1. Cultura com muitas aspas
Em nova obra, Manuela Carneiro da Cunha retoma, na antropologia, o problema
filosófico da possibilidade de comunicação
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI
COLUNISTA DA FOLHA
Manuela Carneiro da Cunha é uma grande antropóloga. O vigor de sua militância em
favor dos povos indígenas entremeia seu pensamento com a prática política.
Se não fosse estreito o espaço de que aqui disponho, gostaria de comentar mais a fundo
seu novo livro "Cultura com Aspas". Mas, para não ficar alheio ao diálogo que esse
livro haverá de provocar, limito-me a tecer algumas considerações a respeito dos
problemas sugeridos pelo título.
O conceito de cultura é usado pelos antropólogos com muita cautela.
Depois das devidas ressalvas, Carneiro da Cunha passa a distinguir entre cultura e
"cultura", vale dizer, em termos muito imprecisos, um complexo unitário de
pressupostos, modos de pensamento, hábitos etc. que, sem resistência, influenciam os
humanos, e o modo de se falar desse complexo.
No entanto, essa clássica distinção entre uso e menção, demarcada pela diferença entre
linguagem e metalinguagem, lhe serve tanto para refletir sobre o caráter reflexionante
da cultura como para justificar práticas políticas.
Já que certos conhecimentos de povos tradicionais passaram a ser ditos e objetivados, e
assim caem no circuito da exploração capitalista, nada mais justo que esses povos
recebam parte dos lucros criados.
Notável é a análise que desenvolve de como muitos desses povos já se reportam a suas
respectivas culturas e formas de conhecimentos de tal modo que elas apareçam como
algo objetivado, quase sempre participando de um sistema de trocas.
Mais interessante ainda é a descrição de como tais povos vão tecendo um sistema de
representação que lhes permita dialogar com o Estado nacional e o sistema
internacional.
No entanto, precisamente o êxito de sua análise me leva a desconfiar do reiterado
emprego que faz da distinção entre linguagem e metalinguagem, semântica e
metassemântica e assim por diante.
Sua reflexão está calcada numa das dificuldades da lógica formal contemporânea.
Quando uma linguagem é reflexiva, isto é, permite a fala de si mesma, abrem-se as
portas para os paradoxos. O mais famoso já era conhecido pelos antigos.
Quando um cretense diz "todos os cretenses são mentirosos", está ele falando a verdade
ou está mentindo?
Ascensão dos paradoxos
Os filósofos antigos, com a exceção dos megáricos, não cuidavam muito dos paradoxos
porque, no fundo, para eles a verdade sempre teria mais peso do que a falsidade, de
sorte que a luz das ideias e das formas prevaleceria sobre as limitações dos humanos.
Os paradoxos, entretanto, passaram a infernizar a lógica depois que ela se tornou
matemática.
Mas, para isso, a proposição declarativa precisou ser definida como uma função cujos
argumentos lhe dariam um dos dois valores de verdade, o verdadeiro e o falso, ambos
colocados no mesmo plano formal. Se a cada função corresponde um conjunto, é
possível traduzir o paradoxo do mentiroso na nova teoria: existe o conjunto de todos os
2. conjuntos que não se incluem a si mesmos?
Depois que Bertrand Russell [1872-1970] descobriu esse furo no sistema lógico de
Gottlob Frege [1848-1925], os matemáticos têm arrancado seus cabelos para tentar
resolver ou pelo menos limitar os efeitos perversos do paradoxo.
Até que, na década de 1930, Kurt Gödel veio demonstrar que um sistema lógico ou é
completo, isto é, tudo pode dizer com seus recursos elementares -mas então incorre em
paradoxos-, ou é incompleto -deixa de poder dizer coisas para manter sua coerência. E
os sistemas completos formais são em geral muito pobres.
Manuela opta pela completude: "Mas só lógicos e advogados exigem coerência. A
escolha do senso comum privilegia a completude, e é por isso que nós, antropólogos,
que lidamos com o senso comum, estamos mais interessados em linguagens completas.
Assim como quase todo o mundo, incluindo-se os índios do Brasil".
"É por isso que é em plena consciência, e em concordância com uma convenção
clássica, que opto por colocar "cultura" entre aspas quando me refiro àquilo que é dito
acerca da cultura" (pág. 358).
Imagens do mundo
Mas a completude da linguagem do senso comum possui o mesmo sentido da
completude de uma linguagem formal?
Dois filósofos o negam peremptoriamente: Martin Heidegger e Ludwig Wittgenstein,
por razões opostas, mas não desencontradas.
Em seus últimos escritos, Wittgenstein compreende que a clássica questão do logos não
se esgotava na calculabilidade matemática. A lógica proposicional opera com variáveis -
"p", "q" etc.- determinadas por seus dois valores de verdade. Ora, "p" é sinal de uma
proposição e não é por isso que explora todas as dimensões de um enunciado
declarativo e do juízo correspondente.
Tomemos um jogo de linguagem não verbal para radicalizar a questão.
Numa encruzilhada, uma flecha indica as direções opostas "Rio" e "São Paulo". Já que
os comportamentos passam a ser medidos como adequados ou inadequados em relação
à intenção dos viajantes, esse complexo forma um jogo de linguagem. Nele, a flecha é
tanto um objeto como padrão de medida, vale dizer, "flecha".
Não é de forma semelhante que se integram os elementos de uma cultura? Não se
aglutinam num conjunto, mas tecem um mundo e uma imagem de mundo.
Não é à toa que os filósofos, depois da crise da fenomenologia e da crise da filosofia
analítica, recorrem ao conceito de "mundo da vida".
E, se estamos no mundo, como quer Heidegger, ou falamos de tal modo que uma
imagem do mundo se projeta a partir de nossa fala, como quer Wittgenstein, o ser si
mesmo ou ser outro dependem de um jogo em que o eu, o tu e o ele falam e/ou são
falados.
Os seres humanos estão no mundo e falam tendo um mundo no horizonte, por mais que
tais mundos possam ser diferentes. É possível compreender a complexidade da cultura
sem esse jogo da diferença e da identidade objetivante?
JOSÉ ARTHUR GIANNOTTI é professoremérito da USP e pesquisadordo Centro Brasileiro de
Análise e Planejamento. Escreve na seção "Autores",do Mais! . jagiannotti@uol.com.br
CULTURA COM ASPAS
Autora: Manuela Carneiro da Cunha