Este documento discute os princípios fundamentais do anarquismo. Apresenta o anarquismo como uma filosofia que defende a liberdade total do indivíduo e a ausência de qualquer autoridade ou coerção. Argumenta que o anarquismo é um princípio revolucionário que se opõe a todos os partidos que defendem qualquer forma de coerção sobre os indivíduos.
1. O princípio anarquista
de Kropotkine 1 (1913)
Ao início, a Anarquia apresentou-se como uma simples negação.
A negação do Estado e da acumulação individual de Capital. A negação
de qualquer espécie de autoridade. A negação também das formas
estabelecidas pela sociedade, baseadas nas injustiça, no egoísmo absurdo
e na opressão, assim como na moral comum, derivada do Código romano,
adoptado e santificado pela Igreja cristã. É com base numa luta, envolvida
contra a autoridade, nascida no seio da Internacional, que o partido
anarquista se constituiu como partido revolucionário distinto.
É evidente que espíritos tão profundos tais como Godwin 2 ,
Proudhon 3 e Bakunine 4 não se podiam limitar a uma simples negação. A
afirmação – a concepção de uma sociedade livre, sem autoridade, a
caminho da conquista do bem-estar material, intelectual e moral – seguia
de bem perto a negação; ela constituía a sua contrapartida. Nos escritos de
Bakunine, assim como nos de Proudhon, e de Stirner 5 , encontramos
considerações profundas sobre os fundamentos históricos da ideia do anti-
autoritarismo, o papel que desempenhou na história, e o papel que irá
desempenhar no futuro desenvolvimento da humanidade.
«Nenhum Estado» ou «nenhuma autoridade», apesar da sua forma
negativa, estas palavras tinham um sentido profundamente afirmativo. Era
um princípio filosófico e simultaneamente prático, que significava que
todo o conjunto das vidas das sociedades, tudo, - desde as relações
quotidianas entre indivíduos até às grandes relações entre as raças através
dos Oceanos – podia e devia ser reformado e seria de qualquer forma
necessariamente reformado, segundo os grandes princípios da anarquia –
a plena e total liberdade do indivíduo, os agrupamentos naturais e
temporários, a solidariedade – que passaria ao estado de hábito social.
Eis por que razão a ideia anarquista apareceu como sendo grande,
iluminadora, capaz de mobilizar e de incendiar os melhores espíritos da
época.
Não tenhamos receio da palavra, ela era filosófica.
Hoje em dia, rimo-nos da filosofia. Contudo, não nos ríamos dela
no tempo do Dicionário Filosófico de Voltaire 6 , que, colocando a
filosofia ao alcance de todos e convidando toda a gente a adquirir noções
gerais sobre todas as coisas, constituía uma obra revolucionária, cujos
rastos se encontram nos levantamentos dos camponeses, nas grandes
Ana da Palma 1
2. cidades de 1793, e no entusiasmo apaixonado dos voluntários da
Revolução. Nessa época, os que nos esfomeavam tinham medo da
filosofia.
Mas os padres e os homens de negócios, ajudados pelos filósofos
universitários alemães, de linguajar incompreensível, conseguiram
perfeitamente tornar a filosofia inútil, ou pelo menos ridícula. Os padres e
os seus adeptos tanto disseram que a filosofia constituía balelas que os
ateus acabaram por acreditar. Os homens de negócios burgueses – os
oportunistas brancos, azuis e vermelhos – riram tanto do filósofo que os
homens sinceros também se deixaram endrominar. Qual manipulador da
Bolsa, qual Thiers 7 , qual Napoleão, qual Gambetta 8 não o repetiram para
poderem continuar os seus negócios! Assim, a filosofia encontra-se hoje
em dia menosprezada.
Independentemente do que dizem os padres, os homens de
negócios e aqueles que repetem o que aprenderam, a Anarquia foi
compreendida pelos seus fundadores como uma grande ideia filosófica.
Com efeito, ela é mais que um simples motivo para esta ou outra acção. É
um grande princípio filosófico. É uma vista de conjunto que resulta da
compreensão verdadeira dos factos sociais, do passado histórico da
humanidade, das verdadeiras causas do progresso antigo e moderno.
Umas concepções que não podemos aceitar sem sentir se modificarem
todas as nossas apreciações, grandes ou pequenas, dos grandes fenómenos
sociais, como das pequenas relações entre nós todos na nossa vida
quotidiana.
