Este documento conta a história de Samadhi Aipim, um menino que vive em Andiroba. No dia de Natal, Samadhi acorda ansioso para as festividades, mas descobre que sua mãe faleceu subitamente. Samadhi fica em choque e tenta lidar com a dor e a perda da mãe.
"Do avesso" - livro de fantasia (publicado em 2007 pela editora Oficio das Palavras))
1. 1
DoAvesso
Camila Appel
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 1 6/11/2007 21:43:45
2. 2
ossevAoD
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 2 6/11/2007 21:43:51
3. 3
DoAvesso
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 3 6/11/2007 21:43:52
4. 4
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 4 6/11/2007 21:43:52
5. 5
CARTA DE BOAS-VINDAS
Isto que se lê é meu próprio ser. Eu, preso nas entrelinhas.
O olhar no canto da página, o dedo indicador no título, o co-
ração nos espaços duplos, porque a batida dele afasta uma
linha da outra. Os pontos finais poderiam ser pintas, mas não,
já que não tenho pele explícita. Os ponto e vírgulas são idéias
não ditas, se juntarem todos, provável que formem um código
Morse que dá acesso a uma parte de mim já morta. Os pará-
grafos são meu sangue, e as letras, os átomos. As moléculas
são frases, nada mais do que simples química. Os elementos
expostos numa tentativa de combustão. O livro pode se fundir
em si mesmo, a experiência sair do avesso.
O que me estimula é o desafio. Várias são as razões. Em
primeiro lugar, me incomodo com esses seres estranhos, os ma-
yanos, que fazem o mundo funcionar, mas gritam no escuro.
Vim, assim, oferecer um espaço a este grito, minha própria
alma encadernada. Apesar de ter nascido em Maya e ser con-
siderado um mayano competente, tenho admiração pelos hu-
manos que vivem no DoAvesso.
Em segundo lugar, não pude me manter apático à ela, à
Profecia, que fala sobre o extermínio do mundo DoAvesso, o
mundo que você enxerga quando acorda, que transpira sem
perceber. A Profecia é dura, é iminente, estado de calamidade.
Ela avisa, procura uma transformação na mente das pessoas
e, como não consegue ser compreendida, ameaça. Promete der-
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 5 6/11/2007 21:43:52
6. 6
reter tudo, o solo, o vento, os ossos. Assustadora, não haverá
onde se esconder. A Profecia Maya diz que a humanidade
chegará a um ponto de inflexão em que ou evolui ou se auto-
destrói. A natureza mostrará seu descontentamento, o degelo
polar provocará enchentes, ondas gigantes matarão milhares
de pessoas, furacões varrerão cidades. Começará a era da es-
tagnação. Este é um momento crucial. Chegará o momento de
os homens decidirem seu destino. Morrem ou evoluem.
A morte da Mensageira indica o início da Profecia. A
Construtora de Maya, aquela que vive no Oráculo, me avisou
que a Mensageira acaba de morrer e, desesperada, me pediu
ajuda. Ao seu apelo é impossível a apatia e a inércia. Resolvi
agir.
O filho da Mensageira deverá substituí-la para cumprir
a missão, antes determinada para ela: mudar o rumo das coi-
sas. Sei que não será fácil e me disponho a ajudar. É com ele
que inicio. Encontro você nas entrelinhas.
Boa viagem em mim,
Predicado.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 6 6/11/2007 21:43:52
7. 7
Forças poderão se juntar para
impedir que o processo continue caso ele
seja iniciado.
Novas idéias podem salvar, fonte criadora
deve ser encontrada.
O mensageiro que alterna duas cores
há de chegar.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 7 6/11/2007 21:43:52
8. 8
: PRIMEIRA :
PARTE
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 8 6/11/2007 21:43:52
9. 9
: PRIMEIRA :
PARTE
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 9 6/11/2007 21:43:52
10. 10
:1:
ANDIROBA
ABORIDNA
:1:
É dia de Natal. Samadhi Aipim está acordado an-
tes da hora. Sentado na cama, fone de ouvido plantado
nas orelhas, monta um jogo de quebra-cabeças. Seu
jogo preferido, já que não sabe lidar com amigos. Junta
as peças, que encaixam perfeitas. Mente para si que é a
primeira vez que joga e se surpreende com o rápido re-
sultado das combinações. Irrita-se ao perceber que falta
uma peça. A do centro, a mais importante, a que faz
uma metade da imagem encaixar-se na outra. Samadhi
procura debaixo da cama, do tapete, levanta o traves-
seiro, os lençóis, e nada da peça que falta. Bagunça o
quarto, essa peça sumindo é vista como ofensa pessoal
ao menino. Bate no colchão de raiva, na mesma hora em
que toca o despertador interrompendo a busca. Anima-
se ao ver que, até que enfim, é a hora certa de acordar.
Coloca o jogo no armário e deita na cama, aguar-
dando o banquete do café da manhã com pequenos
presentes natalinos estendidos na mesa, abraçados em
chocolate, doce de leite e pão de mel. Espera um pouco
mais, os pais devem vir acordá-lo. Ansiedade gostosa,
cancelando o mal estar anterior. Tenta fingir que dorme,
entra debaixo da coberta, muda o lugar dos pés com o
da cabeça. Não vê sinal dos pais e sente-se abafado pelos
lençóis. Tenta um novo esconderijo. Vai para debaixo da
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 10 6/11/2007 21:43:52
11. 11
cama e manda o boneco grande no seu lugar, arquitetando um susto
na mãe quando ela chegar, carinhosa, oferecendo presentes feitos só
para ele. Nenhum sinal dos pais. Pensa que dessa vez devem estar pre-
parando um surpresa grande, do tamanho da demora. Trim metálico
e toca a campanhia.
— Meu presente! Grita Samadhi ao sair debaixo da cama com
euforia.
A porta abre rangendo dor. O pai de Samadhi entra com ex-
pressão de rancor. Senta na cama do filho com ombros baixos e lágri-
mas sem palavras. Samadhi passa pelo pai, que não consegue olhá-lo
nos olhos, e chega à sala. Um homem mais velho, que nada se parece
com Papai Noel, está ao telefone.
— Hum, hum, pode trazer. Diz, sem perceber que o menino escuta.
Uma esperança para compensar toda a angústia da espera. Atraí-
do pelo ruído externo, Samadhi tateia com a ponta dos pés em direção
à janela. Acha que pode passar despercebido. Focinho apertado no vi-
dro, observa o movimento lá fora.
Que trenó estranho, pensa Samadhi, que imaginava um trenó
típico de Papai Noel, com gazelas voadoras amarradas à carruagem,
amontoado de presentes, anões simpáticos dançando sem ritmo,
seguidos do ho-ho-ho suado do Papai Noel, que morre de calor
com aquele uniforme norte-americano em pleno verão de um país
tropical.
A imaginação de Samadhi é assim mesmo, doida. Ele vive no
mundo da fantasia, adora contos e fábulas. Muitas vezes, já teve dificul-
dade de separar o real do imaginário e se surpreende como as pessoas
conseguem fazê-lo com tanta naturalidade. Acha que Papai Noel é um
velhinho muito simpático, tem admiração pelo personagem. Já até de-
senhou um novo visual para o Papai-Noel-verão, havaianas, macacão
sem mangas, todo florido, barba branca de trancinhas para liberar
a garganta, rabo de cavalo no alto da cabeça. Não é desta vez que
a sugestão chegará ao suposto mensageiro da felicidade. O verão
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 11 6/11/2007 21:43:52
12. 12
parece ter tirado férias neste dia de frio fora de estação, e em vez
do trenó, vem um carro branco, luz vermelha piscando, sem som.
Ambulância sem emergência. Homens de branco saem do trenó.
Na cena silenciosa, só respirares. Vizinhos se aproximam à procura
do rosto na janela. Samadhi encontra os olhos de alguns, mas não os
reconhece.
— Por que me olham desse jeito? O que foi que eu fiz? Vê ex-
pressões de piedade ao se afastar da janela.
Andiroba, apesar de ser considerada uma cidade grande e ur-
bana, tem seus jeitos de fazer o boca-a-boca funcionar. E antes de Sa-
madhi saber da notícia, ela já voou pelos cantos, walk-talk, celular,
e-mail, mensagem de texto e website. Ele, logo ele, é o último a saber.
