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Todos os direitos reservados. Se proíbe reproduzir este livro em sua totalidade ou
parcialmente, em qualquer forma ou formato. / All rights reserved, including the
right to reproduce this book or portions there of any form whatsever.
1ª tiragem – agosto de 2016 – 100 exemplares
Coordenação Editorial: Víctor Gonzales – VGL Publishing
Diagramação: Diego Rodri
Capa: Diego Rodri
Supervisão Editorial: Júnia Keiko Matsuura Mearim
Supervisão de Conteúdo: Adriana Rodrigues Domingues
Entrevistas, transcrição e organização: Luana de Freitas Garcia
Tradução: Nanci Adela Kirinus
Revisão de Textos: Adriana Rodrigues Domingues, Felix Claudio Mendoza
Achumiri, Flaubert Castro Arela, Franz Mijail Sanabria Galván, Lucia Ireyo
Raimundo, Miguel Angel Saavedra Aguilar, Veronica Quispe Yujra
Ilustração: Nathalia Ju Hyun Jin
Fotografia: Flaubert Castro Arela, Luana de Freitas Garcia, Miguel Angel
Saavedra Aguilar
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP)
(Daniela Momozaki – CRB8/7714 )
G216 Garcia, Luana de Freitas (org.)
Histórias que se cruzam na Kantuta/organização de Luana de Freitas
Garcia; supervisão de Dra. Adriana Rodrigues Domingues; tradução de
Nanci Ade la Kirinus; ilustração de Nathalia Ju Hyun Jin São Paulo: VGL
Publishing, 2016.
ISBN 978-85
1. Territorialidade urbana - São Paulo 2. Geografia humana - São Paulo
3. Imigrantes - São Paulo 4. Sociologia urbana I. Garcia, Luana de Freitas II. Título
CDD 307.76098161
Índice para o catálogo sistemático
1. Territorialidade urbana: 307.76098161
Trabalho apresentado para o Coletivo Sí, Yo Puedo! como projeto de intervenção
do estágio em Psicologia Comunitária do curso de Psicologia da Universidade
Presbiteriana Mackenzie.
Felix Claudio Mendoza Achumiri
Flaubert Castro Arela
Franz Mijail Sanabria Galván
Lucia Ireyo Raimundo
Miguel Angel Saavedra Aguilar
Veronica Quispe Yujra
Narradores
PREFÁCIO - OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS
Luana de Freitas Garcia
“E eu, também posso?”
Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e
Luana de Freitas Garcia
SÃO PAULO É O RETRATO DO MUNDO
Felix Claudio Mendoza Achumiri
PALAVRAS QUE SAEM COMO FACAS
Flaubert Castro Arela
UMA OUTRA IMAGEM DO BRASIL
Franz Mijail Sanabria Galván
AQUI É TUDO MUITO LONGE!
Lucia Ireyo Raimundo
LIVRE ATÉ DE SI MESMO
Miguel Ángel Saavedra Aguilar
AH É? TEM QUE FAZER?
Veronica Quispe Yujra
05
07
15
22
30
36
41
50
sumário
5Histórias que se cruzam na kantuta
OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS
	 Este livro conta as histórias de seis imigrantes, cinco
bolivianos e um peruano, que viviam em São Paulo no ano de 2015.
Narra os percursos feitos por eles até chegarem ao Brasil e também
relata como se deu o contato e a inserção no novo país.
	 O título Histórias que se cruzam na Kantuta faz referência
à Praça Kantuta, local frequentado por todos esses narradores.
A praça é um ponto de encontro de imigrantes, bolivianos em
sua maioria, e é onde ocorre uma feira gastronômica, todos os
domingos, numa tentativa de preservar a identidade cultural destes
que vêm ao Brasil em busca de trabalho e melhores condições de
vida. Kantuta é o nome de uma flor típica do altiplano andino e suas
cores – verde, amarelo e vermelho – colorem a bandeira da Bolívia.
	 Na Praça Kantuta também se localiza a tenda do coletivo
Sí, Yo Puedo! (SYP), ligação existente entre os narradores e eu, que
– com supervisão da professora Adriana Rodrigues Domingues –
registrei e transcriei estas histórias. Isto se tornou possível porque
o SYP firmou uma parceria com a Universidade Presbiteriana
Mackenzie, de modo que nós, estudantes de Psicologia do último
ano, podíamos realizar o estágio de Psicologia Comunitária no
Coletivo.
	 Durante o período de estágio, observei no discurso da
comunidade atendida pelo SYP, que era importante para o imigrante
ser porta-voz de sua própria história, como um sujeito que tem
muito a dizer sobre a realidade que vivencia. Nesta publicação, ao
optar por dar voz ao imigrante, não enquadrei seu discurso em
normas e padrões da língua do país de origem ou do país receptor.
Os relatos orais transcritos não obedecem um padrão formal, mas
estão llenos de conteúdo. Um conteúdo em que começo, meio e fim
se confundem, uma vez que memórias não vêm de maneira linear e
coerente.
prefácio
6 Sí, yo puedo!
	 Assim, resgatando as experiências e as memórias dos
imigrantes que se disponibilizaram a relatar os caminhos que
percorreram como emigrantes e imigrantes, desde o momento
em que decidiram deixar seus lares, famílias e amigos, para
se enraizarem em outras terras, também pensei, senti e vivi
uma experiência valiosa, que ampliou minha visão de mundo,
proporcionando-me um intenso aprendizado e uma autêntica
experiência intercultural.
	 Recontar suas histórias em primeira pessoa, reproduzir
seus falares ainda no processo de apropriação do novo idioma é
reconhecer-lhes e respeitar o direito de contarem suas próprias
histórias. É, também, uma forma de dar visibilidade às dificuldades
que o imigrante enfrenta ao se inserir em uma terra estrangeira e
mostrar as contribuições deste, à nossa cultura.
	 Entendendo a dificuldade no aprendizado da Língua
Portuguesa, pensei que as histórias aqui contadas poderiam
atingir melhor a comunidade imigrante se pudessem ser lidas
independente da apropriação que uma pessoa possui do idioma
falado no Brasil, daí a necessidade de se contar estas histórias de
vida também no idioma espanhol.
	 As histórias resgatadas se cruzam na Praça Kantuta, mas
se encontram e dialogam no SYP, por isso considerei essencial
acrescentar ao livro outra história, que não foi registrada por meio
de entrevistas gravadas, mas que foi vivenciada pelos narradores,
voluntários, população atendida, pela idealizadora do SYP e por
mim, ou seja, uma construção de memória escrita do coletivo desde
sua concretização até o momento atual.
	 Agradeço a todos que colaboraram com este trabalho e
espero que da mesma forma que eu, os leitores se sintam inspirados
pelas histórias aqui narradas.
Luana de Freitas Garcia
7Histórias que se cruzam na kantuta
e eu, TamBÉm posso?
Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e
Luana de Freitas Garcia
“Sí, se puede!”, “Yo, sí puedo!”, “Yes, we can!”. Bastante ecoados
pelo vasto continente americano, tais lemas remetem a histórias
de lutas empreendidas por diversos grupos sociais, já que foram
respectivamente utilizados por trabalhadores rurais e urbanos
grevistas, por movimentos para a alfabetização de jovens e adultos
impossibilitados do acesso a Educação, como os promovidos
durante o governo do primeiro presidente indígena da Bolívia1
e
nas campanhas presidenciais daquele que viria a ser o primeiro
presidente norte-americano negro.
1
Uma das primeiras ações da gestão de Evo Morales com relação à área da Educação foi o lançamento do Plano
Nacional de Alfabetização denominado “Yo, sí puedo”, tendo por base a experiência e metodologia cubana conhecida e
utilizada também em outros países da região, caracterizadas pelo uso de meios audiovisuais, mediados por um docente no
processo de ensino e aprendizagem. Seu emprego na Bolívia reduziu a taxa de analfabetismo a 3.7%, índice a partir do qual
a UNESCO declarou a Bolívia como “território livre de analfabetismo” em 2014.
8 Sí, yo puedo!
	 Essas expressões estiveram e ainda continuam associadas
a buscas por avanços reais dos sujeitos, que representam minorias
políticas na sociedade, no sentido qualitativo do termo, por serem
recorrentemente marginalizados de direitos fundamentais que
garantam condições dignas de vida.
	 Palavras tão cheias de significado como estas foram, enfim,
fontes de inspiração para a denominação de um projeto dedicado
ao atendimento de imigrantes estabelecidos em São Paulo, em
algumas de suas demandas relacionadas especialmente à Educação
e ao Trabalho: o coletivo “Sí, Yo Puedo!”. A primeira proposta era
a de se chamar “Yo, sí puedo!”, similar ao projeto de alfabetização
mencionado, porém no intuito de fortalecer ainda mais a denotação
afirmativa da frase, relacionada neste caso ao empoderamento dos
imigrantes, preferiu-se colocar o “sí” no início.
	 Os primeiros passos para o projeto podem ser
observados em meio a própria trajetória de vida de sua
idealizadora, Veronica Quispe Yujra, e de sua família. Neste
e em outros casos, escutar e registrar atentamente histórias
de vida é uma experiência que pode nos revelar não o sujeito
isolado, mas sim situado em meio às sociedades entre as quais
desenvolve suas vivências e constrói coletividades, permitindo-
nos conhecer suas percepções e visões de mundo, condições
de vida, bem como as estratégias individuais e comunitárias
empreendidas a partir das mais diversas situações e desafios.
	 Poisbem,vejamosoquenostrouxesuanarrativa!2
Boliviana,
nascida na cidade de La Paz, Veronica chegou a São Paulo, aos oito
anos de idade com sua mãe e as duas irmãs, Rocio e Maritza, de
quatro e quatorze anos. Era 1989, e elas vinham para viver com o
pai, que sendo alfaiate na Bolívia, viera um pouco antes a convite
de um sobrinho para trabalhar em uma confecção. A decisão do
encontro familiar no Brasil, no entanto, não partiu dele, mas de
sua esposa, acreditando que nesse novo destino seria possível uma
significativa melhoria de vida. Reunida, a família se instalou no
bairro do Bom Retiro, em um apartamento localizado em frente ao
Centro Cultural Oswald de Andrade, espaço que mesmo olhando de
fora parecia muito atrativo aos olhos de Veronica3
. Por ali também
2
A transcrição mais detalhada do relato de Veronica também é uma das histórias contadas nesse livro.
3
Este centro de cultura é muito simbólico em sua trajetória de vida, já que depois de adulta Veronica retornou àquele espaço
que tanto lhe atraia atenção, enquanto parte integrante de uma encenação artística.
9Histórias que se cruzam na kantuta
passaram a gerenciar uma oficina de costura.
	 Logo, apenas as meninas mais novas começaram a
frequentar uma escola pública, na qual Veronica considera ter tido
uma boa inserção, tanto pela recepção dos profissionais e colegas,
quanto pelo aprendizado. No entanto, uma resolução da Secretaria
da Educação do Estado de São Paulo aprovada em 1990 as impediu
de continuarem frequentando a unidade escolar, já que estavam
com a situação migratória irregular. Naquela época isto aconteceu
igualmente com pelo menos 400 crianças estrangeiras 4
.
	 Tal fato causou desespero em toda a família, e
particularmente a ela, pelo medo de que a ausência de formação lhe
levasse a se dedicar a costura enquanto única saída, algo que não
correspondia às suas expectativas e desejos. Após a regularização
dos documentos migratórios e já com 15 anos, cursou o supletivo
almejando reverter o atraso escolar. Com a conclusão do Ensino
Médio, passou a estudar em um curso técnico em enfermagem.
	 Paralelamente aos estudos, ajudava no trabalho dos pais5
.
A certa altura, cansada das dificuldades na confecção, sua mãe
decidiu dedicar-se a outras atividades, iniciando um comércio
de pratos típicos da Bolívia na Praça do Pari, um espaço no qual
a comunidade boliviana costumava se encontrar. No entanto, não
tardou para que outro fato viesse a marcar a história da família: tal
frequência dos novos imigrantes passou a ser alvo de protestos de
moradores do bairro, os quais reivindicavam exclusividade de uso
alegando serem mais antigos por ali6
.
	 Com esse episódio conflituoso a comunidade percebeu a
necessidadedeseorganizareestruturouaAssociaçãoGastronômica
Cultural Folclórica Boliviana Padre Bento, a qual por intermédio da
Subprefeitura da Mooca, recebeu autorização para estabelecer um
novo espaço de sociabilidade em São Paulo: a Praça Kantuta, no
bairro do Canindé. A família Quispe Yujra não apenas colaborou na
busca por este espaço, como também atuou ali com pioneirismo no
4
Fundamentada no Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/1980), a Resolução no
9, de 8 de janeiro de 1990 afirmava a
necessidade de documentação regular dos estudantes estrangeiros para que pudessem acessar ao sistema escolar. Sobre
as crianças e adolescentes impedidas de estudar e os esforços da sociedade civil organizada para reverter tal situação,
ver: BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras! Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Loyola, 2000.
5
Sergio Quispe Cuellar e Esperanza Francisca Yujra de Quispe.
6
Sobre isso ver: SILVA, Sidney Antônio da Silva. Uma face desconhecida na metrópole: os bolivianos em São Paulo. Travessia:
Revista do migrante. Centro de Estudos Migratórios. Setembro-Dezembro de 1995, p.17.
10 Sí, yo puedo!
comércio de produtos da Bolívia e na organização de festividades
populares, como a Alasitas7
.
	 Enquanto sua família conquistava novas possibilidades de
inserção na cidade de São Paulo, Veronica também caminhava para
outras possibilidades de formação profissional. Por orientação dos
colegas da escola técnica, fez cursinho preparatório almejando
ingresso em uma universidade pública (ainda que muito de seu
entorno por vezes lhe expressasse “ – Isso não é pra você!”, “ – Você é
estrangeira!”). Enfim, cursou Odontologia na Universidade Estadual
Paulista e, sucessivamente, uma pós-graduação na área de Saúde no
sul do país. Seu envolvimento com o movimento estudantil durante
este período também lhe possibilitou grande abertura a espaços
universitários em diferentes lugares do país.
	 Ao longo dessa trajetória, percebeu e vivenciou com grande
incômodo a ausência de pessoas de origem boliviana ou de outros
povos latino-americanos nestas instituições escolares e acadêmicas
por onde passou. Observava inclusive as listas de estudantes e
raramente encontrava nomes tradicionais dos países vizinhos ao
Brasil. A partir desse incômodo, ao projetar sua volta a São Paulo,
começou a pensar uma maneira de intervenção junto à comunidade
imigrante que pudesse contribuir para ampliar seu acesso a estes
espaços. Assim, deu inicio em 2012 ao projeto “Sí, Yo Puedo!”,
durante a feira boliviana da Praça Kantuta, que sempre é realizada
aos domingos:
7
Festividade realizada no dia 24 de janeiro em honra ao deus aymara da abundância, o Ekeko. As pessoas adquirem
miniaturas dos bens desejados, visando alcançar sua realização ao longo do ano. A “Alasitas” teve início na cidade de La Paz,
mas se tornou tradicional em diferentes regiões da Bolívia.
(...) Porque eu já estava com isso na cabeça e toda vez adiava e adiava.
Então eu entrei no quarto da minha irmã e falei: “Ah, Rô, eu vou ir no
domingo agora”. Falei, vou sair domingo agora, porque vai passando,
já é março. Acho que ia sair algum curso, eu vi no amarelinho algum
curso gratuito e falei: “ Ah! Vou sair para lá...”. No começo eu trazia
jornais da Bolívia, do dia. Acordava às seis da manhã e imprimia os
jornais do dia para deixar no mural, nossa, chegava muita gente. (...)
E aí eu comecei a me apresentar e eu dizia “Eu estou aqui para dar
informação a respeito de tudo, de formação, de trabalho formal...”.
Eu achava que sabia um pouco mais e queria que os outros também
soubessem (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira da
Praça Kantuta).
11Histórias que se cruzam na kantuta
	 Assim,aprimeiraatuaçãodoprojetovisavaàdemocratização
de informações, a partir de orientações sobre cursos disponíveis em
diferentes instituições e as formas de acesso. Conforme relatou-nos,
Veronica começou a comparecer à Praça Kantuta aos domingos, dia
de realização da feira, com apenas um banquinho e as informações
que considerava de interesse para a comunidade, mas não tardou
muito para que ganhasse companhia.
	 Logo se aproximaram outros voluntários, dentre eles
estudantes universitários do Mackenzie, que já vinham buscando
realizar ações semelhantes na Kantuta, porém sem êxito na
aproximação com as pessoas. Dispostos a levar a ação adiante,
lograram uma parceria com a universidade para a possibilidade
de seus estudantes realizarem estágios ali. Com a sucessiva soma
de esforços, já que a chegada de novos voluntários imigrantes e
nacionais era constante, o “Sí, Yo Puedo!” foi se configurando como
um coletivo.
	 A forma de atuação central passou a ser por meio dos
atendimentos aos domingos, das 11:00 às 17:00 horas, com
orientação e auxílio para a solução de dúvidas a respeito não só
de cursos técnicos, superiores e formação complementar, mas
também com relação à documentação para imigrantes, reinserção
escolar, revalidação dos diplomas, transferência escolar, orientação
profissional, ao funcionamento dos equipamentos de saúde e
inclusive quanto à oportunidades de trabalho.
	 Além disso, o projeto identificou a necessidade e demanda
dos e das imigrantes em relação ao aprendizado da Língua
Portuguesa. O conhecimento do idioma se mostra cotidianamente
necessário para chances mais favoráveis de inserção no Brasil,
podendo lhes proporcionar maior confiança e autonomia no
desenvolvimento de suas diferentes ações, inclusive com a abertura
de novas possibilidades de atuação. Em outras palavras, funciona
como um “capital cultural”, que pode interferir para o melhor
desenvolvimento de outras formas de capitais, como o econômico e
o social8
.
	 Com isso, o “Sí, Yo Puedo!” passou a oferecer cursos de
8
Sobre isso ver: BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. [Orgs] Maria Alice Nogueira, Afrânio Mendes
Catani. Petrópolis: Vozes, 2013.
12 Sí, yo puedo!
português de nível básico. As aulas são organizadas com foco no
cotidiano dos sujeitos, bem como agregam discussões relacionadas
aos direitos humanos e cidadania. Também incluem passeios por
equipamentos públicos de São Paulo, considerados importantes
para promover a interação, integração social e vivência das
diferentesculturaspresentesnacidade.Atualmenteocoletivoconta
com 12 turmas formadas em seu curso de português, percebendo
como satisfatório o fato de exalunos continuarem frequentando
atividades e até mesmo de atuarem como voluntários no próprio
coletivo ou em outras organizações que possuem objetivos
similares9
.
	 São diversos os esforços pensados para auxiliar a
comunidade a conquistar possibilidades mais favoráveis para a vida
em São Paulo. Mais recentemente, por exemplo, o “Sí, Yo Puedo!”
deu início a um cursinho preparatório voltado especialmente para
os vestibulinhos das escolas técnicas, conforme explicou Veronica:
	 De fato, a turma formada no cursinho em junho de 2015
condiz com as perspectivas apresentadas nesta fala. Contava com
dez estudantes frequentes, com idades variadas entre 22 e 37 anos,
(...) a ETEC é um caminho mais factível, um pouco mais rápido. Uma
vez que em um ano e meio a pessoa consegue até fazer algumas
contenções econômicas, ficar com a mesma roupa, consegue passar
um pouco de fome. Eu brinco com eles: sapato pode durar um ano
e meio e é o tempo que o curso dura, para ele ter a chance de um
emprego melhor. Então você fez ETEC, depois você pode até se
encaminhar para aquele outro sonho maior que é o da universidade,
porquejásaiudocírculo.Achoqueomaisimportanteéconseguirtirar
a pessoa do círculo. Então por causa disso, a gente mudou um pouco
nosso discurso nestes três anos. No começo a gente ficava pilhando
as pessoas para simplesmente largar o trabalho nas confecções e ir
atrás de outro emprego, porém hoje em dia a gente não fala mais isso,
porque a gente sabe que para isso são várias etapas. O que a gente
sempre fala: “ – Está difícil? Não é isso que você quer fazer? Então
vamos começar a construir um projeto no qual em médio prazo você
consiga tanto se capacitar, voltar a estudar, como procurar empregos
em outras áreas” (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira
da Praça Kantuta).
