Ação contra multas em acordos de leniência da Lava Jato
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EXCELENTÍSSIMA SENHORA PRESIDENTE DO EGRÉGIO SUPREMO
TRIBUNAL FEDERAL
Distribuição inicial
Prevenção do Min. Gilmar Mendes, em virtude do MS 36526/DF
O PARTIDO SOCIALISMO E LIBERDADE (PSOL), por seu
Diretório Nacional, inscrito no CNPJ/MF sob o n. 06.954.942/0001-95, com sede na SCS,
Quadra 02, Bloco C, n. 252, Edifício Jamel Cecílio, 5º andar, Brasília/DF (Doc. 01), por
seu Presidente Juliano Medeiros (Doc. 01), brasileiro, historiador, inscrito no CPF/MF
sob o n. 004.407.270-81 e no RG n. 8.084.283.962 SJS/RS, e nos termos de seu Estatuto
Social; o SOLIDARIEDADE, por seu Diretório Nacional, inscrito no CNPJ/MF sob o
n. 18.532.307/0001-07 com sede QL 26 Conjunto 1, Lote 19, Casa 26, Lago Sul, em
Brasília-DF, CEP 71665-115 (Doc. 02), por seu Presidente Eurípedes Gomes de Macedo
Júnior (Doc. 02), brasileiro, casado, inscrito no CPF/MF sob o n. 657.963.651-34 e no
RG n. 1322.668/SSP, e pelo seu Vice-Presidente Paulo Pereira da Silva, brasileiro,
casado, portador do CPF/MF sob o n. 210.067.689-04 e no RG n. 10.273.141-X, e nos
termos de seu Estatuto Social; e o PC DO B, por seu Diretório Nacional, inscrito no
CNPJ/MF sob o n. 54.956.495/0001-56 com sede sala n. 1.224, do Edifício Executivo
Office Tower, localizado no Bloco F, da Quadra 2, do SHN, Asa Norte, Brasília-DF (Doc.
03), por sua Presidenta Luciana Barbosa de Oliveira Santos (Doc. 03), brasileira, em
relação de união estável, inscrita no CPF/MF sob o n. 809.199.794-91, e nos termos de
seu Estatuto Social, vêm, por seus advogados (Doc. 04), com fundamento no art. 102,
§1º, e no art. 103, VIII, da Constituição Federal, e no art. 1º, caput, c/c art. 5º, §1º e
seguintes, ambos da Lei n. 9.882/1999, propor a presente ARGUIÇÃO DE
DESCUMPRIMENTO DE PRECEITO FUNDAMENTAL COM PEDIDO DE
MEDIDA CAUTELAR, pelas razões de fato e de direito a seguir aduzidas:
2
RESUMO EXECUTIVO
1. BUSÍLIS DESTA APDF.
São quatro os objetivos desta ação:
(i) suspender, liminarmente, a eficácia das obrigações pecuniárias (indenizações e multas)
impostas em todos os acordos de leniência celebrados entre o Estado e empresas
investigadas durante a Operação Lava Jato, antes da celebração do ACT, em 06.08.2020;
(ii) obter, do Supremo, a fixação de intrepretação conforme a Constituição da Lei nº
12.846/2013 e do Decreto nº 11.129/2022, afastando, de uma vez por todas, a
hermenêutica punitivista e inconstitucional do lavajatismo, garantindo, nesse particular,
a presença, no âmbito federal, da Controladoria-Geral da União (“CGU”) como
proponente ou órgão de controle, enquanto centro racionalizador do agir estatal, para a
celebração de acordos desse gênero;
(iii) fazer como que se reconheça, em sede de jurisdição constitucional, que os acordos
foram pactuados em situação de extrema anormalidade político-jurídico-institucional,
mediante situação de coação e, portanto, sob um Estado de Coisas Inconstitucional
(“ECI”); e, por fim,
(iv) possibilitar a revisão de tais acordos à luz dos critérios a serem fixados pelo Supremo
Tribunal Federal mediante julgamento desta ADPF.
2. O QUE SE ESPERA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL EM FACE DE UM
ESTADO DE COISAS INCONSTITUCIONAL GERADO PELO LAVAJATISMO.
Durante a Operação Lava Jato, diversos órgãos de persecução penal promoveram,
comprovadamente, a instalação de um Estado de Coisas Inconstitucional em relação não
só aos celebrantes dos acordos de leniência, como à própria sociedade civil, que arcou,
em última instância, com o efeito cascata da quebra generalizada de Companhias
estratégicas para a economia brasileira.
Os reiterados ataques ao Judiciário – um modus operandi tristemente comum no
desmantelamento de democracias constitucionais ao redor do mundo – têm servido de
ocasião para tentar constranger juízes a não revisar e, se o caso, não invalidar por
inconstitucionais atos de “combate à corrupção” praticados à margem do direito.
3
O que se pede do Supremo, antes de tudo, com esta ADPF, é, do ponto de vista
hermenêutico, o revisitar do conceito e da técnica do ECI à luz do paradigma da
degeneração.
Os aparatos decisórios e as condições de aplicação do ECI são plenamente compatíveis
com a situação enfrentada por toda a sociedade brasileira em razão da Operação Lava
Jato. Afinal, se não colocados em xeque, revistos e controlados, os (poucos) parâmetros
segundo os quais foram celebrados os acordos de leniência continuarão a colocar em risco
a continuidade da atividade empresarial de empresas essenciais à economia brasileira e a
capacidade de restituição dos danos sofridos pelo erário.
Um modelo constitucionalmente adequado de enfrentamento da corrupção por meio de
acordos de leniência tem de (i) prever a possibilidade de repactuação; (2) preservar a
companhia, prevendo, conforme o caso, a compensação de crédito tributário ou em
precatórios. Caso contrário, o Judiciário chancelará uma dicotomia inconstitucional, a
pretexto de combate à corrupção, entre a persecução estatal e a garantia fundamental da
função social da empresa.
4
I. O OBJETO DA AÇÃO .................................................................................. 6
II. DA DISTRIBUIÇÃO POR PREVENÇÃO AO MIN. GILMAR MENDES
....................................................................................................................................7
III. LEGITIMIDADE ATIVA DO PSOL, SOLIDARIEDADE e PC DO B ... 9
IV. EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO EM DEBATE:
INCONSTITUCIONALIDADES EM ACORDOS DE LENIÊNCIA
FIRMADOS ANTES DO ACORDO DE COOPERAÇÃO TÉCNICA........... 10
V. CABIMENTO DA PRESENTE DEMANDA ............................................ 13
VI. O CONTEXTO EM QUE SE INSEREM INÚMEROS ACORDOS DE
LENIÊNCIA FIRMADOS ANTES DO ACORDO DE COOPERAÇÃO
TÉCNICA .............................................................................................................. 19
1. Relembrando pontos relevantes...................................................................... 19
2. Dificuldades nos acordos de leniência............................................................ 24
3. Só paga quem está vivo .................................................................................. 31
VII. NATUREZA JURÍDICA DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA................. 34
VIII.DEFEITOS DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA ....................................... 36
1. Coação e abusos da operação lava jato........................................................... 36
2. Violação à soberania nacional........................................................................ 44
3. A ONG Transparência Internacional nos Acordos de Leniência ................... 48
IX. SÍNTESE NECESSÁRIA ............................................................................ 50
X. APROXIMAÇÃO DESTE CASO AO ESTADO DE COISAS
INCONSTITUCIONAL: OS RISCOS DE UMA PERSECUÇÃO ESTATAL
DEGENERADA. ................................................................................................... 52
XI. OS VÍCIOS QUE MACULAM OS ACORDOS DE LENIÊNCIA.......... 60
1. AS COLABORAÇÕES PREMIADAS E OS ACORDOS DE LENIÊNCIA 60
A. Hipótese de contextualização ......................................................................... 60
B. Preceitos Constitucionais violados................................................................. 62
C. Interpretação conforme a Constituição........................................................... 66
2. A ARBITRARIEDADE DA MULTA HÍBRIDA ......................................... 67
A. Hipótese de contextualização ......................................................................... 67
B. Preceitos Constitucionais violados................................................................. 68
C. Interpretação conforme a Constituição........................................................... 69
3. ABUSOS NA IDENTIFICAÇÃO DA BASE DE CÁLCULO DAS MULTAS
................................................................................................................................. 69
A. Hipótese de contextualização ......................................................................... 69
5
B. Preceitos Constitucionais violados................................................................. 70
C. Interpretação conforme a Constituição........................................................... 72
4. CELEBRAÇÃO DE MÚLTIPLOS ACORDOS DE LENIÊNCIA............... 72
A. Hipótese de contextualização ......................................................................... 72
B. Preceitos Constitucionais violados................................................................. 74
A. Interpretação conforme a Constituição........................................................... 74
5. CAIXA DOIS ELEITORAL E A BASE DE CÁLCULO DAS OBRIGAÇÕES
PECUNIÁRIAS ...................................................................................................... 75
B. Preceitos Constitucionais violados................................................................. 75
6. FATOS ILÍCITOS CONSIDERADOS LÍCITOS OU DE MENOR
GRAVIDADE......................................................................................................... 76
XII. NON REFORMATIO IN PEJUS ................................................................. 78
XIII.DOS REQUISITOS AUTORIZADORES DA CONCESSÃO DE
MEDIDA LIMINAR (ART. 5º DA LEI 9.882/99)............................................... 81
XIV.DOS PEDIDOS ............................................................................................. 84
6
I. O OBJETO DA AÇÃO
1. Esta ação se presta a (i) suspender liminarmente a eficácia de obrigações
pecuniárias (indenizações e multas) avençadas em todos os acordos de leniência
celebrados entre o Estado e empresas, antes da celebração do Acordo de Cooperação
Técnica (“ACT”), de 06 de agosto de 2020, capitaneada por este E. Supremo Tribunal
Federal (Doc. 05); (ii) requerer ao E. Supremo Tribunal Federal a fixação da interpretação
conforme a Constituição em relação à Lei nº 12.846/2013 e ao Decreto nº 11.129/2022,
afastando a hermenêutica punitivista inconstitucional, garantindo, nesse particular, a
presença da Controladoria-Geral da União (“CGU”) – e outros órgãos de igual
competência nos demais entes federativos - como proponente ou órgão de controle,
enquanto centro de racionalização do agir estatal, unificando, coordenando e fiscalizando
a celebração dos acordos de leniência; (iii) reconhecimento de que os referidos acordos
foram pactuados em situação de anormalidade político-jurídico-institucional e, portanto,
em Estado de Coisas Inconstitucional; e (iv) ao final, possibilitar a revisão de tais
acordos à luz dos critérios a serem fixados pelo Supremo Tribunal Federal, os quais
deverão ser observados por todos os órgãos estatais, em especial a CGU - e outros
órgãos de igual competência nos demais entes federativos -, enquanto “última instância
administrativa/executiva” da legalidade dos acordos de leniência.
2. A presente ação ostenta, portanto, uma dupla função: (a) prospectiva, no sentido
de balizar os acordos de leniência que vierem a ser celebrados, de acordo com o
julgamento acerca da constitucionalidade da legislação que os fundamenta; e (b)
retrospectiva, permitindo a revisão de cláusulas e condições abusivas dos acordos já
celebrados e, em sede liminar, a suspensão das obrigações pecuniárias pactuadas antes da
definição hermenêutico-constitucional do STF.
3. Os preceitos fundamentais atingidos pelos numerosos acordos de leniência
firmados antes do ACT são aqueles previstos no art. 5º, inciso LIV e no caput do art. 37,
da Constituição Federal, quais sejam: (i) princípio da legalidade; (ii) princípio da boa-fé
7
e da boa administração; (iii) princípio da moralidade; (iv) princípio da impessoalidade,
(v) princípio da proporcionalidade; (vi) princípio da razoabilidade; (vii) princípio da
finalidade; (viii) princípio do devido processo legal; (ix) valores sociais do trabalho e
livre iniciativa, fundamentos da ordem econômica constitucional brasileira (arts. 1º, IV
c/c 170 II, III, IV, VII e VIII, todos da CF).
