SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 5
Descargar para leer sin conexión
Uma torrada com manteiga e mel
353
A transferência
Ao longe ouvia-se o bater abafado e repetitivo de uma
motobomba que começara cedo a matraquear.
Zé Manel colocou o resto da carga no atrelado e meteu-se
a caminho de casa.
O trator que conduzia já não era novo, mas suficiente-
mente afinado para o levar por caminhos de terra batida com
sulcos cavados pelos rodados e pelas enxurradas que os fize-
ram ainda mais fundos.
´Tranquilamente lá foi ele, mas sempre preocupado com o
atrelado pois receava que ficasse preso em algum buraco, que
já estavam muito fundos. Tinha de falar com o presidente da
freguesia para que mandasse fazer um arranjo, antes que fos-
se maior a despesa, pensava e falava com os seus botões.
Uma ou outra vez gingou os braços com repentinos desvios de
direção até que ao chegar ao cimo da encosta, finalmente en-
controu terra plana e depois asfalto na estrada principal.
Um pouco mais devagar do que o habitual subiu a encos-
ta até ao planalto onde o esperavam os companheiros do jogo
das cartas. Estes amigos tinham acabado o serviço deles e
entretanto souberam novidades bem desagradáveis. Estavam
à espera do Zé Manel para lhe contar o que sabiam e entretan-
to consumiam mais cigarros do que até àquela hora estaria
previsto.
Zé Manel, ao ver os amigos ao longe envoltos numa nu-
vem de fumo branco, comentou para si ─ O Tó Zé ainda não
se convenceu de que aquele constante pigarro se deve ao ex-
augusto brilhante ribeiro
354
cesso de fumo que lhe conspurca a garganta e os pulmões.
Habitualmente estes amigos reservavam alguns dias da
semana para se juntarem na taberna com o intuito de jogarem
as cartas. Umas vezes jogavam a "bisca", outras a "sueca" e
diziam que andavam a aprender uma outra modalidade, que
nem se sabia bem o nome. Justificaram que fora um antigo co-
lega deles que emigrara e agora estava a viver na capital, que
lhes ensinara. Ele tinha passado as férias do verão por lá e re-
solveu dizer-lhes como se jogava, só que aquilo era muito
complicado e precisavam de alguns esclarecimentos.
“Sueca” que se preze tem de ter quatro jogadores e de
todos, se houver fumador ele aguentará o cigarro no canto da
boca até que não seja mais do que cinza.
As mãos ficam ocupadas; uma a segurar nas cartas dis-
tribuídas e a outra a batê-las com sonoridade para alertar o
parceiro de que há ou não há carta boa com ele. Outras vezes
é uma indicação para o parceiro “puxar o trunfo”. Esta lingua-
gem de sinais camuflados, que são conhecidos por todos, dá
uma mística sensação de que se consegue enganar os adver-
sários. No final de cada jogada fazem cruzes em papéis para
registarem os pontos ganhos e discutem sempre que “aquela”
carta foi “deitada” porque já tinha saído outra e assim ficam em
grandes dissertações sobre as sábias regras do bater da carta
na mesa.
Pois é, estes que passam o dia na “sueca” ou na “bisca”,
só o fazem porque o tempo lhes permite e também é uma for-
ma de se distraírem após a labuta diária, quase de sol a sol.
Trabalham assim porque são patrões deles próprios. O bom
tempo é que lhes permite ir para o trabalho no campo. Por isso
é que aproveitam o mais que podem a luz do dia.
Quando o Zé Manel chegou ao cimo, cumprimentou os
três colegas que o aguardavam, notando-lhes impaciência. O
Uma torrada com manteiga e mel
355
tratorista logo os acalmou, pois que só demorara um pouco
mais do que o habitual, porque a carga era muita e os trilhos
obrigaram-no a desvios imprevistos.
─ Nada disso, Zé Manel. Estamos aqui com uma imperti-
nência dos diabos.
O Tó Zé não continuou a frase e deixou o tratorista intri-
gado. Olhou para os outros e reparou que só bufavam, metiam
as mãos nos bolsos, rodopiavam e colocavam-nas na cabeça,
