Este documento apresenta um guia de educação para a igualdade de género e cidadania para o 2o ciclo do ensino básico. Inclui um enquadramento teórico sobre género, cidadania e currículo, e propostas de atividades práticas sobre género e tempos livres, género e história/património, e género e personagens na literatura. Pretende contribuir para a integração da igualdade de género nas práticas educativas e eliminar estereótipos
1. Guião de Educação. Género e Cidadania 2º ciclo
No panorama educativo parece consensual que o conceito de igualdade de género faça
parte integrante, de forma inequívoca, do conteúdo dos discursos e dos documentos Guião de Educação
normativos que são produzidos a vários níveis de decisão. No plano teórico é aceite, sem
Género e
grandes debates, que todos os seres humanos deverão ser livres de desenvolver as suas
aptidões e de tomar as suas decisões num contexto inclusivo respeitador das múltiplas
individualidades, independentemente das crenças valorizadas socialmente acerca das
Cidadania
características e dos comportamentos tradicionalmente atribuídos aos homens e às
mulheres. Contudo, as práticas educativas não parecem ter conseguido acompanhar, pelo
menos com a eficácia desejada, este discurso teórico.
2º ciclo
Foi com o propósito de poder contribuir, de forma intencional e organizada, para a
diminuição do fosso existente entre a igualdade de jure e a igualdade de facto, que se
concebeu este Guião de Educação. Género e Cidadania. As suas autoras ambicionam
não só enriquecer os recursos pedagógicos disponíveis para as e os docentes do 2º ciclo
do ensino básico, mas sobretudo motivar para o desenvolvimento de práticas sensíveis Clarinda Pomar (coord.), Ângela Balça, Antónia Fialho
ao género promotoras da construção de uma cidadania plena, na escola e na sociedade. Conde, Aitana Martos García, Alberto Martos García,
Conceição Nogueira, Cristina Vieira, Luísa Saavedra, Paula
Silva, Olga Magalhães e Teresa-Cláudia Tavares.
2.
3.
4. Guião de Educação
Género e cidadania
2º ciclo
Clarinda Pomar (coord.), Ângela Balça, Antónia Fialho Conde, Aitana Martos
García, Alberto Martos García, Conceição Nogueira, Cristina Vieira,
Luísa Saavedra, Paula Silva e Olga Magalhães
Lisboa, 2012
5. O conteúdo deste livro não exprime necessariamente a opinião da Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
Ficha Técnica
Título:
Guião de Educação Género e Cidadania. 2º ciclo do ensino básico
Autoria:
Clarinda Pomar (coord.), Ângela Balça, Antónia Fialho Conde, Aitana Martos García, Alberto Martos García, Conceição
Nogueira, Cristina Vieira, Luísa Saavedra, Paula Silva, Olga Magalhães e Teresa-Cláudia Tavares.
Consultoria Científica:
Ângela Rodrigues e Teresa Joaquim.
Revisão:
Isabel de Castro, Teresa Alvarez e Teresa Pinto.
Edição:
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
Lisboa, 2012
Design Gráfico e Paginação:
Marta Gonçalves
Impressão e acabamento:
Rolo & Filhos II, S.A.
Tiragem:
1.300 Exemplares
Data de Impressão:
Junho de 2012
Depósito Legal:
346219/12
ISBN:
978-972-597-336-3
Validado pela DGE/MEC
Disponível em: http://www.cig.gov.pt/guiaoeducacao/
Esta edição segue a grafia do Novo Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa. Nas referências bibliográficas foi respeitada a
grafia original.
6. GUIÃO DE EDUCAÇÃO. GÉNERO E CIDADANIA
Índice
Nota Prévia VII
INTRODUÇÃO. Género, educação, cidadania... o desafio 1
1. ENQUADRAMENTO TEÓRICO 5
1.1. Género e Cidadania 7
1.1.1. De que falamos quando falamos de género? 10
1.1.2. O género como categoria social 20
1.1.3. A formação da identidade de género 23
1.1.4. Estereótipos de género 26
1.1.5. De que falamos quando falamos em cidadania? 33
1.1.6. Que relações entre género e cidadania? 37
1.1.7. De que falamos quando falamos em cidadania e educação? 40
1.1.8. Construindo práticas de cidadania 46
1.2. Género e Currículo 49
1.2.1. Currículo Formal e Informal 49
1.2.2. O poder da linguagem e dos materiais pedagógicos 55
1.2.3. Género, saberes e competências 59
1.2.4. A importância das interações e dos espaços escolares 61
1.2.5. As e os docentes na educação para a igualdade 63
1.3. A transversalidade do género na intervenção educativa 67
1.3.1. A construção do género na intervenção pedagógica 69
1.3.2. Género e percursos escolares 73
1.3.3. A transversalidade do género nas propostas de intervenção educativa
do guião 75
2. INTERVENÇÃO EDUCATIVA: GÉNERO E AS PRÁTICAS LÚDICAS DOS TEMPOS
LIVRES 79
2.1. As atividades lúdico-motoras e o desenvolvimento dos padrões de
comportamento masculino e feminino 81
2.2. Intervenção educativa: sugestões práticas. Introdução 87
a) O que fazem as raparigas e os rapazes nos seus tempos livres? 89
b) Os tempos livres dos nossos pais e mães eram iguais ou diferentes dos nossos? 95
c) As histórias dos tempos livres de uma amiga e de um amigo imaginário 101
d) As notícias desportivas na nossa terra: sobre o quê e sobre quem? 107
e) Género, estilos de vida e saúde 111
V
7. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
3. INTERVENÇÃO EDUCATIVA: GÉNERO, HISTÓRIA E PATRIMÓNIO 115
3.1. Género, História e Património 117
3.2. Intervenção educativa: sugestões práticas. Introdução 121
f) O mosaico romano 123
g) Filipa de Lencastre 127
h) Personagens do século XX português 133
i) À Descoberta do Património Imaterial 135
j) O nome da minha escola 139
4. INTERVENÇÃO EDUCATIVA: GÉNERO E AS PERSONAGENS NA LITERATURA 141
4.1. A diferenciação de género nas personagens de literatura infantil e juvenil 143
4.2. Intervenção educativa: sugestões práticas. Introdução 147
k) Líderes e seguidores/as: e se…? 149
l) Rapazes de ação, Raparigas de ação 153
m) Meninas e Meninos: todos iguais? 157
n) Contos antigos, versões modernas 163
o) As preferências e as escolhas individuais 171
BIBLIOGRAFIA 177
RECURSOS 205
GLOSSÁRIO 213
NOTAS BIOBIBLIOGRÁFICAS 221
VI Lisboa, CIG, 2012
8. GUIÃO DE EDUCAÇÃO. GÉNERO E CIDADANIA
Nota Prévia
Com a publicação de dois novos Guiões de Educação Género e Cidadania, a Comissão para a
Cidadania e a Igualdade de Género (CIG) dá continuidade ao projeto, iniciado em 2008, de produzir
e editar materiais de apoio à integração da dimensão do género e da igualdade entre raparigas
e rapazes no currículo do ensino básico. Os dois novos Guiões destinam-se, respetivamente,
ao 1º e ao 2º ciclos do ensino básico e, à semelhança dos Guiões editados em 2010, tiveram o
apoio financeiro do POPH, através do Eixo 7 - Igualdade de Género, e foram acompanhados pela
Direção Geral de Inovação e Desenvolvimento Curricular (DGIDC) que validou a sua adequação às
orientações curriculares do Ministério da Educação. Destinando-se à educação formal, os Guiões são
instrumentos de apoio para profissionais de educação de todas as áreas curriculares, disciplinares e
não disciplinares, e de todos os tipos e/ou modalidades de ensino.
A finalidade destes Guiões é a integração da dimensão de género nas práticas educativas formais
e nas dinâmicas organizacionais das instituições educativas, com vista à eliminação gradual dos
estereótipos sociais de género que predefinem o que é suposto ser e fazer um rapaz e uma rapariga.
Pretende-se, assim, contribuir para tornar efetiva a educação para a cidadania para raparigas e
para rapazes, garantindo que a educação, e a cidadania como uma das suas áreas transversais,
se configure e estruture a partir, entre outros, do eixo das relações sociais de género, visando uma
verdadeira liberdade de escolha dos percursos académicos e profissionais e dos projetos de vida por
parte, quer de raparigas, quer de rapazes.