4. Os provimentos jurisdicionais aqui pretendidos decorrem do manifesto vício de
consentimento que dá causa a todos esses acordos de leniência (“Acordos
Inconstitucionais”), em afronta à Constituição Federal. Estes vícios, importante ressaltar,
tiveram impacto determinante nos montantes dos acordos de leniência, celebrados sob o
cabresto de maus representantes do Ministério Público Federal. Daí a necessidade deste
E. Supremo Tribunal Federal, por meio desta ação, revisar os critérios pecuniários neles
fixados.
II. DA DISTRIBUIÇÃO POR PREVENÇÃO AO MIN. GILMAR MENDES
5. A presente ação tem como pano de fundo a necessidade de um pronunciamento
deste STF acerca da racionalização do combate à corrupção no país, especialmente
mediante a presença da Controladoria-Geral da União (“CGU”) como proponente ou
órgão de controle, considerando as não raras sobreposições de órgãos diferentes
celebrando acordos que, muitas vezes, versam sobre o mesmo bem jurídico.
6. Considerando as regras de distribuição por prevenção contidas nos arts. 67, §6º1
e
69, caput e §1º2
, todos do RISTF, os Requerentes pedem desde já a distribuição destes
1
RISTF: Art. 67. Far-se-á a distribuição entre todos os Ministros, inclusive os ausentes ou licenciados
por até trinta dias, excetuado o Presidente.
(...)
§ 6º A prevenção deve ser alegada pela parte na primeira oportunidade que se lhe apresente, sob pena de
preclusão.
2
RISTF: Art. 69. A distribuição da ação ou do recurso gera prevenção para todos os processos a eles
vinculados por conexão ou continência.
§ 1º O conhecimento excepcional de processo por outro Ministro que não o prevento prorroga-lhe a
competência nos termos do § 6º do art. 67.
8
autos ao Min. Gilmar Mendes, relator de diversas ações em que as mesmas questões
foram tratadas tais como os MS 35435/DF, MS 36496/DF, MS 36173/DF, e o MS
36526/DF3
que atrai a prevenção da presente ADPF dado que ainda está em trâmite.
7. A aproximação entre os controles abstrato e concreto de constitucionalidade
tornou transformou em expediente comum nesse Tribunal o reconhecimento de
prevenção entre remédios constitucionais e ações de controle de constitucionalidade,
justamente dada a necessidade de o STF se debruçar sobre questões temáticas que, por
vezes, aparecem dispersas em diversas ações.
8. Nesse sentido, vejamos que a ADC 85 – cujo objeto é o Decreto nº 11.366, de 1º
de janeiro de 2023, sobre armas de fogo - foi distribuída ao Min. Gilmar Mendes por
prevenção à ADIn 7334, que tinha o mesmo objeto, e essa, por sua vez havia sido
distribuída por prevenção ao Min. Gilmar Mendes em virtude do MS 38933-DF, que
posteriormente atraiu, por prevenção, os MS 38979-DF e MS 38991-DF.
3
DIREITO ADMINISTRATIVO. MANDADO DE SEGURANÇA. ACÓRDÃO DO TRIBUNAL DE
CONTAS DA UNIÃO (TCU). TOMADAS DE CONTAS ESPECIAIS. INVESTIGAÇÕES
RELACIONADAS A FRAUDES NA CONSTRUÇÃO DA USINA TERMONUCLEAR DE ANGRA III.
MÚLTIPLAS ESFERAS DE RESPONSABILIZAÇÃO ADMINISTRATIVA. NECESSIDADE DE
COORDENAÇÃO INSTITUCIONAL ENTRE AS ENTIDADES E HARMONIZAÇÃO DAS SANÇÕES
PREMIAIS. TENTATIVA DE COLABORAÇÃO TRAVADA DIRETAMENTE COM O TCU.
PARECER FAVORÁVEL DA ÁREA TÉCNICA DO TRIBUNAL E DO MINISTÉRIO PÚBLICO
JUNTO AO TCU. REJEIÇÃO DA COLABORAÇÃO PELO PLENÁRIO DO TRIBUNAL POR
AUSÊNCIA DE PREVISÃO LEGAL. BOA-FÉ OBJETIVA E PROIBIÇÃO DE COMPORTAMENTO
CONTRADITÓRIO. VIOLAÇÃO DO PRINCÍPIO DA SEGURANÇA JURÍDICA. SEGURANÇA
CONCEDIDA. 1. O ordenamento jurídico pátrio assistiu a um espraiamento da figura dos acordos
de Leniência Administrativa, em paralelo ao uso de institutos análogos na seara criminal. Esse
movimento foi influenciado pelo esforço internacional de convergência na adoção de políticas judiciais e
legislativas de combate à corrupção. 2. A coexistência de múltiplos regimes de leniência requer um
esforço normativo de alinhamento dos incentivos premiais dos sistemas e de criação de mecanismos
de cooperação entre as agências responsáveis pelo enforcement das legislações. Dentre os importantes
fatores de incongruência dos regimes que podem comprometer os incentivos dos agentes econômicos
em colaborar com as autoridades públicas no desvendamento de ilícios ressaltam-se: (i) a ausência
ou a imprecisão de previsões legais sobre a extensão dos benefícios da leniência à esfera penal e (ii) a
pluralidade de metodologias de cálculo da reparação dos danos. (...) 8. Segurança concedida. STF, 2ª
T., MS 36526-DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 30.3.2021, DJUe 2.7.2021. Destaques nossos.
9
9. Ou seja, a presente ADPF é distribuída por prevenção a um MS tal qual a ADC
do exemplo acima teve sua prevenção definida a partir de MS que versava sobre o mesmo
objeto ainda que em amplitude menor.
10. Não fosse o suficiente, foi exatamente o que ocorreu com a ADIn 7212,
distribuída por prevenção ao MS 38659, e com o MS 38485, distribuído por
prevenção à ADPF 850. Nesse último caso, a prevenção foi desafiada e a questão
encaminhada à Presidência da Corte, que a manteve, considerando também o art. 56 do
CPC4
, nos seguintes termos: "Como se pode perceber pela análise comparativa dos
pedidos supratranscritos, há continência entre os pedidos da presente ação mandamental
com os formulados na ADPF 850, a qual, por ser mais ampla, abrange o pedido
formulado no mandado de segurança, justificando-se a distribuição do feito, por
prevenção (...).”5
11. De rigor, portanto, a distribuição por prevenção ao Min. Gilmar Mendes,
considerando o MS 36526/DF.
III. LEGITIMIDADE ATIVA DO PSOL, SOLIDARIEDADE e PC DO B
12. O PSOL, o SOLIDARIEDADE, e o PC do B são partidos políticos com
representação no Congresso Nacional, devidamente registrados no Tribunal Superior
Eleitoral e, portanto, nos termos do art. 2º, inciso I, da Lei n. 9.882/1999 (cf. Docs. 01,
02 e 03), legitimados para propor a ação de arguição de descumprimento de preceito
fundamental, uma vez que também o são para a ação direta de inconstitucionalidade (art.
103, CF), conforme reconhecido por este E. Supremo Tribunal Federal:
4
CPC: Art. 56. Dá-se a continência entre 2 (duas) ou mais ações quando houver identidade quanto às
partes e à causa de pedir, mas o pedido de uma, por ser mais amplo, abrange o das demais.
5
STF, decisão monocrática do Presidente Min. Luiz Fux, MS 38.485-DF, rel. Min. Rosa Weber, 31.3.2022,
p. 4/4. Destaques nossos.
10
________________________________________________________
“Direitos fundamentais. Povos Indígenas. Arguição de Descumprimento de
Preceito Fundamental. Tutela do direito à vida e à saúde face à pandemia da
COVID-19. Cautelares parcialmente deferidas. 1. Ação que tem por objeto falhas
e omissões do Poder Público no combate à pandemia da COVID-19 entre os
Povos Indígenas, com alto risco de contágio e mesmo de extermínio de etnias. 2.
A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil – APIB possui legitimidade ativa
para propor ação direta perante o Supremo Tribunal Federal e, bem assim,
os partidos políticos que assinam a petição inicial.” (ADPF 709 MC-Ref |
Ministro Relator Roberto Barroso | julgado em 05.08.2020)
________________________________________________________
13. Resta observado, pois, o requisito de legitimidade, preenchidos os pressupostos
do art. 103, inciso VIII, da Constituição Federal, bem como do art. 2º, inciso I, da Lei n.
9.882/99.
IV. EXPOSIÇÃO DA QUESTÃO EM DEBATE: INCONSTITUCIONALIDADES
EM ACORDOS DE LENIÊNCIA FIRMADOS ANTES DO ACORDO DE
COOPERAÇÃO TÉCNICA
14. Ultrapassados os anos em que parte da sociedade, da imprensa e da comunidade
jurídica estiveram entorpecidas pelos abusos promovidos no curso da Operação Lava
Jato, e daquelas que dela decorreram – especialmente em razão das revelações
amplamente noticiadas da Vaza Jato, da Operação Spoofing e, também, do julgamento
do HC nº 164.493, por este E. Supremo Tribunal Federal –, iniciou-se a revisão da
legalidade de diversos atos praticados nas mencionadas operações.
15. Entre as inúmeras inconstitucionalidades e ilegalidades praticadas, que violaram
diversos direitos fundamentais (= preceitos fundamentais) e que serão devidamente
aprofundadas, destacamos, nesta ação, os vícios contidos nos acordos de leniência
firmados por empresas antes do advento do ACT, especialmente (mas não apenas) aqueles
firmados no âmbito da Operação Lava Jato e das operações que dela decorreram.
11
16. Tais acordos, como se sabe, foram firmados com fundamento na Lei nº
12.846/2013 e no Decreto nº 8.420/2015, e em um momento histórico marcado por um
reprovável punitivismo, que ensejou inúmeras violações ao texto constitucional e, in
concreto, pôs e continua a colocar em risco a continuidade de empresas que aceitaram
acordos cujos valores negociados são demasiadamente altos, divorciados dos parâmetros
constitucionais e legais, e que neste momento estão gerando grandes dificuldades ao seu
adimplemento, colocando em risco a continuidade da atividade empresarial.
17. Esse é o ponto de partida de uma crise verdadeiramente sistêmica. Não apenas as
grandes empresas são prejudicadas, como, também, as pequenas e médias – lembre-se,
aqui, que as microempresas e empresas de pequeno porte dispõem de especial proteção
constitucional (art. 179, da CF) – o que acarreta crises de produção, perda de empregos e
desequilíbrio da relação oferta/consumo, o que ameaça toda a economia doméstica. Isso
significa que o microssistema de combate à corrupção não pode, em hipótese alguma,
desconsiderar a tutela da ordem econômica e social.
18. Neste cenário, conforme veremos detalhadamente no item seguinte, todos perdem:
a empresa, a sociedade e o Poder Público.
19. Para se ter a dimensão do problema enfrentado pelas empresas que celebraram
acordos de leniência, enumeremos as principais ilicitudes cometidas:
a) Os acordos de leniência firmados sob coação;
b) Arbitrariedade na criação de instituto inexistente no ordenamento jurídico:
multa híbrida (multa + ressarcimento mínimo ao erário);
c) Abusos na identificação da base de cálculo das multas;
d) Celebração de múltiplos acordos de leniência;
e) Caixa dois eleitoral e a base de cálculo das obrigações pecuniárias; e
f) Fatos considerados na celebração dos acordos de leniência, mas que
posteriormente não foram qualificados como ilícitos.
12
20. Conforme demonstraremos ao longo desta petição inicial, os acordos de leniência
que apresentam alguma das ilicitudes listadas acima violaram não apenas dispositivos
infralegais, mas fizeram tábula rasa de importantes preceitos fundamentais, quais sejam:
(i) princípio da legalidade; (ii) princípio da boa-fé e da boa Administração; (iii) princípio
da moralidade; (iv) princípio da impessoalidade, (v) princípio da proporcionalidade; (vi)
princípio da razoabilidade; (vii) princípio da finalidade; (viii) devido processo legal; e
(ix) valores sociais do trabalho e livre iniciativa, fundamentos da ordem econômica
constitucional brasileira, todos de envergadura constitucional (arts. 1º, IV, 5º, LIV, art.
37, caput, e 170 II, III, IV, VII e VIII, da CF).
21. Obviamente que os abusos cometidos nos acordos de leniência firmados,
especificamente no que se refere às obrigações pecuniárias (= objeto desta ADPF),
evidenciam a existência de controvérsia constitucional relevante e, por esta razão, não
podem ser desconsiderados pelo Poder Judiciário, à luz da intepretação a ser fixada por
este E. Supremo Tribunal Federal ao analisar as ilicitudes apontadas.