esfregando-as pela testa.
─ Alguém me diz o que se passa?! ─ quis saber o Zé
Manel.
O Tó Zé, homem experiente, aproximou-se dele e num
gesto de como quem vai contar um segredo, sussurrou-lhe.
─ Querem mandar embora o nosso padre.
─ Mandar embora? ─ gritou Zé Manel em tom de desa-
grado ─ Quem? ─ perguntou com ar de zangado.
─ O Bispo! ─ acrescentou o Tó Zé.
─ E o que é que o padre fez?
Tó Zé, que já sabia de outras situações com outros pa-
dres que lá estiveram, não teve papas na língua e vai de calu-
niar.
─ Se calhar andam por aí “saias”. Já não é o primeiro ca-
so. Raios partam as mulheres, logo têm que se meter com
aquelas pobres criaturas.
─ Não sei a razão, mas não deve ser nada disso. ─ ri-
postou o Zé Manel, acrescentando: ─ O padreco até me pare-
ce doente, sempre com aquele ar de quem não apanha sol. É
certo que convive muito com a população, e especialmente
com os jovens e isso até lhe agradecemos, porque leva-os pa-
ra o bom caminho. É preciso tirar a limpo essa história que me
parece mal contada, e se for preciso não o deixamos sair da-
qui.
augusto brilhante ribeiro
356
Terminou por ali o assunto e cada um empoleirou-se no
trator e atravessaram a aldeia que pacatamente começava a
dar os primeiros sinais de preparativos para o almoço.
Era um dia de Inverno. O frio congelava as carnes e eles
sentiam-no nos ossos. Todos ajudaram o Zé Manel a fazer a
descarga, quanto mais não fosse para dar movimento ao cor-
po, pois que assim, sempre se sentiam mais quentes. Depois
ele levou-os até à adega, sem que antes tivesse dado ordens à
empregada para levar presunto e enchido de lombo, com fer-
ramenta adequada para os cortar, e também lhe falou para não
se esquecer de trazer o pão de centeio.
─ Com que então, querem tirar daqui o padre!?
─ Pois é, Zé Manel, não sei que raio aconteceu, mas pa-
rece que assim é.
─ E o padre quer sair?
─ Não! Ouvi dizer que até queria trazer para aqui os pais.
─ Mas que raio de coisa! Porque é que querem que ele
vá embora?
Ficaram a resmungar o assunto uns com os outros até
que o tempo foi passando.
Uns dias mais tarde, depois de confirmada a imposição da
transferência, gerou-se um alvoroço de indignação, pela aldeia
fora.
Os habitantes devotos à igreja fizeram reuniões secretas
e falaram em não deixar sair o padre. Outros cristãos, especi-
almente os mais jovens, reclamaram a sua devoção e fé à Igre-
ja após a vinda deste novo e muito ativo seguidor da doutrina
de Cristo.
Não se chegou a saber o que mais aconteceu para que a
ordem fosse cumprida. O padre aceitou e transmitiu aos seus
fiéis, que se o amavam, então deixassem-no partir para cumprir
ordens superiores.
Uma torrada com manteiga e mel
357
Na hora da despedida houve muito choro e muita de-
monstração de carinho do rebanho para com o “pastor”. Houve
até, que nem “Madalena”, sinais de paixão vistos em gestos
singelos de uma mulher que o acariciou e lhe limpou com o
polegar lágrimas que lhe saltaram dos olhos encovados por
mal dormidos. Depois abraçou-o e beijou-o como se a cruz em
breve o esperasse. Foram cenas como esta que empalideceu
outros acontecimentos de menor importância. Soluços e choro.
Que havemos de dizer de tudo isto? A carência afetiva de
algumas mulheres daquela aldeia estava espelhada em gestos
carinhosos para um jovem padre.
Daquilo faltava-lhes a elas mais do que os seus homens
as sustentavam.
Alguns dias depois o mistério começou a ser desvendado,
sem que, como mistério que era, todos dissessem uns aos ou-
tros que nada dissessem, porque mistério é coisa para não se
dizer nem falar dele.
Ou porque era verdadeiro ou invenção, o que acabou por
ser divulgado foi que houve uma quezília entre padres para
disputa de lugares, e como no reino da Igreja ainda não impera
a democracia, o mexilhão uma vez mais é que se “lixou”.