A produção destes Guiões enquadra-se nos compromissos internacionais assumidos por
Portugal, inscrevendo-se, nomeadamente, nos Objetivos Estratégicos da Plataforma de Ação de
Pequim (1995) relativos à educação e na Convenção Sobre a Eliminação de Todas as Formas
de Discriminação Contra as Mulheres (Convenção CEDAW), constituindo uma resposta às
Recomendações dirigidas a Portugal por este Comité, em novembro de 2008. A nível nacional, os
Guiões concretizam uma das medidas previstas no IV Plano Nacional para a Igualdade, Género,
Cidadania e Não Discriminação (2011-2013), respondendo, ainda, às Recomendações emanadas
do Fórum de Educação para a Cidadania que decorreu entre 2006 e 2008. Decorrendo das
responsabilidades acrescidas da CIG que, por força da sua Lei Orgânica de 2007, passou a ter
competências na área da educação para a cidadania, os Guiões traduzem também a intervenção da
CIG nesta área enquanto Mecanismo Nacional para a Igualdade entre Mulheres e Homens.
Os Guiões de Educação Género e Cidadania inscrevem-se na linha de atuação da Comissão que
sempre elegeu a educação como área de intervenção prioritária, nela desenvolvendo uma atividade
estrategicamente conduzida, assente em projetos de intervenção delineados e concretizados de
forma articulada, numa lógica de continuidade, consolidação e avaliação de resultados, identificação
de resistências, lacunas e respostas às mudanças do sistema educativo e à evolução das práticas de
profissionais de educação. Da ação desenvolvida pela Comissão resultou, entre outras, a criação de
uma Rede Nacional informal (a Rede Coeducação) de especialistas, investigadoras e investigadores
VII
9. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
em Género, Educação e Formação, docentes de instituições de ensino superior e não superior e
de ONG. Esta Rede é, hoje, um recurso nacional incontornável para uma intervenção na educação,
no domínio da igualdade de género, fundada em rigor, adequação e sustentabilidade científica e
pedagógica. A ela pertencem muitos dos elementos da equipa que concebeu estes Guiões.
Ao longo da elaboração dos novos Guiões, realizam-se ações de formação para docentes em
2010/2011, em diferente zonas do país, e deu-se continuidade à intervenção em escolas piloto.
Uma última nota sobre a utilidade destes Guiões. Tal como tem sido reiterado pela ONU, através do
Comité CEDAW, pelo Conselho da Europa e pela União Europeia, não basta produzir bons materiais
sobre género e educação. É imprescindível uma aposta efetiva, exigente e continuada na formação
de profissionais de educação para que a aplicação destes materiais se concretize, respeitando-se
os objetivos para que foram criados, e para que a sua aplicação tenha um impacto real junto das
crianças e jovens de ambos os sexos a quem se destinam, não apenas no seu percurso escolar
mas durante toda a sua vida, enquanto pessoas e enquanto elementos de pleno direito em todas as
comunidades a que pertencerem.
Comissão para a Cidadania e a Igualdade de Género
VIII Lisboa, CIG, 2012
12. INTRODUÇÃO
Introdução
N
o panorama educativo parece estrutura basilar compreende uma parte com
consensual que o conceito de um enquadramento teórico e uma parte com
igualdade de género faça parte propostas de atividades práticas. A componente
integrante, de forma inequívoca, teórica inclui um capítulo sobre “Género e
do conteúdo dos discursos e dos documentos Cidadania” (comum aos outros Guiões), um
normativos que são produzidos a vários níveis capítulo sobre “Género e Currículo” (comum
de decisão. No plano teórico é aceite, sem ao Guião do 3º ciclo do ensino básico) e um
grandes debates, que todos os seres humanos capítulo sobre a “Transversalidade do Género
deverão ser livres de desenvolver as suas na Intervenção Educativa”. As propostas de
aptidões e de tomar as suas decisões num intervenção educativa foram organizadas em
contexto inclusivo respeitador das múltiplas redor de três temáticas: “Género e as práticas
individualidades, independentemente das lúdicas dos tempos livres”, “Género, história
crenças valorizadas socialmente acerca e património” e “Género e as personagens na
das características e dos comportamentos literatura”. Estas temáticas foram selecionadas
tradicionalmente atribuídos aos homens e às tendo em conta algumas das dimensões da
mulheres. Contudo, as práticas educativas não vida das crianças e jovens desta faixa etária
parecem ter conseguido acompanhar, pelo onde se revele pertinente a problematização
menos com a eficácia desejada, este discurso da igualdade de género. Por seu turno, cada
teórico. conjunto de propostas temáticas é antecedido
por um breve referencial teórico que pretende
Foi com o propósito de poder contribuir,
enquadrar, de uma forma mais específica, as
de forma intencional e organizada, para a
várias sugestões de atividades.
diminuição do fosso existente entre a igualdade
de jure e a igualdade de facto, que se concebeu
Na temática “Género e as práticas lúdicas
este Guião de Educação, Género e Cidadania.
dos tempos livres” desenvolvem-se propostas
As suas autoras ambicionam não só enriquecer
de atividades nas quais as crianças e jovens
os recursos pedagógicos disponíveis para as
terão oportunidade de analisar as escolhas e
e os docentes do 2º ciclo do ensino básico,
as oportunidades de prática de atividades de
mas sobretudo motivar ao desenvolvimento
tempos livres, refletindo sobre os fatores que
de práticas sensíveis ao género promotoras da
interferem e medeiam essas opções e decisões.
construção de uma cidadania plena, na escola e
na sociedade. Na temática “Género, História e Património”
procura-se aliar a consciencialização e
Este Guião para o 2º ciclo do ensino básico análise crítica dos estereótipos de género à
surge integrado no conjunto de Guiões de sensibilização e descoberta da pluralidade dos
Educação, Género e Cidadania que foram valores patrimoniais (nas dimensões material
produzidos, especificamente, para cada um dos e imaterial) do meio e das comunidades em
níveis de educação e ensino, desde a educação que a escola se insere, considerando-se o
pré-escolar ao 3º ciclo do ensino básico. A sua princípio da transversalidade do tempo histórico
por: Clarinda Pomar 003
13. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
dos temas tratados (do mundo romano ao ou de complementaridade das propostas
mundo contemporâneo). Na temática “Género apresentadas.
e as personagens na literatura”, as sugestões
desenrolam-se, maioritariamente, à volta de Realçamos ainda que as várias propostas de
obras recomendadas, para estas idades, pelo intervenção educativa deste Guião pretendem
Plano Nacional de Leitura em que o texto, as valorizar a interdisciplinaridade permitindo o
características das personagens e as situações desenvolvimento dos conhecimentos e das
criadas pelos autores e autoras constituem o competências específicas de várias áreas
pretexto para a problematização das questões disciplinares.
de género. O Guião faculta ainda um glossário (comum
aos outros Guiões) bem como todas as
Embora todas as propostas de atividades referências bibliográficas e webgráficas que
se encontrem devidamente estruturadas, sustentam os vários textos e que possibilitam o
cada docente terá possibilidade de encontrar aprofundamento das temáticas aí abordadas.
elementos de flexibilidade que lhe permitirão
proceder a adaptações tendo em conta os Esperamos, desta forma, envolver ativamente
recursos disponíveis, as características dos os professores e as professoras, os alunos
seus alunos e das suas alunas, bem como e as alunas do 2º ciclo e toda a comunidade
as particularidades do contexto educativo educativa neste compromisso educativo
onde as vão aplicar. Sugerem-se ainda, fundamental.
frequentemente, atividades de extensão
004 Lisboa, CIG, 2012
16. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
1.1.