9
Todos os voluntários que fizeram ou ainda fazem parte do coletivo “Sí, yo puedo!” estão citados na página 118.
13Histórias que se cruzam na kantuta
10
Sobre isso ver: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998; O retorno:
elemento constitutivo da condição do imigrante. Revista Travessia, ano XIII, número especial, jan/2000.
os quais naquele momento trabalhavam na área das confecções
como costureiros. Eles pretendiam prestar o vestibulinho das
ETECs para cursos técnicos de Eletrônica, Mecânica, Enfermagem,
Informática e Estética. Foram-lhes oferecidas aulas intensivas
de Português, Matemática, História, Química, Física e Biologia ao
longo de quatro sábados, ministradas por professores voluntários
que são profissionais das respectivas áreas.
	 Trata-se de uma experiência piloto relevante, já que visa
atender a uma demanda real destas pessoas, que muitas vezes
acabam nãotendoacessoa outroscursospreparatórios.Noentanto,
o êxito no acesso às instituições de ensino ainda acaba dependendo
da superação de barreiras burocráticas, as quais os estrangeiros
são comumente submetidos, como, por exemplo, a questão das
traduções de documentos, da equivalência de estudos realizados
ou reconhecimento de diplomas emitidos no exterior.
	 Além destes casos, encontramos relatos semelhantes ao
longo deste livro, isto é, que consideraram o investimento em
educação profissional como estratégia relevante para uma melhor
inserção laboral.
	 É importante perceber que o coletivo “Sí, Yo Puedo!” tem
como um dos seus princípios que seus integrantes sejam sempre
participativos em diversos eventos relacionados às questões de
interesse dos imigrantes em São Paulo, promovidos por entidades
da sociedade civil, ONGs ou agentes das esferas estatais. Eles
levam suas vozes enquanto sujeitos que atuam para a mudança
de um meio social, escutam, propõem e fazem críticas. Marcando
presença e ocupando os espaços, fazem-se notados com suas ações
e reivindicações.
	 Justamente o que propõe o projeto que aqui apresentamos
é romper com a “presença-ausente” que tanto pode representar
o imigrante em uma sociedade, conforme analisou o sociólogo
argelino, imigrante na França, Abdelmalek Sayad: por um lado, o
imigrante é uma ausência no seu espaço de origem. Por outro, é
uma presença comumente invisibilizada nas sociedades em que se
estabelece, colocado a margem do acesso a direitos fundamentais10
.
	 A atuação do projeto pretende, portanto, a conquista e gozo
14 Sí, yo puedo!
dos espaços escolares, universitários, culturais, laborais, sociais
e políticos pelos imigrantes, a partir da formação destes como
sujeitos ativos na construção de suas trajetórias de vida dentro de
seus projetos migratórios, bem como da inserção e ocupação dos
espaços da cidade que, muito comumente, podem lhes ser hostis
e negar-lhes direitos. Assim, vale-se com certeza da máxima de
vontade política por detrás do lema: “Sí, Yo Puedo!”.
Bianca Carolina Pereira da Silva (Bacharel e licenciada em
História – UNIFESP; Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em
Integração da América Latina – USP).
Julia Ferreira Scavitti (Bacharel e licenciada em Ciências Sociais –
UNICAMP; Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências
Sociais – UNIFESP).
Luana de Freitas Garcia (Graduada em Psicologia – Universidade
Presbiteriana Mackenzie).
15Histórias que se cruzam na kantuta
sao pauLo É o reTraTo do muNdo
Felix Claudio Mendoza Achumiri
Me chamo Felix Claudio Mendoza Achumiri e nasci em
1971. Faço parte da comunidade boliviana e morava em La Paz. A
primeira vez que vim ao Brasil foi com um amigo, para visitar. Tinha
um irmão aqui e fiquei um mês, depois voltei de novo para a Bolívia.
No meu país, eu tinha boas oportunidades. Lá eu gostava de estudar
eletrônica; fui DJ e locutor de uma rádio. Fazia isso todos os dias e
ganhava o suficiente para me sustentar. Tinha uma equipe de som,
mas não deu certo, porque meu parceiro foi para a Argentina atrás
de melhores oportunidades. Fazia edição de vídeo para casamentos,
formaturas e para aniversários de quinze anos. Até que cheguei
aqui e tudo foi diferente.
Hoje estou aqui por uma vida melhor. Já conheci o sistema
daqui, sei como é. Moro sozinho e agora estou trabalhando como
modelista em uma empresa de costura. Vim para cá há mais ou
menos quatorze anos.
16 Sí, yo puedo!
	 Uma semana atrás chegaram minha mãe, minha irmã e meu
cunhado. Vieram só para me visitar. Não acreditei! Minha mãe mora
na Bolívia e veio porque tinha saudades de mim. Eu não telefonava
para minha família há muito tempo, fazia uns quatro anos, fiquei
muito afastado. Queria que tivessem ficado por mais tempo para
que eu pudesse mostrar as coisas bonitas que São Paulo tem, mas
não deu tempo, tiveque acompanhá-los ao terminal rodoviário e
fiquei triste com a despedida.
	 Vim para o Brasil, pois queria conhecer pessoas diferentes,
saber como eram os brasileiros. Tem gente aqui de todo lugar do
mundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato do
mundo. Queria ter ido para os Estados Unidos, mas não deu certo.
Ficou mais difícil entrar lá depois do ataque às Torres Gêmeas.
	 Estou tentando mudar para caminhos diferentes do da
costura. Costura é a primeira entrada, o que todo mundo faz
quando chega aqui. Passa primeiro por essa fase. A pessoa tem a
facilidade de não pagar o quarto e tem comida. Isso é uma herança
dos coreanos. E acaba acontecendo aquelas coisas de exploração.
Atualmente, as pessoas estão se tornando mais conscientes graças
a essas políticas que estão voltadas para imigrantes.
	 Aqui a prática da exploração tem mais liberdade, porque
está escondida em uma casa, tudo é fechado. Aqui o pessoal fala:
“Na minha casa não entra ninguém de fora e eu posso fazer o que
eu quero na minha casa”. As pessoas pensam desse jeito e fazem
a exploração dentro de uma casa. E quem está fora acha que é só
uma família que está morando ali. Mas não é assim! Isso vai se
descobrindo ao longo do tempo, por alguém que foge ou denuncia.
Eu saí desse tipo de trabalho, pois tentei fazer o melhor , mas não
gostei. Eu gosto de trabalhar em qualquer coisa, mas eu não gostava
do que eu fazia, pois a dona falava que eu estava demorando,
todavia, eu sou perfeccionista, gosto de fazer bem. Então, tive que
sair de lá para fazer o que eu gosto. Agora estou trabalhando com
carteira assinada, que é melhor, mas sair do ciclo da costura é muito
difícil.
	 No Brasil há facilidades com relação aos estudos. Escutei
por aí que imigrantes podem fazer faculdade. Penso em continuar a
estudar aqui, no curso que fazia lá, de engenharia eletrônica. Só que
trabalho o dia inteiro e não é possível estudar no mesmo horário.
Eu trabalho das nove da manhã às sete da noite e folgo aos sábados
e domingos. Já nas oficinas dos nossos compatriotas cada um é
independente, porque tem que trabalhar por produção, por isso,
17Histórias que se cruzam na kantuta
alguns trabalham sábado e domingo. Se não trabalham no final de
semana, os donos não dão comida nesses dias, pois eles não estão
trabalhando. Cada oficina adota um esquema, faz sua própria lei
interna. Para mim, existem dois tipos de empresa, aquela que adota
o capitalismo extremo, que quer tudo, sem sentimento, e aquela
que é humanista e vê que os trabalhadores precisam estar bem,
com boa saúde, para produzir. Na humanista, os trabalhadores são
mais cuidados pela empresa.
	 Aqui em São Paulo, gosto de ir aos museus e visitar lugares
que não conheço em bairros que estão mais longe do centro. Gosto
de passear sozinho, no tempo livre. Convido amigos, mas eles não
gostam de fazer esses passeios para lugares mais longes, porque
gastam mais. A maioria fica fechado em casa por medo da rua, ficam
assistindo tv e filmes. Alguns saem no sábado à noite para baladas
só de bolivianos e eu não gosto muito disso. Eu prefiro conhecer
lugares diferentes, gosto de conhecer outras culturas. Sempre vou
ao bairro da Liberdade saber sobre os eventos que eles fazem. Eles
já estão há mais de cem anos aqui e mantêm a cultura, inclusive seus
filhos. Com bolivianos é diferente, os filhos nascem aqui e já não
querem saber da cultura de lá. Aqui os bolivianos que trabalham
nas oficinas não têm tempo de passar a cultura para seus filhos,
pois começam a trabalhar às sete da manhã e às onze da noite ainda
estão trabalhando. Que horas podem brincar e falar com os filhos?
Por isso, os filhos têm poucos conhecimentos de lá.
	 Na escola, eu era bom aluno. Os melhores entravam na
faculdade, só que não deu certo para mim, tive que trancar por
questões financeiras. Fui trabalhar e não deu certo. Engenharia
tem três lemas: estudar, estudar e seguir estudando. Não dá para
trabalhar. Era um curso de período integral. Aí comecei a fazer
coisas diferentes, trabalhava com equipe de som, como DJ. A grana
que eu tinha era pouca e, às vezes, não dava para almoçar. Quando
você deixa de comer e segue estudando, você fica diferente. Não é
bom! Se você está estudando tem que comer bem. Naquele tempo,
eu era bem otimista, queria ser engenheiro eletrônico! Mas, eu
precisava de dinheiro para ir até a universidade e para comer.
Então, deixei de estudar e só trabalhei. O tempo passava e eu só
pensava em continuar meus estudos.
	 Antes de ter vindo para cá, queria ter aprendido português.
Mas o jeito de falar é semelhante, então me adaptei. Eu falava
devagar e os brasileiros também, para que pudéssemos nos
entender. Nunca fui tímido, então aprendi aos poucos. Eu queria
18 Sí, yo puedo!
trabalhar com telemarketing, pois tem trabalho de meio período e
algumas vantagens, contudo é necessário falar Português fluente.
	 Lá,eumoravatranquilo,tinhaummontedeamigos,estudava
e mexia com música. Assim passava o tempo! Fazia alguns cursos e
ajudava minha mãe em casa. Depois que cheguei aqui, esqueci todo
mundo, pois perdi telefones e endereços. Além disso, a maioria das
pessoas que eu conhecia também viajou para outros países. O único
problema lá é que eu não estava estudando mais, estava fazendo
bicos e trabalhava em uma rádio, que colocava só as músicas do
momento. Surgiu um projeto de abrir uma discoteca aqui no Brasil
e eu deixei tudo de lado. Aqui sofri muito no começo. Eu pensei que
quando chegasse aqui, ia fazer algo extraordinário, mas já tinha algo
parecido aqui e fizemos algo só para o público boliviano. Fazíamos
um tipo de música que não gostávamos, também não ganhava
bem. Então, tive que entrar na costura forçosamente. Muita gente
não queria me ensinar a costurar, porque diziam que não tinham
tempo, pois trabalhavam e ganhavam por minuto e não dava para
perder tempo. Sendo assim, agradeço a quem me ensinou. É difícil
encontrar alguém disposto a te ajudar.
	 O que não gostei do Brasil foi a surpresa que tive com as
favelas e com a facilidade para se portar armas também. Todavia,
eu vejo aqui a facilidade que os brasileiros têm para estudar, tem
formação de graça. Lá também tem universidade de graça, mas é
limitado a quem passa no exame, se você não passa na pública, tem
que pagar seus estudos. E se não tem como pagar, não estuda.
	 Como meus planos de trabalhar aqui não deram certo, tive,
obrigatoriamente, que trabalhar no ramo da costura. Não gostei
muito e tentei mudar. Foi passando o tempo e, agora sim, estou fora
disso. Agora me sinto um pouco mais livre, melhor! Meu sonho para
o futuro é ter uma profissão fixa e trabalhar nessa profissão até
crescer nela, como todo mundo faz. Também, construir uma família
e ficar aqui no Brasil. Queria fazer viagens pelo Brasil, conhecer de
Norte a Sul.
	 Quando falo do Brasil para outras pessoas, falo a verdade.
A verdade é que quando um brasileiro conhece um estrangeiro é
desconfiado, mas se te conhece bem abre os braços para te ajudar.
O brasileiro é alegre, a música é alegre. Lá na Bolívia tem muita
discriminação, mesmo com a mudança do presidente, só que está
escondida, não está à vista. Aqui no Brasil também percebi um
racismo, que é mais velado que na Bolívia. Entretanto, desde que
estou aqui, pude entrar em qualquer lugar! Na Bolívia, te olhavam
19Histórias que se cruzam na kantuta
dos pés à cabeça, se não gostavam, não deixavam entrar. Quando
entrei na universidade lá, não era fácil, a maioria era da classe
média alta e eu era de classe média, além disso, tinha a diferença
da cor da pele. Eles haviam passado por escolas de alto padrão,
eram de famílias que tinham dinheiro. Eu tentava procurar outros
grupos que tinham menos dinheiro. Quando eu cheguei aqui falei
com todo mundo. Quando via um brasileiro de pele branca ficava
meio desconfiado, pensando se ele ia me rejeitar ou ia falar alguma
coisa como “sai fora”, mas era o contrário. Por isso que gosto do
Brasil. É diferente. O brasileiro é mais amistoso, amigo. Por isso
que pessoas de todo o mundo vêm para cá e constroem uma cidade
junto. O Brasil é feito de imigrantes.
	 Quem nasceu aqui é descendente de imigrantes. Primeiro
chegaram os portugueses e os espanhóis, depois os holandeses,
os africanos e aí vieram os italianos, os japoneses, os judeus, entre
outros. Nesses últimos tempos, chegaram os coreanos, depois os
bolivianos que vieram trabalhar na área de costura. Os primeiros
bolivianos que chegaram aqui não vieram para trabalhar em
costura, os trabalhadores chegaram depois. Com o acordo de Livre
Residência do Mercosul ficou mais fácil e o mundo latino-americano
chegou aqui.
	 Acho que cheguei muito tarde no Brasil, penso que deveria
ter saído da Bolívia mais cedo. Teria tido mais oportunidades para
aprender mais coisas. Agora, se volto à Bolívia,venho de novo morar
aqui, pois já estou acostumado, gosto daqui. Conheço o costume
dos brasileiros e o jeitinho deles. Gosto das festas, do carnaval.
Uma vez, fui a um desfile de escola de samba, falei com alguns
dançarinos e perguntei como podia participar, eles disseram que
não tinha requisito. Eu fiquei muito alegre, queria participar, mas
nunca deu. Certa vez, fui para a quadra comemorar com a Águia
de Ouro e participei da festa até o amanhecer! Voltei para a casa e
estava feliz. Também, sempre vou aos eventos de imigrantes. Gosto
de conhecer os gostos e as comidas de várias culturas. Da Bolívia já
conheço tudo, por isso, gosto de sair e conhecer outros lados.
	 Quando vim para cá pela primeira vez, fiquei admirado
com a quantidade de estradas que tinha no Brasil. Queria ficar, mas
não tinha a permissão para ficar aqui. Hoje estou morando no Bom
Retiro. É bom, só que o aluguel é caro. Mas aqui qualquer lugar é
caro. E as condições também não são boas. Eu pago quatrocentos
reais em um quartinho, que é muito pequeno, e o banheiro
é compartilhado. Lá moram só bolivianos e paraguaios. Tem
20 Sí, yo puedo!
famílias e tem pessoas sozinhas também. É mais fácil alugar, pois o
responsável pelo imóvel não pede alguns requisitos, como ter que
fazer depósito. Eu gostaria de ter minha própria casa aqui, por isso
estou trabalhando. Quando você mora assim, como eu moro, está
sujeito às normas dessa casa e não tem liberdade suficiente.
	 Eu tentei trabalhar no CAMI, mas me disseram que era
voluntariado, aí tive a ideia de procurar outras Ongs que faziam
trabalho ajudando as pessoas. Um amigo me falou do Projeto Si, Yo
Puedo!. Procurei o projeto, buscando por orientação profissional.
Fui conhecendo cada pessoa e me aproximei mais do projeto. Acho
importante que as pessoas saibam das coisas para que se tenha
justiça. Uma vez sofri injustiça, quando trabalhava na oficina. O
dono queria que eu fizesse de tudo, queria que eu fizesse outros
tipos de atividade, como arrumar as luzes, consertar as máquinas
e aparelhos de televisão. Eu fui trabalhar lá só para fazer o ofício
da costura e ele falava: “Faça aquilo também!”. Eu fazia coisas pelas
quais não era pago.
	 Na Bolívia, tem uma comida especial para mim, a salteña.
As pessoas gostam. É uma comida do lugar onde nasci. A salteña
só se come de manhã, é como um café da manhã e se faz com um
pouquinho de molho picante. Pode usar aquela pimenta que é
chamada de dedo de moça aqui. Não tem salteña aqui igual à de lá.
Quando como salteña lembro de minha família. Meu pai sempre
comprava salteña para nós. Às vezes, quando nos preparávamos
para o café, meu pai aparecia com uma caixa cheia de salteñas para
toda a família. Todo mundo ficava alegre quando chegava esse
momento. Ele fazia isso em datas especiais.
	 Quando vejo a salteña, recordo de lá, tenho saudade!
Éramos quatro irmãos. Todos os meus irmãos moram na Bolívia e
a maioria casou. A gente se reunia em datas importantes. Faz três
anos que eu não volto. Se eu ficar bem financeiramente, penso em
dar uma voltinha por lá. Eram momentos felizes, era um jeito de
nos aproximarmos mais, um espaço para ideias, piadas. A salteña
é tradição na cidade de La Paz, como o pão de queijo é aqui. Estive
procurando aqui alguém que faça do jeito de lá, com o mesmo sabor
e textura. Tem um, conheço! Mas só encontro ele no sábado e no
domingo.
	 Originalmente, falavam que salteña era uma massa da
Argentina, porque tem uma cidade lá que se chama Salta. Parece
que, décadas atrás, surgiu uma massa lá que se chamava salteña,
por isso o nome, e alguém trouxe para a cidade de La Paz. As
21Histórias que se cruzam na kantuta
pessoas gostaram e se tornou uma tradição. Tem sabor agridoce,
usam farinha de trigo, em cima tem gema de ovo para dar a cor e
por dentro tem um caldo que pode estar misturado com ovo, frango,
carne. Também tem salteña para veganos.
22 Sí, yo puedo!
paLaVras Que saem como facas
Flaubert Castro Arela
Meu nome é Flaubert Castro Arela, tenho trinta anos, sou
peruanoeadventista.AquinoBrasil,eujámoroháquasecincoanos.
Eu cheguei no começo para estudar engenharia da computação na
Universidade Anhembi Morumbi, com uma meia bolsa de estudos
que consegui na Universidad César Vallejo do Peru. Só que quando
eu cheguei aqui, acabei perdendo a bolsa por descuido meu. Quando
percebi, já não tinha chance de ser aprovado no semestre, então,
depois de três meses batalhando na faculdade, decidi sair e tive
que trabalhar. Deixei de lado a faculdade! Mas, sempre, em meus
pensamentos, queria continuar estudando. Fui procurar trabalho e
nocomeçonãoachei.Nãofoirápidoachartrabalho.Porquê?Porque
eu era formado em técnico de informática, mas sou imigrante e
como eu estava indocumentado era difícil achar um trabalho para
mim. As empresas não confiavam em mim.