O pai chega, abraça Samadhi e chora. Sente amor incondicional
pelo filho, quase extravagante, como uma justificativa da falta de amor
a si mesmo. Não esperava que algo assim, tão fora do seu controle,
acontecesse. De um mau gosto de Deus. Considera vulgar uma tacada
tão baixa, tão covarde e certeira, de nocautear qualquer um e pior
ainda por afetar o menino, seu tesouro, que até então não sabia
o que é sofrer. Olha para Samadhi com lágrimas nos olhos. O filho
não costuma ver muita água saindo do pai, no máximo xixi ou suor,
lágrimas nos olhos não, que se lembre. O menino solta um ihhhhh ao
torcer a cabeça para o lado, já vendo que coisa boa não é.
A mãe de Samadhi desce as escadas vestida para presente, pre-
sente para a natureza. Samadhi vira o rosto de desgosto. O pai vem
mansinho, medindo as palavras que saem finas como violino.
— Dê adeus para sua mãe, filhinho. Ela foi chamada para o outro
mundo, foi ver Deus. Diz o pai, ao acariciar com as mãos frágeis os
cabelos pretos do menino.
Samadhi cerra os olhos, prende a respiração e fecha os punhos.
A boca treme de mansinho, contida, até explodir em tosse que
espalha lágrimas a cada baforada. A tosse escondendo as lágrimas,
ou as lágrimas escondendo a tosse. Como já é esperado da maioria dos
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 12 6/11/2007 21:43:53
13. 13
seres humanos que presenciam a morte da mãe, ele chora.
— Que outro mundo, pai? Morte é morte e pronto. Não tem
nada de outro mundo. Deus...Ê, pai...viajou?
Samadhi senta num canto, pernas cruzadas, costas no pé da ca-
deira de madeira dos tempos coloniais que há décadas habita aquela
casa, pela qual já passaram tantas bundas de tantos tipos e por tantos
motivos. A maioria suada pelo calor tropical. Ele não olha mais na cara
do pai, que entende o momento e sai. Sente a raiva, a indignação natu-
ral de momentos como esses. Tristeza irrequieta controla sua imagi-
nação. Desfoca o olhar de tanta dor e começa a alucinar, como fazem
pacientes drogados em anestesia. Vê a cadeira olhar para ele e dizer:
— Vai ficar tudo bem...
Vê escorrer uma lágrima nas curvas do braço dela. Assusta-se
com a própria imaginação e pensa que cadeira falando não é algo que
se vê todos os dias e que morte na casa não é desculpa suficiente para
objetos tomarem vida. Será? O apelo da ficção para tirar o peso da
verdade. Olha para a cadeira de novo e baixinho pergunta cutucando
a madeira:
— Oi, você está me escutando?
Se a cadeira falar, claramente alucinaram os dois, Samadhi
Aipim e você por acreditar.
A cadeira não responde e Samadhi olha para os lados com ver-
gonha da tentativa. Diz para si mesmo:
— Calma Samadhi, calma. É a dor que alucina. Calma...
Enquanto pessoas entram e saem para cuidar dos preparativos,
haja coisa para se resolver numa hora dessas, Samadhi relembra os
últimos dias da mãe.
Os médicos chamavam a doença de grave, gravíssima, se bem
que nunca explicaram o que era. É bem provável que não soubessem
mesmo. Morte não estava na previsão, no máximo mais uns dias de
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 13 6/11/2007 21:43:53
14. 14
cama. Há outras pessoas em estado bem pior, com testamento as-
sinado, já na caixa de saída do correio, carimbado e timbrado. Um
tio-avô até caixão já encomendou para um senhor lá do nordeste que
faz caixões especiais, personalizados. A mãe de Samadhi não tinha
testamento ou caixão. Com a linha da vida comprida que só ela, não
era esperada sua partida. Samadhi sente raiva e confusão. Como um
hulk-mirim, e não verde, sai correndo atrás do trenó branco sem som.
Os vizinhos demonstram sofrimento, mas estão felizes em não serem
eles os prejudicados.
Samadhi pára de correr e caminha pelas ruas frias do inverno fora
de estação. Anda por horas, cabeça baixa, braços moles, estômago desis-
tido da fome. Deita na calçada e, sem perceber, coloca o dedo na boca.
É aí que eu percebo a oportunidade e falo: Samadhi, é
hora, você sabe para onde ir. Ele escuta minha voz, levanta a
cabeça mas não me vê e ninguém está à sua volta.
— Estranho...hora de quê? Que coisa mais batida. Sei para onde
ir...Deita-se de novo na calçada.
Fica com frio e passa as mãos no braço, aquecendo-o. É aí que
sente algo novo e molhado. Sua pele está grudenda. Torce o cotovelo
para ver o que é e a encontra pela primeira vez. A ferida. Olha para
aquele machucado, aquele buraco no braço e cutuca um pouquinho.
Isso incomoda a ferida e ela sangra. A parte exposta é grande, em carne
viva. Samadhi sente-se pelado e fraco. Respira fundo, não há o que
fazer, a ferida está aí e ele não sente a menor vontade de cuidar dela,
passar mertiolate ou ir ao pronto-socorro, quer deixá-la como está,
completamente exposta. Samadhi pára de cutucar e olha para cima,
observando o céu.
A árvore balança forte cruzando a imagem azul que ele vê,
balança tanto que parece viva. Sente a calçada esquentar embaixo de
suas costas e ao se virar, dá de cara com formiguinhas. Elas não dizem
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 14 6/11/2007 21:43:53
15. 15
de onde vêm nem para onde vão. Samadhi imagina como devem viver
as formigas, se sofrem quando a mãe morre pisoteada, ou amputada,
ou se não sentem dor alguma. Bloqueia a passagem delas com o dedo
indicador e imagina o que será que faz a vida dessas formigas funcionar,
o modo como carregam a comida, a fila indiana, a construção de suas
casas, enfim, vida e morte. É nesse momento que o pai o encontra.
— Filho, acorda! O que está fazendo deitado na calçada? Procurei
você por toda parte! Apóia a cabeça de Samadhi nas mãos e continua.
— Eu também estou muito triste. Vou sentir falta da sua mãe,
da mulher da minha vida. Queria poder dizer alguma coisa impor-
tante, ou bonita, mas não faço idéia de nada. Sei que vai passar filho,
vai passar. Estou aqui para tudo que precisar, viu? Vamos para casa.
Samadhi dá às mãos ao pai e caminham juntos. Em casa, a irmã
chora num canto. Pernas dobradas, envolvidas por braços que lem-
bram galhos de final de outono. Com a cabeça enfiada nas mãos, res-
munga bem fininho, um leve suspiro.
— Ah, onde se meteu? Todo mundo procurando você. Até neste
momento querendo ser o centro das atenções? Vê se pára quieto.
Missori Aipim é menina linda. Aparenta uns quinze anos e os
têm, dois a mais que o irmão. É daquelas que de tão bela parece burra.
Já acostumada com os elogios, quer sempre mais. A eterna insatisfeita.
Tem a atenção de todos e não se conforma em não ter a do próprio pai.
Quando se arruma, pergunta ao pai se está bonita, que fisgado pelo
jornal, prefere chamar Samadhi para compartilhar e discutir. Segun-
do ela, injusto. Esse irmão esquisito não era para nascer ali. Acredita
que algum problema aconteceu no Céu para ela ter um irmão desses.
Quando era pequena, achava que houve um erro de percurso, a ce-
gonha, mordida por uma pomba, tinha deixado cair o bebê na casa
errada. Justo na dela. Ele veio amaldiçoado pela raiva das pombas más,
impuras e doentes. Quem sabe até não foi por elas criado no esgoto do
caminho, com os restos deixados pelos humanos. A menina ainda acha
que ele não morreu por sorte. Sobreviveu para atrapalhar sua vida.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 15 6/11/2007 21:43:53
16. 16
— Bem porcamente, aliás. Missori fita Samadhi com desprezo.