Género e Cidadania
Introdução
A diversidade de características dos desigualdade qualitativa: elas já são mais
homens e das mulheres constitui numerosas do que eles na escola, mas
ensino misto e coeducação estão longe
um manancial de recursos de tal
de ser conceitos sinónimos; no mundo
maneira valioso que a trajetória de profissional existem ainda disparidades
cada pessoa ao longo do seu ciclo de salariais em muitos setores de atividade,
vida está continuamente em aberto, persistem os chamados tetos de vidro na
construindo-se em função de uma ascensão profissional, as jovens mulheres
recém licenciadas têm mais dificuldade
-
multiplicidade de fatores históricos e
de acesso ao emprego do que os seus
contextuais. Estas possibilidades de colegas do sexo masculino e o desemprego
desenvolvimento e de aprendizagem afecta-as mais. Para além desta situação,
têm sido, no entanto, historicamente o discurso sobre a conciliação entre a vida
restringidas, sempre com base na doméstica e a carreira continua a existir
associado essencialmente às mulheres
defesa de estereotipias arcaicas,
que, na realidade (seja em termos das
conducentes a desigualdades e tarefas domésticas, ou do cuidado aos
discriminações, penalizadoras em filhos e a familiares dependentes), são
maior escala para o sexo feminino. de uma forma geral as garantes da vida
quotidiana das famílias, vendo a sua saúde
física e psicológica posta em risco por esta
U
real sobrecarga. Finalmente, as mulheres,
ma leitura desatenta das se bem que agora mais presentes na
estatísticas atuais relativas vida pública, continuam minoritárias em
à situação das mulheres e posições onde o poder importa e o estatuto
dos homens ocidentais faz socioeconómico é fundamental. A atual Lei
crer que a igualdade entre homens e da Paridade (Lei Orgânica nº 3/2006, de
mulheres está praticamente conseguida. 21 de agosto) poderá alterar esta situação,
Porém, a aparente igualdade quantitativa mas, ainda assim, muito será necessário
em alguns setores escamoteia a real fazer para que elas se encontrem igualmente
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 007
17. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
representadas e todos os seus talentos Tarizzo e Diana Marchi (1999: 6). Por esse
sejam de igual forma valorizados. motivo, deve desempenhar o seu papel na
eliminação das desigualdades entre homens
Embora as mulheres sejam, efetivamente, e mulheres que continuam a prevalecer.
a face legitimamente mais visível da batalha Isto pode conseguir-se através de boas
pela igualdade de direitos e oportunidades, práticas de cidadania ativa e democrática,
é indubitável que um tratamento produtivo que possam ser aprendidas na escola a
desta problemática deve incluir também par dos conteúdos do currículo formal.
a consciência do impacto que estas Para o alcance dos objetivos que norteiam
desigualdades acarretam para o sexo a efetiva realização desta cidadania ativa é
masculino. São disso bastante expressivos necessário que a escola assuma também
factos como: a maior taxa de abandono a responsabilidade de se tornar um local
escolar dos rapazes, sobretudo no ensino privilegiado de partilha, de cooperação
secundário; o número e e de educação para a
gravidade dos acidentes A Lei Orgânica nº3/2006, de 21 participação. Uma escola
de viação dos rapazes de agosto, designada por Lei da democrática é uma
na adolescência, organização de liberdade,
Paridade, estabelece que as listas
associados a uma capaz de oferecer
pressão societal para a Assembleia da República, resistência contra o
para uma forma para o Parlamento Europeu e autoritarismo, a opressão
de masculinidade para as autarquias locais são e todas as formas de
hegemónica que discriminação baseadas
compostas de modo a assegurar
também os constrange; no sexo, na classe, na
a representação mínima de 33%
e a falta de autonomia raça/etnia, na orientação
a nível da realização de cada um dos sexos. sexual, na religião, na
de tarefas domésticas, cultura. É uma escola que
limitação essa subjacente às razões supera preconceitos e estereótipos. Uma
alegadas pelos homens para o casamento cidadania ativa numa sociedade cada vez
na sequência de um primeiro divórcio mais plural implica a aceitação do valor da
ou viuvez, ou ainda à decisão de alguns igualdade dos direitos e dos deveres para
idosos (do sexo masculino) saudáveis de todos e todas, implica um compromisso
passarem a viver em instituições quando genuíno com a sociedade na sua
ficam sozinhos. Pelo exposto, importa diversidade, o respeito crítico pelas culturas,
trabalhar no sentido da construção de um crenças, religiões etc., e implica também
mundo onde homens e mulheres possam abertura à solidariedade pela diferença,
viver em igualdade, sem constrangimentos rejeitando qualquer tipo de exploração –
a todas as suas aspirações e com garantias racismo, sexismo… enfim, recusando a
de oportunidades de exercício dos seus discriminação sob qualquer forma.
múltiplos talentos.
Apesar das múltiplas discriminações
A escola, para além de ser um local de existentes, vamos centrar-
compreensão e de preparação de rapazes -nos neste guia nas questões da igualdade
e raparigas para a vida, deverá estar entre homens e mulheres e por isso na
entre os principais agentes de mudança, erradicação do sexismo, conceito que
contribuindo, “juntamente com outros abrange todos os preconceitos e formas de
intérpretes sociais, para a construção discriminação exercidas contra um indivíduo
da realidade”, como escreveram Gisela devido ao respetivo sexo.
008 Lisboa, CIG, 2012
18. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
Temos bem presente que
há uma multiplicidade de
discriminações que se “ trate a aplicação correta do igual e deda igualdade exige que
se
Mas
de modo igual o que é
princípio
modo diferente o que é
podem cruzar e produzir
diferente. Desde que se verifiquem situações de desigualdade à
formas de desigualdade
partida, haverá que corrigir essa desvantagem inicial através de
particulares. Não ações positivas que, procurando anulá-la, criem condições para
esquecemos, como advertiu
Conceição Nogueira (2009),
uma real igualdade de oportunidades.
Eliane Vogel-Polsky, 1991: 5.
”
essas formas intersecionais
de viver as múltiplas
discriminações (como
acontece, por exemplo, no
caso de jovens raparigas argumentos e diferentes sexo e género, a que
provenientes de classes posicionamentos para se segue uma reflexão
desfavorecidas ou de etnias que este fenómeno do sobre a importância do
não dominantes); elas estão sexismo possa ser pensado, género enquanto categoria
presentes ao longo deste repensado e, quando social desde a primeira
trabalho, mesmo que nem interrelacionado com outras infância. Logo em seguida,
sempre nomeadas. Apenas categorias de pertença analisa-se sob o ponto
por razões de ordem que acarretam também de vista psicológico a
prática nos centraremos discriminações, analisado na formação e consolidação
essencialmente na sua inerente complexidade. da identidade de género
categoria de sexo (homens nos primeiros anos de
e mulheres) que tende a Este capítulo constitui vida. O conhecimento dos
fomentar uma visão dos a parte introdutória de estereótipos de género,
dois sexos como opostos. um Guião destinado à por parte das crianças, e
promoção da igualdade a adopção dos mesmos
Esta divisão, assimétrica de género no âmbito com a idade, são aspectos
do ponto de vista simbólico de diferentes espaços tratados na parte seguinte.
no entender de Lígia educativos formais, com O capítulo termina com uma
Amâncio (1994), perpassa especial ênfase no ensino reflexão sobre o que é a
toda a sociedade e pré-escolar e no terceiro cidadania, sobre a relação
conduz à emergência de ciclo do ensino básico. entre género e cidadania e
estereótipos, preconceitos Encontra-se dividido em sobre as formas de praticar
e discriminações que sete secções articuladas uma verdadeira educação
afetam prioritariamente as entre si. Numa primeira para a cidadania.
mulheres. Importa por isso secção é feita uma tentativa
clarificar conceitos, mapear de clarificação dos termos
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 009
19. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
1.1.1.
De que falamos quando
falamos de género?