Algum tempo depois, comecei a trabalhar em vendas e
23Histórias que se cruzam na kantuta
para ser sincero, já trabalhei em um pouco de tudo aqui e lá no
Peru. Aqui trabalhei como ajudante de pedreiro, comerciante,
vendedor de plantas medicinais, cobrador de ônibus, guia de
turismo improvisado, programador em uma empresa de bordados,
trabalhei em uma loja de roupas, em estamparia e em uma empresa
de Helpdesk como técnico de apoio ao usuário de informática. Este
foi meu último trabalho. Depois desses dois anos que estava sem
buscar nada dos meus estudos, procurei uma instituição para me
atualizar sobre informática para que eu continuasse a crescer na
minha profissão. Tinha que me atualizar e achei o SENAC , onde
paguei para me atualizar. Depois, me lancei no mercado de novo
para trabalhar.
	 Comecei a trabalhar e foi tudo tranquilo, só que quando
comecei a trabalhar, meu chefe era bom, legalzinho. Acho que todo
mundo passa por isso. Ele me aceitou. Eu estive trabalhando um
ano com ele e ele passou a me manipular. Ele já não queria que
eu trabalhasse só oito horas. Pagava-me bem, mas para mim não
dava. Passei a ficar até às dez da noite e cobria os horários dos
outros funcionários que não chegavam. Todavia, por mais que ele
me obrigasse eu não conseguia. Ele me tentava com dinheiro. Ele
pensava que quem tem dinheiro consegue e compra tudo. Às vezes,
neste mundo cruel tem gente que se deixa manipular por dinheiro.
	 Por conta da minha religião, eu não trabalho aos sábados,
e quando contei para meu chefe, ele não ficou contente com isso.
Ele começou a ficar ressentido. Dizia coisas como: “Ah, você não
quer trabalhar comigo? Te dei a oportunidade de trabalhar aqui”
ou “Eu te dei confiança para você dominar minha empresa”. Essa
empresa foi a primeira que me registrou na carteira, até então eu
sempre trabalhei como free lance, sem registro. E todas essas coisas,
ele me jogou na cara . Ele disse que tinha me dado oportunidade
de trabalhar nesse mercado e que nós, peruanos, bolivianos e
paraguaios, estávamos vindo para tirar o trabalho dos brasileiros.
Ele me falou assim! Eu me senti péssimo quando ele falou isso. Eu
tinha vontade, não sei, de voltar para meu país. Mas, eu não queria
voltar. Em casa, pensei em pedir demissão.
	 Depois me reuni com meu chefe, que me propôs um acordo.
Me disse que se eu não ia trabalhar no sábado, ele precisava de um
cara para trabalhar no domingo. “Bom, eu posso, mas uma vez por
mês”, respondi. Pois aos domingos estava apoiando o projeto Sí, Yo
Puedo! e o CESPROM. Fui trabalhando aos domingos, até que chegou
o ano passado e saí da firma, para sempre. A empresa mudou para
24 Sí, yo puedo!
São Miguel e meu chefe disse que se eu quisesse, podia pedir as
contas, pois ele não faria nenhum acordo. Então pedi. Quando fui no
escritório, ele foi todo bonzinho e pediu desculpas pelas coisas que
estava fazendo comigo. E me disse que se eu ficasse trabalhando
com ele, ia aumentar meu salário. Analisei e resolvei ficar, só que,
nessa época, estava estudando Português no SENAC e cheguei três
vezes atrasado no trabalho, pois não conseguia sair a tempo. No
final do mês, ele não me pagou o valor do vale transporte.
	 A maioria dos trabalhadores dele se arrumam faltando dez
minutos para irem embora. Essas coisas eu não fazia. Um dia eu fui
junto com eles trocar minha roupa, meu chefe viu e disse que eu
estava me juntando com aqueles rapazes. “Você é um cavalo! Não
tá respeitando a confiança que te dei”, ele me disse. Não falei nada,
mas depois, eu mesmo preparei minha carta de demissão, levei lá e
ele falou “Deixa aí!”. Uma vez que saí da firma, decidi não trabalhar
mais para ninguém! Porque em todas as firmas que eu trabalhei
aqui no Brasil, eu me senti muito, muito explorado, mais do que lá
na minha terra. Eu percebi que as empresas não fazem isso só com
estrangeiro, fazem com aquelas pessoas que chegam do interior, da
Bahia, de Minas Gerais. Violam não só os direitos dos imigrantes,
mas dos migrantes que veem do nordeste, por exemplo. Fiz um
plano na minha vida e me disse: “Vou trabalhar para mim, seja
qual for o risco! E vou trabalhar na minha área”. Não é tão fácil ser
empreendedor, mas estou aí, com altos e baixos.
	 Quando cheguei, morava na casa da minha tia, ela tinha a
sua empresa, era próspera. Tinha uma empresa de jeans do Peru.
Às vezes, ela trazia tecido cru. Depois, ela passou a confeccionar
roupa. Ela ficou um ano com isso, mas o negócio não deu resultado.
Depois, ela e sua família foram embora do Brasil, pois aqui, segundo
ela, a educação era ruim, porque os filhos dela não sabiam nada.
Lá na minha terra, aos dez anos os meninos já conseguem ler
perfeitamente e sabem toda a tabela de multiplicação. Aqui, eu dei
um texto para eles e seus colegas lerem e eles não conseguiram e
o pior é que não sabiam a tabela de multiplicação. Na realidade,
isso fez parte de uma pesquisa que realizei na Zona Leste, com
estudantes que tinham entre dez e onze anos, eles respondiam
algumas perguntas e ganhavam um prêmio. Logicamente, fazia a
pesquisa com autorização dos pais.
	 Antes da minha tia ir embora, chegaram meus irmãos. Um
chegou para fazer práticas em Engenharia Agropecuária aqui no
interior de São Paulo e o outro chegou para trabalhar, procurando
25Histórias que se cruzam na kantuta
novas oportunidades. Eu passei a morar com este irmão e abri um
negócio com ele, com ajuda da minha tia. Depois de um tempo, a
mulher do meu irmão começou a dizer para ele que eu não fazia
nada.Nossa!Quandoescuteiessenegóciomesentimal.Euconversei
um dia sozinho com meu irmão e disse que não ia suportar essa
humilhação. Disse que ia sair e procurar meu destino.
	 Quando minha tia estava indo, me deixou morar num
quarto dela e disse que quando eu pudesse pagava. Aí os irmãos
da minha tia passaram a falar mal de mim, dizendo que eu estava
vivendo lá de graça. Hoje, longe dos meus familiares, aluguei um
quarto e moro tranquilo. Desde então, estou morando sozinho. No
momento, estou em paz! Minha única preocupação agora é minha
vida profissional.
	 Para mim, o mais importante são as pessoas que eu conheço
e acho que vai ser assim sempre. Quando vejo os meninos na rua,
jogando bola, com chinelo, roupa rasgada, camiseta, lembro de mim
mesmo. A primeira vez que cheguei aqui no Brasil fui jogar bola com
uns amigos que conhecia. No final do jogo, fizemos outro caminho
para ir lanchar e passamos por uma favela. Eu pensei: “Nossa! O
Brasilestácatalogadocomoaquintaeconomiamundial,essascoisas
não deviam ter aqui”. Vi pessoas armadas e tudo. Logicamente, eles
cuidavam do bairro deles. Fiquei um pouco assustado. Parecia meu
bairro lá no Peru. Isso me fez lembrar de quando eu era moleque.
	 Eu nasci no interior do Peru, em Puquio, no departamento
de Ayacucho, mas quando eu tinha cinco anos fui adotado por uma
família e fui morar na cidade de Lima. Eu morei toda minha infância
e adolescência em Lima. Estudei lá, trabalhei e fiz meus passeios.
Um sonho que eu tinha era conhecer quase todo o Peru, explorar
meu país, sua cultura, sua diversidade e as condições de vida das
pessoas e eu o fiz! Demorei quase três meses para viajar pelo Peru
por completo, visitei departamento por departamento, cidade por
cidade. Depois tive que voltar para estudar e trabalhar. Mas eu
sempre pensei que eu queria sair fora, não queria ficar no Peru,
porque se eu ficasse no Peru seria como uma pessoa que fica presa
em um quarto. E quando uma pessoa está trancada em um quarto
não faz nada, se sente sozinho, com a mente nublada. A mesma coisa
estaria acontecendo comigo se eu tivesse ficado no Peru. Então, eu
saí do quarto do Peru para o exterior, para o Brasil. Agora, pretendo
explorar toda a América Latina e, se Deus me permitir, a Europa.
	 Perto dos anos 90 acontecia muito terrorismo na cidade
onde eu nasci. Bom, o governo que deu esse nome a eles: terroristas!
26 Sí, yo puedo!
Para mim eram grupos sociais com ideologias diferentes das do
governo. É nisso que eu acredito. Acho que meu pai era parte deles,
pois um dia, meu tio, brincando, disse que meu pai estava ali. Só
que eu acho que eles nunca contariam a verdade para mim. Depois
dessas histórias, quis saber como meu pai morreu. Foi assassinado!
Meu pai foi assassinado e eu não sabia até meus dezoito anos.
Depois que ele morreu, minha mãe, sozinha, não conseguia nos
alimentar. Éramos três irmãos. O mais novinho tinha meses. Eu era
muito travesso, enchia a cabeça da minha mãe, por isso ela mandou
eu morar com o padrinho de casamento dela. Eu fui morar com essa
família, que atualmente eu considero meus pais. E foi assim que fui
morar em Lima.
	 Minha mãe biológica não queria que eu e meu irmão
migrássemos para outros lugares do mundo. Ela dizia: “Por que
vocês querem sair, se vocês têm tudo aqui!”. Naquela época,
quando eu tinha dezenove anos, minha mãe já tinha uma posição
econômica bem estabelecida, mas nós queríamos buscar nosso
próprio caminho. Ela dizia que se quiséssemos dinheiro, ela daria,
se quiséssemos casa, ela arrumaria.
	 Meu foco sempre foi meus estudos, até hoje em dia meu
foco é terminar minha formação como engenheiro da computação.
Estou batalhando, dia após dia, atrás disso. Só que uma das
minhas dificuldades é a economia. Eu queria retomar na mesma
universidade que estava, mas agora só pagando. Então, estou
buscando outros cursos que sejam na mesma área, nem que sejam
técnicos, assim posso me preparar. Meu foco foi estudar aqui no
Brasil. Porém, depois que eu perdi a meia bolsa, tive que pensar
como trabalhar aqui.
	 Antes de vir para cá, passei por uma situação sentimental
lá. Essa foi uma das causas, para esquecer esse envolvimento
sentimental, pelas quais abandonei aquela cidade e aquele país. Eu
trabalhava numa multinacional, eu era chefe, só controlava. Um ano
depois que estava trabalhando lá, conheci uma menina linda, me
apaixonei. A princípio ela não queria namorar comigo porque tinha
um pretendente que era espanhol. Eu competi com o espanhol.
Decidi conquistar ela e consegui.
	 Meses depois de começarmos o namoro, ela me traiu com
aquele espanhol. O que eu mais queria era esquecê-la, ficar longe
dela, para não recair. Quando cheguei aqui, fiquei dois meses
pensando nela, sentia saudades, queria pedir desculpas, não sei
o porquê. Pouco a pouco fui me adaptando, conheci uma menina,
27Histórias que se cruzam na kantuta
comecei a sair com amigos. E assim superei as coisas e acabei
ficando aqui.
	 Eu imaginava encontrar aqui uma cidade limpa, sem
nenhum tipo de discriminação, moderna! Sem delinquência, nada
dessas coisas. Eu me imaginava em um bairro limpo e numa cidade
limpa dessas coisas. Mas não foi assim. Eu achei pior do que lá na
minha cidade, sinceramente. Uma outra coisa é a educação nas
escolas públicas, que eu qualifico como péssima. Essa foi a maior
decepção para mim. Eu esperava uma educação bastante avançada.
Na saúde, eu me deparei com médicos que não sabem nada. Por
exemplo, eu tenho gastrite, fui consultar um doutor e ele me
entregou um calmante.
	 A adaptação aqui foi difícil por causa daquele envolvimento
amoroso, não sabia se ficava ou se voltava. Outra coisa é que tinha
muitos pernilongos aqui, dia e noite, e eu não conseguia dormir.
Eu não gostei disso, foi feio. Por causa disso foi difícil me adaptar,
eles não me deixavam dormir. No meu corpo inteiro começaram a
aparecer bolinhas vermelhas e eu me assustei. Pensei: “Em que país
cheguei?”. Até que me recomendaram um mosquiteiro, aí eu dormi
em paz. Fui lidando também com os problemas da minha linguagem
no dia a dia e fui aprendendo português com as falas dos amigos
e dos vizinhos. Fui aprendendo e depois me acostumei. Depois de
um ano aqui, eu voltei para o Peru e já não me acostumei lá. Na
minha cidade tem muita poeira, você quase não vê nada. Aqui em
São Paulo isso acontece só quando chove. Eu já estava acostumando
com o clima daqui, então voltei em duas semanas.
	 Eu vi muita facilidade nos estudos aqui, pois você pode
estudar de graça com o apoio do governo. Lá se você faz vestibular
e não consegue, já era pra você. Aqui, pelo menos, tem cursos no
SENAC, SENAI e, além disso, tem o PRONATEC. Lá não tem isso.
Você só estuda de graça se passar no vestibular. Lá tudo é cobrado,
um curso de dança, por exemplo, você tem que pagar. Aqui tem
mais projetos sociais. Agora isso tá mudando um pouco lá. Acho
que estão copiando daqui!
	 Uma dificuldade que eu percebi aqui, foram os meios de
transporte. Foi minha dificuldade. Quando comecei a trabalhar
fora, para me deslocar da minha casa para o meu trabalho, ou do
meu trabalho para minha casa, era muito difícil. O ônibus demorava
vinte minutos para passar. No final de semana era ainda pior, a
gente ficava esperando meia hora, uma hora. Em Lima, o meio de
transporte é rápido, você chega no seu ponto e já tem três ônibus
28 Sí, yo puedo!
passando e você só precisa decidir qual pegar. Eu decidia pegar
o ônibus mais bonito. Outra dificuldade foi a discriminação, que
acontece em todo o mundo, não só nesse Brasil. Eu fui mais um que
sofreu com isso. Meu chefe me discriminava e uma vez eu respondi
para ele. Dizem que desde moleque, sempre quando eu falava, as
minhas falas saiam como uma faca. Quando discuti com meu chefe,
ele se sentiu mal ao invés de eu me sentir mal. Só falei umas cinco
palavras e derrubei ele. Nunca mais ele levantou a voz ou quis me
dominar.
	 De modo geral, minhas maiores dificuldades foram o
trânsito, o trabalho, o que falei do meu chefe, a discriminação e os
mosquitos também, que no começo eu não sabia como combatê-los,
agora sei! Têm muitas ferramentas para combater.
	 Lá no Peru, eu tinha um artesanato feito de barro que minha
mãe fez pra mim. Era a imagem de um boi. Era uma recordação de
onde eu nasci. É a única cidade do mundo que tem esse tipo de
artesanato, de toritos. Eu carregava esse objeto para todo lado.
Na escola, eu fazia disciplinas de trabalhos manuais e tínhamos
que colocar nossos trabalhos em exposição. Ganhei duas vezes a
exposição, levando toritos. Eu levava o torito pra cá, pra lá, para a
escola e para o trabalho.
	 Quando criança, eu fazia artesanato e ajudava minha mãe.
Eu gostava de pintar e adornar. Colocávamos umas pedras que
pareciam diamantes, depois colocávamos no forno e ele ficava
brilhando. Quando decidi vir para cá, meu padrasto perguntou se
eu não ia levá-lo comigo, dizendo que meu companheiro iria chorar.
Preferi não trazê-lo, mas depois pensei que devia ter trazido. Eu
quis deixar lá e deixei. Ele falava que eu podia vendê-lo aqui.
	 Quando estava arrumando minha mala, também pensei
em trazer meu perfume, que eu gostava muito. Aqui acho que não
tinha, encontrei depois, só que é caro, lá é barato. É fabricado lá.
Minha tia disse que eu não devia levá-lo, pois ia ficar no aeroporto.
Arrumei minhas malas e fiquei pensando que não sabia que tipo de
perfume vendia no Brasil. A minha ex-namorada me acompanhou
até o aeroporto e me deu um presente. Eu abri e era o perfume. O
pacote completo da marca, a melhor marca de perfume de lá. Só que
eu não sabia como dizer que não podia levar. Aí comecei a passar em
mim para ficar com o cheiro no meu corpo. Ela perguntou porque
eu estava fazendo aquilo e disse que sentia muito, mas o presente
ia ficar com ela. Ela disse que ia jogar no lixo, mas não sei se era
verdade. O cheiro do perfume era bom, eu gosto dos amadeirados.
29Histórias que se cruzam na kantuta
Depois de um ano e meio voltei, fui com uma emoção, cheguei
lá e não tinha nada no vidro de perfume, não sei quem usou. Me
disseram que tinha evaporado. A única solução foi a resignação.
Para finalizar, gosto de um poema, intitulado “Recomeçar”, do
brasileiro Paulo Roberto Gaefke, que diz assim:
“Não importa onde você parou,
em que momento da vida você cansou,
o que importa é que sempre é possível
e necessário ‘Recomeçar’.
Recomeçar é dar uma nova
chance a si mesmo.
É renovar as esperanças na vida
e o mais importante:
acreditar em você de novo.”
30 Sí, yo puedo!
uma ouTra imaGem do BrasiL
Franz Mijail Sanabria Galván
Sou Franz Mijail Sanabria Galván, tenho vinte e quatro anos
e sou boliviano. Nasci na cidade de Potosí na Bolívia e me criei
sozinho. Não conheci meu pai e quando eu tinha um ano, minha mãe
foi para a Argentina trabalhar. Meus avós me criaram. Fui morando
de cidade em cidade. Mudei de Potosí para Sucre e de Sucre para
Cochabamba. Tudo por causa de estudo. Fiz Ensino Fundamental
em Sucre, depois Ensino Médio em Cochabamba e voltei a Sucre
para estudar na universidade. Estou em São Paulo há três anos.
Potosí é uma cidade fria, porque fica na Cordilheira dos
Andes, faz fronteira com parte do Chile. O clima é frio e por ser um
clima frio as pessoas também são assim. Não é tão amigável, é mais
fechada. Saímos dessa cidade em busca de um melhor clima e de um
centro econômico, que naquele momento estava se desenvolvendo
em Sucre. Isso foi o que contaram meus avós, pois saí de lá quando
tinha dois anos. Em Sucre, fiquei até meus treze anos. Sucre é uma
31Histórias que se cruzam na kantuta
cidade pequena, onde você chega a conhecer toda a cidade por ser
muito pequena. O clima é temperado. Passei minha infância nos
parques de lá com meus primos.
	 Em Cochabamba houve uma mudança, pois passei a viver
com meu tio. Meus avós ficaram em Sucre. Eu estava sozinho lá e
penso que foi uma etapa da minha vida em que tomei consciência
de mim como pessoa. Fui me tornando mais independente. Foi a
etapa que mais desfrutei, pois eu auto me governava. Mas também
tinha minhas restrições. Foi a melhor época!
	 Estudei em uma universidade pública em Sucre e quando
terminei, estudei Inglês por dois anos, depois vim pra cá. Na
infância, eu era muito enfermito. Durante o inverno sempre adoecia,
pois tinha doenças pulmonares, gripe e tosse. Isso me ajudou. Se
você está doente, você valoriza mais sua saúde. Enquanto eu estava
doente, meu tio, que esteve na Rússia, me emprestava alguns livros
e me fazia ler. Eu não tinha nenhum interesse, lia por ler. Depois
ele me perguntava o que eu tinha conseguido entender dos textos
e me dizia que eu tinha que analisar as personagens, pois cada
personagem tinha uma vida própria, que ia se desenvolvendo na
obra. O conteúdo para um criança era muito complexo. Em todos os
livros que li, sempre vi refletida uma parte de mim nas personagens.