Más contenido relacionado

La actualidad más candente

Artur azevedo a melhor amiga
Artur azevedo   a melhor amigaArtur azevedo   a melhor amiga
Artur azevedo a melhor amigaTulipa Zoá
 
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_por
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_porCentenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_por
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_porMaike Loes
 
República velha vilma arêas
República velha   vilma arêasRepública velha   vilma arêas
República velha vilma arêasJoyce Mourão
 
Casamento Tradicional REGRAS
Casamento Tradicional REGRASCasamento Tradicional REGRAS
Casamento Tradicional REGRASCibele Menezes
 

La actualidad más candente (9)

Artur azevedo a melhor amiga
Artur azevedo   a melhor amigaArtur azevedo   a melhor amiga
Artur azevedo a melhor amiga
 
slides do curso
slides do cursoslides do curso
slides do curso
 
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_por
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_porCentenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_por
Centenario di Sr Angela Vallese 1914-2014_por
 
República velha vilma arêas
República velha   vilma arêasRepública velha   vilma arêas
República velha vilma arêas
 
Casamento caipira
Casamento caipiraCasamento caipira
Casamento caipira
 
Depois de uma tragedia
Depois de uma tragediaDepois de uma tragedia
Depois de uma tragedia
 
Chama 175
Chama 175Chama 175
Chama 175
 
Casamento Tradicional REGRAS
Casamento Tradicional REGRASCasamento Tradicional REGRAS
Casamento Tradicional REGRAS
 
Tomai bebei - Max Mallmann
Tomai bebei - Max MallmannTomai bebei - Max Mallmann
Tomai bebei - Max Mallmann
 

Destacado (16)

Civilización inca
Civilización inca Civilización inca
Civilización inca
 
Civilización Inca
Civilización IncaCivilización Inca
Civilización Inca
 
Cultura Inca (I)
Cultura Inca (I)Cultura Inca (I)
Cultura Inca (I)
 
La cultura inca
La cultura incaLa cultura inca
La cultura inca
 
El Imperio Inca
El Imperio Inca El Imperio Inca
El Imperio Inca
 
EL IMPERIO DE LOS INCAS
EL IMPERIO DE LOS INCAS EL IMPERIO DE LOS INCAS
EL IMPERIO DE LOS INCAS
 
Presentacion CivilizacióN Inca
Presentacion CivilizacióN IncaPresentacion CivilizacióN Inca
Presentacion CivilizacióN Inca
 
La civilización inca
La civilización incaLa civilización inca
La civilización inca
 
Origen De Los Incas
Origen De Los IncasOrigen De Los Incas
Origen De Los Incas
 
Organización política de los incas
Organización política de los incasOrganización política de los incas
Organización política de los incas
 
Aportes de la cultura inca
Aportes de la cultura incaAportes de la cultura inca
Aportes de la cultura inca
 
Cultura Inca
Cultura IncaCultura Inca
Cultura Inca
 
La cultura inca
La cultura inca La cultura inca
La cultura inca
 
Los Incas
Los IncasLos Incas
Los Incas
 
Cultura Inca - Arte Peruano
Cultura Inca - Arte PeruanoCultura Inca - Arte Peruano
Cultura Inca - Arte Peruano
 
La influencia de los incas en Chile.
La influencia de los incas en Chile.La influencia de los incas en Chile.
La influencia de los incas en Chile.
 