O
sexo de uma criança é sem dúvida mulheres em termos pessoais e sociais, a partir
um fator importante para o seu do conhecimento da sua categoria biológica
desenvolvimento. Não é por acaso de pertença, abriu caminho a raciocínios
que uma das primeiras perguntas simplistas de explicação dos comportamentos
que se faz às mães e aos pais quando uma individuais, à crença na estabilidade dos
criança acaba de nascer é se é menina ou atributos individuais e à ideia de que seria
menino. O próprio nome que se escolhe para “normal” que os seres masculinos tivessem
o/a bebé deixa antever o seu sexo e a presença certas características psicológicas e os seres
de um bebé ou de uma criança em relação à femininos evidenciassem outras, distintas. Para
qual se desconhece o sexo suscita sentimentos além desta visão dicotómica não ter qualquer
de desconforto naqueles que a rodeiam. Ainda fundamento científico – sendo por isso de toda
que nos primeiros meses de vida as crianças de
ambos os sexos tenham características físicas
semelhantes, a mãe e o pai começam logo
a construir o género do/a bebé: dão-lhe um
nome, vestem-no/a de cores diferentes e criam
“ Acredita-se que os panelas e tachos, bonecas
meninas (conjuntos de
brinquedos oferecidos às
um espaço físico de tal forma distintivo que é e bonecos, eletrodomésticos em miniatura,
fácil para um/a observador/a externo/a adivinhar estojos de cabeleireira, kits de maquilhagem, etc.),
uma vez que têm uma finalidade habitualmente
se o/a bebé em questão é do sexo masculino
prevista, fomentam nelas uma menor criatividade
ou do sexo feminino. Assim sendo, podemos
do que os brinquedos oferecidos aos rapazes
afirmar que o sexo, para além de ser um fator
(pistas de carros, legos, construções, bolas,
biológico, é também um fator social e cultural,
transportes em miniatura, etc.). Os segundos,
uma vez que as pessoas tendem a reagir de pelo facto de não terem uma utilidade tão pré-
maneira diferente perante uma criança do -definida, tendem a ser mais fomentadores da
sexo masculino ou do sexo feminino. Reações criatividade e inclusive de uma maior ocupação
essas diferentes não só ao nível de aspetos do espaço circundante. Esta desigualdade
concretos, como a oferta de brinquedos, mas na estimulação cognitiva despoletada pelos
também ao nível da formação de expectativas brinquedos poderá refletir-se, mais tarde, de
de desempenho, da expressão de elogios forma diferente em ambos os sexos, em aspetos
e encorajamentos, do estabelecimento de tão diversos como a capacidade de resolução de
interações verbais e não-verbais e da linguagem problemas, a apetência para enfrentar desafios,
utilizada. a autoconfiança para a exploração autónoma do
espaço, etc.
”
Jeanne Block, 1984.
Esta caracterização (que podemos apelidar
de quase “automática”) dos homens e das
010 Lisboa, CIG, 2012
20. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
a conveniência examinar e não tem sido sinónimo de que norteiam este Guião,
refletir em torno da origem diversidade, mas sim de parece-nos extremamente
das eventuais diferenças desigualdade, de hierarquia pertinente e útil, para uma
entre homens e mulheres – a e de posse dissemelhante de atuação pedagógica que
discussão desta problemática poder e de estatuto social. contrarie preconceitos e
ganha ainda maior relevância Neste enquadramento, e discriminações, a distinção
se pensarmos que a diferença tendo presentes os objetivos entre sexo e género.
“ Um catálogo intituladoartigos organizados em vários capítulos, entrehipermercado no períodoque
Natal (1999), apresenta os
“Festa dos brinquedos” difundido por um
,
os quais analisámos dois
de
correspondem às seguintes designações:
» Menina (12 páginas) » Rapaz (14 páginas).
Passando ao lado das questões linguísticas (meninas vs. rapaz), apresentamos a seguir a lista dos
brinquedos incluídos em cada um desses dois itens (...).
Um brinquedo não é um objeto neutro: é um veículo de simulação e de aprendizagem da vida adulta,
encaminha os comportamentos e as práticas sociais e culturais, define lugares na comunidade e na
família. Nesta ótica, que informação nos transmite o catálogo do hipermercado?
Feminino Maculino
Brinquedo nº de vezes Brinquedo nº de vezes
Boneca bebé 24 Motorizada 3
Banheira para bebé 3 Figuras espaciais 2
Alcofa para bebé 5 Nave espacial 1
Cadeira para bebé 1 Robots 5
Carro para bebé 6 Heróis de BD e cinema 21
Casa das bonecas 2 Avião de guerra 2
Baloiço para boneca 1 Viaturas de heróis 2
Boneca adulta - tipo “Barbie” 10 Hidrojet 1
Casa da boneca 5 Submarino 1
Automóveis para boneca adulta 2 Porta aviões 1
Boneco adulto - “Ken” 1 Pista de carros 4
Parque infantil para boneca 2 Garagem 5
Escola e enfermaria 1 Conjunto de carrinhos 3
Consultório de pediatra 1 Jeep 1
Castelo encantado/palácio 4 Helicóptero 2
Acessórios de toilette 3 Carro teleguiado 24
Cozinha/equipamento de cozinha 5 Gruas 2
Supermercado/produtos 2 Comboio elétrico 2
Bonecos Disney 2
Maleta de teatro 1
Secretária 1
Patins 2
Permite-nos detetar dois perfis distintos: um encaminha as crianças para a maternidade, para as tarefas
domésticas e para a estética do corpo; outro aponta claramente para a tecnologia, incluindo alguns
elementos de violência ou, pelo menos, de conflituosidade.
Isabel Margarida André, 1999: 98-99.
”
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 0
011
21. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
O termo sexo é usado para distinguir os de região para região e são ainda sujeitos a
indivíduos com base na sua pertença a uma readaptações de acordo com outras variáveis,
das categorias biológicas: sexo feminino e como a classe social, a idade, a etnia e a
sexo masculino.
religião.
O termo género é usado para descrever
inferências e significações atribuídas aos O estudo da importância do género para a
indivíduos a partir do conhecimento da sua compreensão da vida individual de homens
categoria sexual de pertença. Trata-se, neste e de mulheres tem despertado a atenção de
caso, da construção de categorias sociais cientistas com origens teóricas diversas que,
decorrentes das diferenças anatómicas e
fazendo uso de abordagens e metodologias
fisiológicas
distintas, trouxeram para a discussão desta
problemática argumentos de extrema relevância,
No sentido de clarificar a ideia de que as ainda que nem sempre facilmente conciliáveis
diferenças observadas entre os sexos não entre si. Este facto tem tornado ainda mais
se justificam simplesmente pela pertença da profícuo o debate e contribuiu indubitavelmente
pessoa a uma categoria biológica presente para a compreensão da natureza socialmente
à nascença, mas que resultam sobretudo de construída do género, a qual legitimou todo um
construções culturais, Ann Oakley propôs, sistema de relações sociais – de dominação
em 1972, que se efetuasse a distinção entre e de subordinação – pautadas, ao longo da
os termos sexo e género, distinção essa que história, por desigualdades de poder tanto ao
passou a servir de referência para as Ciências nível material como simbólico, como escreveu a
Sociais. Em seu entender, o sexo com que historiadora Joan Scott (1986).
nascemos diz respeito às características
anatómicas e fisiológicas que legitimam a
diferenciação, em termos biológicos, entre
masculino e feminino. Por seu turno, o género
que desenvolvemos envolve os atributos “ Que significa ‘ser homem’ do ponto de
vista social?
psicológicos e as aquisições culturais que o A pergunta é tão complexa quanto
homem e a mulher vão incorporando, ao longo aparentemente ingénua. Para a larguíssima
do processo de formação da sua identidade, e maioria das pessoas, para o nível a que nas
que tendem a estar associados aos conceitos Ciências Sociais chamamos senso comum,
de masculinidade e de feminilidade. Assim, o ser homem é fundamentalmente duas coisas:
termo sexo pertence ao domínio da biologia e não ser mulher, e ter um corpo que apresenta
o conceito de género inscreve-se no domínio órgãos genitais masculinos. A complexidade
da cultura e remete para a construção de encontra-se precisamente na ingenuidade –
significados sociais. Para além das diferenças agora sim –, de remeter para carateres físicos
genéticas entre os sexos espera-se, na maior do corpo uma questão de identidade pessoal
e social. Isto porque ‘ser homem’, no dia a
parte das sociedades, que os homens e as
dia, na interação social, nas construções
mulheres se comportem de uma maneira
ideológicas, nunca se reduz aos carateres
diferente e assumam papéis distintos. Ainda na
sexuais, mas sim a um conjunto de atributos
linha do pensamento da autora atrás citada,
morais de comportamento, socialmente
convém ter presente que os conceitos de sancionados e constantemente reavaliados,
feminilidade e de masculinidade diferem em negociados, relembrados. Em suma, em
função de especificidades culturais, o que
significa que variam no espaço e no tempo,
constante processo de construção.
