2. www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 45
Frantz Fanon e
a ontologia negra
O negro é
uma forma de
sub-humano,
contra o qual todo
tipo de violência
e desrespeito é
tolerado. Não
nos toca o coração
ver uma criança
negra violentada,
ver um adulto
negro assassinado.
As tragédias na
África não são
tragédias, mas,
sim, a própria
África
N
a Europa, o preto, seja concreta, seja
simbolicamente, representa o lado
ruim da personalidade. Enquanto não
compreendermos esta proposição, esta-
remos condenados a falar em vão do ‘problema negro’.
O negro, o obscuro, a sombra, as trevas, a noite, os
labirintos da terra, as profundezas abissais, enegrecer
a reputação de alguém; e, do outro lado: o olhar claro
da inocência, a pomba branca da paz, a luz feérica,
paradisíaca. Uma magnífica criança loura, quanta
paz nessa expressão, quanta alegria e, principalmen-
te, quanta esperança! Nada de comparável com uma
magnífica criança negra, algo absolutamente insóli-
to. Não vou voltar às histórias dos anjos negros. Na
Europa, isto é, em todos os países civilizados e civili-
zadores, o negro simboliza o pecado. O arquétipo dos
valores inferiores é representado pelo negro”.1
Entretanto, constatar este processo de desumani-
zação do negro não possui nada de inovador.O que há
de novo em Frantz Fanon (1925-1961) é a denúncia
de que “o negro” é uma categoria histórica, um cons-
tructo social com objetivos de dominação e sujeição.
Isso porque o negro nunca precisou “ser” negro. Um
1
FANON, 2008, pág. 160
André Santos
Luigi é bacharel
e licenciado em
História pela
USP. Mestre
em Educação,
estuda Relações
Étnico-Raciais.
É membro do
grupo de pesquisa
ETNS, da UFSCar.
Atua como
Coordenador
do Cursinho
Popular EPA.
asluigi@hotmail.
com
Rodolfo de Souza
é bacharel em
Filosofia pela
Puc-Campinas
e atua como
professor da rede
pública de Ensino
Integral de São
Paulo, na escola
Prof. Antônio
Berreta-Itu, em
que desenvolve
diversos projetos
voltados
ao ensino de
Filosofia.
rodolfoidt@
yahoo.com.br.
“
3. 46 • ciência&vida
homem em si, tanto para brancos quan-
to para negros: “Que quer o homem?
Que quer o homem negro? Mesmo
expondo-me ao ressentimento de meus
irmãos de cor, direi que o negro não é
um homem. Há uma zona de não ser,
uma região extraordinariamente estéril e
árida,uma rampa essencialmente despo-
jada, onde um autêntico ressurgimento
pode acontecer. A maioria dos negros
não desfruta do benefício de realizar esta
descida aos verdadeiros infernos”.4
Enquanto estiver aprisionado à con-
dição de negro, o “homem de cor” será
apenas uma imagem precariamente re-
fletida do homem branco. Ele não é o
Outro, mas a autoimagem empobrecida
e diminuída do Eu desprovido de toda
sua potência: “O negro quer ser branco.
O branco incita-se a assumir a condi-
ção de ser humano. Veremos, ao longo
desta obra, elaborar-se uma tentativa de
compreensão da relação entre o negro e
o branco. O branco está fechado na sua
brancura.O negro na sua negrura”.5
A categoria de negro não o permi-
te se colocar de igual para igual. Não
permite estabelecer quaisquer tipos de
relação, tão pouco de negação. A huma-
nidade do homem negro não se comple-
ta enquanto está aprisionado na iden-
tidade de negro: “No mundo branco, o
homem de cor encontra dificuldades na
4
Idem, pág. 16
5
Idem, pág. 27
tica é justamente o espaço que surge do
movimento de negação entre as partes,
já que as partes só existem enquanto se
negam, já que uma apenas existe en-
quanto negação da outra e vice-versa.