O modo como viviam, agiam, pensavam. Quando voltou da Rússia,
meu tio nos trouxe outra perspectiva da vida. E isso marcou a todos.
Ele trouxe a possibilidade de observar a vida de outra forma.
	 Durante a época universitária, trabalhei com meu professor.
Eleeraengenheiroelétricoeeuestagiavanaoficinadele,arrumando
motores. Trabalhei, aproximadamente, dois anos com ele. Eu fiz
graduação em mecânica industrial, pois meu avô é mecânico, então
quis seguir seus passos. Terminei o curso, mas não tive tempo
de trabalhar nessa área. Mas penso que o tempo de estágio com
meu professor foi suficiente. Foi nessa época que se apresentou a
oportunidade de vir aqui. Tinha assistido um documentário, que
não era sobre o Brasil, mas dizia que quanto mais experiências
você tiver em sua vida, mais conhecimento você vai adquirir. Assim,
quando se apresentou a oportunidade de vir, eu a tomei, pois
quanto mais experiências novas eu tiver, mais conhecimento. Esse,
então, foi o motivo, não tanto o futuro econômico, porque não dou
tanta importância ao dinheiro. Falei do documentário para meu tio
e ele disse que se eu quisesse podia vir ficar seis meses ou um ano
com ele, só para conhecer essa outra realidade que era o Brasil. Eu
respondi: “Tá certo!”.
32 Sí, yo puedo!
	 Na Bolívia, eu assisti o filme Cidade de Deus. Por causa desse
filme, eu tinha criado uma outra imagem do Brasil, achei que se você
chegasse aqui, você morria. Outro que assisti foi o de um moleque
que sequestrava um ônibus, Parada 184.
	 Eu conheci a Projeto Sí, Yo Puedo! quando fui perguntar
sobre uma documentação. Queria regularizar meu diploma para
trabalhar na área que me formei. Cheguei a averiguar no consulado
e tinha que fazer muitos trâmites, muito burocráticos. Achei melhor
estudar de novo.
	 Sempre mantenho contato com meus avós, já voltei três
vezes à Bolivia desde que cheguei aqui. Quando volto, lá parece
muito diferente. A relação com meus parentes não mudou. A parte
afetiva também não mudou nada. Mas as cidades mudaram muito.
	 Sinto falta da Bolívia, pois lá tenho mais liberdade, talvez
por ser meu país e eu poder ir a qualquer lugar. Lá você pode entrar
nas diversas comunidades. Mas aqui não. Quando cheguei aqui a
barreira não foi o idioma. Eu me surpreendi porque pensei que aqui
as pessoas entendiam espanhol, pois como o Brasil está rodeado
de países que falam espanhol, era como obrigação, não? O Brasil
fica isolado do resto. Todavia, fui me adaptando e foi mais fácil. A
leitura de textos e livros me ajudou bastante. Eu sabia que ia ter
dificuldade pela língua, porque era diferente.
	 Antes de chegar aqui a imagem era outra. Achava que
eu ia ter dificuldade com o idioma e passar por uma possível
discriminação das pessoas, mas quando cheguei aqui fui tudo
ao contrário. A gente brasileira é muito acolhedora. O português
é similar ao espanhol, então foi fácil entender a língua. Antes de
vir pra cá, meus amigos engenheiros também haviam dito que por
causa do présal tinha muita oportunidade na minha área.
	 Minha família é uma família pequena. Meu avô tem sete
filhos. Eu tenho seis tios. Também tenho uma irmã que já terminou
medicina. Eu vivi com meus avós porque naquela época meus tios
eram adultos, estavam estudando ou morando em outras cidades e
meus avós estavam sozinhos, então fiquei com eles. Ao criarme com
meus avós, consegui aprender o dialeto quechua. Aprendi muitas
coisas lá com meus avós.
	 Hojetrabalhocomcostura.Trabalhoparameutio.Égracioso
lembrar que, durante o colégio, eu tinha um círculo de amigos que
gostava de rock. Eles pediam que meu tio, que era alfaiate, fizesse
calças pretas ou deixasse as calças pretas mais justas. Meu tio não
queria fazer isso e foi aí que comecei a costurar. Costurava as calças
33Histórias que se cruzam na kantuta
dos meus amigos. E também ganhava algum dinheiro. Trabalhei
com meu avô também, na área de mecânica, sempre o ajudei.
	 Quando decidi vir pra cá, estava em Sucre, a cidade onde
atualmente minha família mora. Eu já tinha falado com eles dois
meses antes da minha viagem. Estávamos aguardando a data da
viagem. Na última semana, consegui me despedir dos amigos
e organizar meus papéis. Eu não estava trabalhando naquele
momento. Todo mundo concordou, só que minha mãe falou que eu
teria que trabalhar e ganhar experiência na minha área lá na Bolívia
antes de vir para o Brasil. Como eu já tinha falado com meu tio, que
morava aqui, foi mais fácil convencêla de que eu iria estudar aqui.
	 Eu gostei da gente daqui, muito alegre, sempre trata de
bater papo, são amigáveis. Meus planos agora são passar no
vestibular da USP e fazer a faculdade de Letras. Me falaram que
na USP você tem a opção de estudar inglês, francês e russo. Posso
trabalhar como intérprete ou tradutor. E posso conseguir emprego
numa editora. Também quero realizar outros projetos que tenho
com meus amigos na área de confecção de roupas. Eu e um grupo
de amigos estamos pensando em montar uma loja online de venda
de roupas. Cada amigo terá uma função, por exemplo, de cortador,
desenhador, estilista, piloteiro e costureiro.
	 Antes de vir, preenchi no formulário que eu viria para
estudar. Se você vem como turista tem que comprar a passagem
de ida e de volta. Em outra modalidade só precisa da passagem
de ida. Quando cheguei, tirei todos os documentos aqui. Foi fácil.
Eu me surpreendi! Porque a organização aqui quanto a entrega
de documentação é certinha, você marca a data e eles entregam. É
bastante diferente lá da Bolívia. É complicado tirar a documentação
lá. Quando tirei a documentação não tinha conhecimento das
instituições que auxiliam os imigrantes, mas foi mais fácil pra mim,
porque meu tio já tinha toda a documentação e me orientou. Eu me
considero privilegiado, porque é muito mais fácil morar com uma
pessoa que você já conhece e que já está aqui há mais tempo.
	 Eu vim de ônibus. A viagem foi legal, durante o trajeto eu
tive a oportunidade, numa parada, de ter um primeiro contato
com um brasileiro. Foi minha primeira experiência com a Língua
Portuguesa. Os ônibus que partem de lá chegam na estação Barra
Funda.Essaestaçãoémuitolotadaequandochegueimesurpreendi,
porque tinha muita, muita gente. Quando cheguei, meu tio estava
me aguardando lá. Ele comprou os bilhetes do metrô e foi a primeira
vez que eu passei por uma catraca e andei de metrô. Como eu tinha
34 Sí, yo puedo!
medo de me perder em São Paulo, passei a tomar como ponto de
referência as estações de metrô, pois uma das primeira coisas que
aprendi foi me locomover pelas linhas do metrô.
	 Meu tio me falou de um centro, onde tinham eventos
culturais, com ingresso gratuito ou que custava um real, comecei
a ir às apresentações de música, de teatro e passei a frequentar a
Biblioteca São Paulo. Aqui você tem muitas oportunidades, é só
aproveitar! Conhecer gente e fazer contatos ajuda muito. Nesses
três anos, eu consegui conhecer muita gente, aprender a língua e
também conhecer gente não só do Brasil, mas de outros países. Eu
cheguei a trabalhar como voluntário na Copa de 2014 e conheci
muita gente! Trabalhei no credenciamento. Já fiz inscrição para
trabalhar no mundial da Rússia.
	 No momento de fazer a mala, minha mãe não estava e eu
enchi a mala: uma metade com livros e a outra metade com roupas.
No momento de pegar a mala, minha mãe perguntou o que eu
estava levando, porque estava muito pesada, e eu não disse nada
pra ela, falei que eram só roupas. Quando chegamos na fronteira,
ela revisou as malas e encontrou os livros. Ela quase enlouqueceu,
perguntando porque eu estava trazendo tantos livros. Mas eu
precisava trazer. Eu costumo ler de vez em quando, porque cada
livro tem seu significado.
	 Decidi trazer livros dos quais eu gosto muito, por exemplo,
eu trouxe Dostoievski, pois gosto da literatura russa. Um autor
que admiro muito é Jorge Luis Borges. Outro autor é Frederico
Garcia Lorca, que morreu durante a guerra civil espanhola, foi
assassinado. Ele era amigo de Salvador Dali. Trouxe também um
livro de Albert Einstein, que não é sobre o conteúdo matemático,
mas sobre a filosofia da teoria da relatividade. Outro autor que é
um gênio é Antón Chéjov. Tenho também um livro de Nietzsche,
Humano, demasiado humano, que na verdade era de minha mãe. Ela
lia bastante quando morava na Argentina.
	 A maioria dos livros que tenho tem uma numeração, isso
significa que pertenceram a uma biblioteca. Lá em Sucre tinha uma
biblioteca financiada por uma Ong espanhola, mas a biblioteca
quebrou e para pagar as contas de luz e água, eles tiveram que
vender o acervo. E a gente colaborou! Consegui comprar alguns
livros. Foi dessa forma que obtive a maioria dos livros. Deixei muitos
livros lá, mas os que eu trouxe são dos autores que eu mais admiro.
	 Muitos desses livros, cheguei a compartilhar com outras
pessoas, não ficaram só comigo. Eu difundi entre meus primos,
35Histórias que se cruzam na kantuta
emprestei para eles. Alguns foram devolvidos, outros não.
Emprestei para amigos também. Esses livros me lembram meus
amigos, familiares e pessoas próximas que conheci. As relações que
tive antes de vir para cá.
36 Sí, yo puedo!
aQui É Tudo muiTo LoNGe!
Lucia Ireyo Raimundo
Meu nome é Lucia Ireyo Raimundo, tenho cinquenta e
cinco anos e sou de Bolívia. Hoje estou trabalhando de babá e estou
aprendendoafazeroutrascoisas,comopintar,costurar,tudo!Minha
história é um pouquinho triste. Quando eu era pequena, minha mãe
faleceu e as três irmãs ficaram sem mãe. Somos três irmãs. Assim,
aprendi na vida, sofri tanto, fui crescendo, crescendo. Estudei um
pouco e parei. Meu pai não nos fazia estudar. Assim fui crescendo e
apareceu um trabalho com uma senhora que é minha conhecida, fiz
contrato com ela e vim aqui ao Brasil trabalhar, para cuidar de suas
duas filhas. Estou há quatro anos aqui.
Tive quatro filhos, que vivem na Bolívia. Deixei meus filhos
e vim sozinha pra cá. Uma esteve doente e faleceu. Ela tinha 31
anos, sua doença, era leucemia. Um vírus contagioso lhe subiu ao
cérebro e ela não resistiu. Isso foi em 2014. Havia ido para a Bolívia
e outra vez voltei ao Brasil para seguir trabalhando, com o coração
37Histórias que se cruzam na kantuta
partido, longe de minha família. Aqui tenho amizades que me
apoiam bastante. Meu filho mais velho quer que eu volte à Bolívia
para que a família fique toda junta. Vamos ver se sigo aqui ou vou
regressar. Só Deus sabe o que vai passar. Sei que quero continuar
trabalhando.
	 Estou um pouco triste, um pouco alegre, mas estou feliz.
Fico triste quando penso em minha filha que faleceu e já não está
presente. E alegre quando estou com minhas amizades. Quando nos
reunimos e estamos em grupo fico um pouco alegre e me esqueço
de tudo. Mas vai passar, porque isso passa, embora não se possa
esquecer tão rápido.
	 Lá na Bolívia, eu trabalhava muito, tinha um negócio e
vendia cachorro-quente, frango, batata, arroz e salada. Vendia de
tarde até uma da manhã. Depois, me levantava cedo para novamente
ir às compras. Eu gosto de cozinhar. O povo que me conhecia lá, me
pedia para que eu preparasse almoço e janta. E assim vivi! Trabalhei
bastante, sem descansar. Aqui já descanso, quase não trabalho
muito. Descanso sábado e domingo. E durante a semana trabalho
normal, cuidando das meninas. Já trabalhei muito para ajudar os
meus filhos, pagar água, comida e luz. Quando separei do pai deles,
ele não ajudou.
	 Eu morava em Santa Cruz, mas nasci em outro lugar, em
Yacuiba. Como meu pai gostava de trabalhar indo de um lugar a
outro, saímos de nossa casa e fomos para outra cidade, onde faleceu
minha mãe, no parto. Eu tinha cinco anos. Fomos para Santa Cruz e
meu pai permaneceu aí, trabalhando.
	 Antigamente, você não podia estar conversando com um
menino fora se não levava palmada, apanhava. Minha irmã teve
que casar aos treze anos, pois estava conversando com um menino
de dezoito anos. Mas ela não dormiu com ele, porque era muito
menina. A sogra da minha irmã cuidou dela e, depois, de nós, pois
meu pai foi embora com outra mulher. Crescíamos e já não havia
como comprar um livro ou um lápis para mim e para minha irmã,
porque meu pai não aparecia e minha irmã não trabalhava. Não
terminei a escola. Ficamos sem estudar quando eu tinha oito anos.
	 Tenho uma tia, por parte de mãe, que nos levou para morar
com ela. Passamos dois anos com minha tia e ela morreu, enfarto.
E assim fui crescendo, comecei a trabalhar, me casei, não me casei,
me juntei. Tampouco fui feliz com esse homem, fracassei em meu
matrimônio. Acabou tudo porque ele bebia muito. Depois de
muito tempo voltei com ele e ia casar, mas ele não mudou e eu já
38 Sí, yo puedo!
não estava acostumada, então separei mesmo. Fui amadurecendo,
criando meus filhos e trabalhando. Meus filhos e meus netos são
minha vida!
	 Gostaria de voltar a casar, necessito de um companheiro
para conversar. Meus filhos não querem que eu case, que eu namore,
que nada! Porque eles têm medo que o homem me bata ou que eu
sofra. Um brasileiro, quando eu morava em Curitiba, já tentou casar
comigo, mas eu não quis, pois tinha que trabalhar aqui. Toda a
família dele era muito boa comigo, mas tenho que pensar bem para
ter uma relação com alguém. Em todo lugar que íamos, havia um
brasileiro enamorado por mim. Todavia, eu não dava chance. Por
fim, mudamos para São Paulo e aqui já não tenho namorados, só
admiradores.
	 Quando cheguei da Bolívia fui direto para Curitiba, morei
cinco meses lá, depois mudamos para Cuiabá. Sempre quis vir ao
Brasil para trabalhar e gostei de ter vindo, porque sempre pensava:
“Eu quero ir ao Brasil!”. Porém, quando cheguei, queria ir embora,
pois eu não aguentava e chorava, porque já não estava acostumada
a cuidar de crianças. Eu chorava e dizia “Deus meu, o que tanto fiz
para vir parar aqui?”. Todavia, vim orientada por uma ministra,
membro da Igreja Messiânica, que me disse que eu deveria ficar no
Brasil e juntar dinheiro para garantir meu futuro. “Aguente o que
venha, mesmo que chore sangue, fique”, ela me dizia.
	 Quando decidi vir para o Brasil, minha vida lá na Bolívia
estava ruim. Estava sem dinheiro e meu negócio não dava retorno.
Foi quando me falaram desse trabalho, aí eu vim. Choraram tanto
por mim! E eu também chorei. Eu conhecia a tia da minha chefe,
que me incentivou a vir para o Brasil acompanhar sua sobrinha. Eu
vinha só por um tempo, mas eles gostaram do meu trabalho e eu
sou esperta para cozinhar, então fiquei.
	 Teve uma época que fui passar as férias na Bolívia e não
voltei, fiquei lá por onze meses, trabalhando para mim, pois faço de
tudo relacionado a vender. Tinha minha família também. Fiquei lá,
pois a mãe da minha chefe dizia que eu só ganhava dinheiro, sem
fazer nada, escutei e fiquei brava. Gosto que me falem de frente.
A minha chefe trouxe outra pessoa da Bolívia, mas essa pessoa
brigava muito com as meninas, pelo que me disseram. Quando
liguei para uma das meninas para desejar feliz aniversário, minha
chefe perguntou se eu não queria voltar. E eu voltei, mas falei que ia
embora outra vez, que só ficaria três meses. Mas já estava tirando
documento, então fiquei.
39Histórias que se cruzam na kantuta
	 Não entendia muito bem o Português, falava, mas não
entendia. Falava tudo errado. Fui sozinha tirar meus documentos.
Fui com medo, porque eles não me entendiam. Me disseram que
eu devia ir à Lapa. E eu falava para eles: “Por que você não fala
espanhol? Quase não entendo nada, explica devagar para mim!”.
Tinha outro boliviano lá e foi ele quem explicou onde eu tinha
que ir. Não entendia nada para tirar meu RNE. Não conhecia nada,
era outro idioma e é muito difícil quando você entra e não sabe
nada. Aprendi assistindo tv, escutando rádio e fui aprendendo um
pouquinho. Quando saía na rua me dava medo, tinha medo de que
os outros falassem comigo, porque eu não entendia nada e tão
pouco eu podia perguntar algo. Eu ficava perdida, não sabia como
caminhar. Não sabia falar, nem entendia. Agora entendo, porque fiz
um curso.
	 Na Bolívia, meu sonho sempre foi o Brasil. Eu tentei vir três
vezes com o grupo da Igreja Messiânica, mas meu marido, com
quem casei depois do meu primeiro marido, não queria. Quando
vim, não acreditei que estava no Brasil. Vim de ônibus. Gosto de
viajar de ônibus para desfrutar a paisagem. Eu não acreditava que
era eu quem estava entrando. Graças à Deus conheci várias partes
do Brasil. Para mim fui um sonho. Com a minha chefe fui para o Rio
de Janeiro e conheci o mar, fomos comer peixe e camarão. Nunca em
minha vida tinha visto o mar, só nos filmes. Que lindo é quando o sol
adentra no mar! Foi o mar mais grande que conheci.
	 Daqui, eu gostei muito do suco de goiaba, nunca tinha
tomado. Há coisas aqui que não aproveitamos lá. Há sucos de
todos os tipos aqui. Lá só chupamos as frutas e não usamos para
outras coisas. O suco de acerola também é bom! Quase ninguém
lá conhecia acerola. Não sabiam como preparar o suco e tão pouco
sabiam o que era acerola. Aqui tem muitos tipos de sopa, como de
folhas verdes. Aqui é diferente! Eu gostei das coisas aqui. É fácil de
comer as coisas, porque eu gosto de comer.
	 Aqui é tudo muito longe, muito cansativo. Para caminhar
tem que sair cedo. Só isso, mas você acostuma. Antes não costumava
caminhar muito. Onde eu morava, eu caminhava meia quadra até
onde o ônibus passava. Não estava acostumada a caminhar tanto.
Lá nunca tinha andado de elevador e escada rolante, andei aqui.
	 Santa Cruz antes era mato, mas agora está crescendo
bastante. As pessoas do interior estão indo para lá. Fui de Bolívia
para Curitiba, moramos em Juruena, no Mato Grosso, muito linda,
muito bonita! Eu gostei. Perto de Curitiba fomos a um lugar que
40 Sí, yo puedo!
fazia muito frio, então mudamos para Campo Grande e ficamos
lá quase um ano. De Campo Grande viemos para São Paulo e não
gostava de São Paulo, porque era tudo difícil, caminhávamos muito.