22. O que se pretende, destarte, é, indo além da permissão de se reexaminar na esfera
adequada os acordos celebrados, o estabelecimento de critérios, por meio da técnica da
interpretação conforme a Constituição a incidir sobre a Lei nº 12.846/2013 e o Decreto
nº 8.420/2015 (atual Decreto nº 11.129/2022), para se extirparem as arbitrariedades
identificadas - e que serão destrinchadas nas linhas seguintes -, nas obrigações
pecuniárias dos acordos de leniência, como forma de reestabelecer a validade (parcial)
dos negócios jurídicos celebrados e proporcionar maior segurança jurídica, boa-fé e lisura
aos acordos futuros. Deseja-se, portanto, que os acordos de leniência sejam celebrados de
acordo com os princípios e fundamentos da República brasileira, revelados de maneira
clara no ACT, celebrado em 06 de agosto de 2020.
23. Deve-se salientar que os acordos de leniência não se encontram dentro das
fronteiras rígidas do direito; as negociações impactam outros sistemas da sociedade, tais
como a política e a economia, de modo que inconstitucionalidades/ilegalidades toleradas
13
pelo direito possuem elevado potencial desregulatório, o que levaria e, a rigor, tem levado,
à fragilização sistêmica da democracia brasileira.
24. Antes de nos debruçarmos detidamente sobre as aludidas ilicitudes, resgataremos,
brevemente, o momento histórico em que os acordos de leniência foram celebrados e as
dificuldades reais das empresas para a celebração desse negócio jurídico. Mas, antes,
apresentaremos as razões pelas quais a ADPF é a via adequada à pretensão da autora.
V. CABIMENTO DA PRESENTE DEMANDA
25. A partir da exposição dos fatos, percebe-se facilmente que a presente ação visa
fixar intepretação adequada da Lei nº 12.846/2013 e do Decreto nº 8.420/2015 (atual
Decreto nº 11.129/2022) ao texto constitucional, para preservar diversos preceitos
fundamentais nos acordos de leniência, especificamente quanto às obrigações
pecuniárias.
26. O pedido se volta, portanto, à análise de constitucionalidade da legislação que
alicerça os acordos de leniência no direito brasileiro – fixando-lhe uma interpretação
constitucionalmente adequada –, e também aos próprios acordos já celebrados,
especialmente aqueles anteriores ao já mencionado ACT. O duplo objeto justifica,
portanto, a propositura da presente ADPF, como trataremos mais adiante.
27. Existem inúmeros acordos de leniência, firmados especialmente pelo Ministério
Público Federal, ao arrepio da Lei nº 12.846/2013, que ofendem a Constituição Federal
de 1988, exigindo o pronunciamento deste E. Supremo Tribunal Federal.
28. De acordo com o art. 1º, caput, da Lei 9.882/1999, cabe a arguição de
descumprimento de preceito fundamental para evitar ou reparar lesão a preceito
fundamental resultante de ato do Poder Público e quando for relevante o fundamento
da controvérsia constitucional sobre lei ou ato normativo federal:
14
________________________________________________________
“Art. 1o
A argüição prevista no § 1o
do art. 102 da Constituição Federal será
proposta perante o Supremo Tribunal Federal, e terá por objeto evitar ou reparar
lesão a preceito fundamental, resultante de ato do Poder Público.
Parágrafo único. Caberá também argüição de descumprimento de preceito
fundamental:
I - quando for relevante o fundamento da controvérsia constitucional sobre
lei ou ato normativo federal, estadual ou municipal, incluídos os anteriores à
Constituição;”
________________________________________________________
29. Tem-se, assim, triplo critério de admissibilidade, para além da legitimidade
ativa, a saber: (i) violação ou risco de violação a preceito fundamental; (ii) oriunda de um
ato do Poder Público; e (iii) inexistência de outro meio eficaz. Todos, por sua vez,
presentes nesta arguição apresentada a este E. Supremo Tribunal Federal.
30. Mesmo que não haja delimitação precisa acerca do que seriam os preceitos
fundamentais a serem protegidos pela via da arguição de descumprimento, é certo que os
direitos e garantias fundamentais, os princípios e os fundamentos da República, bem
como as demais normas constitucionais correlatas, são parâmetro de controle no bojo da
ADPF. 6
31. Não há dúvidas de que os acordos de leniência também podem ser questionados
em ADPF. Como vem afirmando a jurisprudência do E. Supremo Tribunal Federal, atos
6
“É muito difícil indicar, a priori, os preceitos fundamentais da Constituição passíveis de lesão tão grave
que justifique o processo e julgamento da arguição de descumprimento. Não há dúvida de que alguns
desses preceitos estão enunciados, de forma explícita, no texto constitucional. Assim, ninguém poderá
negar a qualidade de preceitos fundamentais da ordem constitucional aos direitos e garantias
fundamentais (art. 5º, dentre outros). Da mesma forma, não se poderá deixar de atribuir essa qualificação
aos demais princípios protegidos pela cláusula pétrea do art. 60, § 4º, da CF: o princípio federativo, a
separação de Poderes e o voto direto, secreto, universal e periódico.” MENDES, Gilmar Ferreira e
BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 16ª edição, São Paulo: Saraiva (Série
IDP), n. 4.1, livro digital. Destaques nossos. Cf. também: BARROSO, Luís Roberto, O Controle de
Constitucionalidade no Direito Brasileiro: Exposição sistemática da doutrina e análise crítica da
jurisprudência, 8ª edição, São Paulo: Saraiva, 2019, p. 360-361; ABBOUD, Georges. Processo
Constitucional Brasileiro, 5ª edição, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2021, n. 3.5.1, p. 586.
15
do Poder Público individuais e concretos, incluindo decisões judiciais7
, são passíveis
de controle mediante ADPF (art. 1º, p.u., inciso I, da Lei nº 9.882/99).
32. Como bem observa Georges Abboud8
, a “amplitude do conceito de ato do Poder
Público apto a ser objeto de ADPF torna-a importante via processual de controle
democrático, uma vez que essa abertura permite que atos bastante atípicos sejam
confrontados com a Constituição”. Esta amplitude é necessária, como salienta o mesmo
autor, para que não se tenha no ordenamento jurídico brasileiro atos blindados ao controle
de constitucionalidade. Os acordos de leniência, que são atos concretos e individuais do
Poder Público, obviamente não estão infensos ao controle democrático de
constitucionalidade.
33. Também não se pode desconsiderar a existência de interesse público relevante nas
inconstitucionalidades apontadas nos acordos de leniência. Como bem anotou o Ministro
Gilmar Mendes, relator da conhecida ADPF nº 33/PA, a “relevância do interesse público”
é um requisito de admissibilidade implícito da ADPF. Este requisito, obviamente, está
preenchido no presente caso.
34. Além disso, não podemos negligenciar que o julgamento procedente desta ADPF,
com eficácia erga omnes e efeito vinculante, permitirá que qualquer empresa lesada na
parte pecuniária nos acordos de leniência tenha acesso direto a este Supremo Tribunal
Federal, através da reclamação constitucional, caso demonstre que a interpretação
constitucional fixada por esta Corte não está sendo devidamente cumprida (art. 13, Lei nº
9.882/1999). O interesse público nesta ação é induvidoso e poderá salvar inúmeras
empresas prejudicadas com os valores abusivos dos acordos de leniência que celebraram.
35. Os direitos fundamentais mitigados pelos inúmeros acordos de leniência firmados
antes do ACT, como adiantado, aqueles previstos no art. 5º, inciso LIV e no caput do art.
7
Neste sentido, vide a ADPF 405/RJ; ADPF 398/DF.
8
Processo Constitucional Brasileiro. São Paulo: Revista dos Tribunais, 5ª Ed., 2021, n. 3.5.2, p. 586.
16
37, da Constituição Federal, quais sejam: (i) princípio da legalidade; (ii) princípio da
boa-fé e da boa Administração; (iii) princípio da moralidade; (iv) princípio da
impessoalidade, (v) princípio da proporcionalidade; (vi) princípio da razoabilidade; (vii)
princípio da finalidade; (viii) princípio do devido processo legal; (ix) valores sociais do
trabalho e livre iniciativa, fundamentos da ordem econômica constitucional brasileira
(CF 1º, IV c/c 170 II, III, IV, VII e VIII).
36. Apesar de ser induvidosa a violação dos preceitos fundamentais destacados acima,
é inegável que em diversas situações a atuação abusiva do Ministério Público Federal na
negociação e celebração de inúmeros acordos de leniência também violou dispositivos
constitucionais que determinam a sua atuação dentro dos quadrantes da ordem jurídica
brasileira, quais sejam: art. 127, caput, e art. 129, inciso II, da Constituição Federal.
37. Por fim, a respeito da subsidiariedade, isto é, sobre a inexistência de outro meio
eficaz para pôr cobro à violação aos preceitos fundamentais, sufragamos a concepção do
Ministro Roberto Barroso9
, para quem a regra da subsidiariedade da ADPF merece uma
“interpretação mais aberta e construtiva”. Nos termos do art. 4º, §1º, da Lei nº 9.882/99,
a subsidiariedade diz respeito à correlação entre a eficácia da medida disponível e a
lesividade ao preceito fundamental.
38. É exatamente nesse sentido, relacionado ao grau de eficácia da proteção à ordem
constitucional, que o Ministro Gilmar Mendes10
interpreta o que ficou conhecido como
subsidiariedade da ADPF, ou seja, o disposto no art. 4º, §1º, da Lei 9.882/99:
________________________________________________________
A ADPF somente será admitida se não houver outro meio eficaz de sanar a
lesividade (art. 4º, §1º) (...)
Meio eficaz de sanar a lesão parece ser aquele apto a solver a controvérsia
constitucional relevante de forma ampla, geral e imediata.
9
BARROSO, Luís Roberto. O controle de constitucionalidade no Direito Brasileiro: exposição sistemática
da doutrina e análise crítica da jurisprudência, 7. Ed. São Paulo: Saraiva, 2016, p 337.
10
MENDES, Gilmar Ferreira. Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental: comentários à Lei
n. 9.882, de 3-12-1999. São Paulo: Saraiva, 2007, p. 110-111.
17
Convém observar que, no direito alemão, a Verfassungsbeschwerde (recurso
constitucional) está submetida ao dever de exaurimento das instâncias ordinárias.
Todavia, a Corte Constitucional pode decidir de imediato um recurso
constitucional, se se mostrar que a questão é de interesse geral ou se
demonstrar que o requerente poderia sofrer grave lesão caso recorresse à
via ordinária (Lei Orgânica do Tribunal, §90, II).
________________________________________________________
39. O entendimento quanto ao caráter qualitativo da subsidiariedade encontra guarida
na jurisprudência deste E. Supremo Tribunal Federal.11
De acordo com ela, são três os
elementos que justificam a propositura de uma ADPF como esta: (i) exclusividade da
ADPF para pacificar a controvérsia posta de modo amplo, geral e imediato – visto não
tratar de um único acordo de leniência, mas de requisitos para os acordos em geral; (ii) o
inequívoco interesse público na manutenção da função social das empresas e acordos de
leniência firmados de forma legal e constitucional; e (iii) a interpretação acerca de uma
prática já extremamente institucionalizada, um verdadeiro modus operandi de celebração
desses acordos.
40. Cumpre, também, destacar a feição que este E. Supremo Tribunal Federal vem
conferindo à ADPF como medida processual apta a tratar situações complexas, que
exijam a participação de todos os Poderes da República, o que se vê presente nesta ação,
de forma inequívoca, visto se tratar, no fundo, de questão estrutural.12
41. Nesse sentido, apenas a ADPF, como tal, permite a consecução do amplo objeto
11
STF, Tribunal Pleno, ADPF 388, rel. min. Gilmar Mendes, j. 9.3.2016, DJUe 1.8.2016. No mesmo
sentido: “Não bastasse, tem sido prestigiada, na interpretação desse dispositivo, a consideração da eficácia
típica dos processos objetivos de proteção da ordem constitucional, vale dizer, a eficácia erga omnes e o
efeito vinculante próprios ao controle abstrato de constitucionalidade. Significa afirmar que referido
dispositivo, ao consagrar o que a doutrina vem convencionando chamar de cláusula de subsidiariedade da
arguição de descumprimento, exige, como condição de admissibilidade da ação, a inexistência de outro
meio de sanar a lesividade que seja tão eficaz e definitivo quanto a ADPF, qual seja, outra medida adequada
no universo do sistema concentrado de jurisdição constitucional.” STF, Tribunal Pleno, ADPF 405, rel.
min. Rosa Weber, j. 21.6.2021, DJUe 30.6.2021. Cf., também, STF, Tribunal Pleno, ADPF 90, rel. min.