A tia entra chamando todos para o enterro, acostumada a liderar
os encontros de família. Fumaça preta segue os passos pesados des-
sa figura pálida. Tum, tum, tum. Sempre que a vê, Samadhi imagina
uma hipopótama rosa, de olhos grandes, dançando música clássica
com outras da mesma espécie, de saia rodada de tule do filme “Fanta-
sia”. A tia, chamada de Hipopótama pela família, apelido considerado
carinhoso, era o exato oposto da cunhada, a mãe de Samadhi Aipim e
Missori. Elas se identificavam pelo oposto. O que uma gostava a outra
não gostava, o que uma queria, a outra não queria. Assim conviviam,
a identificação da negação. E agora, sem o não, o que seria dela? Ner-
vosa pelo vazio, pela ida do inimigo mais adorado, vê-se perdida e dis-
posta a arrumar outro significado na vida: Samadhi, que agora ocupará
o lugar da mãe como seu oposto.
O caminho até o cemitério foi sem registro para Samadhi Aipim.
Imaginou formas estranhas surgindo do desenho das nuvens, uma ca-
deira, uma mesa, um lápis, teclado de computador, mouse, monitor,
afinal, até as nuvens estão se adaptando ao mundo high-tech. Distrai-
se ao pensar em como as coisas são instituídas na natureza.
A nuvem é feita de quê? O sol nasce como, toca despertador e
ele aparece? Pensa Samadhi sentado no banco de trás do carro da tia
que não pára de falar sobre alguma coisa que ele não presta atenção.
Este é o primeiro dia que a mãe não vê, o primeiro pôr-do-sol
que ela não admira, o primeiro vento que ela não respira. Tudo que
ele vê e sente, a mãe, pela primeira vez na sua vida, não vê e não sente.
O olhar de Samadhi perde-se no natural, no dia-a-dia que passa des-
percebido por ocorrer todos os dias, inclusive até no dia em que a mãe
não está.
O que faz tudo isso acontecer? Pensa Samadhi justo no momen-
to em que a tia estaciona o carro e diz que estão atrasados.
A família se reúne na bancada principal. O corpo na frente, sem
vida, coberto por renda branca. O ventilador ligado está voltado para
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 16 6/11/2007 21:43:53
17. 17
o corpo. As pessoas passam, uma a uma pelo caixão. Como detalhe
romântico na cena, sentem vento no rosto e nos cabelos. O véu sobre
Viviane também se agita, mas ela não sente. Sentir o toque do ar é
privilégio dos vivos.
Estão numa capela sem cruz e ninguém se dá conta da falta do
artefato. Flores e estátuas decoram o ambiente, algumas fotos da famí-
lia e cochichos pelos cantos.
— Dançava como ninguém. O dono da padaria do bairro.
— Cantava divinamente. O cabeleireiro, lembrando os dias de
emoção no salão.
— O marido era muito ciumento. Uma amiga de infância.
— Já sabem o que aconteceu? Alguém no banco de trás.
— Ninguém sabe, ninguém viu. Quase em coro evangélico,
baixinho para que não percebam que um grupo comenta.
Mudança brusca na narrativa, a porta se abre, vento corta a sala,
bagunça cortinas. Sob os batentes, passa um homem montando um
alazão sem freios nem ferraduras. Um grupo os acompanha e fazem si-
nal de reverência, de respeito cigano. Não cruzam olhar com os que ali
estão. O líder, com seus longos e sujos cabelos pretos, é o único a fazer
contato, encara Samadhi de modo penetrante. O momento descon-
gela ao seu sinal, ele dá meia volta com o cavalo e lidera o grupo rumo
ao caminho sem dono.
— O que eles estão fazendo aqui? Que desrespeito! Vieram
amaldiçoar a morta e sua família? Comenta a fofoqueira da cidade,
angustiada com uma cena que não compreende. Para ela, ciganos são
seres do mal, exploradores que arrancam a sorte das linhas da mão de
mulheres curiosas com seu destino, elaboram macumbas pagãs para
atrair homens, dinheiro e fama.
A tia também se surpreende, porque estava com a cabeça em
outro lugar, lá na livraria que era gerenciada pela irmã e que agora ela
terá a sorte de comandar. Os livros já devem ter começado a fugir das
prateleiras. Tia Hipopótama sempre achou a cunhada muito estranha
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 17 6/11/2007 21:43:53
18. 18
e com ela até combina um grupo lendário como esse. Surpreendeu-se
porque achou que com essa morte, as coisas deveriam ficar mais nor-
mais, se Samadhi for colocado nos eixos. Tia Hipo fica sem reação e
aproveitando o vazio deixado, toma a liderança.
— Vamos para casa já! Isso aqui está muito do esquisito. Falei
para meu irmão não se casar com aquela bunda-mole, e ainda dar à
luz dois bunda-molinhos. Missori até que se saiu melhor. Mas você,
Samadhi, onde já se viu! Um olho de cada cor! Uma aberração. Já para
casa!
É verdade, Samadhi tem um olho castanho e o outro verde. Sob
a luz, dá para perceber a diferença das cores. Na escola, é chamado
de Frankenstein pelo colega mais espevitado, que conta a todos sua
versão incrível da fábula, dizendo que o médico maluco enfiou o dedo,
sem querer, num dos olhos do bebê. Por culpa, colocou outro olho
seu no lugar, só que era verde, e deu no que deu. Há outros colegas
de maior criatividade que espalham por aí que Samadhi é bruxo e sua
inibição atual esconde uma surpresa terrível para toda a humanidade.
Outro alega ser Samadhi uma mutação e a prova de que os X-men são
reais. O fato é que Samadhi morre de vergonha e sente alívio por estar
em férias escolares.
Mesmo em casa, não encontra refúgio para essa perseguição
baseada na incompreensão e na falta de sensibilidade das crianças que
só conseguem aceitação social massacrando outras. Quando fica ner-
voso, pisca um olho de cada vez, compulsivo, incentivando ainda mais
os comentários.
O caminho de volta para casa também é sem registro. Sama-
dhi sente o carro deslizando pela paisagem urbana, como se estivesse
voando. Quando chegam, cada um entra em seu respectivo quarto e
faz da dor a própria solidão, com medo de compartilhá-la e assim di-
minuir esse sentimento, que no momento parece essencial.
Samadhi, deitado de bruços no chão, não consegue dormir. Pas-
sam imagens rápidas por sua mente, incomodando o sono, o olhar do
cigano, a mãe toda coberta no caixão, a tia que o chama de bunda-
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 18 6/11/2007 21:43:53
19. 19
molinho. Imagens ruins se intercalam com outras boas, o sorriso da
mãe, a textura de seus cabelos, a mão suave que acaricia e ao mesmo
tempo aperta, brava. Sente angústia e chora enfiado no travesseiro.
Seu coração prova que tem vida própria, aperta sem o dono mandar e
não pára quando ele pede para soltar.
Uma voz passa entre o vento, chamando Samadhi. Por acaso é a
minha voz, com um tom mais rouco do que ela é, mas ele não sabe.
Samadhi Aipim, é hora, você sabe para onde ir.
Samadhi levanta a cabeça, enxuga as lágrimas e olha em volta.
Ninguém por perto. Segura a ferida do braço com força, pois ela está
pulsando o suficiente para corroer o braço inteiro e fazê-lo cair no chão.
Ele se deixa levar, repete a voz do vento, segue a dança dos ares pelos
cantos e quartos, esbarra na querida luneta e não a coloca de volta no
lugar, sinal de quase insanidade levando-se em consideração a paixão
do menino por estrelas. Desce correndo a escada, passa pela cozinha,
as panelas penduradas tocando-se umas nas outras num leve tim-
brado. Na sala, derruba um abajur, pisa num caco de vidro, não liga,
continua andando, correndo, rodopiando, perdido na própria casa. É
puxado para um lado, para outro, para frente, para trás, até parar, de
pé no meio da sala. Um ouvido escuta o ronco do pai, alto, que mais se
parece com choro. Como é que ele não acorda com o próprio ronco?
Pensa Samadhi ao se inclinar em direção à escada. O outro ouvido
escuta a chuva e os trovões de tempestade. Por um momento, tem
dúvidas se esses trovões são reais ou não. Vai até a janela para atestar a
loucura, ou o sonho, passando pela cadeira chorona de hoje cedo, que
não mais aparenta vida. Abre a cortina que confirma, é real.
Pela abertura, entra um relâmpago à procura de um esconderijo.