Ela é um princípio de luta de todos os dias. E, se é um princípio
poderoso nesta luta, é porque resume as aspirações profundas das massas,
um princípio, falseado pela ciência estadista e espezinhado pelos
opressores, mas sempre vivo e activo, sempre criando o progresso e
contra todos os opressores.
Exprime uma ideia que, desde sempre, desde que existem
sociedades, procurou modificar as relações mútuas, e um dia irá
transformá-las, desde as relações que se estabelecem entre os homens
fechados na mesma casa, até aqueles que pensam em juntar-se em grupos
internacionais.
Finalmente, um princípio que requer a reconstrução total da
ciência, física, natural e social.
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* *
Ana da Palma 2
3. Este lado positivo, reconstrutor da Anarquia, não parou de se
desenvolver. E, hoje em dia, a anarquia carregou aos ombros um fardo
ainda maior do que aquele que havia ao início.
Já não se trata de uma simples luta contra camaradas de oficina
que se atribuíram uma autoridade qualquer num grupo de operários. Já
não se trata de uma simples luta contra os chefes, outrora escolhidos, nem
até uma simples luta contra o patrão, um juiz ou um polícia.
É tudo isso, com certeza, porque sem a luta de todos os dias – de
que serve chamarmo-nos revolucionários? A ideia e a acção são
inseparáveis, se a ideia teve poder sobre o indivíduo, sem a respectiva
acção a ideia estiola-se.
Mais ainda é muito mais do que isso. É a luta entre dois grandes
princípios que, desde sempre, estiveram em confronto na sociedade, o
princípio de liberdade e o princípio de coerção: dois princípios que, neste
exacto momento, vão novamente empreender uma luta suprema para
necessariamente chegar a um novo triunfo do princípio libertário.
Olhai em redor. O que restou de todos os partidos que outrora se
proclamavam eminentemente revolucionários? – Dois partidos apenas
estão presentes: o partido da liberdade e o partido da coerção. Os
anarquistas e, contra eles, todos os outros partidos, independentemente da
sua cor.
É contra todos esses partidos que os anarquistas são os únicos a
defender a integralidade do princípio da liberdade. Todos os outros
partidos gabam-se de tornar a humanidade feliz mudando ou suavizando a
forma do chicote. Se gritam «fim à corda de cânhamo da forca», é para a
substituir por um cordão de seda, aplicado nas costas. Sem chicote, sem
coerção de qualquer tipo, - sem o chicote do salário e da fome, sem o
chicote do juiz ou do polícia, sem o chicote de qualquer forma de castigo,
- eles não conseguem conceber a sociedade. Apenas nós ousamos afirmar
que o castigo, o polícia, o juiz, a fome e o salário nunca foram e nunca
serão um elemento do progresso; e que, sob um regime que reconhece
estes instrumento de coerção, se há progresso, só pode ser conquistado
contra estes instrumentos e não por eles.
Eis a luta que iniciamos. E, que jovem coração honesto não ficará
entusiasmado por esta ideia, tomando parte nesta luta e reivindicando-as
contra todas as minorias de opressores, a mais bela parte do homem,
aquela que fez todos os progressos que nos rodeiam e que apesar disto e
por isso mesmo continuam espezinhados!
Mas não é só isso.
Ana da Palma 3
4. Desde que a cisão entre o partido da liberdade e o partido da
coerção se torna mais profunda, este último agarra-se com mais força às
formas moribundas do passado.
Sabe que tem pela frente um princípio poderoso, capaz de
imprimir uma força irresistível à revolução, se algum dia for bem
percebido pelas massas. E, trabalha para tomar conta de cada uma das
correntes que foram o conjunto da grande corrente revolucionária. Põe a
pata sobre o pensamento comunalista 9 que se anuncia em França e na
Inglaterra. Procura apoderar-se da revolta operária contra o patronato que
se produz no mundo inteiro.
E, em vez de encontrar nos socialistas, menos avançados que nós,
auxílios, encontramos neles, nestas duas direcções, um hábil adversário,
apoiado em toda a força dos preconceitos adquiridos, que permite desviar
o socialismo por vias travessas e que acabará por apagar até o sentido
socialista do movimento operário, se os trabalhadores não se aperceberem
rapidamente e abandonarem os líderes de opinião actuais.
O anarquista vê-se portanto forçado a trabalhar sem tréguas e sem
perder tempo em todas estas direcções.
