, de forma mais direta, sobre os valores eleitos e positivados em sua Carta Magna e sobre a forma como se está tratando a questão dos direitos humanos dos povos indígenas, especialmente sobre a inalienabilidade de suas terras, sem exceções. Destaque-se que este é um questionamento a ser feito à sociedade brasileira, não ao seu governo. Essa discussão, contudo, jamais foi proposta. 49 Vide Constituição da República Federativa do Brasil, de 1988, Título VIII – Da Ordem Social, Capítulo VIII - Dos Índios, art. 231, e ss.
  • 25. Direitos Humanos É imperioso frisar que nenhum desenvolvimento econômico pode justificar a não observância estrita da proteção aos direitos humanos. A área que será direta ou indiretamente afetada, conforme mencionado acima, contém povos indígenas, população não indígena ribeirinha, população rural e urbana de alguns municípios e todos, sem exceção, devem ter protegidos os direitos que a Constituição Federal e, principalmente, que os Direitos Humanos em âmbito internacional lhes asseguram. Além disso, não se pode admitir que no Brasil, país reconhecidamente democrático, o processo de debate de projetos com a população seja restrito, que suas instituições sejam manipuladas, ou que seus procedimentos sejam adulterados para favorecer qualquer grupo de interesses. O Ministério Público, o Congresso Nacional, a FUNAI, o IBAMA, as Organizações Não-Governamentais, o Poder Judiciário e, sem dúvida alguma, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos, devem exercer vigilância permanente sobre cada passo dado pelo governo e assegurar que nenhum dos atingidos tenha seus direitos, de qualquer natureza, violados. Toda e qualquer forma de aumentar a accountability 50 das ações do governo deve ser estimulada. Os fatos que motivaram a outorga da MC-382/10 são prova de que o governo não dialoga devidamente com a sociedade civil, bem como que, por vezes, impõe seus projetos com certa brutalidade 51. Há que se considerar, mesmo assim, que houve evolução nos últimos anos e que atualmente a sociedade brasileira experimenta um novo patamar em sua relação com governo brasileiro, embora haja limites claros a esse diálogo. Basta observar a própria revisão do projeto de Belo Monte, reduzindo-se para quase um terço o tamanho do reservatório previsto no projeto inicial, a fim de diminuir o impacto ambiental. O projeto inicial alagaria boa parte da área indígena Paquiçamba e do vale do rio Bacajá (ambos agora preservados). Isso resulta em 0,04 km2 alagados por MW instalado – uma das melhores relações do país para empreendimentos implantados acima de 1.000 MW de potência 50 Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43. 51 A opinião de parte da sociedade civil que vê brutalidade nas atitudes do governo é bem ilustrada por Darci Bergmann em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe-belo-monte-com.html
  • 26. instalada 52. Além disso, mesmo que controversos, oficialmente foram promovidos encontros para diálogo com a população 53. A revogação da MC-382/10 Em 29 de julho de 2010, a CIDH reavaliou a MC 382/10 com base na informação enviada pelo Estado brasileiro e pelos peticionários, e modificou o objeto da medida, solicitando ao Brasil que: 1) Adote medidas para proteger a vida, a saúde e integridade pessoal dos membros das comunidades indígenas em situação de isolamento voluntario da bacia do Xingu, e da integridade cultural de mencionadas comunidades, que incluam ações efetivas de implementação e execução das medidas jurídico-formais já existentes, assim como o desenho e implementação de medidas especificas de mitigação dos efeitos que terá a construção da represa Belo Monte sobre o território e a vida destas comunidades em isolamento; 2) Adote medidas para proteger a saúde dos membros das comunidades indígenas da bacia do Xingu afetadas pelo projeto Belo Monte, que incluam (a) a finalização e implementação aceleradas do Programa Integrado de Saúde Indígena para a região da UHE Belo Monte, e (b) o desenho e implementação efetivos dos planos e programas especificamente requeridos pela FUNAI no Parecer Técnico 21/09, recém enunciados; e 52 XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos. P. 14-15. 53 Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre- belo-monte