Ilumina a sala levando os olhos do menino a um corredor branco que
tem como decoração apenas um tapete pendurado na vertical. Não se
lembra de ter visto aquela coisa ali, muito menos nessa posição inco-
mum. Vaga memória, ele criança pequena, quase bebê, brincando nas
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 19 6/11/2007 21:43:53
20. 20
franjinhas do tapete enquanto espera pela mãe.
Samadhi vai até o tapete e, com os dedos, balança a franja, hoje
bem mais velha, e vai apertando o tecido fazendo rugas que demoram
para se desfazer depois de soltas. Quando cai, de trás do tapete, uma
carta. O menino passa as mãos no envelope, reconhecendo a calig-
rafia da mãe. Uma lágrima mancha seu nome escrito na frente, ela é
endereçada a ele. Senta-se e abre a carta devagar, não sabe se sente
angústia ou felicidade. Começa a ler, ouvindo a voz da mãe ditando as
palavras, que tocam seu corpo conforme são lidas.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 20 6/11/2007 21:43:53
21. 21
Filho,
Se você encontrou esta carta é porque foi chamado para vir até
aqui. E isso significa que precisa me substituir, e que eu não estou mais
por perto. Escrevo sabendo da minha partida. Não fique bravo comigo,
meu amor por você transcende mundos e levo esse sentimento junto.
Há muito que você ainda precisa saber. Sua passagem pelo Portal é
o início dado pelo meu fim. Ele está atrás deste tapete. É um Portal
para Maya, minha terra. Deixei meu mundo para poder me casar com
seu pai, um DoAvesso. Peço que passe pelo Portal e vá à Maya. Agora,
você é mais necessário lá do aqui. Maya é tudo para mim, entranhas,
origem e, assim, também é para você. Deixe que a curiosidade o mo-
tive, mas não se deixe cegar. Maya é um mundo que encanta e oferece
perigos. Fique atento para aqueles que o procurarem, é possível que
já esperem por você, pois preciso ser substituída com urgência. Filho,
por favor, peço que tenha discernimento. Sua chegada não é bem vinda
para aquele que quis a minha partida. Temo por sua vida e me dói ter
que pedir para seguir. Não há alternativa.
Dentro deste envelope tem um amuleto. É uma corrente que você
vai reconhecer, ela estava no meu pescoço desde a primeira vez que
mamou em meus seios, brincando com ela e me fazendo rir. Use-a, por
favor, com ela não terão coragem de expulsá-lo de Maya, apesar de
você ter nascido aqui, no DoAvesso. Para sua tarefa terá que provar
que merece meu posto, só espero que encontre as pessoas certas. É isso,
Samadhi Aipim, meu filho. Eu amo você e a morte não apaga esse sen-
timento, fortalece-o.
Um beijo, um abraço, um qualquer coisa desesperado.
Um carinho meu,
Sua mãe
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 21 6/11/2007 21:43:53
22. 22
Samadhi dobra a carta e coloca-a no envelope, confuso. Nunca
ouviu a mãe mencionar que nasceu em outro mundo, muito menos
que esse mundo se chama Maya. Será que sou mesmo um E.T? Pensa
Samadhi. A motivação de buscar suas próprias origens traz certa força,
somada à ansiedade de tornar-se, de uma hora para outra, tão impor-
tante.
Tira do envelope a corrente que leva uma ampola pendurada.
Dentro da ampola, uma minúscula rosa vermelha. Reconhece o colar
que a mãe sempre usava. Coloca-o em seu pescoço, com orgulho. Le-
vanta-se e contempla o tapete. Não quer ver o que há atrás dele. Afas-
ta-se. As palavras da mãe trazem medo ao menino. Escuta uma porta
abrir e o pigarro da Tia Hipo a caminho do banheiro, o que é suficiente
para fazê-lo voltar ao tapete. O medo chega como um sentimento que
alivia, um remédio para a dor, a ponto de sufocar a angústia. Cabeça
erguida, afasta a lateral do tapete, procurando o Portal mencionado.
Assusta-se ao encontrar um espelho, mas diverte-se com a es-
tranheza dele. O reflexo, em vez de mostrá-lo de frente, mostra suas
costas. Vê sua bunda e não o umbigo; os cabelos despenteados, e não o
rosto assustado. Samadhi se mexe para brincar com seu avesso. Pensa
que suas costas são maiores do que imaginava e sente a imagem deva-
gar, dedo a dedo, vai tocando piano no próprio reflexo. A superfície do
espelho aos poucos se derrete puxando mão e braço e traz o corpo para
dentro. Despenca.
Vai,Samadhi.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 22 6/11/2007 21:43:53
23. 23
:2:
A PASSAGEM
MEGASSAP A
:2:
Estatelado no chão, de bruços, com a cabeça en-
fiada na grama, ele cheira a terra. Passa a mão pelo cor-
po para tirar a poeira e sente de novo a ferida. Ela agora
está empanada pela poeira da passagem. Samadhi gira o
pescoço e, com um gemido de dor, abre os olhos. O sol
é forte e o faz piscar. Ele senta meio torto, onde está?
Não sabe ainda. O que vê parece um jardim com grama,
terra, árvores com frutas e cores, muitas delas. Cores tão
vivas que poderia jurar estar em um desenho animado.
Samadhi anda um pouco, procurando qualquer coisa.
Incrível, a terra se mexe quando ele a pisa. Será que ela
está viva? Pensa Samadhi, ao forçar a ponta do pé para
dentro da terra.
Ele vai até uma das árvores e acha-as muito
baixinhas para serem mesmo árvores. Pega um fruto
azul turquesa e morde com força. Sente um gosto dife-
rente, que no começo é doce e depois vai amargando
até ficar salgado e intragável. Cospe o resto na terra de
onde, para seu espanto, brotam outras cinco árvores,
iguaizinhas, com os mesmos frutos azuis turquesa. En-
quanto elas crescem, Samadhi as toca e sente uma es-
pécie de gosma gelatinosa na ponta do dedo. Levanta o
dedo na altura dos olhos, analisando a gosma, até seu ol-
har desfocar e se perder no azul cintilante do céu. Quan-
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 23 6/11/2007 21:43:53
24. 24
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 24 6/11/2007 21:43:54
25. 25
do abaixa os olhos, encontra uma menina parada e instigada. É
ela quem inicia a conversa.
— Por que você tem um olho de cada cor? A menina
balança a cabeça, parecendo estar confusa entre qual dos
olhos focar, o castanho ou o verde. Ele pensa em não responder,
se irrita com a única pergunta capaz de mudar seu humor de
médio para péssimo.
— Hã? Quem é você? Pergunta Samadhi com desdém,
limpando os últimos grãos de terra dos olhos.
— Meu nome é Chakra, prazer. Ela responde com a fir-
meza de quem gosta do nome que tem, abaixando a cabeça em
tom de apresentação.
— É...Samadhi, Samadhi Aipim, esse é o meu nome.
Responde tentando não olhar para os olhos da menina, que o
intimidam. Chakra, que nome esquisito, até mais do que o meu,
de onde você surgiu?
— Daqui mesmo, de Maya. Quem surgiu foi você. Chakra
aponta o dedo indicador para ele.
Samadhi não quer contar da carta da mãe, teme não poder
confiar na menina. Ela entende o silêncio como falta de enten-
dimento dele e continua.
— Você está em Maya, que é o mundo que faz o seu mun-
do funcionar, o DoAvesso.
— DoAvesso? Nós somos o DoAvesso?
— Claro. Você nunca se questionou de como as coisas
acontecem?
— Já. Não faço outra coisa.
— Então, achou a resposta! Só que não é tão simples as-
sim, e não sei como veio parar aqui e nem o porquê. Aliás en-
contrei você por acaso. Sabe, não era para eu estar aqui, fugi do
trabalho para tomar ar fresco e encontrei você, caído no chão. Só
que nada por aqui acontece por acaso, se bem que ultimamente
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 25 6/11/2007 21:43:54
26. 26
as coisas andam muito esquisitas. Deve ter um motivo para sua vinda.
Vem comigo que eu vou ajudar você.
— Eu não preciso de ajuda...
— Precisa sim. Ou você já sabe em que vai trabalhar?
— Trabalhar? Não...