O que não ocorre na relação do branco
com o negro.O que se impõe é um mo-
vimento de uma única direção. O autor
fala da condição do colonizado, mas
também do civilizado que se aprisiona à
condição de colonizador. O branco eu-
ropeu também está preso à condição de
explorador. A violência que dele emana
também o violenta, também o desuma-
niza.Não há ontologia possível para um
ou para outro: “Claro, bem que existe o
momento de “ser para-o-outro”, de que
fala Hegel,mas qualquer ontologia torna-
-seirrealizávelemumasociedadecoloniza-
da e civilizada. Parece que este fato não
reteve suficientemente a atenção daque-
les que escreveram sobre a questão colo-
nial. Há, na Weltanschauung de um povo
colonizado,uma impureza,uma tara que
proíbe qualquer explicação ontológica”.3
Muito mais do que discutir identi-
dades, autoestima ou reconhecimento,
Fanon coloca em xeque a concepção de
3
FANON, 2008, pág. 103. Grifo nosso
Não conseguindo intervir em sua realidade, muitos negros se voltam para
dentro de si, em um esforço contraditório, buscam reconhecimento social
privando-se de relações sociais e afetivas, como o próprio Fanon confessa
em diversos trechos de suas obras: “Nenhuma chance me é oferecida. Sou
sobredeterminado pelo exterior. Não sou escravo da ‘ideia’ que os outros
fazem de mim, mas da minha aparição. (...) Deslizo pelos cantos, captan-
do com minhas longas antenas os axiomas espalhados pelas superfícies das
coisas, – a roupa do preto cheira a preto – os dentes do preto são brancos
– os pés do preto são grandes – o largo peito do preto, – deslizo pelos ca-
nos, permaneço silencioso, aspiro ao anonimato, ao esquecimento. Vejam,
aceito tudo, desde que passe despercebido! (...) A vergonha. A vergonha e o
desespero de si. Quando me amam, dizem que o fazem apesar da minha
cor. Quando me detestam, acrescentam que não é pela minha cor... Aqui ou
ali, sou prisioneiro do círculo infernal”. (FANON, 2008, págs. 108-109)
Corporeidade negra
negro nunca se definiu como negro es-
pontaneamente antes de ingressar no
mundo branco.
A novidade em Fanon é a forma
como aborda este processo e como pro-
põe sua destruição. Ou seja, é a tentati-
va de compreender o que este processo
maniqueísta de desumanização causa
ao negro real, histórico, verdadeiro, que
existe. Fanon fala de um existencialismo
negro, ou seja, da situação existencial do
negro. E o faz de forma íntima ao abor-
dá-lo a partir de sua psique. Para tanto,
se lança em um esforço de razoabilida-
de em busca do diálogo, recorrendo a
Hegel (1770-1831) e seu conceito de
homem.Ao citar a Fenomenologia do Es-
pírito, relembra que “a consciência de si
é em si e para si quando e porque ela é
em si e para si uma outra consciência de
si; isto quer dizer que ela só é enquanto
ser reconhecido”.2
Um homem apenas se
reconhece como um ser, uma entidade
portadora de uma individualidade, no
exato momento em que se reconhece no
Outro. Entretanto, esta é uma relação
dialética e, como tal, depende da mútua
interação dos polos para existir. A dialé-
2
Hegel, apud Fanon, 1951, pág. 180
4. www.portalcienciaevida.com.br • ciência&vida • 47
elaboração de seu esquema corporal. O
conhecimento do corpo é unicamente
uma atividade de negação.É um conhe-
cimento em terceira pessoa. Em torno
do corpo reina uma atmosfera densa de
incertezas”.6
É por meio da condição existencial
humana fundante que o racismo captura
o negro: a corporeidade. É o que Fanon
chama de epidermização da inferioridade:
“Mamãe,olhe o preto,estou com medo!”