Eu falo para meu filho que a Bolívia é um paraíso! É tudo perto, não
se caminha muito.
	 Sobre os brasileiros, eles nunca me incomodaram, onde
eu vou sempre sou muito bem recebida, por mulheres, homens
e crianças. Nunca tive problemas por ser boliviana, nunca me
discriminaram. Aqui, e em todas as partes que morei, fui bem
recebida.
	 Da Bolívia, tenho guardada uma caixinha cheia de bijuterias.
Essa caixinha ganhei do meu filho quando fui de férias ao meu país,
havia quatro brincos dentro, mas nela guardo outras bijuterias que
recebi da gente de lá. Esse meu filho já veio aqui para o Brasil. Eu
dei a viagem de presente de aniversário para ele. Meu filho me deu
esses brincos em um dia particular. Foi a primeira vez que eu recebi
um presente assim dele, acho que quis me dar por sentir carinho.
Fiquei muito contente, porque esse menino é pouco carinhoso, não
é muito apegado a mim. Ele é sério, tem o jeito dele. Sempre foi
assim. Digo que ele é chato, não é atencioso com as pessoas, nem
gentil. Só uso os brincos em casa, não para sair, porque os fechos
dos brincos caem muito na rua. E não gosto de perder nada que me
dão de presente, sou muito cuidadosa! Quando uso eles, lembro do
meu filho. Faz tempo que eu não coloco estes brincos, estavam bem
guardados. Tudo que me regalam eu guardo com carinho.
	 Quando vou à Bolívia, já não acostumo lá, como outros
alimentos e sinto dor de estômago. Lá o tempero é muito forte, tem
muito azeite e sal. Mesmo assim, do que sinto mais falta é da comida
de lá. Sopa de frango caipira com mandioca, acompanhada de um
arroz especial, me encanta comer. Aqui galinha caipira fica longe.
Meus filhos estão com saudade de mim porque eu cozinho. Querem
a comida que eu faço. Eles falam: “mãe você já não vai trabalhar!”.
Para mim meus filhos não são adultos. Dizem que eu não deixo
meus filhos amadurecerem. Eu tenho medo de eles virem morar
aqui, pois outro dia mataram um boliviano. Assaltaram ele, queriam
dinheiro e como não havia dinheiro, então o mataram. Tinha vinte e
quatro anos e fazia três meses que estava aqui. Lá é violento
também. Eu tenho uma vizinha lá na Bolívia, que mataram seu
filho, que vendia maconha. Lá é perigoso também. Só que lá matam
e levam longe. Igual aqui! Matam e levam a outro lugar. Assim é.
41Histórias que se cruzam na kantuta
LiVre aTÉ de si mesmo
Miguel Ángel Saavedra Aguilar
Meu nome é Miguel Ángel Saavedra Aguilar e só tenho trinta e
seis anos. Sou boliviano, e sim, sei costurar. Conheço o Brasil faz onze
anos. Falo que conheço, porque não morei os dez anos contínuos aqui,
pois voltei para a Bolívia, morei dois anos lá, depois voltei para o Brasil
por um ano, voltei para a Bolívia de novo e assim foi. Nasci em La Paz, mas
nem sempre vivi em La Paz. Saí de casa aos doze anos e fui morar em Beni,
trabalhei como ajudante de caminhão e comecei a viajar, por isso conheço
toda a Bolívia. A primeira vez que vim ao Brasil, tinha vinte e quatro anos.
E penso que vir pra cá, talvez, era minha última opção. E assim era para
muitos de meus amigos.
Eu venho de uma família muito pobre, mas não foi esse o motivo
que me fez vir para o Brasil, pois quando eu decidi vir pra cá estava num
momento muito crítico emocionalmente. Lá eu sobrevivia, mas a parte
emocional foi decisiva. Foi uma série de acontecimentos que me trouxe
para o Brasil. Eu lembro que minha situação econômica estava tão ruim,
42 Sí, yo puedo!
que eu vim com uma muda de roupa. Tinha colocado na mochila um par de
sapatos, dois pares de meia, minha carteirinha de jornalista, duas camisas,
uma calça, a passagem de Santa Cruz até Ciudad del Este e cinco bolivianos
no bolso. Era essa minha situação.
	 Também trouxe comigo um artigo que me deram para ler,
intitulado “Masculinidades en la cultura de la globalización”. É um artigo
sobre masculinidades. Era um texto que falava sobre começar a ver
a violência a partir dos homens. Enxergar a violência como algo dos
homens e não exclusivo das mulheres. Foi um dos primeiros documentos
que recebi quando comecei a trabalhar com direitos humanos, quem me
deu isso foi a pessoa que me ensinou praticamente a ler. Eu sabia ler, mas
daquele jeito onde você não entende nada, só repete. Grande parte do
caminho que sigo hoje se deve a essa pessoa, que é um amigo. Ele fez o
maior questionamento que já recebi, perguntou O QUE EU QUERIA SER
NA VIDA. Disse que eu queria ser locutor de uma rádio, só de música, e
ele questionou POR QUE EU NÃO QUERIA SER UM LOCUTOR LÍDER DE
OPINIÃO.
	 Esse amigo é psicólogo, agora. Foi quem me deu a primeira chance
de trabalhar em outros espaços, onde muito além de utilizar as mãos,
também utilizavam “o cérebro”. Lembro que eu trabalhava de Disk Jockey
numa discoteca e esse meu amigo me questionava e dizia: “ATÉ QUANDO
VOCÊ VAI GANHAR SEU DINHEIRO COM SUA GARGANTA? NÃO ACHA
QUE É HORA DE GANHAR DINHEIRO COM SEU CÉREBRO?”. Trabalhei
com ele por muito tempo. Eu era seu secretário. Ele tinha secretário,
não secretária. Então, essas folhas significam para mim, o começo de um
trabalho, o começo de uma vida. Quando tenho algum problema, mando
email pra ele ou ligo pelo chat e trocamos opinião. Vim lendo o artigo no
caminho para o Brasil para me lembrar de onde eu saí, pois esse texto é
uma autorreflexão, é um questionamento sobre o que é ser homem.
	 Quando eu vim para o Brasil, eu não esperava encontrar nada,
só queria fugir do meu país. Mas tinha uma visão do Brasil, achei que
fosse um “Estados Unidos”, que tivesse só prédios e mulher pelada na rua.
Quando eu estava lá, víamos o carnaval do Brasil e lá, pelo menos onde eu
morava, éramos muito conservadores, acho que porque lá é frio. Vim pelo
Paraguai e a primeira coisa que vi foi favela, aí me assustei e questionei:
“Cadê o Brasil que me contaram?”.
	 Quando cheguei aqui, tinham poucos bolivianos. Já tinha no Brás,
onde sempre teve. E a festa dos bolivianos era numa rua pequena, que era
a Rua do Glicério. No ano seguinte, começou a crise na Argentina e muita
gente boliviana que morava lá veio para o Brasil. Com mais pessoas, vieram
as rádios comunitárias, as festas maiores e a mão de obra ficou mais barata.
43Histórias que se cruzam na kantuta
Foi nesse momento que pude perceber que tinham muitas coisas erradas,
por exemplo, os lugares que “ajudavam” os migrantes começaram a cobrar,
lembro muito bem de um anúncio que tinha: “APORTE VOLUNTÁRIO POR
20 REAIS”. Se você coloca um preço, não é voluntário!
	 Antes de vir, eu sabia que ia trabalhar doze horas por dia, comer
e dormir no mesmo lugar, mas em algum momento da viagem comecei a
sonhar, pensei: “Vou trabalhar, conhecer outras pessoas, vou crescer lá!”.
Mas, quando estava aqui há uma semana, já queria voltar para meu país,
pois nunca imaginei que era tão ruim trabalhar doze horas por dia, sem
sair. É quase uma prisão. Não é nem um regime semiaberto, porque você
não sai de lá. Se a minha situação emocional estava difícil, estando fechado,
as coisas pioraram. E o pior é que naquela época você não ganhava nada.
Era trabalhar para pagar, porque eu não sabia costurar e, mesmo que eu
tivesse meu irmão aqui para me ensinar, não é tão simples assim, demora
um bom tempo para você aprender a costurar.
	 Vir para este país foi minha última chance, mas no primeiro ano
que eu estava aqui, eu odiei o Brasil, eu amaldiçoei tanto o Brasil! Porque
tive que trabalhar muitas horas por dia para ganhar pouco. Eu não gostei
mesmo, e pensei: “Não! Eu vou embora!”. Voltei para meu país e de novo
tive uma recaída emocional, então tive que tomar uma decisão, que foi
retornar ao Brasil. Pensei que se costurar ia me tirar de onde eu estava,
iria costurar. Eu ganhava um pouco mais, as pessoas me valorizavam mais
e já comecei a interagir com outras pessoas. As pessoas me chamavam
para trabalhar com elas. Percebi que meu trabalho estava melhorando. Aí
comecei a estudar, comecei a procurar outras coisas.
	 No Brasil, tentei me integrar na comunidade dos migrantes, tentei
entrar no círculo dos bolivianos, só que nunca consegui me integrar por
completo, talvez por minha rebeldia, sou uma pessoa muito rebelde. Então,
voltei para meu país por mais dois anos. Aqui tinha feito um curso de web
designer, não sabia nada, mas era mais valorizado na Bolívia, me falavam:
“Nossa! No Brasil? Vem trabalhar comigo!”. Só pelo fato de ter feito curso
no Brasil. “Você fala Português?”, me perguntavam. Eu não falava nada,
mas respondia: “Falo, falo!”. Penso que se hoje eu volto pra Bolívia, com
certeza tenho um trabalho lá.
	 Eu penso que conheço o quão difícil é a área da costura. Sei que
a costura não é opção como muitas pessoas acham. Na verdade, você é
empurradoparatrabalharnela.Hoje,porexemplo,estãovindooshaitianos,
todo mundo fala deles, mas os bolivianos também estão chegando e em
grande quantidade. Por que ninguém fala? Por que ninguém fala dos
jovens que estão vindo? Eles também estão trabalhando no mesmo regime
análogo à escravidão. O boliviano é visto como trabalhador escravo e o
44 Sí, yo puedo!
haitiano é trabalhador por direito. É muito complicado quando as pessoas,
que dizem que representam os migrantes, simplesmente os utilizam como
bandeira política, pois assim só fazem medidas paliativas, pois querem
ficar bem com seus amigos. De tudo acontece nessas relações utilitárias.
	 Aqui não encontrei nenhuma facilidade quando cheguei pela
primeira vez, pois não tinha documentos. Minha ideia foi sair na rua,
achando que ia encontrar um serviço, achando que eu ia fazer alguma
coisa, mas não, ninguém te abre a porta. Caminhei, caminhei, caminhei.
Bati portas, perguntei como alugava uma casa e me disseram que precisava
ter documento e conta no banco. Como tinha a carteirinha de jornalista
da Bolívia, fui procurar trabalho como jornalista, mas a carteirinha não
era válida aqui. Hoje é mais simples, aspas, porque você chega e tem mais
facilidade de obter os documentos.
	 Quando precisei renovar a documentação no Brasil, pedi licença
de um mês no trabalho, lá na Bolívia, para vir aqui e aproveitei para fazer
umas entrevistas para uma matéria sobre estupros e abusos nas oficinas
de costura. Nessa época, fiquei sabendo que tinha prostituição na Rua
Coimbra! Só que agendaram meus documentos para seis meses depois.
Pensei: “Fico ou volto?”. Liguei e disse no meu trabalho que ia ficar aqui.
De volta ao Brasil, fui em um instituto de informática, do nada, e falei:
“Quero dar aula!”. Pediram meu currículo, eu entreguei e me deram a
oportunidade. Tive que dar aula, em português, para brasileiros e topei.
Nas primeiras três turmas que peguei para dar informática, eles pagaram
para me ensinar português, porque eu perguntava mais pra eles, do
que eles perguntavam pra mim. Nisso, percebi a necessidade de se falar
português, porque conseguia até falar, mas não me comunicar. Agora
consigo entender quando as pessoas fazem piadas e brincam, naquela
época não conseguia entender.
	 Agora sou consultor, dou consultoria para microempreendedores,
no campo das relações humanas, pois tenho conhecimentos em
comunicação e experiência na área, que adquiri quando trabalhei com
um dos melhores psicólogos da Bolívia. Também fiz cursos aqui de PNL,
Coaching Sistémico e Design Thinking, o que me deu mais ferramentas
ainda. Quando há problemas com produtividade, então eles me ligam e
eu vou lá tentar resolver problemas. Eu cobro por solucionar problemas.
Não dou conselhos, dou consultoria. Uma das coisas que eu mais gosto
é me comunicar com as pessoas e perguntar, vivo fazendo isso e cobro
por fazer isso. É bem legal! Entrei no mercado dos microempreendedores
quando fiz um curso de empreendedorismo no SEBRAE, que te dá muitas
ferramentas, mas para quem está começando não se aplica, porque a
pessoa precisa de outros conhecimentos e disciplinas, uma vez que
45Histórias que se cruzam na kantuta
entendo que o início para um microempreendedor, na maioria das vezes, é
a informalidade. É nesse sentido que vejo que não se aplica.
	 Tenho um programa de rádio, em espanhol, que é uma cópia
de um programa de rádio que tínhamos lá na Bolívia, onde falávamos
de direitos humanos. Eu sempre trabalhei com direitos humanos, desde
1999. É uma área que me identifico muito. E quando vim para o Brasil, me
identifiquei ainda mais por causa da discriminação no acesso ao trabalho
e também pela desigualdade social que tem aqui. No início, o programa
era uma cópia, um programa chato que todo mundo ouvia, mas ninguém
escutava. Então, fizemos um contato via skype com um amigo que mora
na Argentina e do nada virou outro formato. Agora é um programa mais
dinâmico, falo de tudo, desde educação até folclore. O foco é que as
pessoas discutam seus problemas e em primeira pessoa. Penso que é hora
de acabar com o discurso perfeito, com o politicamente correto. Mesmo
que a pessoa não seja formada, não tenha um conhecimento além da sua
experiência de vida, acho importante ouvir as pessoas e parar de ser guru.
	 Em um primeiro momento procurei a Praça Kantuta para
ministrar cursos lá, mas a direção da época disse: “Não!”. Fiquei muito
decepcionado, pois eles falavam que faziam as coisas, mas não tinham a
“cabeça aberta”. Depois conheci a Jobana Moia, que me indicou a Veronica
e, assim, conheci o Projeto Sí, Yo Puedo! e passei a ser voluntario lá. No
projeto, a cada final de turma, temos as formaturas e numa formatura
fizeram uma peça de teatro. Depois numa outra turma, não sabíamos o
que fazer para a formatura, aí resolvi fazer uma apresentação em stand-up
e gostaram. O teatro foi uma coisa que apareceu do nada em minha vida.
Não sou um artista, mas um aprendiz. Penso muitas coisas e não tenho
onde falar. Gosto do teatro, porque posso falar o que eu quero, as pessoas
podem concordar ou discordar, podem me amar ou me odiar. O teatro pra
mim é um espaço criativo, onde sou eu mesmo. Tomara que as pessoas
não se conformem nunca. Acho que a certeza de que está fazendo a coisa
certa é um problema. Penso que a dúvida e a curiosidade são as melhores
coisas! E o segredo é não se fechar, não pensar que porque sou assim, vou
acabar assim. Gosto de um grafite que diz: “Livre até de mim mesmo”. Não
somos artistas, mas somos a arte.
	 Falando em preconceito, eu achava que não tinha, mas aqui tem
preconceito também, penso que eu nunca sofri preconceito. Tenho uma
experiência muito legal com relação ao preconceito, uma vez quando eu
estive dando aulas, uma pessoa mudou de turma porque eu era boliviano.
Era o que eu pensava. A pessoa falou na diretoria que ia trocar de turma,
porque o professor parecia não saber o conteúdo. Eu falei para diretora
que se eu não sabia, não seria na primeira aula que me diriam que não
46 Sí, yo puedo!
sei. Eu achei que era preconceito. Foi muito difícil pra mim. Eu entrei em
depressão. Olhei-me no espelho e falei: “O que de diferente tenho?”. Mas
depois, foi engraçado, levei um amigo boliviano lá na escola e ele me falava
que tinha uma amiga muito legal. “Ela me ajuda em tudo, entende o que eu
falo”, ele me dizia. Na formatura, ele me convidou e me apresentou a amiga
dele e era aquela menina que eu achava que tinha preconceito comigo. Foi
um choque pra mim. Aí eu fiquei pensando: “Será que o preconceito estava
nela ou em mim?”. Porque se ela fosse preconceituosa nunca teria virado
amiga do meu amigo, mas ela o ajudava.
	 Outra experiência que tive com relação ao preconceito, foi quando
comecei a frequentar o Projeto Sí, Yo Puedo!. Passei a pegar o ônibus que
ia para Edu Chaves, onde tinha muito boliviano, e foi quando percebi o
preconceito que tinha de verdade. As pessoas maltratavam os bolivianos
dentro do ônibus. Antes eu não pegava este ônibus. Quando eu subia no
ônibus, já começavam com piadinhas. Eu dava dez reais para o motorista
e ele dizia que não tinha troco, eu dizia que podia esperar e ele dizia que
eu podia descer. Eu ficava chateado e reclamava, pois eu estava pagando,
e ele insistia que não tinha troco e dizia que eu devia descer. Se eu fosse
brasileiro, ele não fazia isso. Aí eu descia do ônibus. Foi quando pude ver
o preconceito de algumas pessoas. Eles falavam com os bolivianos coisas
como: “Fica lá no fundão! Você tá fedendo!”. Coisas duras. “Tem que tomar
banho!”, diziam.
	 Recentemente, morreu um amigo meu e disseram que mataram
ele porque boliviano costuma andar com dinheiro. Disseram que foi
latrocínio. Mentira! Conheço meu amigo e ele nunca teve dinheiro, pegava
o dinheiro que ganhava e mandava pra Bolívia. Não se vestia bem, não tinha
carro, nem uma bicicleta ou um tênis bom ou celular. Sempre questionei
o discurso que muitas pessoas têm quando falam que o boliviano tem
dinheiro guardado em casa, pois para mim as pessoas podem guardar
o dinheiro onde quiserem. A obrigação do Estado é dar segurança, não
só para os bolivianos, mas para a população em geral. Este meu amigo
morava num bairro da periferia. A parte mais dura é ouvir que é “um caso
excepcional”. Outro questionamento meu é entender por que, se os
bolivianos “têm dinheiro em casa”, tem cada vez mais bolivianos morando
nos bairros da periferia. E pior ainda, desde quando a vítima é culpada?
Possibilitaram-nos abrir contas em bancos, porque bolivianos guardam
dinheiro em casa, mas, não podemos guardar dinheiro em casa? Somos os
responsáveis por sermos roubados? Eu tenho direito de guardar dinheiro
onde eu quiser. Por que vão me obrigar a reforçar um sistema ganancioso
que é o banco. Colocam a culpa na sociedade e não acho que deva ser
assim. Digo isso, pois ouço muito dizer: “É que eles guardam dinheiro em
47Histórias que se cruzam na kantuta
casa”. Outra, quantas pessoas precisam morrer? Tem que se tornar algo
comum para que se faça alguma coisa? O discurso repetitivo não serve
para os migrantes, não queremos nada a mais, simplesmente queremos o
que todo ser humano quer, mas o Estado e as lideranças, lamentavelmente,
não querem, pois muitos sobrevivem à custa dos migrantes.