Similar a A transferência pág 353 a 357

Bohannan, laura shakespeare na selva
Bohannan, laura   shakespeare na selvaBohannan, laura   shakespeare na selva
Bohannan, laura shakespeare na selvaCharlesPorfirio3
 
A festa de babette (karen blixen)
A festa de babette (karen blixen)A festa de babette (karen blixen)
A festa de babette (karen blixen)Adélia Nicolete
 
Artur azevedo joão silva
Artur azevedo   joão silvaArtur azevedo   joão silva
Artur azevedo joão silvaTulipa Zoá
 
Maravilhosa graça 2
Maravilhosa graça 2Maravilhosa graça 2
Maravilhosa graça 2Jonas Lima
 
Margarida rebelo pinto sei lá
Margarida rebelo pinto   sei láMargarida rebelo pinto   sei lá
Margarida rebelo pinto sei láRaquel Tavares
 
Barbara cartland a flecha de cupido(1)
Barbara cartland   a flecha de cupido(1)Barbara cartland   a flecha de cupido(1)
Barbara cartland a flecha de cupido(1)Ariovaldo Cunha
 
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casaInstituto de Psicobiofísica Rama Schain
 
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casaInstituto de Psicobiofísica Rama Schain
 
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdf
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdfGuy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdf
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdfREGINALDOAPARECIDOPI
 

Similar a A transferência pág 353 a 357 (20)

Bohannan, laura shakespeare na selva
Bohannan, laura   shakespeare na selvaBohannan, laura   shakespeare na selva
Bohannan, laura shakespeare na selva
 
A festa de babette (karen blixen)
A festa de babette (karen blixen)A festa de babette (karen blixen)
A festa de babette (karen blixen)
 
Esau e jaco
Esau e jacoEsau e jaco
Esau e jaco
 
115
115115
115
 
Artur azevedo joão silva
Artur azevedo   joão silvaArtur azevedo   joão silva
Artur azevedo joão silva
 
Lágrimas no rio (preview)
Lágrimas no rio (preview)Lágrimas no rio (preview)
Lágrimas no rio (preview)
 
Frei simao
Frei simaoFrei simao
Frei simao
 
O segredo
O segredoO segredo
O segredo
 
( Espiritismo) # - anderson enrique - somos eternos!
( Espiritismo)   # - anderson enrique - somos eternos!( Espiritismo)   # - anderson enrique - somos eternos!
( Espiritismo) # - anderson enrique - somos eternos!
 
Conto-meu tio jules
Conto-meu tio julesConto-meu tio jules
Conto-meu tio jules
 
Maravilhosa graça 2
Maravilhosa graça 2Maravilhosa graça 2
Maravilhosa graça 2
 
Margarida rebelo pinto sei lá
Margarida rebelo pinto   sei láMargarida rebelo pinto   sei lá
Margarida rebelo pinto sei lá
 
Barbara cartland a flecha de cupido(1)
Barbara cartland   a flecha de cupido(1)Barbara cartland   a flecha de cupido(1)
Barbara cartland a flecha de cupido(1)
 
A chuva
A chuvaA chuva
A chuva
 
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
 
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa( Espiritismo)   # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
( Espiritismo) # - amag ramgis - conto de natal # a música que vinha da casa
 
O diplomatico
O diplomaticoO diplomatico
O diplomatico
 
Em terras Latan
Em terras LatanEm terras Latan
Em terras Latan
 
esau.pdf
esau.pdfesau.pdf
esau.pdf
 
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdf
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdfGuy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdf
Guy de Maupassant - Contos Escolhidos.pdf
 