Medo! Medo! E começavam a me te-
mer.Quis gargalhar até sufocar,mas isso
se tornou impossível. (...) Então meu
esquema corporal, atacado em vários
pontos, desmoronou, cedendo lugar a
um esquema epidérmico”.7
Incapaz de livrar-se de seu corpo, o
homem negro não tem escolha. A exis-
tência pública se torna uma experiência
traumática, de intensa violência, que o
leva à busca incessante de transportar-
-se para longe de sua própria existência:
“Nessa época, desorientado, incapaz
de estar no espaço aberto com o outro,
com o branco que impiedosamente me
aprisionava, eu me distanciei para lon-
ge, para muito longe do meu estar-aqui,
constituindo-me como objeto. O que
é que isso significava para mim, senão
um desalojamento,uma extirpação,uma
hemorragia que coagulava sangue negro
sobre todo o meu corpo? No entanto,eu
6
Idem, pág. 104
7
Idem, pág. 105
Incapaz de livrar-se de seu corpo,
o homem negro encontra-se sem
escolha. A existência pública se
torna uma experiência traumática,
de intensa violência
não queria esta reconsideração, esta es-
quematização. Queria simplesmente ser
um homem entre outros homens. Gos-
taria de ter chegado puro e jovem em
um mundo nosso, ajudando a edificá-lo
conjuntamente”.8
Assim, os negros per-
dem a potência de intervir na sociedade.
Mas Fanon alerta, para experimen-
tar a liberdade é preciso reconhecimen-
to, é preciso entregar-se para viver em
um mundo de outros. Até mesmo o
autorreconhecimento depende da des-
cida ao mundo dos outros. Mas este
mundo de outros não oferece nada ao
negro, apenas um peso opressor que
dificulta sua existência: “Qual a nos-
sa proposição? Simplesmente esta:
quando os pretos abordam o mundo
branco,há certa ação sensibilizante.Se a
estrutura psíquica se revela frágil, tem-
-se um desmoronamento do ego.
O negro cessa de se comportar como in-
divíduo acional. O sentido de sua
ação estará no Outro (sob a forma
8
Idem, pág. 106
do branco), pois só o Outro pode
valorizá-lo.No plano ético,ou seja,valo-
rização de si”.9
Entretanto, seu prognóstico não se
encerra em um niilismo com o mundo.
A radicalidade é para Fanon um ins-
trumento de libertação e construção de
alternativas. Assim o fez em suas obras
como em sua biografia. A radicalidade
busca uma ruptura definitiva, uma rup-
tura que se torna o primeiro passo para
um novo mundo: “Sim, como se vê, fa-
zendo-se apelo à humanidade, ao senti-
mento de dignidade,ao amor,à caridade,
seria fácil provar ou forçar a admissão de
que o negro é igual ao branco.Mas nos-
so objetivo é outro.O que nós queremos
é ajudar o negro a se libertar do arsenal
de complexos germinados no seio da si-
tuação colonial”.10
A luta do negro no mundo branco
não é uma luta para se livrar da dialé-
tica do Eu e do Outro, mas, sim, para
entrar nela. Porém, esta luta não pode
9
Idem, pág. 136. Grifo nosso
10
Idem, pág. 44
5. 48 • ciência&vida
lenciamento melancólico, resta ao negro
uma única alternativa: criar estratégias
desesperadas para remendar e adaptar-
-se ao papel mal-acabado do negro
criado pelo mundo branco. Diante deste
prognóstico da impossibilidade da exis-
tência do negro,Fanon coloca a violência
e ódio como uma opção.Não a violência
física, pura força bruta. Mas, sim, a vio-
lência com negação radical de uma dada
situação.É preciso que o negro sinta ódio
de sua situação para ser capaz de deses-
truturar os rígidos fundamentos que o
aprisionam. Trata-se de uma violência
como reação subjetiva ante as estruturas
sociais:“Em outras palavras,o negro não
deve mais ser colocado diante deste di-
lema: branquear ou desaparecer,ele deve
poder tomar consciência de uma nova
possibilidade de existir;ou ainda,se a so-