	 Acho que com relação à imigração, o maior problema não é chegar
ao Brasil, o problema é antes de você sair do seu país. O Brasil tem seus
problemas, mas acho que falta uma cultura de migração na Bolívia. Falta
uma educação para o mundo. Você não é preparado para sair de lá. No meu
país não tem uma cultura de emigração. Ouvi falar que no Uruguai tem
uma cultura da migração, pois te preparam para sair do país, e isso pode se
perceber quando um estrangeiro chega aqui, a primeira coisa que ele faz é
aprender o idioma. Porém, de onde eu venho, na minha região pelo menos,
as pessoas vêm para cá pensando em ganhar dinheiro, então aceitam tudo.
Boliviano é visto como mão de obra barata. Em muitos lugares, onde eu
já fui, as pessoas querem me pagar menos e acho que o motivo é o fato
de eu ser boliviano. Tem um preconceito muito grande contra bolivianos
no sentido profissional. Boliviano é igual costura. Tudo bem que eu sei
costurar, mas isso não me impede de aprender outras coisas. Acho que
a mídia dirige muito a visão com relação ao povo boliviano, boliviano
profissional não é notícia, boliviano escravo é notícia. O mais triste é que
na comunidade de imigrantes acontece a mesma coisa.
	 Às vezes, as pessoas acham que aprender o idioma é a última
coisa a se fazer, mas é o contrário, aprender o idioma é a primeira coisa
a se fazer. O idioma é primeiro passo para a integração do imigrante. Na
minha visão, olhamos o Brasil não como um lugar de oportunidades, mas
um lugar onde se vai ganhar dinheiro. Se os imigrantes chegam e fazem
parte da desigualdade é complicado para o próprio Estado, por isso acho
que deveriam ter políticas voltadas para formação do imigrante quanto ao
idioma.
	 Hoje, eu acho que ter imigrado foi a melhor decisão que tomei.
Sou muito grato ao Brasil, eu amo o Brasil por ter me dado uma segunda
chance. Quando comecei a pensar que aqui eu tinha uma oportunidade,
mudou toda minha vida. Se eu tiver que voltar a costurar, volto, mas vou
continuar procurando outras coisas. Costurar virou mais uma ferramenta
do que algo ruim pra mim. Aqui conheci muitas pessoas legais, tive
oportunidades e penso que ainda vou ter muitas oportunidades. Acho que
vou viver fazendo ponte entre o Brasil e a Bolívia.
	 Algo com que não concordo, é que as pessoas te olhem com
superioridade,quevenhamteensinar,comoseobolivianonãosoubessede
nada. Ou talvez, eu me sinta inferior. Tenho muita dificuldade com o poder.
48 Sí, yo puedo!
Você diz que todo mundo é igual, mas na realidade não é assim. Como
todo mundo pode ser igual, se nós imigrantes nos discriminamos entre
nós? Sou uma pessoa, por exemplo, que não acha ruim a costura. Não sou
contra a costura, sou contra o sistema que favorece a desigualdade social
e, por consequência, o trabalho análogo à escravidão. Não gosto de ser
politicamente correto, mas tudo bem. Falam da costura como se você não
pudesse ser costureiro, mas se você é psicólogo, você pode ser psicólogo.
Penso que o problema não são as horas de trabalho, pois se você trabalha
numa multinacional, com certeza não vai trabalhar oito horas, a pergunta
é: Por que não falam deles? A questão principal é a desigualdade social.
Ainda continuamos num sistema academista, colocamos o “título” antes
do ser humano. “Você não estudou, então você não presta!”. Como se um
“título” te fizesse uma pessoa melhor. Para mim, se for doutor ou morador
de rua dá na mesma. Mesmo que as pessoas digam que não, elas chegam e
te olham com superioridade. Os estudiosos vêm e ficam nos pesquisando,
querendo saber sobre nossos problemas, acredito que são masoquistas e
que gostam de ouvir histórias tristes, mas ao final acabam dizendo: “Vocês,
imigrantes, têm direitos”, “vocês têm que lutar pelos seus direitos”. Eu
penso que eles acham que somos muito tolos, mas não somos tão burros
assim, sabemos que temos direitos. A questão é por que não exercemos
nossos direitos. Será que este sistema hipócrita, onde os intelectuais da
“pseudo-esquerda” são favorecidos e gozam de lugares privilegiados,
na verdade não prejudica o exercício dos nossos direitos? Pois é muito
cômodo questionar quando sua roupa é feita por mão de obra barata.
Também acho uma perda de tempo, por exemplo, ter uma campanha para
o voto, quando em dez anos que conheço o Brasil, só no ano passado ouvi
falar da constituinte. É como se eu quisesse construir uma casa, mas não
tenho o terreno. A mesma coisa é o voto, você quer ter direito ao voto, mas
sem ter uma constituinte. Precisa ter uma mudança na Constituição, já que
esta impede a participação política dos imigrantes.
	 Hoje estamos discutindo o impeachment da Dilma e há pessoas
que querem que volte a ditadura. Os meios de comunicação vendem
que a ditadura teve suas partes boas. Mas se ditadura volta quem vai se
ferrar são os pobres, não é o Faustão ou o Luciano Huck. Nós compramos
o que a mídia nos vende. Continuamos assistindo a Globo, continuamos
rindo da desgraça dos outros. Não posso exercer minha liberdade se fico
preso à televisão. Na internet, eu posso exercer melhor minha liberdade
de escolha. Achei errado que quem votou na Dilma não foi aos protestos,
pois existe uma militância cega, que não enxerga ou não quer enxergar os
erros, não digo que devam tirar a Dilma de lá, mas protestarem em busca
de mudança. Você acaba votando pelo menos pior, é o que acontece na
49Histórias que se cruzam na kantuta
Bolívia também. A democracia é aquela democracia que outros países nos
ensinaram, mas por que temos que nos submeter a um modelo que foi
imposto? Eu penso que as coisas aqui no Brasil estão mudando muito. A
questão política está muito legal aqui hoje. Eu venho de um país muito
politizado e acho que hoje estamos discutindo mais a política e isso é um
avanço.
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Livro historias que_se_cruzam_na_kantura

  • 1.
  • 2. Copyright © Projeto Sí, yo puedo! Publishing by VGL Publishing Todos os direitos reservados. Se proíbe reproduzir este livro em sua totalidade ou parcialmente, em qualquer forma ou formato. / All rights reserved, including the right to reproduce this book or portions there of any form whatsever. 1ª tiragem – agosto de 2016 – 100 exemplares Coordenação Editorial: Víctor Gonzales – VGL Publishing Diagramação: Diego Rodri Capa: Diego Rodri Supervisão Editorial: Júnia Keiko Matsuura Mearim Supervisão de Conteúdo: Adriana Rodrigues Domingues Entrevistas, transcrição e organização: Luana de Freitas Garcia Tradução: Nanci Adela Kirinus Revisão de Textos: Adriana Rodrigues Domingues, Felix Claudio Mendoza Achumiri, Flaubert Castro Arela, Franz Mijail Sanabria Galván, Lucia Ireyo Raimundo, Miguel Angel Saavedra Aguilar, Veronica Quispe Yujra Ilustração: Nathalia Ju Hyun Jin Fotografia: Flaubert Castro Arela, Luana de Freitas Garcia, Miguel Angel Saavedra Aguilar Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Daniela Momozaki – CRB8/7714 ) G216 Garcia, Luana de Freitas (org.) Histórias que se cruzam na Kantuta/organização de Luana de Freitas Garcia; supervisão de Dra. Adriana Rodrigues Domingues; tradução de Nanci Ade la Kirinus; ilustração de Nathalia Ju Hyun Jin São Paulo: VGL Publishing, 2016. ISBN 978-85 1. Territorialidade urbana - São Paulo 2. Geografia humana - São Paulo 3. Imigrantes - São Paulo 4. Sociologia urbana I. Garcia, Luana de Freitas II. Título CDD 307.76098161 Índice para o catálogo sistemático 1. Territorialidade urbana: 307.76098161 Trabalho apresentado para o Coletivo Sí, Yo Puedo! como projeto de intervenção do estágio em Psicologia Comunitária do curso de Psicologia da Universidade Presbiteriana Mackenzie.
  • 3. Felix Claudio Mendoza Achumiri Flaubert Castro Arela Franz Mijail Sanabria Galván Lucia Ireyo Raimundo Miguel Angel Saavedra Aguilar Veronica Quispe Yujra Narradores
  • 4. PREFÁCIO - OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS Luana de Freitas Garcia “E eu, também posso?” Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e Luana de Freitas Garcia SÃO PAULO É O RETRATO DO MUNDO Felix Claudio Mendoza Achumiri PALAVRAS QUE SAEM COMO FACAS Flaubert Castro Arela UMA OUTRA IMAGEM DO BRASIL Franz Mijail Sanabria Galván AQUI É TUDO MUITO LONGE! Lucia Ireyo Raimundo LIVRE ATÉ DE SI MESMO Miguel Ángel Saavedra Aguilar AH É? TEM QUE FAZER? Veronica Quispe Yujra 05 07 15 22 30 36 41 50 sumário
  • 5. 5Histórias que se cruzam na kantuta OUVIR E RECONTAR HISTÓRIAS Este livro conta as histórias de seis imigrantes, cinco bolivianos e um peruano, que viviam em São Paulo no ano de 2015. Narra os percursos feitos por eles até chegarem ao Brasil e também relata como se deu o contato e a inserção no novo país. O título Histórias que se cruzam na Kantuta faz referência à Praça Kantuta, local frequentado por todos esses narradores. A praça é um ponto de encontro de imigrantes, bolivianos em sua maioria, e é onde ocorre uma feira gastronômica, todos os domingos, numa tentativa de preservar a identidade cultural destes que vêm ao Brasil em busca de trabalho e melhores condições de vida. Kantuta é o nome de uma flor típica do altiplano andino e suas cores – verde, amarelo e vermelho – colorem a bandeira da Bolívia. Na Praça Kantuta também se localiza a tenda do coletivo Sí, Yo Puedo! (SYP), ligação existente entre os narradores e eu, que – com supervisão da professora Adriana Rodrigues Domingues – registrei e transcriei estas histórias. Isto se tornou possível porque o SYP firmou uma parceria com a Universidade Presbiteriana Mackenzie, de modo que nós, estudantes de Psicologia do último ano, podíamos realizar o estágio de Psicologia Comunitária no Coletivo. Durante o período de estágio, observei no discurso da comunidade atendida pelo SYP, que era importante para o imigrante ser porta-voz de sua própria história, como um sujeito que tem muito a dizer sobre a realidade que vivencia. Nesta publicação, ao optar por dar voz ao imigrante, não enquadrei seu discurso em normas e padrões da língua do país de origem ou do país receptor. Os relatos orais transcritos não obedecem um padrão formal, mas estão llenos de conteúdo. Um conteúdo em que começo, meio e fim se confundem, uma vez que memórias não vêm de maneira linear e coerente. prefácio
  • 6. 6 Sí, yo puedo! Assim, resgatando as experiências e as memórias dos imigrantes que se disponibilizaram a relatar os caminhos que percorreram como emigrantes e imigrantes, desde o momento em que decidiram deixar seus lares, famílias e amigos, para se enraizarem em outras terras, também pensei, senti e vivi uma experiência valiosa, que ampliou minha visão de mundo, proporcionando-me um intenso aprendizado e uma autêntica experiência intercultural. Recontar suas histórias em primeira pessoa, reproduzir seus falares ainda no processo de apropriação do novo idioma é reconhecer-lhes e respeitar o direito de contarem suas próprias histórias. É, também, uma forma de dar visibilidade às dificuldades que o imigrante enfrenta ao se inserir em uma terra estrangeira e mostrar as contribuições deste, à nossa cultura. Entendendo a dificuldade no aprendizado da Língua Portuguesa, pensei que as histórias aqui contadas poderiam atingir melhor a comunidade imigrante se pudessem ser lidas independente da apropriação que uma pessoa possui do idioma falado no Brasil, daí a necessidade de se contar estas histórias de vida também no idioma espanhol. As histórias resgatadas se cruzam na Praça Kantuta, mas se encontram e dialogam no SYP, por isso considerei essencial acrescentar ao livro outra história, que não foi registrada por meio de entrevistas gravadas, mas que foi vivenciada pelos narradores, voluntários, população atendida, pela idealizadora do SYP e por mim, ou seja, uma construção de memória escrita do coletivo desde sua concretização até o momento atual. Agradeço a todos que colaboraram com este trabalho e espero que da mesma forma que eu, os leitores se sintam inspirados pelas histórias aqui narradas. Luana de Freitas Garcia
  • 7. 7Histórias que se cruzam na kantuta e eu, TamBÉm posso? Bianca Carolina Pereira da Silva, Julia Ferreira Scavitti e Luana de Freitas Garcia “Sí, se puede!”, “Yo, sí puedo!”, “Yes, we can!”. Bastante ecoados pelo vasto continente americano, tais lemas remetem a histórias de lutas empreendidas por diversos grupos sociais, já que foram respectivamente utilizados por trabalhadores rurais e urbanos grevistas, por movimentos para a alfabetização de jovens e adultos impossibilitados do acesso a Educação, como os promovidos durante o governo do primeiro presidente indígena da Bolívia1 e nas campanhas presidenciais daquele que viria a ser o primeiro presidente norte-americano negro. 1 Uma das primeiras ações da gestão de Evo Morales com relação à área da Educação foi o lançamento do Plano Nacional de Alfabetização denominado “Yo, sí puedo”, tendo por base a experiência e metodologia cubana conhecida e utilizada também em outros países da região, caracterizadas pelo uso de meios audiovisuais, mediados por um docente no processo de ensino e aprendizagem. Seu emprego na Bolívia reduziu a taxa de analfabetismo a 3.7%, índice a partir do qual a UNESCO declarou a Bolívia como “território livre de analfabetismo” em 2014.
  • 8. 8 Sí, yo puedo! Essas expressões estiveram e ainda continuam associadas a buscas por avanços reais dos sujeitos, que representam minorias políticas na sociedade, no sentido qualitativo do termo, por serem recorrentemente marginalizados de direitos fundamentais que garantam condições dignas de vida. Palavras tão cheias de significado como estas foram, enfim, fontes de inspiração para a denominação de um projeto dedicado ao atendimento de imigrantes estabelecidos em São Paulo, em algumas de suas demandas relacionadas especialmente à Educação e ao Trabalho: o coletivo “Sí, Yo Puedo!”. A primeira proposta era a de se chamar “Yo, sí puedo!”, similar ao projeto de alfabetização mencionado, porém no intuito de fortalecer ainda mais a denotação afirmativa da frase, relacionada neste caso ao empoderamento dos imigrantes, preferiu-se colocar o “sí” no início. Os primeiros passos para o projeto podem ser observados em meio a própria trajetória de vida de sua idealizadora, Veronica Quispe Yujra, e de sua família. Neste e em outros casos, escutar e registrar atentamente histórias de vida é uma experiência que pode nos revelar não o sujeito isolado, mas sim situado em meio às sociedades entre as quais desenvolve suas vivências e constrói coletividades, permitindo- nos conhecer suas percepções e visões de mundo, condições de vida, bem como as estratégias individuais e comunitárias empreendidas a partir das mais diversas situações e desafios. Poisbem,vejamosoquenostrouxesuanarrativa!2 Boliviana, nascida na cidade de La Paz, Veronica chegou a São Paulo, aos oito anos de idade com sua mãe e as duas irmãs, Rocio e Maritza, de quatro e quatorze anos. Era 1989, e elas vinham para viver com o pai, que sendo alfaiate na Bolívia, viera um pouco antes a convite de um sobrinho para trabalhar em uma confecção. A decisão do encontro familiar no Brasil, no entanto, não partiu dele, mas de sua esposa, acreditando que nesse novo destino seria possível uma significativa melhoria de vida. Reunida, a família se instalou no bairro do Bom Retiro, em um apartamento localizado em frente ao Centro Cultural Oswald de Andrade, espaço que mesmo olhando de fora parecia muito atrativo aos olhos de Veronica3 . Por ali também 2 A transcrição mais detalhada do relato de Veronica também é uma das histórias contadas nesse livro. 3 Este centro de cultura é muito simbólico em sua trajetória de vida, já que depois de adulta Veronica retornou àquele espaço que tanto lhe atraia atenção, enquanto parte integrante de uma encenação artística.
  • 9. 9Histórias que se cruzam na kantuta passaram a gerenciar uma oficina de costura. Logo, apenas as meninas mais novas começaram a frequentar uma escola pública, na qual Veronica considera ter tido uma boa inserção, tanto pela recepção dos profissionais e colegas, quanto pelo aprendizado. No entanto, uma resolução da Secretaria da Educação do Estado de São Paulo aprovada em 1990 as impediu de continuarem frequentando a unidade escolar, já que estavam com a situação migratória irregular. Naquela época isto aconteceu igualmente com pelo menos 400 crianças estrangeiras 4 . Tal fato causou desespero em toda a família, e particularmente a ela, pelo medo de que a ausência de formação lhe levasse a se dedicar a costura enquanto única saída, algo que não correspondia às suas expectativas e desejos. Após a regularização dos documentos migratórios e já com 15 anos, cursou o supletivo almejando reverter o atraso escolar. Com a conclusão do Ensino Médio, passou a estudar em um curso técnico em enfermagem. Paralelamente aos estudos, ajudava no trabalho dos pais5 . A certa altura, cansada das dificuldades na confecção, sua mãe decidiu dedicar-se a outras atividades, iniciando um comércio de pratos típicos da Bolívia na Praça do Pari, um espaço no qual a comunidade boliviana costumava se encontrar. No entanto, não tardou para que outro fato viesse a marcar a história da família: tal frequência dos novos imigrantes passou a ser alvo de protestos de moradores do bairro, os quais reivindicavam exclusividade de uso alegando serem mais antigos por ali6 . Com esse episódio conflituoso a comunidade percebeu a necessidadedeseorganizareestruturouaAssociaçãoGastronômica Cultural Folclórica Boliviana Padre Bento, a qual por intermédio da Subprefeitura da Mooca, recebeu autorização para estabelecer um novo espaço de sociabilidade em São Paulo: a Praça Kantuta, no bairro do Canindé. A família Quispe Yujra não apenas colaborou na busca por este espaço, como também atuou ali com pioneirismo no 4 Fundamentada no Estatuto do Estrangeiro (Lei 6815/1980), a Resolução no 9, de 8 de janeiro de 1990 afirmava a necessidade de documentação regular dos estudantes estrangeiros para que pudessem acessar ao sistema escolar. Sobre as crianças e adolescentes impedidas de estudar e os esforços da sociedade civil organizada para reverter tal situação, ver: BONASSI, Margherita. Canta, América sem fronteiras! Imigrantes latino-americanos no Brasil. São Paulo: Loyola, 2000. 5 Sergio Quispe Cuellar e Esperanza Francisca Yujra de Quispe. 6 Sobre isso ver: SILVA, Sidney Antônio da Silva. Uma face desconhecida na metrópole: os bolivianos em São Paulo. Travessia: Revista do migrante. Centro de Estudos Migratórios. Setembro-Dezembro de 1995, p.17.