Luiz Fux, j. 3.4.2020, DJUe 13.5.2020.
12
“É cabível a arguição de descumprimento de preceito fundamental quando houver (i) uma violação
generalizada de direitos humanos; (ii) uma omissão estrutural dos três poderes; e (iii) uma necessidade de
solução complexa que exija a participação de todos os poderes.” STF, Tribunal Pleno, ADPF 635 MC, rel.
min. Edson Fachin, j. 18.8.2020, DJUe 21.10.2020.
18
desta ação. Seus pedidos, apesar de envolverem a constitucionalidade da Lei nº
12.846/2013 e do Decreto nº 8.420/2015 (atual Decreto nº 11.129/2022), extrapolam os
limites processuais da ADI, por exemplo, voltando-se, também, contra os acordos de
leniência, para que os doravante celebrados e os anteriormente negociados, com a
participação/ciência obrigatória da CGU - e outros órgãos de igual competência nos
demais entes federativos -, enquanto centro emanador de racionalidade, sigam as
diretrizes a serem fixadas pelo E. Supremo Tribunal Federal neste julgamento.
42. Por conseguinte, nenhuma outra via disponível em nosso sistema jurídico tornaria
viável a judicialização desse objeto específico e multifacetado. E não é possível impugnar
cada um desses elementos separadamente. Conferir interpretação conforme à legislação
acima é, para todos os efeitos, provocar a revisão dos acordos de leniência já celebrados
e estabelecer critérios para os futuros, afirmando a centralidade da CGU. Todas essas
pretensões estão necessariamente imbricadas, de modo que é impossível analisá-las
separadamente sem incorrer numa simplificação exagerada do atual estado de coisas.
43. Assim, o art. 4°, §1º, da Lei nº 9.882/99, só pode ser interpretado, diante de uma
perspectiva substancial de garantia da ordem constitucional, de maneira a garantir que a
ADPF seja um instrumento subsidiário cuja admissibilidade possa estar também
relacionada à sua capacidade de dar um determinado grau de eficácia – amplo, imediato
e geral – à tutela do preceito fundamental lesado sempre que os demais instrumentos
disponíveis não forem aptos a conferir este mesmo grau de proteção.
44. Não se trata, portanto, da necessidade de esgotamento das vias ordinárias,
tampouco do enquadramento estrito em outras ações diretas – como a ADI – ainda que a
ADPF tenha também por causa um ato inconstitucional e violador do ordenamento, como
é o caso dos acordos de leniência firmados no âmbito da Operação Lava Jato.
45. Importa, assim, a relevância da questão constitucional e o grau de eficácia
exigido para a adequada resposta à lesão.
19
46. Conclui-se, pois, que no caso em questão é perfeitamente cabível a presente
arguição de descumprimento de preceito fundamental. Preenchidos todos os requisitos,
requer-se o seu processamento.
VI. O CONTEXTO EM QUE SE INSEREM INÚMEROS ACORDOS DE
LENIÊNCIA FIRMADOS ANTES DO ACORDO DE COOPERAÇÃO
TÉCNICA
1. RELEMBRANDO PONTOS RELEVANTES
47. Os vícios dos acordos de leniência que esta ação denuncia dão corpo a uma
automutilação desnecessária e oligofrênica, que se estabeleceu no bojo da “Operação
Lava Jato”; decorrem do manejo do aparato de controle estatal para os fins de obter
prestações pecuniárias, em favor do próprio Estado e contra empresas, num contexto de
absoluta e irresistível coação13
.
48. O país não prescinde de uma política nacional de combate à corrupção, que
articule os órgãos e os agentes públicos envolvidos, que sincronize as suas ações, que dê
fim a uma disputa vergonhosa e paralisante por protagonismo, que se paute, sobretudo,
pela unificação do agir estatal que somente assim poderá ser racional e eficiente, e, assim,
compatível com os cânones de uma democracia constitucional. Uma política que coíba a
espetacularização e, ao mesmo tempo, a banalização da corrupção e do seu combate. Uma
política que se afaste do moralismo barato e alienado, que seja capaz de distinguir e de
separar o que tem utilidade daquilo que não presta, e que prefira o pleno ressarcimento
dos cofres públicos à vingança. Uma política que zele, acima de tudo, por interesses
nacionais claros, que se estabeleçam como paradigmas, para identificar e punir excessos
e transgressões do próprio Estado. Uma política que respeite e reforce as garantias
constitucionais, sobretudo a ampla defesa e a presunção de inocência.
13
Texto extraído da obra de Walfrido Warde, um dos signatários desta ADPF: O Espetáculo da corrupção:
como um sistema corrupto e o modo de combatê-lo estão destruindo o país. Editora Leya, São Paulo, 2018.
20
49. A corrupção é uma das mais importantes causas da desigualdade. Disso ninguém
discorda. A ausência de um combate adequado à corrupção aprofunda as desigualdades
intoleráveis e odiosas do nosso país, assim como também o faz, talvez ainda mais, um
combate inconsequente à corrupção.
50. O fato é que não precisamos destruir as ordens econômicas e sociais do Brasil,
em conjunto com as grandes, médias e pequenas empresas brasileiras para combater
a corrupção.
51. O combate à corrupção no Brasil, elevado à condição de alta dramaturgia pela
Operação Lava Jato, opôs as instituições do Estado, fez terra arrasada de setores inteiros
da economia, mas não acabou com a corrupção. Combater a corrupção é como combater
um câncer. É necessário matar o câncer sem matar o paciente, sob a dificuldade
extraordinária de que ambos (o câncer e o paciente) habitam o mesmo corpo. O paciente
precisa se livrar do câncer, mas não vive sem o seu corpo. Destruir o corpo, mata o câncer,
mas também o paciente. Quanto mais o câncer se espalha, mais difícil separar as células
doentes das sadias e, com isso, exterminar as primeiras e preservar as últimas. É preciso
combater a corrupção, mas não matar as empresas.
52. Não se nega, em hipótese alguma, que a leniência é um caminho de sobrevivência
para as empresas que praticaram atos de corrupção ou que deles se beneficiaram. É uma
fórmula de continuidade, para preservar empregos, contratos e todo o tipo de
interesse legítimo que gira no entorno de uma empresa, mesmo que envolvida com
corrupção. É também um incentivo. A leniência alinha os interesses da empresa aos
do Estado. Aquelas empresas que querem sobreviver devem cooperar, devem revelar,
sem reservas, todos os atos ilícitos que praticaram, de que têm prova, assim como quais
foram os seus autores e partícipes.
53. É um mecanismo pragmático, cuja utilidade é evidente. Resguarda o papel
punitivo e disciplinador do Estado, amplia a sua capacidade de investigação – uma vez
21
que estimula a cooperação do particular – e, ao mesmo tempo, preserva as empresas e
a economia do país. A força da punição é compensada (aliviada) pela leniência mediante
colaboração.
54. Aliás, bom lembrarmos que a Constituição Federal de 1988 expressamente
estabelece que o “mercado interno integra o patrimônio nacional” (art. 219), o que não
pode ser ignorado, em momento algum.
55. O problema é que a punição da corrupção, protagonizada pelo Ministério Público,
funciona bem, mas a leniência, em meio ao que parece uma indefinição de competências
institucionais, não.
56. Primeiro porque as empresas não sabiam com quem dialogar, na medida em que
não se tinha clareza empírica de quem é competente para celebrar acordos de leniência
que tragam segurança jurídica à empresa leniente. Segundo porque os termos dos acordos
de leniência firmados à época da Operação Lava Jato (e outras operações similares), antes,
portanto do ACT, foram demasiadamente prejudiciais às empresas. Se em um primeiro
momento o acordo de leniência foi a tábua de salvação de grandes empresas, viu-se depois
que os acordos estão eivados de ilicitudes, tais como as apresentadas nesta ação.
57. Muitos (se não a grande maioria dos) acordos de leniência foram firmados a partir
de delações (colaborações) premiadas feitas por administradores (delatores) que estavam
presos ou bem próximos de serem presos. Foi neste cenário de pavor ocasionado por uma
série de ilicitudes da Operação Lava Jato e de outras operações que foram negociados e
celebrados acordos de leniência, na maioria das vezes com valores estratosféricos e que
prejudicaram e continuam a prejudicar o desempenho das empresas brasileiras. Não
havia, importante ressaltar sempre, o ACT, capitaneado por este E. Supremo Tribunal
Federal.
22
58. É preciso evitar, portanto, que as empresas brasileiras, que admitiram o
cometimento de atos ilícitos, mas que são fundamentais para a econômica nacional,
sucumbam em virtude de acordos de leniência abusivos e violadores de preceitos
fundamentais. É justamente isso que a presente ação objetiva: conferir intepretação
conforme à legislação existente e realinhar acordos de leniência viciados aos ditames
constitucionais, conferindo à CGU - e outros órgãos de igual competência nos demais
entes federativos - a centralidade que lhe cabe por lei.
59. A circunstância de que o combate à corrupção precisa ser mais bem racionalizado
não escapou da atenção do STF. Em 6 de agosto de 2020, a CGU, a AGU, o Ministério
da Justiça e Segurança Pública e o TCU, sob a supervisão do E. Supremo Tribunal
Federal, celebraram o ACT “a fim de construtiva e cooperativamente se aperfeiçoar o
sistema de prevenção e combate à corrupção” (Doc. 05). Dentre as inúmeras diretrizes e
princípios previstos neste paradigmático instrumento, destacamos, pela sua pertinência à
parte pecuniária dos acordos de leniência – objeto desta ação constitucional -, os
seguintes:
________________________________________________________
“Primeiro princípio: da colaboração, lealdade, boa-fé objetiva e proteção da
confiança entre Estado e a pessoa jurídica colaboradora, buscando, a um só
tempo, a completa cessação do comportamento ilícito pretérito e a readequação
das práticas empresariais para o futuro, especialmente por meio de programas de
integridade;
Oitavo princípio: da preservação da empresa e dos empregos, considerando
que a continuidade das atividades de produção de riquezas é um valor a ser
protegido sempre que possível, a fim de permitir a manutenção da fonte
produtora e o emprego dos trabalhadores, preservando-se suas funções
sociais e o estímulo à atividade econômica, observado o disposto no Artigo 5
da Convenção sobre o Combate da Corrupção de Funcionários Públicos
Estrangeiros em Transações Comerciais Internacionais, promulgado pelo
Decreto 3.678, de 30 de novembro de 2000;
Nono princípio: da objetividade dos parâmetros para fixação proporcional e
razoável dos valores a serem pagos a partir de, ao menos, dois tipos de rubricas:
(i) rubrica de natureza sancionatória, referente às multas da Lei nº 12.846, de
2013, e da Lei nº 8.429, de 1992; e (ii) rubrica específica referente a uma
estimativa justa e consensual dos valores a serem ressarcidos, considerando a
23
necessidade de se dar efetividade à recuperação de ativos e observadas as
condições subjetivas do colaborador;
Décimo terceiro princípio: da razoabilidade e da proporcionalidade, sendo
vedada a imposição de obrigações e sanções em medida superior àquelas
condizentes ao atendimento do interesse público e à recuperação de ativos em
montante suficiente à prevenção do ilícito e à justa indenização dos prejuízos ao
erário, sempre prevalecendo a lógica de que o colaborador não pode estar nas
mesmas condições do não colaborador, mas também não pode equiparar-se
àquele que, desde o início, optou por não delinquir;”
________________________________________________________
60. Em conformidade com as diretrizes acima enumeradas, o ACT evidencia qual o
tratamento normativo que deve ser dado ao combate à corrupção à luz dos preceitos
fundamentais. É exatamente nesse contexto que se insere a presente ADPF, objetivando
assegurar que a razoabilidade, proporcionalidade, legalidade e segurança jurídica sejam
observadas na repactuação dos acordos celebrados de modo a evitar o perecimento das
empresas. Estes parâmetros, importante ressaltar, revelados no ACT, não foram
observados nos acordos de leniência firmados antes de sua publicação, todos marcados
por abusos inaceitáveis de seus termos, especialmente no que se refere às obrigações
pecuniárias.