Deve fazer sobressair a grande parte filosófica do princípio da
Anarquia. Deve aplicá-la à ciência, porque com isso, ajudará a reformular
as ideias: encetará as mentiras da história, da economia social, da filosofia
e ajudará os que já o fazem, por amor pela verdade científica, a impor o
carimbo anarquista ao pensamento do século.
Deve apoiar a luta e a agitação diária contra os opressores e os
preconceitos, manter o espírito de revolta em todo o lado em que o
homem está oprimido e tem a coragem de se revoltar.
Tem que desconstruir as sábias maquinações de todos os partidos,
outrora aliados, mas hoje em dia hostis, que trabalham para desviar por
caminhos autoritários os movimentos nascidos da revolta contra a
opressão do Capital e do Estado.
E, por fim, em todas as direcções há que encontrar, ou adivinhar
pela prática vivencial, as novas formas que os grupos, quer por ofícios,
quer por territórios ou locais, podem tomar numa sociedade livre, liberta
da autoridade dos governos e dos que nos esfomeiam.
A grandeza da tarefa a cumprir não será a maior inspiração para o
homem com força para lutar? Não será igualmente a melhor maneira para
apreciar cada acontecimento separado que se produz na corrente da
grande luta que devemos apoiar?
Ana da Palma 4
5. NOTAS DE TRADUÇÃO
1
Tradução do livro em francês: Pierre Kropotkine (1913). Le principe anarchiste.
Paris: Les temps nouveaux.. Piotr Alexeyevich Kropotkin (Moscovo 21/12/1842 –
Dimitrov 8/02/1921). Geógrafo russo, escritor, pensador do anarquismo. Membro da
Primeira Internacional. Alguns títulos: A Conquista do Pão; Memórias de um
Revolucionário; Campos, Fábricas e Oficinas; Mutualismo: Um Factor de Evolução.
2
William Godwin (Cambridgeshire, 3/03/1756 — 7/04/1836). Jornalista inglês, filósofo
político e escritor. Casado com Mary Wollstonecraft, autora de Uma Defesa dos
Direitos da Mulher (1790). Escritor de livros infantis com o pseudónimo Edward
Baldwin. Alguns livros: Inquérito acerca da justiça política; As coisas como elas são
ou As Aventuras de Caleb Williams; The Enquirer; Memoirs of the Author of A
Vindication of the Rights of Woman; Letters of Advice to a Young American; History
of the Commonwealth; Thoughts on Man, his Nature, Productions, and Discoveries;
Interspersed with some particulars respecting the author ; Lives of the Necromancers .
3
Pierre-Joseph Proudhon (Besançon, 15/01/1809— Passy, 19/01/1865). Tipógrafo,
filósofo político e económico francês. Membro do Parlamento Francês. Um dos mais
influentes teóricos e escritores do anarquismo. Alguns livros: Qu'est-ce que la
propriété? Recherche sur le principe du droit et du gouvernement ; Sistema das
Contradições Econômicas, ou A Filosofia da Miséria; Idée générale de la révolution
au XIXe siècle; Le manuel du spéculateur à la bourse ; De la justice dans la
révolution et dans l'Eglise; La Guerre et la Paix; Do Princípio Federativo; De la
capacité politique des classes ouvrières; Théorie de la propriété; Théorie du
mouvement constitutionnel.
4
Mikhaïl Aleksandrovitch Bakunine ( 30/05/1814 - Berna 1/07/1876). Revolucionário
teórico do anarquismo com uma ampla reflexão sobre o papel do Estado.
5
Marx Stirner, pseudónimo de Johann Kaspar Schmidt, (Bayreuth. 25/10/1806 —
Berlim, 26/06/1856). Escritor e filósofo alemão. Um livro: O único e sua propriedade
em 1844.
6
O dicionário filosófico data de 1764 da autoria de François Marie Arouet, conhecido
por Voltaire (Paris, 21/11/ 1694 — Paris, 30/05/1778). Escritor, ensaísta e filósofo
iluminista francês.
7
Louis Adolphe Thiers (16/04/ 1797 — 37091877) estadista e historiador francês.
Primeiro ministro sob o reinado de Luís Felipe e presidente da república francesa
durante a 3ª república.
8
Léon Gambetta ( 2704/ 1838 - 31/12/1882). Político francês. Primeiro-ministro da
França, entre 14 de Novembro de 1881 a 30 de Janeiro de 1882.
9
«comunalista» relativo ao pensamento da Comuna.
Ana da Palma 5