  • 10. 10 Sí, yo puedo! comércio de produtos da Bolívia e na organização de festividades populares, como a Alasitas7 . Enquanto sua família conquistava novas possibilidades de inserção na cidade de São Paulo, Veronica também caminhava para outras possibilidades de formação profissional. Por orientação dos colegas da escola técnica, fez cursinho preparatório almejando ingresso em uma universidade pública (ainda que muito de seu entorno por vezes lhe expressasse “ – Isso não é pra você!”, “ – Você é estrangeira!”). Enfim, cursou Odontologia na Universidade Estadual Paulista e, sucessivamente, uma pós-graduação na área de Saúde no sul do país. Seu envolvimento com o movimento estudantil durante este período também lhe possibilitou grande abertura a espaços universitários em diferentes lugares do país. Ao longo dessa trajetória, percebeu e vivenciou com grande incômodo a ausência de pessoas de origem boliviana ou de outros povos latino-americanos nestas instituições escolares e acadêmicas por onde passou. Observava inclusive as listas de estudantes e raramente encontrava nomes tradicionais dos países vizinhos ao Brasil. A partir desse incômodo, ao projetar sua volta a São Paulo, começou a pensar uma maneira de intervenção junto à comunidade imigrante que pudesse contribuir para ampliar seu acesso a estes espaços. Assim, deu inicio em 2012 ao projeto “Sí, Yo Puedo!”, durante a feira boliviana da Praça Kantuta, que sempre é realizada aos domingos: 7 Festividade realizada no dia 24 de janeiro em honra ao deus aymara da abundância, o Ekeko. As pessoas adquirem miniaturas dos bens desejados, visando alcançar sua realização ao longo do ano. A “Alasitas” teve início na cidade de La Paz, mas se tornou tradicional em diferentes regiões da Bolívia. (...) Porque eu já estava com isso na cabeça e toda vez adiava e adiava. Então eu entrei no quarto da minha irmã e falei: “Ah, Rô, eu vou ir no domingo agora”. Falei, vou sair domingo agora, porque vai passando, já é março. Acho que ia sair algum curso, eu vi no amarelinho algum curso gratuito e falei: “ Ah! Vou sair para lá...”. No começo eu trazia jornais da Bolívia, do dia. Acordava às seis da manhã e imprimia os jornais do dia para deixar no mural, nossa, chegava muita gente. (...) E aí eu comecei a me apresentar e eu dizia “Eu estou aqui para dar informação a respeito de tudo, de formação, de trabalho formal...”. Eu achava que sabia um pouco mais e queria que os outros também soubessem (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira da Praça Kantuta).
  • 11. 11Histórias que se cruzam na kantuta Assim,aprimeiraatuaçãodoprojetovisavaàdemocratização de informações, a partir de orientações sobre cursos disponíveis em diferentes instituições e as formas de acesso. Conforme relatou-nos, Veronica começou a comparecer à Praça Kantuta aos domingos, dia de realização da feira, com apenas um banquinho e as informações que considerava de interesse para a comunidade, mas não tardou muito para que ganhasse companhia. Logo se aproximaram outros voluntários, dentre eles estudantes universitários do Mackenzie, que já vinham buscando realizar ações semelhantes na Kantuta, porém sem êxito na aproximação com as pessoas. Dispostos a levar a ação adiante, lograram uma parceria com a universidade para a possibilidade de seus estudantes realizarem estágios ali. Com a sucessiva soma de esforços, já que a chegada de novos voluntários imigrantes e nacionais era constante, o “Sí, Yo Puedo!” foi se configurando como um coletivo. A forma de atuação central passou a ser por meio dos atendimentos aos domingos, das 11:00 às 17:00 horas, com orientação e auxílio para a solução de dúvidas a respeito não só de cursos técnicos, superiores e formação complementar, mas também com relação à documentação para imigrantes, reinserção escolar, revalidação dos diplomas, transferência escolar, orientação profissional, ao funcionamento dos equipamentos de saúde e inclusive quanto à oportunidades de trabalho. Além disso, o projeto identificou a necessidade e demanda dos e das imigrantes em relação ao aprendizado da Língua Portuguesa. O conhecimento do idioma se mostra cotidianamente necessário para chances mais favoráveis de inserção no Brasil, podendo lhes proporcionar maior confiança e autonomia no desenvolvimento de suas diferentes ações, inclusive com a abertura de novas possibilidades de atuação. Em outras palavras, funciona como um “capital cultural”, que pode interferir para o melhor desenvolvimento de outras formas de capitais, como o econômico e o social8 . Com isso, o “Sí, Yo Puedo!” passou a oferecer cursos de 8 Sobre isso ver: BOURDIEU, Pierre. Escritos de Educação. [Orgs] Maria Alice Nogueira, Afrânio Mendes Catani. Petrópolis: Vozes, 2013.
  • 12. 12 Sí, yo puedo! português de nível básico. As aulas são organizadas com foco no cotidiano dos sujeitos, bem como agregam discussões relacionadas aos direitos humanos e cidadania. Também incluem passeios por equipamentos públicos de São Paulo, considerados importantes para promover a interação, integração social e vivência das diferentesculturaspresentesnacidade.Atualmenteocoletivoconta com 12 turmas formadas em seu curso de português, percebendo como satisfatório o fato de exalunos continuarem frequentando atividades e até mesmo de atuarem como voluntários no próprio coletivo ou em outras organizações que possuem objetivos similares9 . São diversos os esforços pensados para auxiliar a comunidade a conquistar possibilidades mais favoráveis para a vida em São Paulo. Mais recentemente, por exemplo, o “Sí, Yo Puedo!” deu início a um cursinho preparatório voltado especialmente para os vestibulinhos das escolas técnicas, conforme explicou Veronica: De fato, a turma formada no cursinho em junho de 2015 condiz com as perspectivas apresentadas nesta fala. Contava com dez estudantes frequentes, com idades variadas entre 22 e 37 anos, (...) a ETEC é um caminho mais factível, um pouco mais rápido. Uma vez que em um ano e meio a pessoa consegue até fazer algumas contenções econômicas, ficar com a mesma roupa, consegue passar um pouco de fome. Eu brinco com eles: sapato pode durar um ano e meio e é o tempo que o curso dura, para ele ter a chance de um emprego melhor. Então você fez ETEC, depois você pode até se encaminhar para aquele outro sonho maior que é o da universidade, porquejásaiudocírculo.Achoqueomaisimportanteéconseguirtirar a pessoa do círculo. Então por causa disso, a gente mudou um pouco nosso discurso nestes três anos. No começo a gente ficava pilhando as pessoas para simplesmente largar o trabalho nas confecções e ir atrás de outro emprego, porém hoje em dia a gente não fala mais isso, porque a gente sabe que para isso são várias etapas. O que a gente sempre fala: “ – Está difícil? Não é isso que você quer fazer? Então vamos começar a construir um projeto no qual em médio prazo você consiga tanto se capacitar, voltar a estudar, como procurar empregos em outras áreas” (Veronica Yujra, 20/02/2015, entrevistada na Feira da Praça Kantuta). 9 Todos os voluntários que fizeram ou ainda fazem parte do coletivo “Sí, yo puedo!” estão citados na página 118.
  • 13. 13Histórias que se cruzam na kantuta 10 Sobre isso ver: SAYAD, Abdelmalek. A imigração ou os paradoxos da alteridade. São Paulo: Edusp, 1998; O retorno: elemento constitutivo da condição do imigrante. Revista Travessia, ano XIII, número especial, jan/2000. os quais naquele momento trabalhavam na área das confecções como costureiros. Eles pretendiam prestar o vestibulinho das ETECs para cursos técnicos de Eletrônica, Mecânica, Enfermagem, Informática e Estética. Foram-lhes oferecidas aulas intensivas de Português, Matemática, História, Química, Física e Biologia ao longo de quatro sábados, ministradas por professores voluntários que são profissionais das respectivas áreas. Trata-se de uma experiência piloto relevante, já que visa atender a uma demanda real destas pessoas, que muitas vezes acabam nãotendoacessoa outroscursospreparatórios.Noentanto, o êxito no acesso às instituições de ensino ainda acaba dependendo da superação de barreiras burocráticas, as quais os estrangeiros são comumente submetidos, como, por exemplo, a questão das traduções de documentos, da equivalência de estudos realizados ou reconhecimento de diplomas emitidos no exterior. Além destes casos, encontramos relatos semelhantes ao longo deste livro, isto é, que consideraram o investimento em educação profissional como estratégia relevante para uma melhor inserção laboral. É importante perceber que o coletivo “Sí, Yo Puedo!” tem como um dos seus princípios que seus integrantes sejam sempre participativos em diversos eventos relacionados às questões de interesse dos imigrantes em São Paulo, promovidos por entidades da sociedade civil, ONGs ou agentes das esferas estatais. Eles levam suas vozes enquanto sujeitos que atuam para a mudança de um meio social, escutam, propõem e fazem críticas. Marcando presença e ocupando os espaços, fazem-se notados com suas ações e reivindicações. Justamente o que propõe o projeto que aqui apresentamos é romper com a “presença-ausente” que tanto pode representar o imigrante em uma sociedade, conforme analisou o sociólogo argelino, imigrante na França, Abdelmalek Sayad: por um lado, o imigrante é uma ausência no seu espaço de origem. Por outro, é uma presença comumente invisibilizada nas sociedades em que se estabelece, colocado a margem do acesso a direitos fundamentais10 . A atuação do projeto pretende, portanto, a conquista e gozo
  • 14. 14 Sí, yo puedo! dos espaços escolares, universitários, culturais, laborais, sociais e políticos pelos imigrantes, a partir da formação destes como sujeitos ativos na construção de suas trajetórias de vida dentro de seus projetos migratórios, bem como da inserção e ocupação dos espaços da cidade que, muito comumente, podem lhes ser hostis e negar-lhes direitos. Assim, vale-se com certeza da máxima de vontade política por detrás do lema: “Sí, Yo Puedo!”. Bianca Carolina Pereira da Silva (Bacharel e licenciada em História – UNIFESP; Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Integração da América Latina – USP). Julia Ferreira Scavitti (Bacharel e licenciada em Ciências Sociais – UNICAMP; Mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências Sociais – UNIFESP). Luana de Freitas Garcia (Graduada em Psicologia – Universidade Presbiteriana Mackenzie).
  • 15. 15Histórias que se cruzam na kantuta sao pauLo É o reTraTo do muNdo Felix Claudio Mendoza Achumiri Me chamo Felix Claudio Mendoza Achumiri e nasci em 1971. Faço parte da comunidade boliviana e morava em La Paz. A primeira vez que vim ao Brasil foi com um amigo, para visitar. Tinha um irmão aqui e fiquei um mês, depois voltei de novo para a Bolívia. No meu país, eu tinha boas oportunidades. Lá eu gostava de estudar eletrônica; fui DJ e locutor de uma rádio. Fazia isso todos os dias e ganhava o suficiente para me sustentar. Tinha uma equipe de som, mas não deu certo, porque meu parceiro foi para a Argentina atrás de melhores oportunidades. Fazia edição de vídeo para casamentos, formaturas e para aniversários de quinze anos. Até que cheguei aqui e tudo foi diferente. Hoje estou aqui por uma vida melhor. Já conheci o sistema daqui, sei como é. Moro sozinho e agora estou trabalhando como modelista em uma empresa de costura. Vim para cá há mais ou menos quatorze anos.
  • 16. 16 Sí, yo puedo! Uma semana atrás chegaram minha mãe, minha irmã e meu cunhado. Vieram só para me visitar. Não acreditei! Minha mãe mora na Bolívia e veio porque tinha saudades de mim. Eu não telefonava para minha família há muito tempo, fazia uns quatro anos, fiquei muito afastado. Queria que tivessem ficado por mais tempo para que eu pudesse mostrar as coisas bonitas que São Paulo tem, mas não deu tempo, tiveque acompanhá-los ao terminal rodoviário e fiquei triste com a despedida. Vim para o Brasil, pois queria conhecer pessoas diferentes, saber como eram os brasileiros. Tem gente aqui de todo lugar do mundo. São Paulo é resumo de todas as raças. É um retrato do mundo. Queria ter ido para os Estados Unidos, mas não deu certo. Ficou mais difícil entrar lá depois do ataque às Torres Gêmeas. Estou tentando mudar para caminhos diferentes do da costura. Costura é a primeira entrada, o que todo mundo faz quando chega aqui. Passa primeiro por essa fase. A pessoa tem a facilidade de não pagar o quarto e tem comida. Isso é uma herança dos coreanos. E acaba acontecendo aquelas coisas de exploração. Atualmente, as pessoas estão se tornando mais conscientes graças a essas políticas que estão voltadas para imigrantes. Aqui a prática da exploração tem mais liberdade, porque está escondida em uma casa, tudo é fechado. Aqui o pessoal fala: “Na minha casa não entra ninguém de fora e eu posso fazer o que eu quero na minha casa”. As pessoas pensam desse jeito e fazem a exploração dentro de uma casa. E quem está fora acha que é só uma família que está morando ali. Mas não é assim! Isso vai se descobrindo ao longo do tempo, por alguém que foge ou denuncia. Eu saí desse tipo de trabalho, pois tentei fazer o melhor , mas não gostei. Eu gosto de trabalhar em qualquer coisa, mas eu não gostava do que eu fazia, pois a dona falava que eu estava demorando, todavia, eu sou perfeccionista, gosto de fazer bem. Então, tive que sair de lá para fazer o que eu gosto. Agora estou trabalhando com carteira assinada, que é melhor, mas sair do ciclo da costura é muito difícil. No Brasil há facilidades com relação aos estudos. Escutei por aí que imigrantes podem fazer faculdade. Penso em continuar a estudar aqui, no curso que fazia lá, de engenharia eletrônica. Só que trabalho o dia inteiro e não é possível estudar no mesmo horário. Eu trabalho das nove da manhã às sete da noite e folgo aos sábados e domingos. Já nas oficinas dos nossos compatriotas cada um é independente, porque tem que trabalhar por produção, por isso,
  • 17. 17Histórias que se cruzam na kantuta alguns trabalham sábado e domingo. Se não trabalham no final de semana, os donos não dão comida nesses dias, pois eles não estão trabalhando. Cada oficina adota um esquema, faz sua própria lei interna. Para mim, existem dois tipos de empresa, aquela que adota o capitalismo extremo, que quer tudo, sem sentimento, e aquela que é humanista e vê que os trabalhadores precisam estar bem, com boa saúde, para produzir. Na humanista, os trabalhadores são mais cuidados pela empresa. Aqui em São Paulo, gosto de ir aos museus e visitar lugares que não conheço em bairros que estão mais longe do centro. Gosto de passear sozinho, no tempo livre. Convido amigos, mas eles não gostam de fazer esses passeios para lugares mais longes, porque gastam mais. A maioria fica fechado em casa por medo da rua, ficam assistindo tv e filmes. Alguns saem no sábado à noite para baladas só de bolivianos e eu não gosto muito disso. Eu prefiro conhecer lugares diferentes, gosto de conhecer outras culturas. Sempre vou ao bairro da Liberdade saber sobre os eventos que eles fazem. Eles já estão há mais de cem anos aqui e mantêm a cultura, inclusive seus filhos. Com bolivianos é diferente, os filhos nascem aqui e já não querem saber da cultura de lá. Aqui os bolivianos que trabalham nas oficinas não têm tempo de passar a cultura para seus filhos, pois começam a trabalhar às sete da manhã e às onze da noite ainda estão trabalhando. Que horas podem brincar e falar com os filhos? Por isso, os filhos têm poucos conhecimentos de lá. Na escola, eu era bom aluno. Os melhores entravam na faculdade, só que não deu certo para mim, tive que trancar por questões financeiras. Fui trabalhar e não deu certo. Engenharia tem três lemas: estudar, estudar e seguir estudando. Não dá para trabalhar. Era um curso de período integral. Aí comecei a fazer coisas diferentes, trabalhava com equipe de som, como DJ. A grana que eu tinha era pouca e, às vezes, não dava para almoçar. Quando você deixa de comer e segue estudando, você fica diferente. Não é bom! Se você está estudando tem que comer bem. Naquele tempo, eu era bem otimista, queria ser engenheiro eletrônico! Mas, eu precisava de dinheiro para ir até a universidade e para comer. Então, deixei de estudar e só trabalhei. O tempo passava e eu só pensava em continuar meus estudos. Antes de ter vindo para cá, queria ter aprendido português. Mas o jeito de falar é semelhante, então me adaptei. Eu falava devagar e os brasileiros também, para que pudéssemos nos entender. Nunca fui tímido, então aprendi aos poucos. Eu queria
  • 18. 18 Sí, yo puedo! trabalhar com telemarketing, pois tem trabalho de meio período e algumas vantagens, contudo é necessário falar Português fluente. Lá,eumoravatranquilo,tinhaummontedeamigos,estudava e mexia com música. Assim passava o tempo! Fazia alguns cursos e ajudava minha mãe em casa. Depois que cheguei aqui, esqueci todo mundo, pois perdi telefones e endereços. Além disso, a maioria das pessoas que eu conhecia também viajou para outros países. O único problema lá é que eu não estava estudando mais, estava fazendo bicos e trabalhava em uma rádio, que colocava só as músicas do momento. Surgiu um projeto de abrir uma discoteca aqui no Brasil e eu deixei tudo de lado. Aqui sofri muito no começo. Eu pensei que quando chegasse aqui, ia fazer algo extraordinário, mas já tinha algo parecido aqui e fizemos algo só para o público boliviano. Fazíamos um tipo de música que não gostávamos, também não ganhava bem. Então, tive que entrar na costura forçosamente. Muita gente não queria me ensinar a costurar, porque diziam que não tinham tempo, pois trabalhavam e ganhavam por minuto e não dava para perder tempo. Sendo assim, agradeço a quem me ensinou. É difícil encontrar alguém disposto a te ajudar. O que não gostei do Brasil foi a surpresa que tive com as favelas e com a facilidade para se portar armas também. Todavia, eu vejo aqui a facilidade que os brasileiros têm para estudar, tem formação de graça. Lá também tem universidade de graça, mas é limitado a quem passa no exame, se você não passa na pública, tem que pagar seus estudos. E se não tem como pagar, não estuda. Como meus planos de trabalhar aqui não deram certo, tive, obrigatoriamente, que trabalhar no ramo da costura. Não gostei muito e tentei mudar. Foi passando o tempo e, agora sim, estou fora disso. Agora me sinto um pouco mais livre, melhor! Meu sonho para o futuro é ter uma profissão fixa e trabalhar nessa profissão até crescer nela, como todo mundo faz. Também, construir uma família e ficar aqui no Brasil. Queria fazer viagens pelo Brasil, conhecer de Norte a Sul. Quando falo do Brasil para outras pessoas, falo a verdade. A verdade é que quando um brasileiro conhece um estrangeiro é desconfiado, mas se te conhece bem abre os braços para te ajudar. O brasileiro é alegre, a música é alegre. Lá na Bolívia tem muita discriminação, mesmo com a mudança do presidente, só que está escondida, não está à vista. Aqui no Brasil também percebi um racismo, que é mais velado que na Bolívia. Entretanto, desde que estou aqui, pude entrar em qualquer lugar! Na Bolívia, te olhavam
  • 19. 19Histórias que se cruzam na kantuta dos pés à cabeça, se não gostavam, não deixavam entrar. Quando entrei na universidade lá, não era fácil, a maioria era da classe média alta e eu era de classe média, além disso, tinha a diferença da cor da pele. Eles haviam passado por escolas de alto padrão, eram de famílias que tinham dinheiro. Eu tentava procurar outros grupos que tinham menos dinheiro. Quando eu cheguei aqui falei com todo mundo. Quando via um brasileiro de pele branca ficava meio desconfiado, pensando se ele ia me rejeitar ou ia falar alguma coisa como “sai fora”, mas era o contrário. Por isso que gosto do Brasil. É diferente. O brasileiro é mais amistoso, amigo. Por isso que pessoas de todo o mundo vêm para cá e constroem uma cidade junto. O Brasil é feito de imigrantes. Quem nasceu aqui é descendente de imigrantes. Primeiro chegaram os portugueses e os espanhóis, depois os holandeses, os africanos e aí vieram os italianos, os japoneses, os judeus, entre outros. Nesses últimos tempos, chegaram os coreanos, depois os bolivianos que vieram trabalhar na área de costura. Os primeiros bolivianos que chegaram aqui não vieram para trabalhar em costura, os trabalhadores chegaram depois. Com o acordo de Livre Residência do Mercosul ficou mais fácil e o mundo latino-americano chegou aqui. Acho que cheguei muito tarde no Brasil, penso que deveria ter saído da Bolívia mais cedo. Teria tido mais oportunidades para aprender mais coisas. Agora, se volto à Bolívia,venho de novo morar aqui, pois já estou acostumado, gosto daqui. Conheço o costume dos brasileiros e o jeitinho deles. Gosto das festas, do carnaval. Uma vez, fui a um desfile de escola de samba, falei com alguns dançarinos e perguntei como podia participar, eles disseram que não tinha requisito. Eu fiquei muito alegre, queria participar, mas nunca deu. Certa vez, fui para a quadra comemorar com a Águia de Ouro e participei da festa até o amanhecer! Voltei para a casa e estava feliz. Também, sempre vou aos eventos de imigrantes. Gosto de conhecer os gostos e as comidas de várias culturas. Da Bolívia já conheço tudo, por isso, gosto de sair e conhecer outros lados. Quando vim para cá pela primeira vez, fiquei admirado com a quantidade de estradas que tinha no Brasil. Queria ficar, mas não tinha a permissão para ficar aqui. Hoje estou morando no Bom Retiro. É bom, só que o aluguel é caro. Mas aqui qualquer lugar é caro. E as condições também não são boas. Eu pago quatrocentos reais em um quartinho, que é muito pequeno, e o banheiro é compartilhado. Lá moram só bolivianos e paraguaios. Tem
  • 20. 20 Sí, yo puedo! famílias e tem pessoas sozinhas também. É mais fácil alugar, pois o responsável pelo imóvel não pede alguns requisitos, como ter que fazer depósito. Eu gostaria de ter minha própria casa aqui, por isso estou trabalhando. Quando você mora assim, como eu moro, está sujeito às normas dessa casa e não tem liberdade suficiente. Eu tentei trabalhar no CAMI, mas me disseram que era voluntariado, aí tive a ideia de procurar outras Ongs que faziam trabalho ajudando as pessoas. Um amigo me falou do Projeto Si, Yo Puedo!. Procurei o projeto, buscando por orientação profissional. Fui conhecendo cada pessoa e me aproximei mais do projeto. Acho importante que as pessoas saibam das coisas para que se tenha justiça. Uma vez sofri injustiça, quando trabalhava na oficina. O dono queria que eu fizesse de tudo, queria que eu fizesse outros tipos de atividade, como arrumar as luzes, consertar as máquinas e aparelhos de televisão. Eu fui trabalhar lá só para fazer o ofício da costura e ele falava: “Faça aquilo também!”. Eu fazia coisas pelas quais não era pago. Na Bolívia, tem uma comida especial para mim, a salteña. As pessoas gostam. É uma comida do lugar onde nasci. A salteña só se come de manhã, é como um café da manhã e se faz com um pouquinho de molho picante. Pode usar aquela pimenta que é chamada de dedo de moça aqui. Não tem salteña aqui igual à de lá. Quando como salteña lembro de minha família. Meu pai sempre comprava salteña para nós. Às vezes, quando nos preparávamos para o café, meu pai aparecia com uma caixa cheia de salteñas para toda a família. Todo mundo ficava alegre quando chegava esse momento. Ele fazia isso em datas especiais. Quando vejo a salteña, recordo de lá, tenho saudade! Éramos quatro irmãos. Todos os meus irmãos moram na Bolívia e a maioria casou. A gente se reunia em datas importantes. Faz três anos que eu não volto. Se eu ficar bem financeiramente, penso em dar uma voltinha por lá. Eram momentos felizes, era um jeito de nos aproximarmos mais, um espaço para ideias, piadas. A salteña é tradição na cidade de La Paz, como o pão de queijo é aqui. Estive procurando aqui alguém que faça do jeito de lá, com o mesmo sabor e textura. Tem um, conheço! Mas só encontro ele no sábado e no domingo. Originalmente, falavam que salteña era uma massa da Argentina, porque tem uma cidade lá que se chama Salta. Parece que, décadas atrás, surgiu uma massa lá que se chamava salteña, por isso o nome, e alguém trouxe para a cidade de La Paz. As
  • 21. 21Histórias que se cruzam na kantuta pessoas gostaram e se tornou uma tradição. Tem sabor agridoce, usam farinha de trigo, em cima tem gema de ovo para dar a cor e por dentro tem um caldo que pode estar misturado com ovo, frango, carne. Também tem salteña para veganos.