61. O que se deseja, em síntese, é evitar a “morte” das empresas, pois ela é duplamente
nefasta. É odiosa porque mata um núcleo gerador de riquezas, de renda, de emprego e de
receitas estatais, por meio dos impostos a que a empresa se submete, mas também porque
põe fim a qualquer chance de ressarcimento da Administração Pública.
62. Com o propósito de ilustrarmos o que afirmamos, vejamos brevemente alguns
números do impacto da Operação Lava Jato na economia, na sociedade e nas empresas,
fatos relevantes para a compreensão adequada da relevância desta ADPF.
63. Estudos demonstram que o combate à corrupção, esse que temos promovido, deu
causa a perdas que montam aproximados 180 bilhões de reais, enquanto se espera
recuperar – sob fé intensa e inquebrantável – pouco mais de 10 bilhões de reais.
24
64. Essa brutal expectativa de ressarcimento depende, é claro, em grande medida, da
sobrevivência das empresas envolvidas, ainda que pouco ou nada se tenha feito para
preservá-las. Reitere-se: é justamente isso que se pretende ajustar na presente ação.
65. Não podemos desconsiderar, obviamente, os efeitos desta operação na sociedade.
De acordo com estudo realizado pelo DIEESE (Doc. 06), a Operação Lava Jato “custou”
4,4 milhões de empregos, 3,6% do PIB e reduziu em R$ 172,2 bilhões em investimentos
da Petrobras e Construção Civil.
66. A Camargo Corrêa demitiu 12.500. A Andrade Gutierrez, 90.000. A UTC, 20.325.
A Odebrecht, 95.000. A Queiroz Galvão, 13.000. A OAS, 80.000. A Engevix, 17.000.
67. Uma desgraça setorial com efeitos gerais para o mercado de trabalho e para toda
a economia do país. Mais do que isso, a infraestrutura física é um parâmetro dos avanços
civilizatórios. A desaceleração ou a paralização de obras de infraestrutura é, portanto, o
retrato do retrocesso.
2. DIFICULDADES NOS ACORDOS DE LENIÊNCIA
68. Como adiantado anteriormente, o projeto de colaboração com o Estado a partir de
acordos de leniência foi desnaturado com o avanço dos exageros do Ministério Público
Federal14
.
69. Vejamos, nesse ponto, o aditamento ao voto do Min. Gilmar Mendes no
julgamento conjunto dos MS 35.435, MS 36.173, MS 36.496 e MS 36.526:
________________________________________________________
“Embora referido acordo [ACT, mencionado acima] represente um grande
avanço na racionalização institucional do combate à corrupção, chamo a atenção
14
Texto extraído da obra de Walfrido Warde e Valdir Moysés Simão: Leniência: elementos do Direito da
Conformidade. São Paulo: Editora Contracorrente, 2019.
25
para o fato de que as principais controvérsias jurídicas veiculadas nos casos
em tela envolvem dificuldades de delimitação do regime jurídico do chamado
“Acordo de Leniência do MPF”.
A despeito do amplo uso desse instrumento pelo Parquet, considero que este
instrumento precisa urgentemente passar por uma reconceptualização, inclusive
a partir de eventuais soluções de lege ferenda, a fim de que sua utilidade no
combate à corrupção possa ser compatibilizada com os princípios
constitucionais da legalidade, da segurança jurídica e da proibição de
punição dupla.”15
________________________________________________________
70. No âmbito federal, a Lei Anticorrupção atribui à CGU a competência para a
celebração dos acordos de leniência,16
mas o Ministério Público, em especial o Ministério
Público Federal (no âmbito da Lava Jato), aproveitando-se de sua condição de
monopolista da ação penal17
e de sua competência para o ajuizamento da ação de
improbidade,18
exerceu um magnetismo irresistível, de modo a atrair para si, ao menos
nos primeiros anos, a esmagadora maioria dos acordos.
71. Isso é gravíssimo. Uma interpretação constitucional da Lei Anticorrupção impõe
o protagonismo exclusivo da CGU em tais matérias. Para todos os efeitos, é ela – e não
qualquer outro, seja o MPF, o CADE, ou o TCU – o centro de racionalização do agir
estatal no combate à corrupção. Longe de assoberbá-la ou convidá-la à
discricionariedade, essa decisão política garante aos cidadãos brasileiros uma única
instância de unificação, coordenação e fiscalização dos acordos de leniência. A partir da
CGU, o Estado se apresenta como uma unidade, tornando-se incapaz de pressionar as
empresas pela forma plúrima e redundante de uma verdadeira hidra persecutória,
forçando a cooperação, por ilícitos de tal ou qual natureza, ora pelo MPF, ora pelo CADE,
ora pelo TCU, etc. Não faz sentido cada braço do Estado forçar um acordo de leniência
15
STF, 2ª T., MS 36173-DF, rel. Min. Gilmar Mendes, j. 30/03/2021, DJe 02/07/2021, p. 80/118 do
acórdão.
16
Cf., art. 3º, § 10, da Lei Anticorrupção: “A Controladoria-Geral da União - CGU é o órgão competente
para celebrar os acordos de leniência no âmbito do Poder Executivo federal, bem como no caso de atos
lesivos praticados contra a administração pública estrangeira.”
17
Cf., art. 129, I, da Constituição Federal: “São funções institucionais do Ministério Público: I - promover,
privativamente, a ação penal pública, na forma da lei;”
18
Cf., art. 17, da Lei de Improbidade Administrativa: “Art. 17. A ação principal, que terá o rito ordinário,
será proposta pelo Ministério Público ou pela pessoa jurídica interessada, dentro de trinta dias da efetivação
da medida cautelar.”
26
pelo mesmo fato. Trata-se de agir contraditório, desproporcional e excessivo,
exatamente a situação que o ACT busca evitar e corrigir.
72. Assim, conferir uma intepretação conforme à Lei nº 12.846/2013 e ao Decreto nº
8.420/2015 (atual Decreto nº 11.129/2022), implica, necessariamente, reconhecer essa
posição importante da CGU, seja enquanto órgão proponente da leniência, seja enquanto
instância de controle dos demais. Somente assim é que se pode garantir a racionalidade
do modelo persecutório brasileiro, que deve contar com a participação do MPF, claro,
mas que não pode tolerar a sua atuação exclusiva e isolada.
73. Uma maior atuação da CGU, AGU e TCU parece, inclusive, ter sido a opção do
já mencionado ACT, conforme se pode observar nas ações operacionais propostas pelo
documento.
74. Ou seja, nada adiantaria, em última análise, que a empresa celebrasse leniência
com a CGU se o MPF, repise-se, autor da ação penal e da ação de improbidade, não
reconhecesse os efeitos desse acordo. Daí a necessidade de uma ação conjunta, pois do
contrário sempre teremos um acordo incapaz de evitar a extinção da ação penal, segundo
o melhor interesse das pessoas jurídicas envolvidas, e da ação civil de reparação de danos
ao erário, que ao fim e ao cabo levaria a empresa à morte, ao proibi-la de contratar com
o Estado. Isso afetou demasiadamente a parte pecuniária dos acordos de leniência,
dada a posição de fragilidade absoluta das empresas que aceitaram valores
extremamente altos e cheios de ilicitudes, conforme será tratado nesta ação.
75. O MPF, de forma inconstitucional, chamou para si todos os acordos de leniência,
arrogou-se competência exclusiva para celebrar todos os acordos de leniência, o que
ocasionou graves distorções na parte pecuniária dos acordos, que não observaram, nem
de longe, os critérios revelados pelo ACT. E o fez com tanta convicção e a despeito da
competência que a Lei Anticorrupção atribuía à CGU, que criou mesmo uma central de
27
colaborações (delações) premiadas e acordos de leniência19
, a 5ª Câmara de Coordenação
e Revisão do Ministério Público.20
76. A equivalência entre controlador e empresa, que é marca de nosso capitalismo
(em meio a uma tendente sobreposição entre controle e propriedade), também
desempenhou papel determinante para transformar o Ministério Público, ao menos
temporariamente (ao longo de 2016 e boa parte de 2017), na “central do perdão nacional”.
Isso porque, para obter o relaxamento de prisão cautelar, para evitá-la ou mesmo para
afastar os efeitos de uma condenação, o controlador encrencado (tanto mais sob a pressão
de administradores igualmente encrencados) era levado a colaborar, a celebrar
colaboração premiada e, ao fazê-lo, trazer para o bojo da cooperação também a empresa.21
77. Aliás, a Procuradoria Regional da República, em pareceres opinativos exarados
em habeas corpus impetrados em face de tais ordens de prisão, como, por exemplo, na
manifestação proferida nos autos do HC 5029050-46.2014.404.0000, registrou esta forma
exótica, porquanto inconstitucional, de atuar:
________________________________________________________
“Além de se prestar a preservar as provas, o elemento autorizativo da prisão
preventiva, consistente na conveniência da instrução criminal, diante da série de
atentados contra o país, tem importante função de convencer os infratores a
colaborar com o desvendamento dos ilícitos penais, o que poderá acontecer
neste caso, a exemplo de outros tantos”. (grifou-se)
________________________________________________________
78. Recordemos, também, alguns trechos relevantes da série de reportagens
denominada Vaza Jato, e que confirmam o cenário apresentado:
________________________________________________________
“Para estimular as empreiteiras a delatarem, os procuradores vinham
adotando a mesma estratégia desde 2015: vazando à imprensa e sinalizando
19
Importante reter que as colaborações premiadas são acordos com objeto e fim semelhantes aos acordos
de leniência, mas celebrados por pessoas físicas exclusivamente, sob o regramento da Lei 12.850 de 2013.
20
Cf. WARDE, Walfrido. O Espetáculo da Corrupção. Rio de Janeiro: Leya, 2018, pp. 39 a 60.
21
Cf. WARDE, Walfrido. O Espetáculo da Corrupção. Rio de Janeiro: Leya, 2018, pp. 39 a 60.
28
aos advogados que só fechariam acordos com aqueles que se dispusessem a
colaborar mais rápido e confessassem mais crimes – de
preferência, envolvendo os alvos escolhidos pela Lava Jato.
É por isso que o procurador Paulo Roberto Galvão, na época trabalhando na
força-tarefa em Curitiba, considerava que eles deveriam aceitar apenas a delação
“de um ou outro, e olhe lá”, da Odebrecht e da OAS, outra empreiteira também
surgida na Bahia e cujos executivos buscavam o benefício.”22
(grifou-se)
* * *
“Um exemplo ilustrativo desse método ocorreu relativamente cedo nas
operações. Em 21 de junho de 2015, o procurador da Lava Jato Orlando Martello
enviou a seguinte pergunta ao colega Carlos Fernando Santos Lima, no grupo FT
MPF Curitiba 2, que reúne membros da força-tarefa: “qual foi a estratégia de
revelar os próximos passos na Eletrobrás etc?”. Santos Lima disse não saber do
que Martello estava falando, mas, com escancarada franqueza, afirmou: “meus
vazamentos objetivam sempre fazer com que pensem que as investigações
são inevitáveis e incentivar a colaboração.”23
(grifou-se)
________________________________________________________
79. Foi a trágica situação dessas empresas, precisamente nessas hipóteses em que as
pessoas físicas, no contexto de seus acordos de colaboração, já haviam provido às
autoridades todos os elementos probantes à sua disposição, com o que remanescia às
pessoas jurídicas nada a colaborar, que a leniência se resumiu, em relação a condutas
passadas, precipuamente a uma via de ressarcimento da Administração.
80. Foi sob esse cenário de popularização desesperada do alívio, que a já referida 5ª
Câmara de Coordenação e Revisão se tornou a powerhouse dos acordos de leniência.