”
Miguel Vale de Almeida, 1995: 127-128.
apresentando definições distintas de época
para época e, num mesmo período histórico,
012 Lisboa, CIG, 2012
22. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
Já em 1949 Simone de evidenciar principalmente as nos homens e nas mulheres
Beauvoir falava desta semelhanças – a chamada desenvolvem-se em sintonia
legitimação da construção de perspetiva do enviesamento com uma multiplicidade de
diferenças sociais com base beta1. De facto, apesar influências que são inerentes
nas diferenças sexuais, ao de numerosos trabalhos ao processo de socialização
defender que o ser humano concluírem pela inexistência e que começam logo a partir
do sexo feminino não nasce de diferenças sexuais em do momento em que se toma
mulher, mas sim torna-se domínios como, por exemplo, conhecimento do sexo da
mulher pela incorporação o cognitivo2, outros apontam criança, ou seja, mesmo antes
de modos de ser, de papéis, para a existência de diferenças do nascimento.
de posturas e de discursos entre homens e mulheres,
condizentes com o modelo sobretudo ao nível da Estudos efetuados com
de feminilidade dominante personalidade na vida adulta,
mulheres grávidas e
na cultura a que pertence. quando se pede às pessoas
descritos por Carole
O mesmo poderá dizer-se a que se autodescrevam3 de
propósito da aprendizagem acordo com determinadas Beal (1994) permitiram
do que é ser homem por características. Certos concluir que existe uma
parte dos seres humanos que traços como independência, tendência, por parte
nascem do sexo masculino, competitividade, agressividade das futuras mães, para
os quais tendem a ser e dominância continuam a percecionarem de
socializados de acordo com ser associados a homens,
maneira diferente os
as características distintivas da reunidos sob a designação
masculinidade culturalmente de instrumentalidade movimentos fetais, em
preponderante da sua masculina; a sensibilidade, a função do conhecimento
geração. emocionalidade, a gentileza, a do sexo do bebé. No caso
empatia e a tendência para o de estarem à espera de
As investigações, sobretudo estabelecimento de relações um rapaz, as mulheres
de natureza psicológica e continuam a estar associadas
em análise tendiam a
sociológica, dedicadas à às mulheres, sob a designação
descoberta de diferenças/ de expressividade feminina. descrever os movimentos
/semelhanças entre homens fetais como vigorosos,
e mulheres, nem sempre Quer se dê destaque verdadeiros tremores
têm conduzido a conclusões às eventuais diferenças de terra e calmos, mas
coincidentes e há quem tenda encontradas entre os sexos, fortes. Caso a criança
a destacar sobretudo as quer se valorize a perspetiva
em desenvolvimento
diferenças entre os indivíduos que defende serem mais
– a chamada perspetiva do as semelhanças, o que é
fosse do sexo feminino,
enviesamento alfa – enquanto importante realçar é que as as mães inclinavam-
outros/as se inclinam a características observadas -se a descrevê-las
1
Para a compreensão desta distinção, recomenda-se a consulta do artigo de Rachel T. Hare-Mustin e Jeanne Marecek
(1988).
2
Ver, a este propósito, as revisões de estudos específicos que foram efetuadas por Janet Hyde (1981) e por esta autora e
seus colegas (1990).
3
A revisão de estudos publicada por Alain Feingold (1994) e a investigação de doutoramento de Cristina Vieira (2003;
2006) retratam claramente estas distinções que é possível observar entre homens e mulheres, no que concerne às suas
autodescrições individuais.
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 0
013
23. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
como apresentando estática, bipolar e categorial se clarificação é crucial em
movimentos situam dentro dos indivíduos virtude das suas implicações
muito suaves, não e que os sexos são opostos. educativas e daí ser
A continuar-se com esta necessário desconstruir
excessivamente ativos,
falsa dicotomia, dividindo as toda a lógica determinista
e vivos, mas não muito
características e as atividades usada para prescrever a
enérgicos. em masculino e feminino, homens e mulheres atributos,
estar-se-á a transpor para competências e interesses
Além disso, as diferenças a compreensão do humano decorrentes da diferenciação
observadas dentro de cada um sistema de oposições biológica.
grupo formado com base na homólogas, como escreveu
categoria sexual (grupo das Miguel Vale de Almeida No campo da psicologia, e
pessoas do sexo masculino e (1995), como alto/baixo,
no âmbito de uma tentativa
das pessoas do sexo feminino)
são mais numerosas do que
Sensivelmente a meio do séc. XX, e partindo de uma
as diferenças entre esses
mesmos dois grupos4, pelo análise dos comportamentos das pessoas adultas (da
que as categorias ‘mulher’ cultura ocidental) – especialmente dos pais e das mães
e ‘homem’ não poderão – na família e em pequenos grupos, os sociólogos Talcott
continuar a ser vistas como Parsons e Robert Bales (1955) defenderam que a mulher
homogéneas nem como
estava mais predisposta ao estabelecimento de interações
passíveis de traduzir modelos
ideais e exclusivos (de sociais e à manutenção dos laços e da harmonia familiares.
um grupo ou de outro) de Era, por isso, sobretudo expressiva, deixando o homem
conduta. livre para o desempenho dos papéis instrumentais. Entre
Para espelhar a diversidade os comportamentos mais típicos dos indivíduos do sexo
de formas de ser e de estar,
masculino encontravam-se, por exemplo, a orientação
os termos deverão inclusive
ser formulados no plural –
para o alcance de metas e o estabelecimento de relações
mulheres e homens –, não entre a família e o mundo exterior. Tal distinção deu
esquecendo (se o objetivo origem ao aparecimento de duas categorias de atributos
for a compreensão das da personalidade, que viriam a seu utilizadas em outras
singularidades individuais) o áreas para classificar e distinguir os homens das mulheres,
seu necessário cruzamento
fazendo corresponder diretamente (e perigosamente)
com outras categorias
pessoais e sociais de a distinção biológica a diferenças psicológicas:
análise, algumas delas atrás instrumentalidade masculina e expressividade feminina.
mencionadas.
sobre/sob, fazendo crer de compreensão do
Por esta razão, e seguindo o que a diferença estaria na comportamento dos homens
pensamento de Conceição natureza dos seres e não num e das mulheres ao longo do
Nogueira (2001), não pode processo de aprendizagem ciclo de vida, uma das visões
continuar a acreditar-se e de apropriação diferencial mais consensuais do conceito
que diferenças de natureza de normas e valores. Esta de género foi influenciada
4
Ver o trabalho de Hugh Lyntton e David Romney (1991).
014 Lisboa, CIG, 2012
24. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
pelos trabalhos de Janet Spence (1985;
1993), que o considera de natureza
multidimensional e o explica recorrendo “ várias alíneas. Estão género tem duas partes
e
A minha definição de
interligadas mas são
aos princípios do desenvolvimento
analiticamente distintas. O cerne da definição
humano. Quer isto dizer que ao falarmos
reside numa relação completa entre duas
de género nos referimos a um conjunto
proposições: género é um elemento constitutivo
de componentes, que incluem, para citar das relações sociais baseadas nas diferenças
apenas algumas, a identidade de género, visíveis de sexo e género é uma forma primária de
a orientação sexual, os papéis de género, nos referirmos a relações de poder. (…) Enquanto
as características da personalidade, as elemento constitutivo das relações sociais
competências pessoais e os interesses. baseadas nas diferenças sexuais, género engloba
quatro elementos intimamente ligados: primeiro,
No entender da autora atrás citada, os símbolos disponíveis numa determinada
os aspetos que contribuem para a cultura que evocam múltiplas (e frequentemente
contraditórias) representações – por exemplo,
diferenciação de cada fator integrante
Eva e Maria como símbolos de mulher na
do género possuem histórias de
tradição cristã ocidental. (…) Segundo, conceitos
desenvolvimento idiossincráticas sempre
normativos que avançam interpretações dos
distintas de pessoa para pessoa e são sentidos dos símbolos, que tentam limitar e
influenciados por uma multiplicidade de conter as suas possibilidades metafóricas. Estes
variáveis não necessariamente relacionadas conceitos são expressos pelas doutrinas religiosas,
com o género. Para além disso, durante os educativas, científicas, legais e políticas e mantêm
diferentes períodos da vida de cada sujeito, tipicamente a forma de oposições binárias
os fatores que integram o género podem fixas, que estabelecem de maneira categórica e
apresentar graus e tipos de associação inequívoca os significados de homem e mulher,
variados entre si. masculino e feminino. (…) O terceiro aspeto
O comportamento exibido (por homens e (...) inclu[i] não só os laços de parentesco como
também (...) o mercado de trabalho (…), o sistema
mulheres) resulta da interação complexa
educativo (…) e o sistema político (…). O quarto
das suas diversas componentes de género.
aspeto do género é a identidade subjetiva.