  • 27. 3) Garantisse a rápida finalização dos processos de regularização das terras ancestrais dos povos indígenas na bacia do Xingu que estão pendentes, e adote medidas efetivas para a proteção de mencionados territórios ancestrais ante apropriação ilegítima e ocupação por não- indígenas, e frente à exploração ou ao deterioramento de seus recursos naturais. (grifos e destaques adicionados) Adicionalmente, a CIDH decidiu que o debate entre as partes no que se refere a consulta previa e ao consentimento informado em relação ao projeto Belo Monte se transformou em uma discussão sobre o mérito do assunto, reconhecendo que transcende o âmbito do procedimento de medidas cautelares. Esta nova postura da CIDH demonstra-se mais apropriada do que a anterior, pois se dedica a temas significativamente menos controversos e é baseada em decisões domésticas. Embora se distancie da atuação universal que pretendia adotar, essa nova postura possivelmente trará resultados mais eficientes. Permitindo ao governo voltar a adotar posturas convergentes no âmbito do Sistema interamericano de Proteção aos Direitos Humanos. Conclusão O caso de Belo Monte na Comissão Interamericana de Direitos Humanos pode ser análisado por dois viéses: internacional e doméstico. Pelo primeiro, observa-se que a CIDH inovou em seu foco de atuação, passando a agir em questões que correspondem às demandas apresentadas pela nova ordem global. Tais demandas, contudo, ainda não haviam sido testadas e legitimadas frente a governos nacionais o que, possivelmente, deixou a CIDH em posição menos favorável no enfrentamento em que se lançou contra o governo brasileiro ao editar a MC-382/10. Pelo segundo, observa-se que, considerando a pletora de interesses envolvidos sobre o caso de Belo Monte, o governo brasileiro, com a aprovação do Congresso Nacional, decidiu levar a diante o projeto da UHE-Belo Monte. Neste aspecto, vale dizer que, por maiores que fossem os custos envolvidos nessa decisão, e após intenso debate político, a opção adotada
  • 28. foi pelo prosseguimento das obras. Além disso, outro ponto que mereceria maior cuidado é a força que o Brasil veio a adquirir recentemente na arena global, que o deixou muito menos sujeitos à influência dos agentes internacionais e, por consequência, fortalecido no embate em que se viu lançado contra a CIDH. Não causa espanto, portanto, que a decisão da CIDH de editar a MC-382/10, solicitando ao governo brasileiro a imediata suspensão das obras de Belo Monte, tenha levado o governo brasileiro a adotar uma postura divergente, soberanista e refratária à atuação da CIDH. No momento seguinte, ao revisar sua decisão e ao retroceder quanto ao pedido feito ao governo brasileiro, a CIDH reconhece a decisão do governo de prosseguir com as obras de Belo Monte, mas sinaliza que permanecerá vigiando a estrita proteção aos direitos humanos das comunidades afetadas pelas obras. Este novo posicionamento adotado após a revogação da MC-382/10, de vigilância e não de controle, permite a CIDH continuar diálogando com o governo brasileiro e, mais importante que isso, possibilitará o acompanhamento das obras e a supervisão internacional quanto à proteção dos direitos humanos das pessoas afetadas pela obra. Embora a CIDH adote, agora, uma postura menos vanguardista e menos ambiciosa, a mudança de estratégia facilita para que a reação do governo brasileiro seja de convergência em relação ao Sistema Interamericano de Proteção aos Direitos Humanos.