81. Em agosto de 2017, a 3ª Turma do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (o
TRF-4) decidiu que os acordos de leniência, no âmbito do Poder Executivo federal, não
podiam ser celebrados sem a anuência dos representantes da União, ou seja, sem a CGU
e mesmo sem a Advocacia Geral da União (AGU), afirmando, portanto, o conteúdo da
proposta de interpretação conforme que se quer dar, por meio desta ação, às leis em
comento. Mas ainda não tínhamos, destaque-se, o ACT, o que não impediu a
22
https://theintercept.com/2021/05/25/delacao-odebrecht-lava-jato-falta-provas/
23
https://theintercept.com/2019/08/29/lava-jato-vazamentos-imprensa/
29
celebração de acordos de leniência extremamente desvantajosos para as empresas,
pois não se observava qualquer critério lógico para a quantificação de multas e do
ressarcimento ao erário.
82. A deferência à CGU deveria sempre ser automática, a fim de evitar uma resposta
multíplice, redundante e contraditória do Estado ao mesmo ato delituoso. Para o
descrédito da Administração Pública, não é esse o cenário atual, razão pela qual o E.
Supremo Tribunal Federal deve conferir interpretação conforme à Lei nº 12.846/2013 e
ao Decreto nº 8.420/2015 (atual Decreto nº 11.129/2022), afirmando o caráter unificador,
coordenador e fiscalizador da CGU. Já em relação aos acordos celebrados, deve haver a
determinação de sua repactuação tendo a CGU como entidade protagonista na nova
conformação dos acordos.
83. E é por isso que a leniência para todos, um arremedo de leniência, findou por
salvar ninguém, ou quase ninguém, no universo de empresas envolvidas na Lava Jato,
pois os parâmetros para a fixação das obrigações pecuniárias não seguiram padrões
lógicos e racionais, mas sim arbitrários. A análise de tais acordos de leniência celebrados
antes de setembro de 2020, sob a ótica do ACT, revela os exageros das obrigações
econômicas impostas às empresas.
84. Tanto isso é verdade que a OAS pediu recuperação em abril de 2015, a UTC, em
julho de 2017, e a Queiroz Galvão, em dezembro de 2018.
85. O Grupo Odebrecht pediu recuperação judicial, diga-se de passagem, a maior
recuperação judicial do mundo, que monta quase 90 bilhões em dívidas, em junho de
2019.
86. O seu debacle econômico-financeiro determinou o colapso de nosso projeto
nacional de infraestrutura, na medida em que, desde logo, essa decadência enfraqueceu o
BNDES, precípuo credor das empreiteiras (peça fundamental do financiamento do
30
sistema), interrompeu os empreendimentos em curso (à míngua de recursos),
comprometeu a disponibilidade de crédito nos mercados, justamente porque os bancos
privados “garantiam as empreiteiras”, desacelerou brutalmente a economia, sobretudo
pela descontinuidade dos mercados (internos e externos) de serviços de infraestrutura,
com graves efeitos adversos sobre a arrecadação, o crescimento econômico e a capacidade
de investimento público.
87. Tudo isso sem contar que perdemos conhecimento. Sim, as empresas devastadas
por acordos de leniência desproporcionais, especialmente as de infraestrutura,
representavam o maior estoque brasileiro de conhecimento (know-how). Em entrevista
concedida recentemente ao jornal Estado de São Paulo (“Lava Jato não levou em conta
preservar a know-how das construtoras”, de 08.06.2022)24
, Carlos Pires de Oliveira, ex-
integrante do conselho de administração da Camargo Corrêa foi enfático ao constatar:
________________________________________________________
“Não tem como dizer que a Lava Jato não foi traumática, não só para a Camargo
Corrêa, mas para todo o setor de construção pesada no Brasil, como é notório.
(...)
Foi realmente destruidor. E isso causou a liquidação de todas as empresas que
tinham grande experiência em construção de hidrelétricas, em construção
rodoviária, em construção ferroviária, em construção de metrô etc e tal. Isso, no
Brasil de hoje, a gente pode dizer que está zerado. (...)
Sim, esse know-how se foi por água abaixo. E vai levar muito tempo para ver
a recuperação. Não me refiro só à Camargo. Todas as empresas de
construção afetadas por essa crise praticamente desapareceram. Era um
patrimônio do Brasil, um reconhecimento internacional da nossa
capacidade. Aí você pode até me perguntar: ‘Bom, mas como é que poderiam
ser penalizados os malfeitos?’ Eu não sei, mas o método utilizado destruiu essas
empresas. Semana passada, saiu até nos jornais, uma grande empresa sofreu uma
ação do governo americano, dos governos europeus, inclusive do brasileiro. Um
acordo com esses governos pelos malfeitos praticados. Foram multados em mais
de US$ 1 bilhão, o que deixou a empresa obviamente machucada. Mas não
morreu, continua operando etc e tal. Talvez tenha faltado, antes, exatamente essa
compreensão dos meios jurídicos.”
________________________________________________________
24
https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,entrevista-carlos-pires-camargo-correa,70004087042
31
88. Nesta mesma entrevista, o ex-conselheiro de uma das gigantes brasileiras da
construção civil destacou a diminuição significativa da empresa e seus negócios em
função do altíssimo valor dos acordos de leniência celebrados:
________________________________________________________
“Por que nós saímos? Nós saímos por uma questão de liquidez, nós tínhamos
contas para pagar, como temos ainda, e tivemos de nos desfazer da CPFL, da
Alpargatas, empresas ótimas. Tudo em função realmente dos encargos que nos
impuseram pelo fato de termos feito esse acordo de leniência com os poderes
públicos.”
________________________________________________________
89. Perceba-se que este cenário de dificuldades em pagar os acordos de leniência
existe desde o seu início, revelando a desproporcionalidade das obrigações assumidas. A
tábua de salvação das empresas começa a se transformar em um âncora que está levando-
as rapidamente ao fundo do mar. E com elas empregos, arrecadação estatal de tributos e
investimentos no mercado nacional.
90. Tudo isso sem nos esquecermos da crise econômica agravada pela pandemia da
Covid-19, o fim das grandes obras públicas em infraestrutura, a necessidade de vender
ativos, as recuperações judiciais, circunstâncias que contribuem aprofundamento das
dificuldades das empresas em pagar seus acordos.
3. SÓ PAGA QUEM ESTÁ VIVO
91. A partir de agora passamos para um dos pontos mais relevantes da exposição feita
neste tópico: só paga quem está vivo.
92. A Constituição é o primeiro e fundamental acervo de normas voltadas à tutela do
erário, em particular por meio das normas dos seus arts. 37, inciso XXI, §§4º e 5º, 71,
incisos II e VIII e 112. É dela e de seus comandos e diretrizes que defluem todas as demais
32
normas infraconstitucionais que disciplinam o erário e que, sob essa ordenação
constitucional, protegem-no.25
93. O acordo de leniência é, nesse sentido, um instrumento legal que compõe a tutela
do erário público. Não provê uma via de salvamento às pessoas jurídicas que causaram
dano ao erário apenas em prestígio ao princípio da preservação da empresa (em
reconhecimento à importância da empresa, que transcende a esfera de interesses
puramente privados), mas, antes de tudo, porque a preservação da empresa é, nessa
hipótese, um requisito essencial à incolumidade do erário.
94. A empresa será incapaz de ressarcir os danos que o seu manejo ilegal deu causa
se for destituída de seus elementos essenciais de produção, se for vedado ou gravemente
obstaculizado o exercício da atividade empresarial, seja pelo entrave de seus canais de
financiamento e de geração de renda, seja pela paralisia de seus mecanismos de gestão,
seja pela sua incapacidade de pagar acordos de leniência “superfaturados”.
95. O melhor para que uma empresa seja capaz de ressarcir o erário é que seja hígida,
que seja pujante, que viceje. E que, dentro do possível, as dívidas com o Estado sejam
tratadas como as demais dívidas, cujo pagamento se equaciona em vista da capacidade
empresarial de geração de renda (o chamado ability to pay, como elemento determinante
da forma – em especial, do tempo – de pagamento, jamais do montante devido)26
,
acoplada (no caso de danos contra a Administração) a influxos de capital que a ordem
jurídica determina sejam vertidos ao acervo patrimonial por todos os sócios, mas,
sobretudo, por administradores e controladores faltosos.
25
Cf., nesse sentido, a doutrina sofisticada de GASPARRINI PIANESI, Daniela. La responsabilità
administrativa per danno all’erario. Milano: Giuffrè, 2004.
26
Cf. DANTAS, Bruno. Acordos de leniência e os limites de atuação de cada órgão. Disponível em:
https://www.conjur.com.br/2017-dez-28/bruno-dantas-acordos-leniencia-limites-atuacao-orgaos. O
instituto advém do direito falimentar e da ideia de proporcionalidade do direito tributário, com o que se
discutem os termos de sua implantação no Direito da Conformidade. Cf. UNITED STATES GENERAL
ACCOUNTING OFFICE. Personal Bankrupcy. The Credit Reserach Center Reporto n Debtors’ Ability to
Pay, 1998. para uma abordagem filosófica brilhante, MURPHY, Liam; NAGEL, Thomas. The Myth of
Ownership. Oxford: Oxford University Press, pp. 20, 24, 28 et al.
33
96. As empresas em crise muitas vezes morrem e dificilmente são capazes de pagar.
As empresas, em nenhuma hipótese, devem ser alvejadas para aplacar a fúria punitiva do
Povo, tampouco a sede de protagonismo de entes do Estado e de agentes públicos. Fazê-
lo ou permitir que façam é, não menos do que a corrupção, um grave dano indireto ao
erário, na medida que impede o seu ressarcimento, nas hipóteses em que é devido.
97. Outra garantia essencial ao ressarcimento do Estado e à efetividade das multas
aplicadas é a racionalização dos seus critérios de determinação, que não existiu,
conforme demonstraremos nesta ação. E isso não será possível, em primeiro lugar, sob
o espírito de vingança. Um efeito pedagógico é inerente à ideia de multa, mas o incentivo
negativo não deve se encarregar de excluir empresas do mercado. Não é esse o espírito
do sistema de promoção de integridade que está centrado na ideia de leniência. A
leniência, que se reveste de todos os instrumentos e garantias de efetivo ressarcimento do
erário acima mencionados, já é suficientemente assustadora, sobretudo para controladores
e para administradores, sem que as empresas precisem ser destruídas. A devastação do
ambiente empresarial, como se provou no Brasil, não atinge particularmente
controladores e administradores, tanto menos quando eles remanescem ricos e livres,
ainda que as empresas pereçam.
98. É por isso que na presente ação se deseja fixar a melhor interpretação (=
interpretação conforme a Constituição) para que sejam revistos os critérios adotados para
a fixação das obrigações pecuniárias das empresas nos acordos de leniência celebrados
no ambiente descrito nas linhas anteriores. Estes mesmos critérios, obviamente, servirão
de guia (ou limites) para acordos futuros. Sem a revisão destes critérios, por meio da
interpretação conforme da legislação aplicável, especialmente o ACT, reitere-se, não
será possível recuperar as empresas brasileiras que celebraram acordos de leniência
e têm grandes dificuldades financeiras de adimplir as obrigações pecuniárias.
34
99. Além disso, é preciso que, ao fixar o sentido hermenêutico, constitucionalmente
adequado, da Lei nº 12.846/2013 e de outras normas infralegais, afirme-se o status da
CGU – e outros órgão de igual competência nos outros entes federativos - enquanto centro
racionalizador do agir estatal, responsável por unificar, coordenar e fiscalizar os acordos
de leniência, enquanto instrumento – constitucional – de combate à corrupção.
VII. NATUREZA JURÍDICA DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA
100. O acordo de leniência nada mais é que uma espécie do gênero ato jurídico
convencional.
101. Por meio dele e preenchidos certos pressupostos, a Administração e a empresa
estipulam condições, direitos e obrigações entre as partes, visando, de um lado, à
cooperação plena e permanente da pessoa jurídica com as investigações e o processo
administrativo sancionador, e, de outro lado, à mitigação ou à supressão de uma gama de
penalidades passíveis de imposição à empresa pelo cometimento de atos lesivos à
Administração Pública.
102. O acordo de leniência é, portanto, um ato convencional restritivo de direito, no
qual a empresa faltosa reconhece o cometimento de ato ilícito em seu benefício ou
proveito, em troca da leniência da administração na imposição de sanções, pecuniárias ou
não.
103. Da mesma forma, o acordo de leniência é também um ato consensual, e não
impositivo. É dizer, nenhuma das partes celebrantes, em tese, é obrigada a celebrá-lo,
apesar de muitas vezes, conforme vimos acima, a celebração do acordo ser fundamental
à sobrevivência das empresas.
