O padre da aldeia foi transferido contra a vontade dos paroquianos. Os habitantes ficaram indignados com a ordem de transferência uma vez que o padre era popular, especialmente entre os mais jovens. Eventualmente, descobriu-se que a transferência poderia estar relacionada a disputas internas entre padres.
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A transferência
Ao longe ouvia-se o bater abafado e repetitivo de uma
motobomba que começara cedo a matraquear.
Zé Manel colocou o resto da carga no atrelado e meteu-se
a caminho de casa.
O trator que conduzia já não era novo, mas suficiente-
mente afinado para o levar por caminhos de terra batida com
sulcos cavados pelos rodados e pelas enxurradas que os fize-
ram ainda mais fundos.
´Tranquilamente lá foi ele, mas sempre preocupado com o
atrelado pois receava que ficasse preso em algum buraco, que
já estavam muito fundos. Tinha de falar com o presidente da
freguesia para que mandasse fazer um arranjo, antes que fos-
se maior a despesa, pensava e falava com os seus botões.
Uma ou outra vez gingou os braços com repentinos desvios de
direção até que ao chegar ao cimo da encosta, finalmente en-
controu terra plana e depois asfalto na estrada principal.
Um pouco mais devagar do que o habitual subiu a encos-
ta até ao planalto onde o esperavam os companheiros do jogo
das cartas. Estes amigos tinham acabado o serviço deles e
entretanto souberam novidades bem desagradáveis. Estavam
à espera do Zé Manel para lhe contar o que sabiam e entretan-
to consumiam mais cigarros do que até àquela hora estaria
previsto.
Zé Manel, ao ver os amigos ao longe envoltos numa nu-
vem de fumo branco, comentou para si ─ O Tó Zé ainda não
se convenceu de que aquele constante pigarro se deve ao ex-
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cesso de fumo que lhe conspurca a garganta e os pulmões.
Habitualmente estes amigos reservavam alguns dias da
semana para se juntarem na taberna com o intuito de jogarem
as cartas. Umas vezes jogavam a "bisca", outras a "sueca" e
diziam que andavam a aprender uma outra modalidade, que
nem se sabia bem o nome. Justificaram que fora um antigo co-
lega deles que emigrara e agora estava a viver na capital, que
lhes ensinara. Ele tinha passado as férias do verão por lá e re-
solveu dizer-lhes como se jogava, só que aquilo era muito
complicado e precisavam de alguns esclarecimentos.
“Sueca” que se preze tem de ter quatro jogadores e de
todos, se houver fumador ele aguentará o cigarro no canto da
boca até que não seja mais do que cinza.
As mãos ficam ocupadas; uma a segurar nas cartas dis-
tribuídas e a outra a batê-las com sonoridade para alertar o
parceiro de que há ou não há carta boa com ele. Outras vezes
é uma indicação para o parceiro “puxar o trunfo”. Esta lingua-
gem de sinais camuflados, que são conhecidos por todos, dá
uma mística sensação de que se consegue enganar os adver-
sários. No final de cada jogada fazem cruzes em papéis para
registarem os pontos ganhos e discutem sempre que “aquela”
carta foi “deitada” porque já tinha saído outra e assim ficam em
grandes dissertações sobre as sábias regras do bater da carta
na mesa.
Pois é, estes que passam o dia na “sueca” ou na “bisca”,
só o fazem porque o tempo lhes permite e também é uma for-
ma de se distraírem após a labuta diária, quase de sol a sol.
Trabalham assim porque são patrões deles próprios. O bom
tempo é que lhes permite ir para o trabalho no campo. Por isso
é que aproveitam o mais que podem a luz do dia.
Quando o Zé Manel chegou ao cimo, cumprimentou os
três colegas que o aguardavam, notando-lhes impaciência. O
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tratorista logo os acalmou, pois que só demorara um pouco
mais do que o habitual, porque a carga era muita e os trilhos
obrigaram-no a desvios imprevistos.
─ Nada disso, Zé Manel. Estamos aqui com uma imperti-
nência dos diabos.
O Tó Zé não continuou a frase e deixou o tratorista intri-
gado. Olhou para os outros e reparou que só bufavam, metiam
as mãos nos bolsos, rodopiavam e colocavam-nas na cabeça,
esfregando-as pela testa.