  • 29. Bibliografia: Archibugi, Danielle. “Cosmopolitan Democracy and its Critics”. European Journal of International Relations, vol. 10, no3. September, 2004, pp. 437-473. Bergmann, Darci em: http://darcibergmann.blogspot.com/2011/04/governo-brasileiro-impoe- belo-monte-com.html. Botcheva, Liliana; Martin, Lisa. “Institutional Effects on State Behavior: Convergence and Divergence”. International Studies Quarterly, vol. 45, nº 1. March 2001. Carta de Havana, 1948. Centro Brasileiro de Energia Eólica (CBEE) – Atlas Eólico do Nordeste (WANABE 2), in http://www.portalsaofrancisco.com.br/alfa/meio-ambiente-energia-eolica/energia-eolica- 15.php . Constituição Federal da República do Brasil, 1988. Convenção n.169 da OIT sobre povos indígenas e tribais. Cortell, Andrew P. e Davis Jr., James W. D. “How do international institutions matter? The domestic impact of international rules and norms”. International Studies Quarterly, 1996, 40, pp. 451-478. Declaração de José Miguel Insulza, Secretário-Geral da Organização dos Estados Americanos (OEA), in “‘CIDH da OEA deve revisar decisão sobre Belo Monte’, afirma secretário-geral”, Portal G1, Notícias, 04 de maio, 2011. Declaração Interamericana dos Direitos e Deveres do Homem, 1948. Dingwert, Klaus & Pattberg, Philipp. “Global governance as a perspective on world politics”. Global governance – A review of multilateralism and international organization, vol. 12, no 2. April-June 2006, pp. 185-203. Drezner, Daniel W. (Ed.). “Introduction: The Interaction of International and Domestic Politics”. Locating the Proper Authorities: The Interaction of Domestic and International Institutions. Ann Arbor: Michigan University Press, 2003. Estudo de Impacto Aambiental – Belo Monte, 2009, Ministério de Minas e Energias. Grant, Ruth W. & Keohane, Robert. “Accountability and Abuses of Power in World Politics”. The American Political Science Review, vol. 99, nº 1, February 2005, pp. 29-43. Jornal Folha de S. Paulo, edição de 19 de abril de 2011, Caderno Mercado, p. B5. Jornal O Globo. Edição de 10 de novembro de 2010, Caderno Cidades. _____. Edição de 18 de janeiro de 2011, Caderno Economia.
  • 30. Magnoli, D. e Araújo, R., Geografia - a construção do mundo, Geografia geral e do Brasil, Ed. Moderna, 1ª Ed., 2005. Pacto de San José da Costa Rica, 1969. Palestra apresentada pelo prof. Ildo Luís Sauer, Diretor do Instituto de eletrotécnica e energia da USP, em 08 de junho de 2011, na Cidade Universitária-SP. Povos em isolamento voluntário na região do Xingu, vídeo utilizado como prova de sua existência pela sociedade civil em: http://www.youtube.com/watch?v=DOGMpcUXSEI . Projeto do AHE - Belo Monte, vídeo institucional produzido pelo governo brasileiro: http://www.youtube.com/watch?v=Z0eCshTvJ9g . Protocolo de San Salvador, 1988. Registro de reunião ocorrida em 2007, como fórum de diálogo com a comunidade: http://www.prpa.mpf.gov.br/news/2007/mpf-registra-questionamentos-da-populacao-sobre- belo-monte . Regulamento da Comissão Interamericana de Direitos Humanos. Relatório de Impacto sobre o Meio Ambiente – RIMA A.H.E. Belo Monte, Ministério de Minas e Energia. Resolução 217 A(III), da Assembleia Geral das Nações Unidas, 10 de Dezembro de 1948. “Declaração Universal dos Direitos Humanos”. Revista do Departamento de Geografia, n.4, São Paulo: FFLCH-USP, 1992. P.30; Geografia do Brasil (Encarte). Rosenau, James N. “Governance, order, and change in world politics”. Rosenau, James & Czempiel, Ernst-Otto (eds.). Governance without government: Order and Change in World Politics. Cambridge University Press, 2000, pp. 1-29. Rosenau, James N. “Norms”. Along the Domestic-Foreign Frontier. Exploring governance in a turbulent world. Cambridge University Press, 2000, pp. 174-188. Sônia Maria S.B.M. e Hernandez, Francisco del M., Orgs. “Painel de especialistas – Análise crítica do EIA do Aproveitamentento Hidrelétrico de Belo Monte”, Belém, 2009. Switkes, Glenn. International Rivers Network. Para o Debate Internacional Estratégico sobre a Indústria de Alumínio, São Luís de Maranhão, Brasil, 16-18 de outubro de 2003. XXVII Seminário Nacional de Grandes Barragens. Belém/PA, 03 a 07 de junho de 2007. In AHE Belo Monte – Evolução Dos Estudos.