35
104. Além da espontaneidade e voluntariedade na adesão pela empresa responsável
pelo ato lesivo, o acordo de leniência exige, enquanto instrumento de autocomposição
consensual, o cumprimento de obrigações recíprocas proporcionais e a consideração
adequada do interesse público na celebração de seus termos. É fundamental, portanto, que
se observe estritamente a legislação incidente, no caso, a Lei Anticorrupção (Lei nº
12.846/2013), o ACT e as demais normas infralegais.
105. Em síntese, o acordo de leniência é um negócio jurídico convencional e
consensual, como todo negócio jurídico. O Supremo Tribunal Federal, no HC nº
127.483/PR (Rel. Min. Dias Toffoli | 2016) e no Inq. Nº 4.420 AgR (Rel. Min. Gilmar
Mendes | 2018), reconheceu expressamente que os acordos de colaboração premiada são
negócios jurídicos. Obviamente, se os acordos de colaboração premiada, voltados às
pessoas físicas, são negócios jurídicos, os acordos de leniência, voltados às pessoas
jurídicas, também o são.
106. Como negócios jurídicos que são, os acordos de leniência se subsumem a regras
comuns a todos os negócios jurídicos, dentre elas: o dever das partes de respeitar e
observar, para a conclusão dos negócios jurídicos, a legislação e princípios incidentes,
sob pena de o negócio ser passível de invalidação.
107. Consoante se pode facilmente supor pelos fatos apresentados anteriormente,
inúmeros acordos de leniência, especialmente aqueles firmados antes da publicação do
ACT de 2020, padecem de defeitos inaceitáveis, que violam preceitos fundamentais,
pondo em risco a existência das empresas que tiverem de aceitar a celebração de negócios
jurídicos manifestamente desproporcionais, especialmente no que se refere às suas
obrigações pecuniárias. É possível observar nestes acordos desvio de finalidade na
atuação do Ministério Público Federal, que diante do cenário terrível de punitivismo
exagerado coagiu inúmeras empresas a aceitar acordos de leniência, cujas obrigações
pecuniárias são manifestamente desproporcionais, especialmente quando se tem em mira
o ACT de 2020, capitaneado por este E. Supremo Tribunal Federal.
36
VIII. DEFEITOS DOS ACORDOS DE LENIÊNCIA
108. Quando se consideram os inúmeros fatos amplamente noticiados na imprensa,
relacionados aos abusos cometidos pela operação Lava Jato27
, e que também foram
registrados em diversas decisões judiciais, inclusive algumas proferidas por este E.
Supremo Tribunal Federal, é possível identificarmos duas causas in abstrato que
maculam inúmeros acordos de leniência, especialmente aqueles firmados antes do ACT
de 2020: sob a ótica do Direito Privado, a coação; e sob a ótica do Direito Público, o
desvio de finalidade, que decorre justamente da coação, mas também de dois fatos
amplamente noticiados: (i) cooperação internacional escusa, com violação da soberania
nacional; (ii) pretensa destinação de parte dos recursos obtidos com acordos de leniência
para uma organização internacional sediada em Berlim, chamada Transparência
Internacional, o que denota, adiantemos, um superdimensionamento das obrigações
pecuniárias de tais acordos.
109. Vejamos, pois, como as empresas foram coagidas a celebrar acordos de leniência
economicamente desproporcionais, que afetam significativamente a sua sobrevivência e
a continuidade de suas atividades nos dias de hoje, pondo em risco não apenas as
empresas, mas milhões de empregos e o erário público, conforme demonstramos
anteriormente.
1. COAÇÃO E ABUSOS DA OPERAÇÃO LAVA JATO
110. O que pretendemos demonstrar, aqui, é que a disciplina atual dos acordos de
leniência e, em especial, o seu manejo no curso da Lava Jato permitem (e até mesmo
incentivam) que agentes públicos pratiquem atos que, à luz do Direito Privado,
caracterizam o que se costuma chamar de vício do consentimento da coação.
27
https://www.intercept.com.br/series/mensagens-lava-jato/
37
111. Melhor dizendo: a disciplina atual dos acordos de leniência reconhece como
válidos negócios jurídicos que, se houvessem sido celebrados entre privados no âmbito
do comércio jurídico tradicional, seriam fatalmente reputados como inválidos, pelo vício
da coação. Na verdade, poderiam até mesmo ser tipificados como crime de extorsão.
112. No atual estágio do Direito Privado, é fora de dúvida que as pessoas físicas e
jurídicas podem celebrar negócios jurídicos que não lhes agradam para evitar a ocorrência
de um mal maior que lhes adviria se o negócio não fosse celebrado.
113. Ninguém toma dinheiro emprestado porque quer ou porque gosta, toma porque
precisa. O mutuário assume a desagradável obrigação de devolver dinheiro com juros ao
mutuante, porque precisa imediatamente pagar seu aluguel, ou ter capital de giro para
manter sua empresa, ou para começar um novo negócio. Ele prefere assumir uma dívida
indigesta do que a alternativa, que é ser despejado, ou fechar as portas de sua empresa,
ou não conseguir começar nenhum novo negócio.
114. O ponto nevrálgico dos problemas atinentes à verificação, em um caso concreto,
da presença da coação, é discernir quais turbações à vontade de uma pessoa são lícitas e
legítimas (e, portanto, não viciam o negócio jurídico) e quais turbações são ilícitas e
ilegítimas (e viciam o negócio jurídico).
115. Para os fins do que pretendemos aqui, demonstraremos que a disciplina atual dos
acordos de leniência permite ou até mesmo incentiva (ou pelo menos permitiu e
incentivou no contexto da operação Lava Jato) a prática de atos de coação de órgãos do
Estado sobre as empresas, que viciam a validade desses acordos.
116. Delação premiada e acordo de leniência são, em tese, negócios jurídicos distintos,
disciplinados por estatutos legais distintos, celebrados entre pessoas distintas. A delação
premiada é disciplinada pela Lei n. 12.850/13, ao passo que a leniência é disciplinada
pela Lei n. 12.846/13.
38
117. Ao analisarmos mais de perto e atentamente o modo como esses dois institutos,
delação premiada e acordo de leniência, se relacionam entre si, fica fora de dúvida que
eles são absolutamente indissociáveis um do outro.
118. Basta refletirmos sobre como as coisas realmente acontecem na prática para
concluirmos que é impossível que uma empresa celebre um acordo de leniência sem que
simultânea ou antecedentemente seus executivos celebrem também os acordos de delação
premiada.
119. Se a empresa celebra o acordo de leniência sem ter negociado os acordos de
delação premiada, seus executivos, administradores e controladores vão presos e são
condenados no minuto seguinte. Afinal, a leniência pressupõe a admissão, pela pessoa
jurídica, da prática de crimes por pessoas físicas (art. 16, parágrafo 1º, III, da Lei
12.846/13). Como pessoas jurídicas não existem no mundo natural, quem pratica o crime
confessado pela empresa são pessoas de verdade, pessoas físicas, seres humanos que
controlam, administram ou trabalham para a empresa. Quando a sociedade, que é um ente
jurídico sem existência no mundo natural, “admite” um crime, o que ela realmente está
fazendo é admitir que seus controladores, administradores e executivos cometeram esses
crimes. E essas pessoas físicas naturais estarão sujeitas à persecução penal, com
pouquíssimas chances de defesa (diante da colaboração da empresa leniente), caso não
estejam protegidas por um acordo de delação premiada previamente celebrado.
120. E a recíproca é verdadeira.
121. Não há como os executivos, administradores e controladores de uma empresa
engajada em atos de corrupção celebrarem acordos de delação premiada sem que a
empresa tenha celebrado ou seja obrigada a celebrar o seu acordo de leniência. E isso
porque a delação premiada, com a confissão da prática de atos de corrupção, implica a
quase imediata aplicação de penalidades cíveis e administrativas à empresa. Há, entre
39
essas sanções, algumas penalidades draconianas de aplicação inverossímil (interdição das
atividades ou mesmo dissolução compulsória da pessoa jurídica, previstas no art. 19, II e
III, da Lei 12.846/13), e outras penalidades igualmente duras e de aplicação bem mais
provável, como a temida proibição de contratar com o Poder Público (art. 19, IV, da Lei
12.846/13 e art. 12, I, II e III, da Lei 8.429/92).
122. Como empresas que se engajam em atos de corrupção de agentes públicos têm,
via de regra, como principal atividade a venda de bens e serviços para o Estado, a pena
de proibição de contratar com o Poder Público equivale a uma sentença de morte (ou de
falência). Isso significa que, na prática, a negociação das delações premiadas e a
negociação do acordo de leniência consiste (ou deveria consistir) em uma única grande
negociação de um único grande acordo.
123. Obviamente, a ponta penal é que “puxa” e dita o ritmo do acordo, pois é aquela
que ameaça a liberdade individual dos administradores e controladores e é aquela na qual
os agentes públicos possuem os instrumentos efetivos de investigação e colheita de provas
que criam o poder de barganha estatal contra o privado.
124. Na verdade, mais do que simplesmente ameaçar suprimir a liberdade individual
dos administradores e controladores das empresas investigadas, o que os agentes públicos
da “ponta penal” da negociação muitas vezes fazem é prometer devolver a liberdade
individual já suprimida dos administradores cativos: em diversos casos da Operação
Lava Jato, o acordo de leniência e as delações premiadas foram negociadas enquanto os
principais executivos da empresa leniente estavam presos, de modo que sua libertação
ou a redução de sua pena era, naturalmente, a principal moeda de troca que os
procuradores tinham a oferecer. Aqui está, portanto, uma das principais razões pelas
quais as empresas aceitaram, em seus acordos de leniência, obrigações pecuniárias
desproporcionais, que lhes eram impostas sem qualquer critério prévio e lógico.
Estes critérios, ressalta-se, foram revelados pelo já inúmeras vezes mencionado, ACT, de
2020, capitaneado por este E. Supremo Tribunal Federal.
40
125. O caso da Odebrecht é paradigmático e merece ser brevemente explorada para
ilustrar atos de coação e abusos. O acordo de leniência, celebrado primeiro com o
Ministério Público Federal em 1º de dezembro de 2016 (Doc. 07) e posteriormente
ratificado pela CGU em 9 de julho de 2018 (Doc. 08), era, a um só tempo, um acordo de
leniência em que a pessoa jurídica se obrigou a pagar uma indenização ao poder público
e um contrato “guarda-chuva” que disciplinava os acordos de delação premiada dos
executivos que aderissem a ele. Leniência da pessoa jurídica e delação premiada das
pessoas físicas estavam completamente mescladas em um único instrumento.
126. Não é coincidência o fato de o acordo de leniência entre a Odebrecht e o Ministério
Público Federal e as delações premiadas dos 77 executivos da Odebrecht terem sido todos
celebrados no mesmo dia (1º de dezembro de 2016).28
127. Como, pelas razões que vimos acima, a mesa de negociações foi uma só, ou seja,
delações premiadas com executivos e acordos de leniência com a empresa não têm como
ser negociados separadamente, mas apenas como um único e grande “acordo”, é natural
que, do lado do Poder Público, quem dite os termos da negociação sejam os agentes que
detêm o maior instrumento de barganha na mão, ou seja, os procuradores do Ministério
Público Federal, que são aqueles que ameaçam suprimir a liberdade individual dos
administradores (ou que prometem devolver a liberdade já suprimida).
128. Ao fim e ao cabo, o que o arranjo institucional desse microssistema das Leis n.
12.846/13 e 12.850/13 permite e incentiva é que o Estado barganhe a liberdade de
indivíduos por dinheiro. Em outras palavras, essas duas leis permitem que agentes
públicos se valham da violência para extrair vantagens pecuniárias de empresas privadas,
que é tudo o que o Direito repudia. O que esses dois estatutos, combinados, fazem é
28
https://g1.globo.com/politica/operacao-lava-jato/noticia/executivos-da-odebrecht-comecam-a-assinar-
acordo-de-delacao.ghtml; https://www.jota.info/justica/desculpe-odebrecht-errou-diz-empresa-apos-
leniencia-01122016
41
reconhecer como válidos negócios jurídicos celebrados sob notória coação de uma das
partes pela outra.