— Está vendo? Aqui todo mundo trabalha, senão é expulso. So-
mos os mayanos das funções, responsáveis pelo andamento do mundo
DoAvesso. Se você não trabalhar, não poderá ficar aqui. Precisa arran-
jar emprego já, entendeu?
— Ah, e você quer me arrumar um? Samadhi começa a duvidar
da menina, está solícita demais e lembra das palavras da mãe.
— Sim. Ou você prefere ficar perdido procurando sozinho?
Ele olha em volta com medo daquele ambiente e faz que não
com a cabeça. Decide aceitar a sugestão e não contar sobre a carta,
ainda não sabe se pode confiar.
— Então, vamos lá. Qual é o seu talento?
— Sei lá. Acho que não tenho talento nenhum. Diz Samadhi
desanimado, enquanto arrasta os pés no chão para ver se ele é feito de
terra mesmo.
— Claro que tem, todos têm, mesmo os DoAvesso, como você.
Vamos, me segue.
Samadhi Aipim não tem muita opção. Segue Chakra e até gosta
da idéia de trabalhar, de repente é isso que a mãe queria, que ele viesse
trabalhar em Maya. Ela vai na frente, não se preocupa se ele a acom-
panha ou não. Apressa o passo para testar a atenção do menino, clara-
mente perturbada.
Chakra tem pele morena escura, lisa de veludo, cabelos ondu-
lados bem compridos que vão até a cintura. Usa pulseiras no braço,
que acompanham a pintura do corpo. A tinta é azul e contorna suas
dobras, bem aparentes. Samadhi acha que ela parece uma guerreira
da Amazônia. Chakra anda a passos firmes, salta pedras jogando os
cabelos para cima, para distrair ainda mais Samadhi. Ela se vira para
trás com a dureza de um olhar descomovido.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 26 6/11/2007 21:43:54
27. 27
Numa definição mais simples, Chakra é uma senhora-
moça. Moça por fora e senhora por dentro. Sente-se respon-
sável pelos outros, responsabilidade que assumiu sem ninguém
mandar. Encontrou Samadhi Aipim ao acaso, mas sente que
deve ser por um bom motivo e, assim, já se acha responsável
por esse menino. Não por compaixão e sim pela necessidade
de manter as coisas em ordem, estáveis por serem funcionais
e previsíveis.
Chakra pára no topo de uma montanha, afasta uma perna da
outra e uiva, como um lobo. Samadhi, que ainda está na metade do
caminho, se assusta com o berro e escorrega. Ofegante e cansado,
passa as mãos pelo braço e ao sentir a ferida, solta um gemido de dor.
Chakra desce correndo em direção a Samadhi e estende uma das mãos.
Ele receia, mas acaba se apoiando nela e se levanta aos poucos. Um
arrepio quando percebe que está de pé, pronto para continuar, procu-
rar por sinais da mãe, de alguém que esteja esperando por ele, como
ela mencionou na carta, buscar suas raízes e merecer substituir a mãe
numa missão que ele nem imagina qual seja. A ferida do braço remói
a pele e a carne viva lateja.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 27 6/11/2007 21:43:54
28. 28
:3:
MAYA – O MUNDO DAS FUNÇÕES
SEÕÇNUF SAD ODNUM O – AYAM
:3:
Samadhi e Chakra andam pelas ruazinhas de terra
batida de Maya. Chakra está decidida a encontrar um
trabalho para o menino, que ousa afirmar não ter
talento algum. Ele está meio abestalhado, encantado
com as novidades. Esperava encontrar pedras redondas
na beira da estrada. Ao invés disso, se depara com pedras
de formatos geométricos. Umas são triangulares, outras
quadradas, pentágonas, hexágonas, meias-luas, estrelas
e retângulos. Apesar da esquisitice, Samadhi sente paz.
Ele vê as cores do céu mudando, rápidas, invertendo
posições, como degraus de um arco-íris, numa onda
constante que desce e sobe. Chakra comenta:
— Olha só... O Pintor hoje está inspirado. Você
sabe pintar?
— Não! Sou péssimo nisso. Desenho pior ainda.
Nem pergunta quem é esse tal Pintor, mas se anima ao
pensar que pode ser quem espera por ele.
— Vamos ver se o Pintor gosta de você. Se gostar, é
porque tem talento para pintar e ainda não sabe. Se não
gostar, não é seu talento.
Chegam à casa do Pintor, que está bravo à procura
de tintas que sumiram do balde, misturando o céu com
cores confusas. É um homem baixo, cabelos curtos gri-
salhos e mãos ágeis, tão rápidas que mal se pode vê-las.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 28 6/11/2007 21:43:54
29. 29
Velhinho na aparência e olhos de criança.
O Pintor tem uma função fundamental, faz algo que
aqueles DoAvesso vêem sempre, mas não entendem como
acontece. Pinta o céu para que o sol faça seu show diário. Sem
as cores, o sol não dá as caras e nem se despede. Seu nome,
como a função diz, é Pintor porque é o único dessa espécie, não
precisa de distinção. Em Maya, todos têm uma função que faz
o mundo DoAvesso funcionar. Os de espécie única, que são
raros, levam o nome da própria atividade que desempenham.
As que requerem uma família, ou seja, mais de um envolvido
na mesma função, recebem nome próprio, para distinção.
Chakra tenta uma aproximação.
— Senhor Pintor, estou procurando emprego para esse menino,
Samadhi Aipim. É um DoAvesso e acha que não tem talen...
O Pintor está sentado numa cadeira de balanço que paira no ar,
presa na árvore que tem uma cabaninha, sua casa. Ele puxa a corda até
descer o balanço à altura de Chakra para interrompê-la:
— Estou muito ocupado, não está vendo? Preciso achar a tinta
vermelha. O Pintor vai levantar a cadeira de novo quando repara no
colar do menino.
— Onde você conseguiu isso?
— Por quê?
— Porque isso quer dizer que começou... Ai, preciso ir. O Pintor
acena um tchau ao puxar a cadeira para cima.
— Começou o que? Espere, você me reconheceu? É você quem
espera por mim? O Pintor já está longe. Chakra pergunta o que ele
quer dizer, mas Samadhi não se sente seguro para dar informações.
Sem êxito os dois continuam a caminhada. Chakra aponta para
um arbusto, indicando o caminho. Samadhi atravessa o amontoado de
folhas, reparando que elas têm expressões faciais. Uma com um largo
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 29 6/11/2007 21:43:54
30. 30
sorriso, outra com a boca torta e um dos olhos semi-fechados, outra
com a boca aberta de susto, outra sem boca e com olhos arregalados,
outra com olhar romântico, de sedução. Samadhi adorou essa última
e fica olhando para ela, retribuindo. É o que chamam de smile face no
DoAvesso. : ] : > ; ) : o. Tenta chamar Chakra que, já adiantada, reclama
de sua lerdeza. Ele corre para alcançá-la.
— Chakra, essas folhas falam!
Ela agacha, as pernas dobradas como animal. Cheira uma folha
caída no chão e responde:
— Não, seu bobo, elas não são falantes, são expressivas. As que
falam ficam na ala norte. Estamos no centro, veja. Indica várias setas
que apontam para um buraco.
— Olha aqui. Chakra aponta para o chão.
— Um relógio! Surpreende-se Samadhi ao olhar dentro do bu-
raco.
— Essa é a casa do Menino Tempo, quem sabe você não tem
talento para ajudar no correr das coisas, se bem que com essa lerdeza
acho difícil, mas vamos tentar. Explica Chakra acionando uma lavanca
dentro do buraco, como se estivesse cumprimentando alguém. O bu-
raco se abre na terra, em funil subterrâneo. Uma coisa vem voando lá
do fundo até chegar à superfície.
— O nome disso é Ponteiro Voador, porque parece com os pon-
teiros de um relógio e voa. Explica Chakra.
— Você não espera que eu suba aí, né?
— Samadhi, se quer que eu ache um emprego para você é bom
fazer o que eu mando, se não pode se preparar para ir embora.
— Não posso ir embora!
— Então sobe logo.
Chakra sobe em uma das hastes e Samadhi pula na outra, contrariado.
Cada um numa ponta do Ponteiro Voador, descem o funil com
velocidade. As hastes do Ponteiro giram como se estivessem dentro de
um relógio acelerado, deixando Samadhi tonto. Na descida, ele repara
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 30 6/11/2007 21:43:55
31. 31
que as paredes são feitas de prateleiras cheias de relógios de todos os
tipos e formatos, cada um mostrando um horário diferente.