ciedade lhe cria dificuldades por sua cor,
se encontro em seus sonhos a expressão
de um desejo inconsciente de mudar de
cor, meu objetivo não será dissuadi-lo,
aconselhando-o a ‘manter as distâncias’;
ao contrário, meu objetivo será, uma vez
esclarecidas as causas, torná-lo capaz de
escolher a ação (ou a passividade) a res-
peito da verdadeira origem do conflito,
isto é,as estruturas sociais”.14
Sua estratégia consiste justamente
em desestabilizar o estabelecido e,a partir
daí,ouvir,em meio às rachaduras abertas,
o Outro até então silenciado. Neste sen-
tido, Frantz Fanon é um dos primeiros
teóricos do que seria conhecido como
“Estudos Pós-Coloniais”. A construção
de uma epistemologia que propõe a relei-
tura da produção da cultura e do conheci-
mento no jogo de poder das relações so-
ciais contemporâneas, problematizando
como a subjetividade e a identidade são
manipuladas a partir de conceitos racistas
e essencialistas.Seus estudos serão poste-
riormente explorados com as contribui-
ções de Stuart Hall (1932-2014), Homi
Bhabha (1949), Edward Said (1935-
2003), Kwame Appiah (1954), Walter
14
Idem, págs. 95-96
primeiro lugar, o homem que crê na
barbárie”. Ao se colocar como antítese
da barbárie, a sociedade civilizada e co-
lonizadora é em si a barbárie. Ou seja, é
preciso deixar de ser razoável para acei-
tar a razão ocidental. Ou, como propõe
Fanon, é preciso deixar a razão de lado
para ser razoável: “A razão assegurava a
vitória em todas as frentes. Eu era rea-
dmitido nas assembleias. Mas tive de
perder as ilusões. A vitória brincava de
gato e rato; ela zombava de mim.Como
diz o outro,quando estou lá,ela não está,
quando ela está,não estou mais”.13
Fanon argumenta que o racismo vai
muito além da violência física e da ex-
ploração material. Ele fornece o modo
pelo qual as pessoas se comunicam e se
expressam. Logo, reconhece na lingua-
gem e no método científico as estruturas
fundantes do racismo como fato social
total. Trata-se do colonialismo episte-
mológico. Ou seja, para o negro, a razão
não é uma opção razoável. Esta é a situ-
ação psicótica do negro no mundo mo-
derno: preso a um sistema social em que
apenas a razão outorga o estatuto de ver-
dade, ser racional não é uma opção ra-
zoável. Sem externar sua situação como
fenômeno público, real e, portanto, sério
e verdadeiro, o negro é levado a uma
condição psicótica de silenciamento de
seus traumas e frustrações.Afora este si-
13
Idem, pág. 111
se dar nos termos da epistemologia ra-
cista. E aqui reside a genialidade de Fa-
non.O autor constrói de forma pioneira
uma abordagem multidisciplinar com o
intuito de alcançar uma ontologia que
considere a densidade do existencial: “a
ontologia,quando se admitir de uma vez
por todas que ela deixa de lado a exis-
tência,não nos permitirá compreender o
ser do negro, pois o negro não tem mais
de ser negro, mas sê-lo diante do bran-
co. Alguns meterão na cabeça que devem
nos lembrar de que a situação tem um duplo
sentido. Respondemos que não é verdade.
Aos olhos do branco, o negro não tem resis-
tência ontológica”.11
Fanon nos leva ao limite da episte-
mologia estabelecida. Ele nos desestabi-
liza, levando-nos para fora do conforto
conceitual oferecido pelo “Eu” estabe-
lecido. Ao nos arremessar para longe da
zona de conforto, permite que olhemos
este “Eu” pelo lado de fora, assumin-
do por vezes o lugar instável do olhar
do “Outro”. Por isso o pensamento de
Fanon é radical. Ele não nos apresenta
grandes sistemas explicativos abstratos
que dão conta da “questão do negro”.Ao
contrário,ele renega ferozmente esta po-
sição: “Estava exposto a algo irracional.