Por este motivo, é possível observar uma
A primeira parte da minha definição de género
considerável variabilidade – intrasexo e contém, portanto, estas quatro vertentes e
entre o sexo feminino e o masculino – nenhuma delas funciona independentemente de
quanto à constelação de características qualquer das outras. Contudo elas não funcionam
congruentes com o género que cada em simultâneo, como se uma fosse simplesmente
pessoa é suscetível de manifestar nas o reflexo das outras. (…) O que me proponho é
diferentes situações que tiver de enfrentar. tornar clara e objetiva a forma como devemos
É ainda fundamental salientar, como analisar a influência do género nas relações
referiram Susan Egan e David Perry (2001), sociais e institucionais uma vez que esta análise
que a consistência com que os homens e não é, na maior parte dos casos, feita de forma
precisa e sistemática. Uma teoria sobre género
as mulheres apresentam comportamentos
é portanto desenvolvida na minha segunda
típicos de género, em diferentes dimensões
formulação: género é uma forma primária de
(por exemplo: papéis de género, orientação
demonstração das relações de poder. Ou, melhor
sexual), poderá ser apenas modesta. dizendo, o género é o primeiro domínio com o
Mas esta visão psicológica do género
constitui simplesmente um dos múltiplos
qual ou através do qual o poder se articula.
Joan Scott, 2008: 66-67 (adaptado)
”
contributos que diferentes áreas do saber
têm trazido para o debate, havendo
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 015
25. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
outras perspetivas feministas (mais críticas – e A tendência do pensamento de senso comum
aparentemente opostas àquelas) que defendem é para uniformizar a caracterização das
o seu relativismo e a sua natureza situacional.
diferentes componentes de género de
uma pessoa, a partir do conhecimento de
Hoje em dia a perspetiva feminista mais
crítica e mais próxima das perspetivas apenas uma delas. Na sequência de estudos
pós-modernas recusa a possibilidade de efetuados por Key Deaux e Melissa Kite
discursos universalizantes e generalizáveis (1993), foi observado que é uma crença
acerca do género. Esta perspetiva desafia corrente que as mulheres com uma
o caráter natural da diferença de género,
orientação homossexual apresentam
sustentando que todas as características
sociais significativas são ativamente criadas características típicas dos homens e que os
e não são nem biologicamente inerentes, homens com uma orientação homossexual
nem permanentemente socializadas ou tendem a exibir comportamentos ditos
estruturalmente predeterminadas. Segundo femininos, o que não corresponde à
este ponto de vista, o género não é apenas
realidade nem traduz a diversidade
algo que a sociedade impõe aos indivíduos.
de características de uma pessoa,
Mulheres e homens escolhem certas opções
comportamentais e ignoram outras e, ao fazê- independentemente da sua categoria
-lo, elas e eles fazem o género. Pode dizer- sexual.
-se fazer o género, isto é, comportar-se de
maneira que, seja qual for a situação, sejam Na tentativa de contrariar práticas
quais forem os atores, o comportamento dos erróneas e discriminatórias para
homens e das mulheres seja visto, em cada ambos os sexos, o compromisso básico
contexto, como adequado às expectativas de de todas as feministas, em diferentes
género socialmente delineadas para cada um
domínios do conhecimento, tem sido a
dos sexos. Nesta sequência, acredita-se que o
luta pela permanente erradicação das
género é performativo5.
desigualdades de género, tentando acabar
Este entendimento6 sobre o que é o género com os enviesamentos que prejudicam as
ajuda a reconciliar os resultados empíricos, mulheres, mas também os homens.
de que mulheres e homens são mais similares
que diferentes na maioria dos traços e constrangimentos e expectativas podem ser
competências, com a perceção comum de que condicionados a tomar decisões distintas
parecem comportar-se de forma diferente. relativamente ao seu repertório de opções.
Com efeito, mulheres e homens ainda Desta forma, ao agirem em aparente
que tenham as mesmas competências, conformidade com o que é esperado para as
ao enfrentarem diferentes circunstâncias, pessoas do seu sexo, acabam por reafirmar
5
Para um desenvolvimento suplementar deste assunto, ver os trabalhos de Judith Butler (1990; 2002; 2006).
6
Segundo Chris Beasley (1999), trata-se de uma visão influenciada pelo chamado construcionismo social, o qual apareceu
como resposta alternativa à epistemologia positivista, que defendia a existência de uma verdade fundamental na explicação
de todos os fenómenos, a qual era possível apurar através da razão. Contrariando esta posição, para os construcionistas
sociais são defensáveis, como escreveram Sara Davies e Mary Gergen (1997), os seguintes pressupostos: 1) O
conhecimento é socialmente construído; 2) Não existe uma versão única da verdade; 3) Os significados são constituídos
através do discurso; 4) Os indivíduos são vistos como passíveis de expressões múltiplas.
016 Lisboa, CIG, 2012
26. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
os arranjos baseados nas categorias sexuais Passados cerca de quarenta anos desde que o
como sendo naturais, fundamentais e imutáveis, género foi identificado como uma categoria de
legitimando consequentemente a ordem social. análise, sabe-se que muito está por conseguir
no que diz respeito à igualdade entre homens e
Poder-se-ia então imaginar que a simples
mulheres e às assimetrias de poder material e
mudança na forma como homens e mulheres simbólico daí recorrentes nas diversas esferas
fazem o género poderia ser o caminho para a da vida. Com base em ideias sem qualquer
transformação. No entanto, é importante ter em suporte científico, a família e todos os restantes
atenção que os constrangimentos institucionais, agentes de socialização continuam a educar
a hierarquia social e as relações sociais de poder de maneira diferente o rapaz e a rapariga para
limitam a capacidade de ação dos indivíduos. o desempenho dos mais variados papéis ao
longo da vida, como se a diferenciação biológica
determinasse as características pessoais,
as oportunidades de desenvolvimento e os
“ Longe de afirmar que as estruturas
de dominação são a-históricas, tentarei
percursos de vida de uns e de outras.
estabelecer que são um produto de um
trabalho incessante (portanto histórico)
de reprodução para que contribuem
agentes singulares (…) e instituições, “ O ofundamental e na feminino não
entre masculino o
diferenciação
Pierre Bourdieu, 1999: 30.
”
famílias, Igreja, Escola, Estado.
são os atributos que, aparentemente,
os distinguem (…) mas sim o facto
dos conteúdos que definem a
masculinidade estarem confundidos
com outras categorias supraordenadas,
como a de pessoa adulta, enquanto os
Deste modo, podemos afirmar que é o significados femininos definem apenas
reconhecimento de que o género resulta de uma um corpo sexuado. É neste processo
construção social que nos permite compreender de construção social que o simbolismo
como a discriminação continua, apesar de todo masculino se constitui como referente
o trabalho de cientistas feministas – os/as quais, universal relativamente ao feminino
minimizando ou maximizando as diferenças, que permanece marcado pela categoria
esperavam contribuir para a eliminação das
desigualdades de género na sociedade, tanto
sexual.
”
Lígia Amâncio, 2002: 59.
nos espaços públicos como no domínio privado.
“ A categoria analíticaos aspetos relacionaismaisconstruçãoem Portugal nos anos 90 [do séc. XX],
tendo como nó fulcral
de género tornou-se
da
presente
social do feminino (e do masculino).
Tornou-se numa palavra passe-partout, nomeadamente na sua emigração e tradução em contextos
institucionais cuja utilização – nessa tradução institucionalizada – é muitas vezes indevida, por
escamotear a crítica que essa categoria analítica implica, podendo-se fazê-la ‘despolitizar’ a luta das
mulheres.
”
Teresa Joaquim, 2004: 89.
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 017
27. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
Daí que seja imperativo falar de género quando contextos formais de ensino na manutenção
se quer promover uma cidadania ativa. Na de uma ideologia de género adotada pelo
realidade, o género deve ser encarado como um coletivo e assumida como inquestionável,
dos princípios organizadores da construção do ainda que naturalize hierarquias de poder
percurso individual de cada cidadã ou cidadão, e legitime situações de desigualdade entre
na formação das respetivas competências homens e mulheres. Correndo-se o risco de
para o exercício pleno da cidadania. Em deixar de fora deste elenco muitas pesquisas
qualquer sociedade, as crenças associadas importantes de cientistas portuguesas/es
ao género tendem a constituir, para ambos empenhadas/os no estudo das questões de
os sexos, normas – muitas vezes silenciosas género e da sua ligação ao que se passa na
– condicionantes da formação de valores e escola, citem-se, por exemplo, os trabalhos
de atitudes, com influência directa na auto e sobre os estereótipos de género nos Manuais
hetero avaliações das variadas expressões Escolares, adotados oficialmente no ensino
comportamentais e nos desafios que uns e básico, de Eugénio Brandão (1979), Ivone
outras acreditam serem capazes de enfrentar Leal (1979), Maria Isabel Barreno (1985), José
com sucesso. Paulo Fonseca (1994), Fernanda Henriques e
Teresa Joaquim (1995), Maria de Jesus Martelo
(1999) e Anabela Correia e Maria Alda Ramos
(2002); a investigação de Teresa Alvarez Nunes
“ Incorporámos, sob ade forma de
esquemas inconscientes perceção
(2007) sobre as representações de cidadania
associadas ao masculino e ao feminino nos
e de avaliação, as estruturas históricas
Manuais de História e no software educativo
da ordem masculina; arriscamo-nos
portanto a recorrer, para pensar a utilizados no ensino secundário; o trabalho de
dominação masculina, a modos de Luísa Saavedra (2005) sobre a aprendizagem
pensamento que são eles próprios
produtos da dominação.