— São todos os horários que existem no mundo neste momento.
Explica Chakra apontando para os relógios nas prateleiras.
— Nossa, quanta hora diferente para o mesmo segundo. Encan-
ta-se Samadhi, sem saber se é ele quem gira ou os relógios.
Ela dá um meio sorriso, achando graça dos comentários do no-
vato. O Ponteiro Voador aterrissa num chão muito branco. Estão numa
sala quadrada, toda feita de mármore. Um barulho chama a atenção
de Samadhi, que não faz idéia do que esperar. São rodas deslizando
sobre o chão liso. Em cima dessas rodas, na cadeira, uma figura inco-
mum. Um moço que aparenta ter 18 anos, o Menino Tempo.
Menino Tempo é um sábio, chamado de menino por estar sem-
pre brincando com as pessoas. Faz piadas, usa a palavra e o próprio
tempo para fazer os outros darem risadas e se divertirem. É o palhaço
da turma, a caçoar dele mesmo para animar o ambiente. Sente-se só,
da sua espécie só tem ele, mas tenta não demonstrar a solidão que
o habita. Não tem uma das pernas. Quis que as coisas acontecessem
mais rápido do que o possível e sofreu um acidente. Logo ele. Prefere
cadeira de rodas à muleta, já que não quer perder tempo. De uns tem-
pos para cá, tem estado ranzinza, assim como outros moradores de
Maya. Ninguém sabe porque, ainda.
Esse Tempo é meio maluco, quando fica bravo, gira a
roda do tempo para frente ou para trás, dependendo do seu
humor. Se gira para frente para trás, o tempo acelera ou ret-
rocede em Maya e no DoAvesso. Só que os DoAvesso não per-
cebem, estão muito entretidos no seu dia-a-dia.
O Ponteiro Voador se acomoda num dos ombros do Menino Tem-
po, enquanto ele cumprimenta Chakra com frieza. Ela entende que hoje é
um dia de muito mau humor e vai direto ao assunto.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 31 6/11/2007 21:43:55
32. 32
— Estou procurando emprego para Samadhi Aipim, ele acha
que não tem talento. Precisa de ajudante?
Menino Tempo dá um soco na cadeira de rodas e ajeita os óculos
redondos. De tão redonda que é sua cabeça, as hastes estão tortas,
quase quebrando. São bem visíveis porque ele é careca, nem um pêlo
tem naquele cucuruco. Explode:
— Por que todos acham que preciso de ajuda? Não preciso de
ninguém! Ouviu? Ninguém! Giro a roda do tempo sozinho! Se é esse o
motivo da visita, podem ir embora. O Menino Tempo fixa os olhos no
colar de Samadhi.
— Você achou isso onde?
— Minha mãe me deu.
— Ai...ai. Começou...
— Começou o que? Pergunta Chakra.
— Não vai dar para explicar, porque não sei. Só sei que começou.
Adeus!
— Ok, ok. Vamos conseguir, Samadhi, se você apareceu aqui é
por um bom motivo. Chakra tenta parecer animada enquanto sobe
no Ponteiro Voador. Chegam ao topo com alívio. Samadhi acha ótimo
não ter comido nada até então, senão teria enjoado. A alavanca faz um
clique e fecha a grande abertura.
Seguem o rumo, até Samadhi interromper Chakra.
— Estou cansado. Isto não vai levar a lugar algum. E eu nunca
fui muito bom em nada, de repente não tenho talento. Alguém deveria
estar me esperando aqui...
— Como assim?
— Nada não. Lembra-se da carta da mãe, passa a mão no braço,
arde a ferida.
— Se você for esconder coisas de mim não vai dar para
continuar.
— Não estou escondendo nada, é que acabamos de nos con-
hecer, calma.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 32 6/11/2007 21:43:55
33. 33
— Sei. Vem cá, vamos sentar um pouco, entendo que você se
cansa rápido. Vou buscar umas frutas. Fala Chakra ao se afastar.
Volta em instantes e quando vai chamar Samadhi, percebe que ele
dormiu.
Puxa, justo agora que iriam encontrar meu velho
amigo...
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 33 6/11/2007 21:43:55
34. 34
:4:
EM BUSCA DE UM TALENTO
OTNELAT MU ED ACSUB ME
:4:
Samadhi acorda sentindo-se renovado. Começa a
espreguiçar quando Chakra o cutuca:
— Você dormiu demais! Não pode ficar mais um
minuto sem trabalho. É perigoso, Samadhi, vai ser ex-
pulso. Corre, me segue.
Chakra faz curvas rápidas só para ver se ele está
acompanhando. Pára, de supetão, na frente de uma ár-
vore gigante, Samadhi não percebe a parada radical e
tromba na menina.
— Desculpa, sou um pouquinho desastrado. Diz ao
levantar-se.
— Quem sabe seu talento não seja derrubar os
outros. Sugere Chakra em tom de zombaria e levanta
apoiando-se em Samadhi.
Ela olha para a árvore gigante e pronuncia umas
palavras estranhas. Zumguibudum atchim. A última sai
como um espirro gostoso. Galhos abrem o abraço, en-
tregando uma escada viva, que se deixa ser pisada pelos
dois. Ao final da escada e do corredor que vem depois
dela, um senhor de muita idade está de costas mistur-
ando substâncias, que parecem perigosas pelo barulho
que fazem e fumaças que soltam acariciando o ar com
cores e movimentos. Um cheiro de pum traz a vontade
de espirrar.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 34 6/11/2007 21:43:55
35. 35
— Argh, o que esse velho está fazendo? Sussurra Samadhi.
O senhor se vira de uma só vez, numa rapidez inesperada, e diz
como se estivesse recitando um poema.
— Quem é que mete o pé? Chakra eu reconheço, traz um me-
nino DoAvesso, olho de uma cor e outro de outra, que travessura. Fui
eu quem fiz, na tentativa de aprendiz? Ah, desculpas últimas.
— Não, senhor Alquimista, esse aqui é Samadhi Aipim, é um
DoAvesso mesmo e está procurando emprego, mas acha que não tem
talento.
— Sei... Uma flecha de guerreiro certeiro vai de presente para
o menino ausente. Fogo no coração ele tem. É assim que começa a
canção. Sai em chamas ciganas com a força de um alazão. Diz o Alqui-
mista enquanto despeja um líquido azul num recipiente.
Explode um vaso de vidro, fumaça e líquido pelos ares. Samadhi
recua, escondendo o rosto atrás de Chakra, e vê no fundo da sala um
papagaio cinza dormindo.
— Quem fez isso? O que deu nisso? Vão virar chouriço! Diz o
Alquimista enquanto pega a parte do líquido que sobrou e enfia num
buraco na terra, em forma de fechadura.
— Hum, interessante esse tum. Vai para o lado de lá já. Esqueci
para quem é, não importa o mané. Tum vai pelos ares e encontra seu
mestre campestre! O que fazendo estão vocês aqui outra vez?
— É... senhor Alquimista, vamos indo, obrigada pela atenção.
Fala Chakra ao empurrar Samadhi em direção à porta, mas ele a segura
e se vira para o Alquimista.
— Senhor Alquimista, por acaso sabe de alguém que esteja me
esperando?
— Hum, tem sim, alguém no aguardo de Aipim.
— Quem? Samadhi se anima.
— Não me lembro, guardei informação no relento. Bem, adeus
crianças cirandas! O Alquimista acena um tchau com a mão. Chakra
puxa Samadhi e saem da árvore.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 35 6/11/2007 21:43:55
36. 36
Meu amigo Alquimista é respeitado em Maya. Ninguém
afirma tê-lo visto menino. Até comentam que nasceu assim,
um senhor de aparência doida, apaixonado pela química e
pela transformação das coisas. Externa certa meiguice. Sem-
pre com um meio-sorriso no rosto. Sorriso misterioso. Sorriso
leve de quem sabe mais do que fala.
Samadhi e Chakra sobem a escada gigante, passo a passo, e saem
da árvore. Chakra explica que o Alquimista faz as poções dos senti-
mentos e as envia para o mundo DoAvesso.