Os psicanalistas dizem que não há nada
de mais traumatizante para a criança do
que o contato com o racional. Pessoal-
mente eu diria que,para um homem que
só tem como arma a razão, não há nada
de mais neurotizante do que o contato
com o irracional. Senti nascer em mim
lâminas de aço. Tomei a decisão de me
defender.Como boa tática,quis raciona-
lizar o mundo,mostrar ao branco que ele
estava errado”.12
Entretanto, abordar o racismo de
forma racional exige,entre outras coisas,
demonstrar que não há absolutamente
razoabilidade possível na sociedade oci-
dental. Como bem argumentou Lévi-
-Strauss (1908-2009), “Bárbaro é, em
11
Idem, pág. 104. Grifo nosso
12
Idem, pág. 110
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imagem:shutterstock
Mignolo (1941),Néstor García Canclini
(1939),entre outros.
um jogo perdido
Na empreita para desestruturar o
colonialismo epistemológico, Fanon
aborda as estratégias de resistência dos
negros diante da opressão do mundo
branco. Ele próprio, como agente do
movimento de negritude,relata os moti-
vos que o levaram a ceder ante as arma-
dilhas das essencialidades:“Diante dessa
esclerose afetiva do branco,é compreen-
sível que eu tenha decidido dar meu gri-
to negro. Pouco a pouco, criando pseu-
dópodes aqui e ali,secretei uma raça”.15
“Secretar uma raça”. A expressão é
forte e agressiva. Mas representa bem o
que se propõe. Fanon fala da invenção
de identidade negra essencializada. Um
negro ideal, ingênuo, puro, que vivia em
harmonia com a natureza em equilíbrio
com as energias do universo. “Sensibili-
dade emotiva. A emoção é negra como
a razão é grega”. Mas logo Fanon revela
do que se trata:“Do outro lado do mun-
do branco, uma feérica16
cultura negra
me saudava. Escultura negra! Comecei
a corar de orgulho. Era a salvação? Eu
tinha racionalizado o mundo e o mundo
tinha me rejeitado em nome do precon-
ceito de cor. Desde que, no plano da ra-
zão,o acordo não era possível,lancei-me
na irracionalidade.Culpa do branco,por
ser mais irracional do que eu! Por pura
necessidade havia adotado o método
regressivo,mas ele era uma arma estran-
15
Idem, pág. 113
16
Feérica. Adjetivo. Que faz parte de um mundo de
fantasia; mágico. Que expressa ou pode conter luxo ou
fausto; deslumbrante: monumento feérico.
Fanon reconhece na linguagem
e no método científico as estruturas
fundantes do racismo como
fato social total. Trata-se do
colonialismo epistemológico
repetir um ciclo. Minha originalidade
me foi extorquida.19
E então o movimento de negritude
reage novamente. Eclode uma série de
estudos que demonstram que fazem re-
nascer vigorosamente a antiguidade ne-
gra. “O branco estava enganado, eu não
era um primitivo, tão pouco um meio
homem, eu pertencia a uma raça que
há dois mil anos já trabalhava o ouro e
a prata”. Após provar que os negros não
eram bárbaros, mas, sim, puros e ingê-
nuos, urgia demonstrar que também
não eram primitivos.Os textos de Aimé
Césaire (1913-2008) alcançaram a per-
feição deste estilo. Mas o tombo se im-
pôs outra vez: “Deixe pra lá sua história
– disseram-me então –, deixe suas pes-
quisas sobre o passado e tente adaptar-
-se ao nosso passo. Em uma sociedade
como a nossa, extremamente industria-
lizada, científica, não há mais lugar para
a sua sensibilidade. É preciso ser duro
pra vencer na vida. Não se trata mais de
jogar o jogo do mundo e,sim,de sujeitá-
-lo a golpes de integrais e de átomos”.