”
Pierre Bourdieu, 1999: 30.
“ ensino misto não semostrado que
o
As investigações têm
substanciou
em práticas educativas conducentes
A investigação em torno das diferentes à transformação das relações sociais
problemáticas do género, impulsionada, de género no processo de socialização
como se disse atrás, pelo pensamento e e de construção da identidade de
movimentos feministas, e produzida com raparigas e de rapazes. Constata-se a
maior intensidade desde as décadas finais persistência de estereótipos de género,
do século XX, chamou a atenção para a seja nos materiais pedagógicos, seja
complexidade cultural dos estereótipos de nas interações no espaço escolar,
género, para o caráter imbricado das ideias que sustentam um imaginário social
que representa assimetricamente as
associadas à masculinidade e à feminilidade e
identidades feminina e masculina e
para as arbitrariedades advindas da promoção
reproduz expectativas diferenciadas
e manutenção de um raciocínio dicotómico,
para raparigas e rapazes no que respeita
conformista e alicerçado em estereotipias. às várias dimensões da sua vida presente
Estudos portugueses desenvolvidos,
sensivelmente desde essa altura, também ”
e futura.
Teresa Pinto, 2007: 142.
já colocaram em evidência, por exemplo, o
papel dos recursos pedagógicos utilizados em
018 Lisboa, CIG, 2012
28. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
promovida pelo currículo e pela organização didáticos, quer nas interpretações que fazem do
escolar do que é ser rapaz ou ser rapariga; a comportamento dos pais e das mães.
pesquisa de Laura Fonseca (2001) sobre as
subjetividades na educação das raparigas; No que diz respeito à fraca representação das
e o trabalho de Teresa Pinto (2008) sobre a raparigas em profissões não tradicionalmente
associação (historicamente construída) do femininas, um trabalho realizado por Luísa
ensino industrial ao sexo masculino. Saavedra (1997) deixa antever grandes
dificuldades a médio prazo na alteração
No que concerne ao que se passa no nível dos estereótipos de género associados às
pré-escolar, uma investigação recente de
profissões, pois esta mudança parece exigir
Fernanda Rocha (2009) mostrou que os/as uma modificação ideológica das representações
educadores/as de infância são também
associadas à posição social do grupo feminino
propensos/as ao uso de estereotipias de face ao grupo masculino.
género, quer na organização dos espaços
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 019
29. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
1.1.2.
O género como categoria
social
O
género é uma das primeiras de a criança ter capacidade de expressar
categorias que a criança aprende, por palavras o seu pensamento. Todavia, ao
facto que exerce uma influência longo dos anos subsequentes são múltiplas as
marcante na organização do influências que podem ocorrer susceptíveis de
seu mundo social e na forma como se avalia afectar quer o desenvolvimento posterior das
a si própria e como percepciona as pessoas várias componentes do género, quer as suas
que a rodeiam. Para corresponder às normas manifestações situacionais. Por esse motivo,
sociais, e como parte integrante do processo numa situação particular uma rapariga pode
de socialização, a criança aprende a comportar- exibir um comportamento habitualmente mais
-se de acordo com os modelos dominantes de comum nos rapazes e vice-versa.
masculinidade e de feminilidade. Este processo
é movido por uma complexa interacção entre os A análise da composição sexual dos grupos
factores individuais e contextuais, neles incluindo de crianças formados por iniciativa própria em
a relação com o pai e a mãe, os(as) amigos/as, situações lúdicas fornece dados que destacam
os/as educadores/as/professores/as e outras a importância do género enquanto categoria
pessoas significativas. social, especialmente durante a primeira década
de vida. Sobrepondo-se a outras características
Algumas investigações no domínio da psicologia individuais como a etnia ou a raça, o sexo surge
têm mostrado que as crianças iniciam o como um dos principais critérios na escolha de
processo de desenvolvimento respeitante ao um/a potencial companheiro/a de brincadeiras,
género (e a categorização de si e dos outros por parte da criança8. Assim, por exemplo,
daí decorrente) muito antes de tomarem um rapaz branco de quatro anos brinca mais
consciência do seu sexo, ou seja, dos seus prontamente com um rapaz negro do que com
órgãos genitais7. Janet Spence (1985) defende uma rapariga branca da mesma idade.
mesmo que o núcleo central da identidade de
género começa a consolidar-se, em crianças É importante referir que durante a infância
de ambos os sexos, ainda numa fase pré- a distinção entre os sexos remete para a
-verbal do desenvolvimento, ou seja, antes prevalência, no pensamento da criança, de duas
7
Ver, a este respeito, os trabalhos de Diana Poulin-Dubois e colegas (1994), de Teresa Alário Trigueiros e outros/as autores/
as (1999) e de Ana da Silva e e outros/as autores/as (1999), tendo estes dois últimos livros sido publicados pela Comissão
para a Igualdade e para os Direitos das Mulheres, no âmbito dos Cadernos Coeducação.
8
Ver os estudos citados por Carole Beal (1994) que se debruçaram sobre este comportamento sexista das crianças.
020 Lisboa, CIG, 2012
30. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
categorias básicas (binárias): a dos homens e brincadeiras;
a das mulheres, categorias essas directamente
ligadas a um processo prévio de categorização d) É maior em situações não
social que teve como fundamento as diferenças estruturadas por adultos, como é o
físicas aparentes entre os sexos. caso dos refeitórios escolares, do que
em contextos mais formais, como sejam
Uma segunda distinção – assente na primeira,
as salas de aula;
porém, de contornos mais indefinidos – é a que
resulta da aplicação dos conceitos de masculino e) Não tem a ver com juízos de valor
e de feminino. Na realidade, um indivíduo pode sobre o maior ou menor poder social
ser mais ou menos masculino, mas não pode detido pela criança, em virtude da sua
ser mais ou menos homem, como escreveu
pertença a um ou a outro sexo, ou de
Eleanor Maccoby (1988). Esta segunda
dicotomia reveste-se de uma importância menor
papéis específicos de género por ela
na compreensão do comportamento social da desempenhados;
criança, até porque faz apelo a determinadas
f) É uma tendência que parece começar
capacidades cognitivas mais abstractas, que ela
por volta dos dois anos de idade,
ainda não possui.
continuar durante a fase pré-escolar
O interesse científico pela compreensão do e intensificar-se nos anos seguintes da
fenómeno da preferência explícita das crianças infância, entre os 6 e os 11 anos;
pelo estabelecimento de interacções com outras
do mesmo sexo deu origem ao desenvolvimento
g) É um fenómeno que se manifesta
de numerosas investigações9. Entre outras de forma equivalente em estudos
conclusões dignas de relevância, foi observado realizados em diferentes culturas.
que a predisposição das crianças para a
segregação sexual: Para explicar a segregação dos sexos
observada na infância, Carole Beal (1994)
a) É um processo grupal, pois apresenta duas ordens de razões. Em primeiro
lugar, afirma que as crianças preferem brincar
não depende das características
com outras do mesmo sexo em virtude
particulares exibidas por cada criança
da semelhança mútua, ao nível dos estilos
ou do seu grau de tipificação de de interacção. Em segundo lugar, fala da
género; necessidade individual de desenvolvimento da
identidade de género que conduz as crianças
b) Ocorre em ambos os sexos, mas
a procurar contactar, preferencialmente, com
tende a aparecer mais cedo nas outras parecidas consigo, isto é, outras que
raparigas; correspondam aos modelos aprendidos do que
“é ser rapaz” ou “ser rapariga”. Como escreveu
c) Tende a ser tanto mais intensa
Beverly Fagot (1985), para que a criança inicie o
quanto maior for o número de
desenvolvimento de algumas regras associadas
crianças do mesmo sexo e da mesma ao género basta aprender a designar a categoria
idade disponíveis para participar nas sexual a que pertence. Também a este respeito,
9
Consultar, por exemplo, Eleanor Maccoby (1998) para uma visão abrangente dos resultados destes estudos.