— Samadhi, ele tem Alzheimer, tem que ter paciência. Mas não
o subestime, é muito inteligente, um verdadeiro mago. Diz Chakra
enquanto afasta um arbusto.
— Ele tem o que? Pergunta Samadhi repetindo a ação da me-
nina.
— Alll-zheii-merrr. Alzheimer. Meu pai disse que é uma doen-
ça, talvez moderna, contemporânea, mas não ousamos dizer isso ao
Alquimista. Com ela, as pessoas se esquecem das coisas e se confun-
dem. É uma coisa nova aqui em Maya, o Alquimista é o único assim,
por enquanto... mas por que deveria ter alguém esperando por você?
— Sonhei com isso, não deve ser nada.
Chakra vai insistir quando pega uma pena no ar. Ela cheira a
pena e diz com entusiasmo:
— Eba, o Carteiro está chegando!
— Quem? Pergunta Samadhi encompridando o eme.
— O Carteiro está chegando, repete Chakra, olhando para o céu.
Um berro corta o ar e a conversa. É mesmo o Carteiro que chega
entre os dois, desajeitado e com pressa. Dá para ver que ele não tem
muito equilíbrio no ar pelas penas que solta, extrovertidas, para todos
os lados e direções. Não é pássaro nem avião. Suas asas são feitas de
promessas. Palavras que se prendem umas nas outras e formam uma
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 36 6/11/2007 21:43:55
37. 37
rede que se movimenta no ar, fazendo seu corpo flutuar. O rabo é for-
mado por palavras que fazem uma frase comprida. Dizem que é um
poema, ninguém nunca conseguiu ler, porque ele não pára quieto. Seu
corpo é coberto por várias estampas e selos, do mundo inteiro e até de
lugares desconhecidos.
Uns dizem que o Carteiro tem contato com extra-ter-
restres, mas fofoqueiro do jeito que é, dificilmente manteria
esse segredo. Ama as palavras e se diverte em misturá-las.
Sente depressão porque os DoAvesso não mandam mais car-
tas como antes, não mais usam as palavras com gosto. E sen-
te solidão, voando pelos ares, imaginando vida em outras ga-
láxias, onde as palavras devem ser arrumadas e arranjadas
de outra forma, uma que surpreenda.
— Olha a carta despencando aí pra baixo. Oxente, não pega nela
não, Chakra! Não é pra ocê não, guria. Fala o Carteiro ao pousar num
galho.
— Bom dia, senhor Carteiro, estou procurando um emprego
para o Samadhi Aipim, ele acha que não tem talento. Grita Chakra
para o Carteiro ouvir.
Samadhi sorri encantado com aquela figura voadora e estam-
pada. Mais ainda por sua resposta:
— Ah, ocê! Tem um telegrama falado para o garoto que usa a
ampola da rosa.
— Até que enfim!
O Carteiro pigarreia e começa:
— Samadhi, esperam por você na Montanha Iluminada. Vá logo
que o tempo é curto. Cuidado com o inimigo. Samadhi olha receoso
para Chakra.
O Carteiro vai antes que o menino pergunte mais alguma coisa.
Chakra faz careta. Samadhi nunca tinha imaginado isso. Incrível. Está
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 37 6/11/2007 21:43:55
38. 38
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 38 6/11/2007 21:43:55
39. 39
excitado em descobrir sua origem mayana e encontrar alguém que ex-
plique o que está acontecendo.
— Chakra você sabe onde fica essa montanha?
— Não, meu trabalho é interno, dentro da Escola. Se bem que
eu gostaria de conhecer mais coisas. Não adianta encontrar montanha
alguma sem ter trabalho, senão será expulso.
Neste momento, aparece um coelho gigante, branco de pêlos
curtos e olhos vermelhos, interrompendo a menina.
— Olá crianças. Adeus crianças. Diz o coelho saltando com pu-
los enormes, usando o rabo de apoio no chão, que faz TÓIM, TÓIM,
TÓIM cada vez que se impulsiona. Tem vários objetos ao redor do
pescoço, presos em um colar, que tilitam com os saltos.
— Samadhi, esse é o chaveiro. Como tem mais de um dessa es-
pécie, ele tem nome, Penduricalho, é o mais importante dos chaveiros.
Ele pode ter um trabalho para você. Escute bem, é fundamental que
você consiga um emprego agora, para sua própria sobrevivência. Corra
atrás dele que eu preciso ir trabalhar. Anda!
Samadhi quer pedir para ela ficar, berrar um nããão me deeeixe,
mas sente vergonha. Estica as costas como alguém prestes a fazer um
grande feito.
— Senhor chaveiro! Senhor coelho! Coelhão! Penduricalho!
Preciso de emprego! Grita Samadhi ao correr atrás do coelho gigante.
Penduricalho pára e olha para ele.
— Interessante. Um de uma cor e o outro de outra. Hum. O
mensageiro que alterna duas cores há de chegar. Pensa o coelho.
— Está contratado! Siga-me. TÓIM, TÓIM, TÓIM.
— Não entendi! Berra Samadhi, ao correr atrás do TÓIM, TÓIM,
TÓIM.
Penduricalho se afasta cada vez mais e Samadhi pensa que é im-
possível correr atrás desse coelho, precisaria voar. Sente uma força irre-
conhecível, vento forte que o levanta do chão e se surpreende ao acom-
panhar os saltos e desvios do Penduricalho, até cair num buraco.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 39 6/11/2007 21:43:55
40. 40
É um orifício pequeno que dá entrada a uma casa gigante. Como
todo chaveiro, a casa é cheia de chaves penduradas no teto, por fios. De
todos os formatos, texturas e cheiros.
— Seu nome? Pergunta Penduricalho ao tocar as chaves como
que procurando uma específica, sem olhar diretamente para o menino.
— Samadhi Aipim.
— Por quê?
— Como assim? Por que você se chama Penduricalho?
— Não é óbvio? Penduricalho aponta para o colar cheio de
chaves penduradas e continua.
— Estou com pressa. Diz com ansiedade, arrancando uma chave
do fio que a prende no teto. Entrega-a a Samadhi. Ele hesita em aceitar
e pergunta:
— Onde fica a Montanha Iluminada?
Penduricalho se assusta:
— Ah! Cumpra sua primeira tarefa, que mostrarei o caminho.
Pegue esta chave e leve-a para a Ala dos Desaparecidos.
— Como é que eu vou achar isso? Pergunta Samadhi.
— Desaparecendo ué!
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 40 6/11/2007 21:43:56
41. 41
:5:
A PRIMEIRA TAREFA
AFERAT ARIEMIRP A
:5:
Penduricalho mostra a saída: um cipó preso ao
teto. Samadhi não faz idéia de como se sobe num cipó.
Lembra de ter visto, na fazenda do avô, homens subindo
nos coqueirais para catar coco e tenta fazer o mesmo.
— Onde foi que me meti? Pensa em voz alta.
Com esforço, e muita ralação de pés, chega ao
topo. Recompõe-se da subida segurando a chave. Vê
mulheres, homens, crianças e bichos indo de um lado
ao outro. Não olham para ele em nenhum momento.
São de cores bem vivas, dessas de desenho animado. São
os mayanos. Levanta-se e vê uma mulher que leva um
pote de aço contendo fogo. A chama está muito alta, em
qualquer outra circunstância queimaria o rosto da mul-
her, mas ela tem expressão de quem está sendo acari-
ciada e não queimada. Samadhi tenta uma aproximação
para perguntar onde é a ala dos desaparecidos.
— Por favor, moça...
Sem dar resposta, ela vai embora por uma ruela de
terra batida. Samadhi repara que essas ruazinhas têm
placas. E que numa delas está escrito: DESAPARECER,
POR AQUI.
— Ok, lá vamos nós.
Antes do primeiro passo, olha de novo para a
placa e faz cara de desgosto ao ver que ela gira conforme
o vento. Inútil direção. Bate na placa, o alumínio que a
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 41 6/11/2007 21:43:56
42. 42
compõe dobra em ondas sonoras, que ressoam por Maya. Passa um
redemoinho girando qualquer coisa leve ao redor. Samadhi roda no ar
e cai de bruços.
— Ué, choveu? Está molhado. Surpreende-se ao tocar a terra.