─ Alguém me diz o que se passa?! ─ quis saber o Zé
Manel.
O Tó Zé, homem experiente, aproximou-se dele e num
gesto de como quem vai contar um segredo, sussurrou-lhe.
─ Querem mandar embora o nosso padre.
─ Mandar embora? ─ gritou Zé Manel em tom de desa-
grado ─ Quem? ─ perguntou com ar de zangado.
─ O Bispo! ─ acrescentou o Tó Zé.
─ E o que é que o padre fez?
Tó Zé, que já sabia de outras situações com outros pa-
dres que lá estiveram, não teve papas na língua e vai de calu-
niar.
─ Se calhar andam por aí “saias”. Já não é o primeiro ca-
so. Raios partam as mulheres, logo têm que se meter com
aquelas pobres criaturas.
─ Não sei a razão, mas não deve ser nada disso. ─ ri-
postou o Zé Manel, acrescentando: ─ O padreco até me pare-
ce doente, sempre com aquele ar de quem não apanha sol. É
certo que convive muito com a população, e especialmente
com os jovens e isso até lhe agradecemos, porque leva-os pa-
ra o bom caminho. É preciso tirar a limpo essa história que me
parece mal contada, e se for preciso não o deixamos sair da-
qui.
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Terminou por ali o assunto e cada um empoleirou-se no
trator e atravessaram a aldeia que pacatamente começava a
dar os primeiros sinais de preparativos para o almoço.
Era um dia de Inverno. O frio congelava as carnes e eles
sentiam-no nos ossos. Todos ajudaram o Zé Manel a fazer a
descarga, quanto mais não fosse para dar movimento ao cor-
po, pois que assim, sempre se sentiam mais quentes. Depois
ele levou-os até à adega, sem que antes tivesse dado ordens à
empregada para levar presunto e enchido de lombo, com fer-
ramenta adequada para os cortar, e também lhe falou para não
se esquecer de trazer o pão de centeio.
─ Com que então, querem tirar daqui o padre!?
─ Pois é, Zé Manel, não sei que raio aconteceu, mas pa-
rece que assim é.
─ E o padre quer sair?
─ Não! Ouvi dizer que até queria trazer para aqui os pais.
─ Mas que raio de coisa! Porque é que querem que ele
vá embora?
Ficaram a resmungar o assunto uns com os outros até
que o tempo foi passando.
Uns dias mais tarde, depois de confirmada a imposição da
transferência, gerou-se um alvoroço de indignação, pela aldeia
fora.
Os habitantes devotos à igreja fizeram reuniões secretas
e falaram em não deixar sair o padre. Outros cristãos, especi-
almente os mais jovens, reclamaram a sua devoção e fé à Igre-
ja após a vinda deste novo e muito ativo seguidor da doutrina
de Cristo.
Não se chegou a saber o que mais aconteceu para que a
ordem fosse cumprida. O padre aceitou e transmitiu aos seus
fiéis, que se o amavam, então deixassem-no partir para cumprir
ordens superiores.
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Na hora da despedida houve muito choro e muita de-
monstração de carinho do rebanho para com o “pastor”. Houve
até, que nem “Madalena”, sinais de paixão vistos em gestos
singelos de uma mulher que o acariciou e lhe limpou com o
polegar lágrimas que lhe saltaram dos olhos encovados por
mal dormidos. Depois abraçou-o e beijou-o como se a cruz em
breve o esperasse. Foram cenas como esta que empalideceu
outros acontecimentos de menor importância. Soluços e choro.
Que havemos de dizer de tudo isto? A carência afetiva de
algumas mulheres daquela aldeia estava espelhada em gestos
carinhosos para um jovem padre.
Daquilo faltava-lhes a elas mais do que os seus homens
as sustentavam.
Alguns dias depois o mistério começou a ser desvendado,
sem que, como mistério que era, todos dissessem uns aos ou-
tros que nada dissessem, porque mistério é coisa para não se
dizer nem falar dele.
Ou porque era verdadeiro ou invenção, o que acabou por
ser divulgado foi que houve uma quezília entre padres para
disputa de lugares, e como no reino da Igreja ainda não impera
a democracia, o mexilhão uma vez mais é que se “lixou”.