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 021
31. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
Eleanor Maccoby (1988) defendeu que as As diversas pesquisas sobre a importância
crianças escolhem brincar com outras do do género no desenvolvimento da criança,
mesmo sexo porque o processo cognitivo de embora nem sempre tenham conduzido a
categorização social, por elas efectuado, é de conclusões plenamente coincidentes, parecem
tal maneira forte que a sua opção, a este nível, no entanto reunir consenso quanto a dois
deve ser encarada como parte integrante da aspectos particulares. A manifestação de
formação da identidade de género. comportamentos típicos de género durante
os primeiros anos de vida tende a preceder
(1) o desenvolvimento de uma compreensão
A medida em que determinada pessoa sofisticada sobre o género, ou seja, sobre os
modelos de masculinidade e de feminilidade
se mostra em conformidade com os
culturalmente dominantes10 e (2) a consolidação
papéis de género que lhe são socialmente da identidade de género11. Como veremos
prescritos, em virtude de ter nascido a seguir, este último aspecto é algo que
do sexo masculino ou feminino, é o que se estende no tempo, sobretudo ao longo
dos primeiros sete anos de vida. O grau de
se designa por tipificação de género.
complexidade das explicações apresentadas
De forma mais sintética, Sandra Bem pelas crianças para os comportamentos de
(1981) defende que tal conceito traduz género e para a avaliação dos mesmos em si e
nas outras pessoas depende directamente do
o processo, através do qual a sociedade
desenvolvimento das capacidades intelectuais,
converte as noções de macho e de fêmea as quais se tornam progressivamente mais
em masculino e feminino. complexas com a idade em ambos os sexos.
10
Ver Diana Poulin-Dubois, Lisa A. Serbin e Alison Derbyshire (1994).
11
Ver Valerie Edwards e Janet T. Spence (1987).
022 Lisboa, CIG, 2012
32. ENQUADRAMENTO TEÓRICO | Género e Cidadania
1.1.3.
A formação da identidade de
género
F
oram várias as posições teóricas ensino pré-escolar e ao terceiro ciclo do ensino
desenvolvidas durante o séc. básico, e abrangendo, portanto, quer crianças
XX que tentaram esclarecer muito novas (a partir dos três anos de idade),
o processo de formação da quer adolescentes, optámos por apresentar
identidade de género. Com o intuito de dar nesta secção do capítulo uma visão psicológica
uma certa organização teórica e conceptual sobre a formação da identidade de género, que
às mesmas Susan Freedman (1993) reúne-as a perspectiva como intrinsecamente ligada ao
em duas classes distintas. A primeira (onde desenvolvimento humano em outros domínios
inclui, por exemplo, as ideias psicanalíticas (cognitivo, emocional e social). Esta opção não
e evolucionistas) agrega teorias que tentam significa, contudo, que outras abordagens mais
explicar as possíveis causas das diferenças críticas e reflexivas – como aquelas que são
entre os sexos. Trata-se de saber por que é influenciadas pelo construccionismo social ou
que os sexos podem apresentar diferenças.
A segunda categoria agrupa as teorias (como
as da aprendizagem social, teorias cognitivo-
Partindo de estudos realizados com
-desenvolvimentistas e teorias da interacção
crianças e adolescentes, Susan Egan e
social) que abordam os processos conducentes
à observação das diferenças entre homens e David Perry (2001) apresentaram uma
mulheres. Neste caso, a preocupação dos(as) possível definição de identidade de género
respectivos/as autores/as gira em torno de com recurso a quatro proposições teóricas.
como é que os sexos enveredam por formas No seu entender, a identidade de género
distintas de comportamento. abrange:
Como se disse anteriormente, a coexistência “(a) A tomada de consciência individual da
de diferentes perspectivas e o recurso a pertença do sujeito a uma das categorias
metodologias de análise distintas sobre de género;
o género – e as suas implicações para a
(b) A sensação de compatibilidade com
organização da vida pessoal e social das
um dos grupos formados a partir da
mulheres e dos homens – tornam difícil a
tarefa de apresentar princípios explicativos e categorização anterior (…);
modelos que reúnam unanimidade entre as e (c) O sentir-se pressionado/a a estar em
os especialistas e que espelhem a riqueza e conformidade com a ideologia de género;
complexidade das abordagens.
(d) O desenvolvimento de atitudes para
Sendo este Guião destinado principalmente ao com os grupos de género” (p. 451).
por: Cristina Vieira (coord.), Conceição Nogueira e Teresa Cláudia Tavares 023
33. GUIÃO DE EDUCAÇÃO.
GÉNERO E CIDADANIA 2 Ciclo
pelos feminismos radicais, corte de cabelo, de tamanho de compreensão geral do
cuja análise tende a centrar- e forma do corpo) do que mundo em que vive e do seu
-se na compreensão das as diferenças relativas aos papel no mesmo.
múltiplas determinantes dos órgãos genitais. É partindo da
comportamentos dos homens constatação destas distinções Neste enquadramento, por
e das mulheres na vida adulta entre pessoas adultas que volta dos dois/três anos a
– sejam vistas como menos a criança se inclui num dos criança está apta a designar
interessantes ou com menor grupos (isto é, se classifica correctamente o seu género.
valor heurístico. Apenas por como do sexo masculino ou Todavia, a formação da
uma questão prática não serão do sexo feminino) e começa, identidade de género, que
aqui referenciadas. inevitavelmente, a fazer se estende, como se disse,
avaliações da realidade. aproximadamente dos 2 aos 7
Na psicologia, a perspectiva anos de idade, é um processo
cognitivo-desenvolvimentista Para Kolhberg, as ideias da que acompanha a transição
– onde merece especial criança acerca dos papéis para o período das operações
destaque o pioneirismo do dos homens e das mulheres concretas13 e durante o qual a
pensamento de Lawrence são determinantes para a criança é capaz de começar
Kolhberg (1966) – reconhece exibição de comportamentos a compreender determinadas
à criança um papel activo na consonantes com os categorias sociais – como é o
construção da sua identidade modelos dominantes caso do género.
de género e a impossibilidade de masculinidade e de
de dissociar este processo feminilidade; e a motivação As ideias de Lawrence
do próprio desenvolvimento para a aprendizagem desses Kolhberg (1966) a respeito
das capacidades intelectuais. mesmos papéis resulta da do papel da motivação no
Considerando o ciclo de vida, sua necessidade individual desenvolvimento do género
e salientando a importância de se identificarem com reuniram grande consenso
da interacção social entre um dos grupos. Por esse na comunidade científica.
as crianças de ambos os motivo, acredita que durante Na sua opinião, para que a
sexos destacada por Key o processo de formação criança se sinta motivada a
Bussey e Albert Bandura da identidade de género valorizar os outros do mesmo
(1999), pode afirmar-se que a criança é capaz de sexo e inicie o processo
a primeira etapa do processo compreender o género, em de ensaio/imitação dos
de desenvolvimento das vez de, simplesmente, imitar comportamentos, tem de estar
diferentes dimensões do o comportamento daqueles assegurada a estabilidade do
género consiste na formação que são do mesmo sexo que seu género; ou seja, tem de
da identidade de género. o seu. Assim, a progressiva ter consciência de que ainda
Ao observar o mundo das compreensão que a criança que algumas características
pessoas adultas, para as evidencia acerca do que é o externas ou o próprio
crianças são muito mais género está intrinsecamente comportamento, exibido em
aparentes as diferenças ligada ao seu desenvolvimento situações particulares, venham
exteriores (de vestuário, de cognitivo12, isto é, ao seu nível a sofrer modificações, o sexo
12
Ver os trabalhos de Jeanne Brooks-Gunn e Wendy Matthews (1979).
13
Em virtude da saliência do género na organização da vida individual, Diana Ruble e Carol Martin (1998) defendem que a
‘conservação da categoria sexual’ pode ser considerada uma das primeiras manifestações de pensamento operatório por
parte da criança.
024 Lisboa, CIG, 2012