Ele continua a chutar qualquer coisa no chão. Maya não parece fa-
miliar, não o aceita como parte integrante e funcional. Senta num
tronco de árvore caído e se distrai analisando as pedras geométricas.
Musgo verde se espalha entre os dedos conforme se apóia. Adoraria
colecionar as pedras se tivesse onde guardá-las. Junta a triangular com
a hexagonal, coloca o círculo em cima e vai montando um cenário.
Formigas sobem nas pedras como atores se apoderando do palco.
No meio do devaneio de Samadhi, Chakra reaparece,
ainda bem.
— Samadhi Aipim, o que aconteceu?
— Estou tentando encontrar a Ala dos Desaparecidos, é a
primeira tarefa que Penduricalho me deu.
— Como? Ele deve ter confiado muito na sua capacidade
para mandar você para lá. É muito difícil alguém voltar.
— Por quê?
— Porque lá é uma das terras do Estagna.
— Quem?
— O maior assassino do DoAvesso!
— Assassino?
— Sim, ele causa a morte antecipada nas pessoas.
— Minha mãe acabou de morrer.
— Foi acidente?
— Foi de repente, doença estranha, sem motivo.
— Ah... Foi o Estagna, com certeza.
— Então preciso encontrar esse desgraçado!
— Você não vai conseguir... Ah, esquece, precisa dormir,
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 42 6/11/2007 21:43:56
43. 43
isso sim, vamos, meu pai deixou ficar lá em casa. Pelo menos ar-
ranjou um emprego.
— Preciso voltar para a minha casa, meu pai e minha irmã
devem estar preocupados.
— Fique tranquilo porque o tempo no DoAvesso é dife-
rente. Eles nem devem ter notado sua ausência.
Olha Chakra com ar de decisão tomada e aceita o convite.
Os dois caminham pelas entranhas de Maya, esquisitice só. De-
ixam os porquês de lado.
O Pintor voa de um lado ao outro, pintando o céu em noite
e lua. Dá uma mordida na lua e diz:
— Pronto, minguante! E olha para baixo.
— Vai dormir, menino dos olhos desajeitados!
A árvore gigante do Alquimista solta folhas no ar. O
velhinho dá risada e canta:
— É a hora do sono que acalma, sinta-o vindo da alma, um
bocejo anuncia a cantada da despedida. Já estou de saída, um
bocejo anuncia a cantada da despedida. Vai tum do sono pro-
fun... O Alquimista pára a cantiga no meio:
— Como é mesmo a cantiga da despedida? Bocejo e
saída? Ihh, olhem, uma folha da gargalhada acordada, agora
não, desnaturada. Foi-se apressada, para o lado de lá. Uau.
Tudo bem, não dá para todo mundo ser igual. O que é mesmo
que eu preciso enviar agora? Está na hora? Gargalhada ou
sono? Ah, gargalhada, claro.
O Alquimista manda folhas de gargalhada e de sono ao
mesmo tempo. No DoAvesso, uns riem feito doidos e outros
caem no sono profundo. Entra decidido o papagaio cinza do
Alquimista, pronto para salvar o dia.
— É sono agora, não gargalhada. Sono, sono, sono. Fica
bravo o papagaio, já cansado de ver a mesma cena.
— Bravo não precisa ficar, sono será! Diz o Alquimista.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 43 6/11/2007 21:43:56
44. 44
Samadhi boceja, afinal, é um DoAvesso, e não consegue es-
capar à poção. Um bocão aberto, daqueles bem gostosos, muito
ar para dentro, barulho expira todo o ar para fora. Olhos entrea-
bertos, sua cabeça tomba e sente uma imensa vontade de dormir
ali mesmo, naquele exato momento. Dorme na grama.
Os olhos negros de Chakra encaram o menino roncando.
Como ela queria sentir tudo, saber de tudo. Isso ela nunca sa-
berá, nunca saberá como é sentir sono e, de certa forma, inveja o
menino desajeitado que a intriga tanto. Deixa Samadhi onde ele
está e, aos saltos, vai embora, felina.
Vejo Samadhi em sono, angústia e pesadelo. Do outro
lado da colina, Chakra corre, seus longos cabelos negros voam.
O Carteiro, na frente da lua, cumprimenta o Pintor com um
aceno e um poema. O Alquimista escuta Pink Floyd enquanto
seu papagaio cinza faz guitarra com o bico. Folhas expres-
sivas ficam todas calmas. : } Chakra reserva o momento para
escutar o barulho noturno da floresta, uma música singular.
Pássaros, riachos, cigarras, a imensidão da natureza. Maya
amansa, mas os sintomas da Profecia intensificam-se.
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 44 6/11/2007 21:43:56
45. 45
:6:
O PODER DA ATRAÇÃO
OÃÇARTA AD REDOP O
:6:
AHHH, BUM!
Samadhi acorda no momento em que o Pintor
acaba de desenhar o nascer-do-sol. Chakra não está
mais ao seu lado. Levanta-se do chão com dificuldade,
como se um peso enorme estivesse grudado em sua
bunda. Olha para trás e realmente vê um peso enorme
grudado na bunda. Um ímã gigante, com dois olhos e
uma boca.
— Hehe, desculpas. Penduricalho me pediu para
te chamar. E sabes como é, tudo que eu penso atraio
direto e logo que pensei em ti, BUM. Agora me tira logo
daqui, não vês que não tenho braço? Fala envergonhado
o Menino Ímã.
Samadhi se contorce para desgrudar o Menino Ímã,
que agradece.
— Ah, obrigado, que alívio. Pois é Samadhi
Aipim... Ah, então é verdade, tens dois lados, vês de
dois jeitos diferentes. Adorei, onde arranjaste? Per-
gunta o Ímã fitando os olhos de Samadhi.
Menino Ímã é o que parece ser. Um ímã grande,
com seus um metro e vinte de altura e outros setenta
centímetros de largura. Como tudo em Maya é esquisi-
to, foi aceito pela comunidade, suas especificidades en-
caradas como qualidades. Logo foi identificado como
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 45 6/11/2007 21:43:56
46. 46
Camila Appel
Do Avesso_big_31.10B.indd 46 6/11/2007 21:43:56
47. 47
útil, tendo a capacidade de se locomover com força magnética. Tudo o
que ele pensa, atrai imediatamente. Pensou, grudou. Ele é o poder da
atração de Maya, de grande importância para o DoAvesso. Só que daí
vem também o problema que carrega. Muitas vezes não consegue con-
trolar seus pensamentos e antes que possa revertê-los, já se vê preso a
algo inesperado. Nunca vai se esquecer do dia em que pensou intensa-
mente naquela menina linda da sala de aula. Ela estava toda arrumada
no meio de uma ceia especial de família, quando foi puxada por uma
força incrível e grudou no Menino Ímã, do outro lado da comunidade.
E para explicar? Outro dia, ficou com raiva do Alquimista, que se es-
queceu da encomenda urgente feita por ele. A raiva trouxe o Alquimis-
ta e uma faca, que se não fosse pelo poder transformador desse senhor,
teria entrado de bico na garganta. Fez da faca, flor, o Alquimista. Ele
não lembrava da faca e da raiva e achou a oferenda um presente mara-
vilhoso do Menino Ímã. Dessa vez foi a sorte que o salvou.
Por isso, sente-se incapaz de esconder sentimentos e
prefere não tê-los, porque atrai tudo o que pensa e sente com
intensidade. Encontrou o caminho da neutralidade, a opção
foi esconder-se de si mesmo. No fundo, enxerga seu poder
como um dom, na esperança de que um dia vai aprender a
se controlar e mostrar a todos de Maya que seu desequilíbrio
guarda um grande encanto.
— Você atrai qualquer coisa que pensar? Pergunta Samadhi.
— Sim. Menino Ímã explica que os DoAvesso podem usar esse
poder, o da atração, para tudo que pensarem e sentirem com intensi-
dade, mas nem todos sabem disso.
— Eu sou um DoAvesso... então posso usar esse poder também?
— Aqui em Maya não, porque nós fornecemos os poderes que
serão usados do lá de lá, mas lembre-se disso quando voltar.
— Ah! Suspira Samadhi, questionando-se se um dia voltará.
D oAv e s s o
a
Do Avesso_big_31.10B.indd 47 6/11/2007 21:43:56