Claro, de vez em quando me diziam
também: “Quando estivermos cansados
da vida em nossos arranha-céus, iremos
até vocês como vamos às nossas crian-
ças... virgens... atônitas... espontâneas.
Iremos até vocês que são a infância do
mundo. Vocês são tão verdadeiros nas
suas vidas, isto é, tão folgados... Deixe-
mos por alguns momentos nossa civili-
19
Idem
geira; aqui estou em casa; fui construído
com o irracional; me atolo no irracional;
irracional até o pescoço”.17
Os movimentos negros aderem
desesperadamente a tais identidades
negras. Era vingança perfeita diante
da desumanização imposta pelo bran-
co. O reconhecimento enfim surgira.
O diálogo estava aberto com aqueles
que finalmente reconhecem o valor do
negro: “Eu me assumia como o poeta
do mundo. O branco tinha descoberto
uma poesia que nada tinha de poética.
A alma do branco estava corrompida e,
como me disse um amigo que ensinou
nos Estados Unidos: ‘Para os brancos,
de certo modo, os negros asseguram a
confiança na humanidade. Quando os
brancos se sentem mecanizados demais,
voltam-se para os homens de cor e lhes
pedem um pouco de nutrientes huma-
nos’. Enfim eu era reconhecido, não era
mais um zero à esquerda”.18
Mas logo toda esta magia encon-
trou seu reverso. Folclore, descontex-
tualização, essencialismo... As mesmas
armadilhas do racismo, porém, agora,
douradas pelo jogo da identidade e do
reconhecimento: “Logo haveria de per-
der as ilusões. O branco, por um ins-
tante baratinado, demonstrou-me que,
geneticamente, eu representava um
estágio: ‘As qualidades de vocês foram
exploradas até o esgotamento por nós.
Tivemos místicas da terra como vocês
não terão jamais.Debruce-se sobre nos-
sa história, e compreenderá até onde foi
esta fusão’. Tive então a impressão de
17
FANON, 2008, pág. 113
18
Idem, pág. 118
7. 50 • ciência&vida
sem futuro negro, era impossível viver
minha negridão. Ainda sem ser branco,
já não mais negro, eu era um condena-
do”. Consciência violenta, concisa, cien-
te da desgraça de sua condição, mas que
ainda resiste: “Um estropiado da guerra
do Pacífico disse a meu irmão: ‘Aceite
a sua cor como eu aceito o meu coto-
co; somos dois acidentados’. Apesar de
tudo,recuso com todas as minhas forças
esta amputação”.22
A consciência da condição do ne-
gro é o primeiro passo para o enfren-
tamento do racismo. Mas consciência
sem rebeldia gera apenas resignação. É
preciso ousar para desalienar o negro e
o branco da situação em que se encon-
tram:“De uma vez por todas,a realidade
exige uma compreensão total. No plano
objetivo como no plano subjetivo, uma
solução deve ser encontrada. E é inútil
vir com ares de mea culpa, proclamando
que o que importa é salvar a alma. Só
haverá uma autêntica desalienação na
medida em que as coisas, no sentido o
mais materialista, tenham tomado os
seus devidos lugares”.23
Racismo brasileiro
Se na situação colonial o negro é a
imagem da barbárie e do primitivismo,
no Brasil, a estratégia discursiva encer-
ra o negro na marginalidade. Preso ao
estereótipo do marginal, ao negro bra-
sileiro só resta a morte. Há alternativas?
Por aqui também imperam as imagens
estereotipadas de negros que Fanon já
desconstruiu há mais de meio século.No
campo das identidades, ainda se joga o
jogo que já começou perdido.
As reflexões propostas por Fanon so-
bre o negro podem muito bem ser esten-
didas à situação brasileira. Para fazer esta
aproximação também poderíamos recor-
rer a conceitos da área da saúde,mas não
da Psiquiatria ou da Psicologia.Olhemos
um dado mais primário: a morte.