129. O livro-reportagem da jornalista Malu Gaspar, “A Organização”, que trata da
história da criação e derrocada do Grupo Odebrecht, é muito ilustrativo do grau de
violência institucional presente nas negociações dos acordos de leniência, a qual não se
pode chamar de outra coisa que não de coação pura e simples.
130. Em determinado trecho, o livro descreve a primeira reunião entre advogados da
Odebrecht e procuradores da Força Tarefa da Lava Jato, realizada em 2016, na qual os
advogados da Companhia manifestaram aos promotores lavajatistas sua intenção de
celebrar um acordo (acordo que congregasse tanto delações premiadas quanto acordo de
leniência).
131. Na ocasião, o Procurador Federal Carlos Fernando dos Santos Lima, confiante de
que estava em uma posição negocial muito superior, em virtude de recentes prisões que
havia realizado e provas apreendidas, teria dito aos advogados da Odebrecht que “se a
negociação com a Camargo Corrêa foi um embate entre judeus e palestinos, com a
Odebrecht será como se os sobreviventes do holocausto estivessem negociando com os
soldados da Gestapo” (p. 424).
132. Abstraindo-se do mau gosto e infelicidade da figura de linguagem escolhida pelo
Procurador Carlos Lima para humilhar ou amedrontar os advogados da Odebrecht (mais
uma vez, partindo-se da premissa de que esse relato do livro seja verdadeiro), a verdade
é que a metáfora que ele utilizou para ilustrar aquela negociação não é de todo imprecisa.
133. Para a Força Tarefa da Lava Jato, ter em suas mãos o diretor-presidente da
Odebrecht, que por acaso também era filho do acionista controlador, preso em regime
fechado, e poder barganhar com sua liberdade (ou redução de sua pena) era um trunfo
negocial. Havia o desejo de mantê-lo preso, não para impedir a destruição de provas, mas
42
especialmente porque sua prisão era uma vantagem negocial relevante, não apenas para
o acordo de delação premiada, mas também para o acordo de leniência.
134. Um sistema que permite que agentes públicos, com um brutal poder e
pequeníssima responsabilidade funcional, possam barganhar com a liberdade de
indivíduos para extrair vantagens pecuniárias para o Estado (e, reflexamente, prestígio
para si) é intrinsecamente vil e inconstitucional.
135. Os excessos da Lava Jato não são o “desvio” da norma, são, isso sim, a prova
empírica das deformidades genéticas do microssistema da delação e leniência previsto
nas Leis n. 12.846/13 e 12.850/13.
136. Se o arranjo institucional desse microssistema tem fissuras e lacunas que
permitem o uso da violência por agentes públicos na negociação de acordos de leniência,
e se a violência é uma vantagem negocial relevante, então ela fatalmente será empregada.
137. O sistema não é apenas “falho” em impedir o emprego da violência: ele é
desenhado para incentivá-la, já que quanto mais os promotores a empregam no âmbito da
negociação da leniência (ou seja, quanto mais buscam restringir ou ameaçar restringir a
liberdade de indivíduos), maior será a recompensa pecuniária que recolherão para o
Estado (e maior prestígio pessoal amealharão para si).
138. Ou seja, se o sistema delacional já tem, por vícios na sua formação, uma vocação
irrefreável para a nulidade, parece evidente que quaisquer desvios funcionais e
processuais por parte dos promotores, que comprometam o direito de defesa, ou
provoquem constrangimento ilegal nos investigados, têm o condão de nulificar os acordos
celebrados e obrigações assumidas.
139. Ao manipular o processo penal como arma de guerra, mediante o constrangimento
dos investigados visando à obtenção de provas e imposição de multas, a violência
43
institucional do poder penal atua como instrumento de coação e exclui qualquer
possibilidade de manifestação voluntária em tais circunstâncias. Daí a razão pela qual
diversas empresas aceitaram celebrar acordos de leniência manifestamente
desproporcionais, e que agora põe em risco a sua existência.
140. Em tais condições, inexiste voluntariedade quando a moeda de troca é a
liberdade da pessoa e a falência da empresa.
141. Ao agir dessa maneira, o Ministério Público Federal desvirtuou a aplicação da
prisão preventiva, desprezando os requisitos legais de cautelaridade delineados nos
artigos 312 e 313 do Código de Processo Penal, para aderir à privação da liberdade como
forma de constranger os investigados e as empresas à celebração de acordos com o fim
de obter informações, declarações ou confissões.
142. Embora as próprias manifestações nos autos dos processos já deixassem evidente
a violência institucional, caracterizada pelo desvirtuamento das prisões cautelares
manipuladas como instrumento de coação nos acordos da Operação Lava Jato, não passou
despercebido o diálogo entre os procuradores da República que, no contexto das
negociações dos acordos de leniência, diziam que “A OAS tem que mijar sangue para
voltar pra mesa”.29
143. Anos mais tarde, já em 2021, desvelada a tirania dos métodos empregados na
Operação Lava Jato, o Supremo Tribunal Federal entendeu que “a história recente do
Poder Judiciário brasileiro ficará marcada pelo experimento de um projeto populista de
poder político, cuja tônica assentava-se na instrumentalização do processo penal, na
deturpação dos valores da Justiça e na elevação mítica de um Juiz subserviente a um
ideal feroz de violência às garantias constitucionais do contraditório, da ampla defesa,
29
https://www1.folha.uol.com.br/colunas/monicabergamo/2021/03/a-oas-tem-que-mijar-sangue-diz-
procurador-em-dialogos-da-lava-jato.shtml.
44
da presunção de inocência e, principalmente, da dignidade da pessoa humana” (HC
164.493/DF, Voto do Min. Gilmar Mendes, Segunda Turma, julgado em 23/03/2021).
144. Portanto, está claro que as práticas abusivas da Operação Lava Jato e seus
desdobramentos desvirtuaram os mecanismos negociais, retirando qualquer possibilidade
de consensualidade – especialmente quanto às obrigações pecuniárias –, razão pela qual
os acordos de leniência então celebrados devem ser revistos.
2. VIOLAÇÃO À SOBERANIA NACIONAL
145. Além da manipulação das prisões cautelares como instrumento coercitivo para
extorquir acordos, há evidências de que o Ministério Público Federal acessou informações
de modo ilegal, estabelecendo comunicações sigilosas e clandestinas com autoridades
estrangeiras, motivado por interesses pessoais em afronta ao interesse público e à
soberania nacional. Tudo isso, obviamente, teve impacto nos termos dos acordos de
leniência, mais especificamente na fixação das obrigações pecuniárias.
146. Em sessão da 2ª Turma do Supremo Tribunal Federal realizada no dia 09 de
fevereiro de 2021, foi julgado agravo regimental na Reclamação 43.007. Segundo voto
do Exmo. Relator Min. Ricardo Lewandowski: “a pequena amostra do material coligido
até agora já se afigura apta a evidenciar, ao menos em tese, uma parceria indevida entre
o órgão julgador e a acusação, além de trazer a lume tratativas internacionais, que
ensejaram a presença de inúmeras autoridades estrangeiras em solo brasileiro, as
quais, segundo consta, intervieram em investigações, aparentemente à revelia dos
trâmites legais (documento eletrônico 173), de modo especial naquelas referentes à
Odebrecht, objeto específico desta reclamação, com possível prejuízo ao reclamante”.
147. Os documentos mencionados pelo Exmo. Min. Ricardo Lewandowski revelam a
existência de uma série de comunicações funcionais informais e, ao que tudo indica,
clandestinas e ilegais entre os procuradores brasileiros integrantes da Força Tarefa
45
do Ministério Público Federal junto a autoridades suíças e estadunidenses, visando
à celebração de acordos de leniência com empresas brasileiras.
148. Os fatos então revelados provocaram indignação dos ex-presidentes da
Associação Nacional dos Procuradores da República, Alvaro Augusto Ribeiro Costa,
Wagner Gonçalves, Ela Wiecko V. de Castilho e Antonio Carlos Bigonha, que
divulgaram nota de repúdio à atuação dos procuradores, declarando que “A troca de
mensagens entre os procuradores da República na ʽOperação Lava Jatoʼ, de Curitiba,
tornadas públicas no âmbito da ʽOperação Spoofingʼ, sugere relacionamento informal
entre procuradores e juiz incompatível com a missão constitucional do MP, realizado
fora dos balizamentos da lei processual penal, com desprezo às garantias fundamentais
dos acusados e em desrespeito às normas que regem a cooperação internacional”30
.
149. Portanto, elementos reconhecidos por este E. Supremo Tribunal Federal indicam
que os integrantes da Força Tarefa da Operação Lava Jato mantiveram comunicações
informais e clandestina com autoridades estrangeiras para celebração de acordos de
leniência, caracterizando-se questão de soberania nacional e evidente interesse público a
revisão dos atos praticados em afronta às normas que regem a cooperação internacional.
150. A partir da análise de parte dos documentos constantes dos autos da Reclamação
nº 43.007/DF, em trâmite perante o Supremo Tribunal Federal, cujo acesso se tornou
público no dia 1º de fevereiro de 2021, constata-se a existência de uma série de
comunicações funcionais informais, clandestinas e ilegais entre os procuradores
brasileiros integrantes da Força Tarefa do Ministério Público Federal junto a autoridades
suíças e estadunidenses.
151. Há mensagens que indicam compartilhamento de informações sigilosas com o
procurador suíço Stefan Lenz (“peço para mantermos de modo confidencial”),
evidenciando clara afronta aos interesses nacionais nas tratativas para celebração do
acordo de leniência da Odebrecht (“como os suíços foram essenciais na evolução do
30
https://www.cartacapital.com.br/wp-content/uploads/2021/02/Carta-aberta-ex-presidentes-ANPR.pdf
46
caso Ode, temos de tomar em consideração os interesses e sentimentos deles nessa
negociação”)31
.
152. Em certa ocasião, Deltan Dallagnol e Sergio Moro falam abertamente sobre
“reunião conjunta com suíços e americanos para discutir percentuais da divisão do
dinheiro” e a expectativa de que “suíços nos ajudarão a dar menos pros americanos”32
.
153. Há diálogos que revelam que a preocupação central não era a busca por uma
solução justa e conforme os interesses nacionais, mas a intensificação da pressão
internacional e da asfixia econômica às empresas brasileiras33
:
________________________________________________________
________________________________________________________
31
Vide Recl. 43007, sob relatoria do Min. Ricardo Lewandowski
32
Vide Recl. 43007, sob relatoria do Min. Ricardo Lewandowski
33
Vide Recl. 43007, sob relatoria do Min. Ricardo Lewandowski
47
154. Somam-se aos diálogos inusuais o fato de que efetivamente foi proposta a criação
de um fundo bilionário com recursos públicos que ficariam sob o comando do
Ministério Público Federal.34
155. O plano era constituir uma fundação privada para gerir os recursos bilionários
advindos do acordo com a Petrobras só não foi adiante por conta da intervenção do
Supremo Tribunal Federal, ao decidir pela ilegalidade do acordo, uma vez que a
“execução e fiscalização do cumprimento de obrigações assumidas pela Petrobras no
exterior, ainda que visem à mitigação da responsabilidade da empresa por fatos
relacionados à Operação Lava Jato, não correspondem às atribuições específicas dos
membros do MPF em exercício na Força-Tarefa respectiva, ou com a competência
jurisdicional do Juízo da 13ª Vara Federal. A atuação do MPF perante o Juízo da 13ª
Vara Federal nos inquéritos e nas ações penais da Lava Jato, a priori, jamais tornaria
esse órgão prevento para a ‘execução’ do acordo celebrado nos Estados Unidos, mesmo
considerada a relação entre o Non Prosecution Agreement e os fatos investigados no
Brasil” (STF MC-ADPF 568-PR).
156. Ante o exposto, há evidências reconhecidas pelo próprio Supremo Tribunal
Federal no sentido de que o Ministério Público Federal manteve comunicações informais,
clandestinas e ilegais junto a autoridades suíças e estadunidenses, no contexto da
celebração dos acordos de leniência com empresas brasileiras, caracterizando uma forma
de cooperação selvagem em razão da violação ao procedimento para obtenção de
informações lícitas e maculando os acordos celebrados durante a Operação Lava Jato e
seus desdobramentos.
34
STF MC-ADPF 568-PR