A transferência pág 353 a 357

  • 1. Uma torrada com manteiga e mel 353 A transferência Ao longe ouvia-se o bater abafado e repetitivo de uma motobomba que começara cedo a matraquear. Zé Manel colocou o resto da carga no atrelado e meteu-se a caminho de casa. O trator que conduzia já não era novo, mas suficiente- mente afinado para o levar por caminhos de terra batida com sulcos cavados pelos rodados e pelas enxurradas que os fize- ram ainda mais fundos. ´Tranquilamente lá foi ele, mas sempre preocupado com o atrelado pois receava que ficasse preso em algum buraco, que já estavam muito fundos. Tinha de falar com o presidente da freguesia para que mandasse fazer um arranjo, antes que fos- se maior a despesa, pensava e falava com os seus botões. Uma ou outra vez gingou os braços com repentinos desvios de direção até que ao chegar ao cimo da encosta, finalmente en- controu terra plana e depois asfalto na estrada principal. Um pouco mais devagar do que o habitual subiu a encos- ta até ao planalto onde o esperavam os companheiros do jogo das cartas. Estes amigos tinham acabado o serviço deles e entretanto souberam novidades bem desagradáveis. Estavam à espera do Zé Manel para lhe contar o que sabiam e entretan- to consumiam mais cigarros do que até àquela hora estaria previsto. Zé Manel, ao ver os amigos ao longe envoltos numa nu- vem de fumo branco, comentou para si ─ O Tó Zé ainda não se convenceu de que aquele constante pigarro se deve ao ex-
  • 2. augusto brilhante ribeiro 354 cesso de fumo que lhe conspurca a garganta e os pulmões. Habitualmente estes amigos reservavam alguns dias da semana para se juntarem na taberna com o intuito de jogarem as cartas. Umas vezes jogavam a "bisca", outras a "sueca" e diziam que andavam a aprender uma outra modalidade, que nem se sabia bem o nome. Justificaram que fora um antigo co- lega deles que emigrara e agora estava a viver na capital, que lhes ensinara. Ele tinha passado as férias do verão por lá e re- solveu dizer-lhes como se jogava, só que aquilo era muito complicado e precisavam de alguns esclarecimentos. “Sueca” que se preze tem de ter quatro jogadores e de todos, se houver fumador ele aguentará o cigarro no canto da boca até que não seja mais do que cinza. As mãos ficam ocupadas; uma a segurar nas cartas dis- tribuídas e a outra a batê-las com sonoridade para alertar o parceiro de que há ou não há carta boa com ele. Outras vezes é uma indicação para o parceiro “puxar o trunfo”. Esta lingua- gem de sinais camuflados, que são conhecidos por todos, dá uma mística sensação de que se consegue enganar os adver- sários. No final de cada jogada fazem cruzes em papéis para registarem os pontos ganhos e discutem sempre que “aquela” carta foi “deitada” porque já tinha saído outra e assim ficam em grandes dissertações sobre as sábias regras do bater da carta na mesa. Pois é, estes que passam o dia na “sueca” ou na “bisca”, só o fazem porque o tempo lhes permite e também é uma for- ma de se distraírem após a labuta diária, quase de sol a sol. Trabalham assim porque são patrões deles próprios. O bom tempo é que lhes permite ir para o trabalho no campo. Por isso é que aproveitam o mais que podem a luz do dia. Quando o Zé Manel chegou ao cimo, cumprimentou os três colegas que o aguardavam, notando-lhes impaciência. O