22
Idem, pág. 126
23
Idem, pág. 29
zação cerimoniosa e educada e debruce-
mo-nos sobre essas cabeças, sobre esses
rostos adoravelmente expressivos. De
certo modo, vocês nos reconciliam com
nós próprios”.20
Fanon desvenda o motivo da fragi-
lidade dos esforços da negritude: toda
legitimidade emana dos critérios im-
postos por uma epistemologia coloni-
zada. Civilização e barbárie, complexo e
primitivo, poder e impotência, ciência e
magia, enfim, as mesmas dualidades es-
sencialistas se repetiam. Os critérios co-
loniais permaneciam para ditar o valor
da vida. A lógica colonial mais uma vez
foi legitimada,agora pelo próprio negro,
como parâmetro para dar lastro às subje-
tividades.O negro jogava um jogo que já
havia perdido antes de começar: “Assim,
a meu irracional,opunham o racional.A
meu racional, o ‘verdadeiro racional’. Eu
sempre recomeçava um jogo previamen-
te perdido.Experimentei minha heredi-
tariedade. Fiz um balanço completo de
minha doença. Queria ser tipicamente
negro – mas isso não era mais possível.
Queria ser branco – era melhor rir. E,
quando tentava,no plano das ideias e da
atividade intelectual, reivindicar minha
negritude,arrancavam-na de mim”.21
Como apontamos anteriormente, o
método de Fanon consiste em desestru-
turar o estabelecido e das fendas abertas
ouvir o silenciado.E assim ele o faz.Mas
o que ouve não é nenhum cântico de es-
perança e paz, mas, sim, um gemido da
dor de quem, na busca incessantemente
para humanizar-se, ganha consciência
de sua condição: “Sem passado negro,
20
Idem, pág. 120
21
Idem
ABDALA JÚNIOR, Benjamin (org). Margens
da cultura: Mestiçagem, hibridismo & outras
misturas. São Paulo: Boitempo, 2004.
ARANTES, Marco Antônio. Sartre e o
humanismo racista europeu: uma leitura
sartreana de Frantz Fanon. In: Sociologias,
Porto Alegre, ano 13, nº 27, maio-ago/ 2011,
pp. 382-409.
MATHIEU, Anne. Cultura da resistência:
Frantz Fanon, uma voz dos oprimidos. In: Le
Monde Diplomatique Brasil. Disponível em
http://www.diplomatique.org.br/print.
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MORAES, Alfredo. Dialética da alteridade. In:
Ágora filosófica, Departamento de Filosofia.
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v 4, nº 2, jul-dez, 2014, p. 425-442. ISSN:
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FANON, Frantz. Peles negras, máscaras
brancas. Salvador: EDUFBA, 2008.
____________. Os condenados da terra.
Juiz de Fora: Ed. UFJF, 2005.
____________. Em defesa da Revolução
Africana. Lisboa: Sá Costa Editora, 1980.
referências
Estatisticamente, a morte virá nos
visitar de duas maneiras: como mor-
te natural ou como morte não natural.
Conceitualmente,a diferença entre uma
e outra é que a morte não natural pode
ser evitada.Entretanto, se estivermos no
Brasil, há outro componente na defini-
ção da morte. Por aqui, ao nascer, pesa
sobre o rebento as seguintes estatísticas:
a principal causa de morte não natural
entre não negros é o acidente de trân-
sito, enquanto que para os negros é o
homicídio. Em terras tupiniquins, em
pleno século XXI, um jovem negro tem
250% mais chances de morrer de forma
violenta que um jovem não negro. No
Brasil atual, 66% das famílias que vivem
em favelas são negras e 73% da popu-
lação carcerária é composta por jovens
negros entre 18 e 34 anos. A cada dia,
82 jovens com idade entre 15 e 29 anos
são assassinados no Brasil, isso equivale
a 7 jovens a cada duas horas. Destes 82
assassinados,77% são negros.24
O que querem dizer estes números?
Eles são dignos da Filosofia?
24
WAISELFSZ, 2013