  • 3. Uma torrada com manteiga e mel 355 tratorista logo os acalmou, pois que só demorara um pouco mais do que o habitual, porque a carga era muita e os trilhos obrigaram-no a desvios imprevistos. ─ Nada disso, Zé Manel. Estamos aqui com uma imperti- nência dos diabos. O Tó Zé não continuou a frase e deixou o tratorista intri- gado. Olhou para os outros e reparou que só bufavam, metiam as mãos nos bolsos, rodopiavam e colocavam-nas na cabeça, esfregando-as pela testa. ─ Alguém me diz o que se passa?! ─ quis saber o Zé Manel. O Tó Zé, homem experiente, aproximou-se dele e num gesto de como quem vai contar um segredo, sussurrou-lhe. ─ Querem mandar embora o nosso padre. ─ Mandar embora? ─ gritou Zé Manel em tom de desa- grado ─ Quem? ─ perguntou com ar de zangado. ─ O Bispo! ─ acrescentou o Tó Zé. ─ E o que é que o padre fez? Tó Zé, que já sabia de outras situações com outros pa- dres que lá estiveram, não teve papas na língua e vai de calu- niar. ─ Se calhar andam por aí “saias”. Já não é o primeiro ca- so. Raios partam as mulheres, logo têm que se meter com aquelas pobres criaturas. ─ Não sei a razão, mas não deve ser nada disso. ─ ri- postou o Zé Manel, acrescentando: ─ O padreco até me pare- ce doente, sempre com aquele ar de quem não apanha sol. É certo que convive muito com a população, e especialmente com os jovens e isso até lhe agradecemos, porque leva-os pa- ra o bom caminho. É preciso tirar a limpo essa história que me parece mal contada, e se for preciso não o deixamos sair da- qui.
  • 4. augusto brilhante ribeiro 356 Terminou por ali o assunto e cada um empoleirou-se no trator e atravessaram a aldeia que pacatamente começava a dar os primeiros sinais de preparativos para o almoço. Era um dia de Inverno. O frio congelava as carnes e eles sentiam-no nos ossos. Todos ajudaram o Zé Manel a fazer a descarga, quanto mais não fosse para dar movimento ao cor- po, pois que assim, sempre se sentiam mais quentes. Depois ele levou-os até à adega, sem que antes tivesse dado ordens à empregada para levar presunto e enchido de lombo, com fer- ramenta adequada para os cortar, e também lhe falou para não se esquecer de trazer o pão de centeio. ─ Com que então, querem tirar daqui o padre!? ─ Pois é, Zé Manel, não sei que raio aconteceu, mas pa- rece que assim é. ─ E o padre quer sair? ─ Não! Ouvi dizer que até queria trazer para aqui os pais. ─ Mas que raio de coisa! Porque é que querem que ele vá embora? Ficaram a resmungar o assunto uns com os outros até que o tempo foi passando. Uns dias mais tarde, depois de confirmada a imposição da transferência, gerou-se um alvoroço de indignação, pela aldeia fora. Os habitantes devotos à igreja fizeram reuniões secretas e falaram em não deixar sair o padre. Outros cristãos, especi- almente os mais jovens, reclamaram a sua devoção e fé à Igre- ja após a vinda deste novo e muito ativo seguidor da doutrina de Cristo. Não se chegou a saber o que mais aconteceu para que a ordem fosse cumprida. O padre aceitou e transmitiu aos seus fiéis, que se o amavam, então deixassem-no partir para cumprir ordens superiores.
  • 5. Uma torrada com manteiga e mel 357 Na hora da despedida houve muito choro e muita de- monstração de carinho do rebanho para com o “pastor”. Houve até, que nem “Madalena”, sinais de paixão vistos em gestos singelos de uma mulher que o acariciou e lhe limpou com o polegar lágrimas que lhe saltaram dos olhos encovados por mal dormidos. Depois abraçou-o e beijou-o como se a cruz em breve o esperasse. Foram cenas como esta que empalideceu outros acontecimentos de menor importância. Soluços e choro. Que havemos de dizer de tudo isto? A carência afetiva de algumas mulheres daquela aldeia estava espelhada em gestos carinhosos para um jovem padre. Daquilo faltava-lhes a elas mais do que os seus homens as sustentavam. Alguns dias depois o mistério começou a ser desvendado, sem que, como mistério que era, todos dissessem uns aos ou- tros que nada dissessem, porque mistério é coisa para não se dizer nem falar dele. Ou porque era verdadeiro ou invenção, o que acabou por ser divulgado foi que houve uma quezília entre padres para disputa de lugares, e como no reino da Igreja ainda não impera a democracia, o mexilhão uma vez mais é que se “lixou”.