  • 22. 22 Sí, yo puedo! paLaVras Que saem como facas Flaubert Castro Arela Meu nome é Flaubert Castro Arela, tenho trinta anos, sou peruanoeadventista.AquinoBrasil,eujámoroháquasecincoanos. Eu cheguei no começo para estudar engenharia da computação na Universidade Anhembi Morumbi, com uma meia bolsa de estudos que consegui na Universidad César Vallejo do Peru. Só que quando eu cheguei aqui, acabei perdendo a bolsa por descuido meu. Quando percebi, já não tinha chance de ser aprovado no semestre, então, depois de três meses batalhando na faculdade, decidi sair e tive que trabalhar. Deixei de lado a faculdade! Mas, sempre, em meus pensamentos, queria continuar estudando. Fui procurar trabalho e nocomeçonãoachei.Nãofoirápidoachartrabalho.Porquê?Porque eu era formado em técnico de informática, mas sou imigrante e como eu estava indocumentado era difícil achar um trabalho para mim. As empresas não confiavam em mim. Algum tempo depois, comecei a trabalhar em vendas e
  • 23. 23Histórias que se cruzam na kantuta para ser sincero, já trabalhei em um pouco de tudo aqui e lá no Peru. Aqui trabalhei como ajudante de pedreiro, comerciante, vendedor de plantas medicinais, cobrador de ônibus, guia de turismo improvisado, programador em uma empresa de bordados, trabalhei em uma loja de roupas, em estamparia e em uma empresa de Helpdesk como técnico de apoio ao usuário de informática. Este foi meu último trabalho. Depois desses dois anos que estava sem buscar nada dos meus estudos, procurei uma instituição para me atualizar sobre informática para que eu continuasse a crescer na minha profissão. Tinha que me atualizar e achei o SENAC , onde paguei para me atualizar. Depois, me lancei no mercado de novo para trabalhar. Comecei a trabalhar e foi tudo tranquilo, só que quando comecei a trabalhar, meu chefe era bom, legalzinho. Acho que todo mundo passa por isso. Ele me aceitou. Eu estive trabalhando um ano com ele e ele passou a me manipular. Ele já não queria que eu trabalhasse só oito horas. Pagava-me bem, mas para mim não dava. Passei a ficar até às dez da noite e cobria os horários dos outros funcionários que não chegavam. Todavia, por mais que ele me obrigasse eu não conseguia. Ele me tentava com dinheiro. Ele pensava que quem tem dinheiro consegue e compra tudo. Às vezes, neste mundo cruel tem gente que se deixa manipular por dinheiro. Por conta da minha religião, eu não trabalho aos sábados, e quando contei para meu chefe, ele não ficou contente com isso. Ele começou a ficar ressentido. Dizia coisas como: “Ah, você não quer trabalhar comigo? Te dei a oportunidade de trabalhar aqui” ou “Eu te dei confiança para você dominar minha empresa”. Essa empresa foi a primeira que me registrou na carteira, até então eu sempre trabalhei como free lance, sem registro. E todas essas coisas, ele me jogou na cara . Ele disse que tinha me dado oportunidade de trabalhar nesse mercado e que nós, peruanos, bolivianos e paraguaios, estávamos vindo para tirar o trabalho dos brasileiros. Ele me falou assim! Eu me senti péssimo quando ele falou isso. Eu tinha vontade, não sei, de voltar para meu país. Mas, eu não queria voltar. Em casa, pensei em pedir demissão. Depois me reuni com meu chefe, que me propôs um acordo. Me disse que se eu não ia trabalhar no sábado, ele precisava de um cara para trabalhar no domingo. “Bom, eu posso, mas uma vez por mês”, respondi. Pois aos domingos estava apoiando o projeto Sí, Yo Puedo! e o CESPROM. Fui trabalhando aos domingos, até que chegou o ano passado e saí da firma, para sempre. A empresa mudou para
  • 24. 24 Sí, yo puedo! São Miguel e meu chefe disse que se eu quisesse, podia pedir as contas, pois ele não faria nenhum acordo. Então pedi. Quando fui no escritório, ele foi todo bonzinho e pediu desculpas pelas coisas que estava fazendo comigo. E me disse que se eu ficasse trabalhando com ele, ia aumentar meu salário. Analisei e resolvei ficar, só que, nessa época, estava estudando Português no SENAC e cheguei três vezes atrasado no trabalho, pois não conseguia sair a tempo. No final do mês, ele não me pagou o valor do vale transporte. A maioria dos trabalhadores dele se arrumam faltando dez minutos para irem embora. Essas coisas eu não fazia. Um dia eu fui junto com eles trocar minha roupa, meu chefe viu e disse que eu estava me juntando com aqueles rapazes. “Você é um cavalo! Não tá respeitando a confiança que te dei”, ele me disse. Não falei nada, mas depois, eu mesmo preparei minha carta de demissão, levei lá e ele falou “Deixa aí!”. Uma vez que saí da firma, decidi não trabalhar mais para ninguém! Porque em todas as firmas que eu trabalhei aqui no Brasil, eu me senti muito, muito explorado, mais do que lá na minha terra. Eu percebi que as empresas não fazem isso só com estrangeiro, fazem com aquelas pessoas que chegam do interior, da Bahia, de Minas Gerais. Violam não só os direitos dos imigrantes, mas dos migrantes que veem do nordeste, por exemplo. Fiz um plano na minha vida e me disse: “Vou trabalhar para mim, seja qual for o risco! E vou trabalhar na minha área”. Não é tão fácil ser empreendedor, mas estou aí, com altos e baixos. Quando cheguei, morava na casa da minha tia, ela tinha a sua empresa, era próspera. Tinha uma empresa de jeans do Peru. Às vezes, ela trazia tecido cru. Depois, ela passou a confeccionar roupa. Ela ficou um ano com isso, mas o negócio não deu resultado. Depois, ela e sua família foram embora do Brasil, pois aqui, segundo ela, a educação era ruim, porque os filhos dela não sabiam nada. Lá na minha terra, aos dez anos os meninos já conseguem ler perfeitamente e sabem toda a tabela de multiplicação. Aqui, eu dei um texto para eles e seus colegas lerem e eles não conseguiram e o pior é que não sabiam a tabela de multiplicação. Na realidade, isso fez parte de uma pesquisa que realizei na Zona Leste, com estudantes que tinham entre dez e onze anos, eles respondiam algumas perguntas e ganhavam um prêmio. Logicamente, fazia a pesquisa com autorização dos pais. Antes da minha tia ir embora, chegaram meus irmãos. Um chegou para fazer práticas em Engenharia Agropecuária aqui no interior de São Paulo e o outro chegou para trabalhar, procurando
  • 25. 25Histórias que se cruzam na kantuta novas oportunidades. Eu passei a morar com este irmão e abri um negócio com ele, com ajuda da minha tia. Depois de um tempo, a mulher do meu irmão começou a dizer para ele que eu não fazia nada.Nossa!Quandoescuteiessenegóciomesentimal.Euconversei um dia sozinho com meu irmão e disse que não ia suportar essa humilhação. Disse que ia sair e procurar meu destino. Quando minha tia estava indo, me deixou morar num quarto dela e disse que quando eu pudesse pagava. Aí os irmãos da minha tia passaram a falar mal de mim, dizendo que eu estava vivendo lá de graça. Hoje, longe dos meus familiares, aluguei um quarto e moro tranquilo. Desde então, estou morando sozinho. No momento, estou em paz! Minha única preocupação agora é minha vida profissional. Para mim, o mais importante são as pessoas que eu conheço e acho que vai ser assim sempre. Quando vejo os meninos na rua, jogando bola, com chinelo, roupa rasgada, camiseta, lembro de mim mesmo. A primeira vez que cheguei aqui no Brasil fui jogar bola com uns amigos que conhecia. No final do jogo, fizemos outro caminho para ir lanchar e passamos por uma favela. Eu pensei: “Nossa! O Brasilestácatalogadocomoaquintaeconomiamundial,essascoisas não deviam ter aqui”. Vi pessoas armadas e tudo. Logicamente, eles cuidavam do bairro deles. Fiquei um pouco assustado. Parecia meu bairro lá no Peru. Isso me fez lembrar de quando eu era moleque. Eu nasci no interior do Peru, em Puquio, no departamento de Ayacucho, mas quando eu tinha cinco anos fui adotado por uma família e fui morar na cidade de Lima. Eu morei toda minha infância e adolescência em Lima. Estudei lá, trabalhei e fiz meus passeios. Um sonho que eu tinha era conhecer quase todo o Peru, explorar meu país, sua cultura, sua diversidade e as condições de vida das pessoas e eu o fiz! Demorei quase três meses para viajar pelo Peru por completo, visitei departamento por departamento, cidade por cidade. Depois tive que voltar para estudar e trabalhar. Mas eu sempre pensei que eu queria sair fora, não queria ficar no Peru, porque se eu ficasse no Peru seria como uma pessoa que fica presa em um quarto. E quando uma pessoa está trancada em um quarto não faz nada, se sente sozinho, com a mente nublada. A mesma coisa estaria acontecendo comigo se eu tivesse ficado no Peru. Então, eu saí do quarto do Peru para o exterior, para o Brasil. Agora, pretendo explorar toda a América Latina e, se Deus me permitir, a Europa. Perto dos anos 90 acontecia muito terrorismo na cidade onde eu nasci. Bom, o governo que deu esse nome a eles: terroristas!
  • 26. 26 Sí, yo puedo! Para mim eram grupos sociais com ideologias diferentes das do governo. É nisso que eu acredito. Acho que meu pai era parte deles, pois um dia, meu tio, brincando, disse que meu pai estava ali. Só que eu acho que eles nunca contariam a verdade para mim. Depois dessas histórias, quis saber como meu pai morreu. Foi assassinado! Meu pai foi assassinado e eu não sabia até meus dezoito anos. Depois que ele morreu, minha mãe, sozinha, não conseguia nos alimentar. Éramos três irmãos. O mais novinho tinha meses. Eu era muito travesso, enchia a cabeça da minha mãe, por isso ela mandou eu morar com o padrinho de casamento dela. Eu fui morar com essa família, que atualmente eu considero meus pais. E foi assim que fui morar em Lima. Minha mãe biológica não queria que eu e meu irmão migrássemos para outros lugares do mundo. Ela dizia: “Por que vocês querem sair, se vocês têm tudo aqui!”. Naquela época, quando eu tinha dezenove anos, minha mãe já tinha uma posição econômica bem estabelecida, mas nós queríamos buscar nosso próprio caminho. Ela dizia que se quiséssemos dinheiro, ela daria, se quiséssemos casa, ela arrumaria. Meu foco sempre foi meus estudos, até hoje em dia meu foco é terminar minha formação como engenheiro da computação. Estou batalhando, dia após dia, atrás disso. Só que uma das minhas dificuldades é a economia. Eu queria retomar na mesma universidade que estava, mas agora só pagando. Então, estou buscando outros cursos que sejam na mesma área, nem que sejam técnicos, assim posso me preparar. Meu foco foi estudar aqui no Brasil. Porém, depois que eu perdi a meia bolsa, tive que pensar como trabalhar aqui. Antes de vir para cá, passei por uma situação sentimental lá. Essa foi uma das causas, para esquecer esse envolvimento sentimental, pelas quais abandonei aquela cidade e aquele país. Eu trabalhava numa multinacional, eu era chefe, só controlava. Um ano depois que estava trabalhando lá, conheci uma menina linda, me apaixonei. A princípio ela não queria namorar comigo porque tinha um pretendente que era espanhol. Eu competi com o espanhol. Decidi conquistar ela e consegui. Meses depois de começarmos o namoro, ela me traiu com aquele espanhol. O que eu mais queria era esquecê-la, ficar longe dela, para não recair. Quando cheguei aqui, fiquei dois meses pensando nela, sentia saudades, queria pedir desculpas, não sei o porquê. Pouco a pouco fui me adaptando, conheci uma menina,
  • 27. 27Histórias que se cruzam na kantuta comecei a sair com amigos. E assim superei as coisas e acabei ficando aqui. Eu imaginava encontrar aqui uma cidade limpa, sem nenhum tipo de discriminação, moderna! Sem delinquência, nada dessas coisas. Eu me imaginava em um bairro limpo e numa cidade limpa dessas coisas. Mas não foi assim. Eu achei pior do que lá na minha cidade, sinceramente. Uma outra coisa é a educação nas escolas públicas, que eu qualifico como péssima. Essa foi a maior decepção para mim. Eu esperava uma educação bastante avançada. Na saúde, eu me deparei com médicos que não sabem nada. Por exemplo, eu tenho gastrite, fui consultar um doutor e ele me entregou um calmante. A adaptação aqui foi difícil por causa daquele envolvimento amoroso, não sabia se ficava ou se voltava. Outra coisa é que tinha muitos pernilongos aqui, dia e noite, e eu não conseguia dormir. Eu não gostei disso, foi feio. Por causa disso foi difícil me adaptar, eles não me deixavam dormir. No meu corpo inteiro começaram a aparecer bolinhas vermelhas e eu me assustei. Pensei: “Em que país cheguei?”. Até que me recomendaram um mosquiteiro, aí eu dormi em paz. Fui lidando também com os problemas da minha linguagem no dia a dia e fui aprendendo português com as falas dos amigos e dos vizinhos. Fui aprendendo e depois me acostumei. Depois de um ano aqui, eu voltei para o Peru e já não me acostumei lá. Na minha cidade tem muita poeira, você quase não vê nada. Aqui em São Paulo isso acontece só quando chove. Eu já estava acostumando com o clima daqui, então voltei em duas semanas. Eu vi muita facilidade nos estudos aqui, pois você pode estudar de graça com o apoio do governo. Lá se você faz vestibular e não consegue, já era pra você. Aqui, pelo menos, tem cursos no SENAC, SENAI e, além disso, tem o PRONATEC. Lá não tem isso. Você só estuda de graça se passar no vestibular. Lá tudo é cobrado, um curso de dança, por exemplo, você tem que pagar. Aqui tem mais projetos sociais. Agora isso tá mudando um pouco lá. Acho que estão copiando daqui! Uma dificuldade que eu percebi aqui, foram os meios de transporte. Foi minha dificuldade. Quando comecei a trabalhar fora, para me deslocar da minha casa para o meu trabalho, ou do meu trabalho para minha casa, era muito difícil. O ônibus demorava vinte minutos para passar. No final de semana era ainda pior, a gente ficava esperando meia hora, uma hora. Em Lima, o meio de transporte é rápido, você chega no seu ponto e já tem três ônibus
  • 28. 28 Sí, yo puedo! passando e você só precisa decidir qual pegar. Eu decidia pegar o ônibus mais bonito. Outra dificuldade foi a discriminação, que acontece em todo o mundo, não só nesse Brasil. Eu fui mais um que sofreu com isso. Meu chefe me discriminava e uma vez eu respondi para ele. Dizem que desde moleque, sempre quando eu falava, as minhas falas saiam como uma faca. Quando discuti com meu chefe, ele se sentiu mal ao invés de eu me sentir mal. Só falei umas cinco palavras e derrubei ele. Nunca mais ele levantou a voz ou quis me dominar. De modo geral, minhas maiores dificuldades foram o trânsito, o trabalho, o que falei do meu chefe, a discriminação e os mosquitos também, que no começo eu não sabia como combatê-los, agora sei! Têm muitas ferramentas para combater. Lá no Peru, eu tinha um artesanato feito de barro que minha mãe fez pra mim. Era a imagem de um boi. Era uma recordação de onde eu nasci. É a única cidade do mundo que tem esse tipo de artesanato, de toritos. Eu carregava esse objeto para todo lado. Na escola, eu fazia disciplinas de trabalhos manuais e tínhamos que colocar nossos trabalhos em exposição. Ganhei duas vezes a exposição, levando toritos. Eu levava o torito pra cá, pra lá, para a escola e para o trabalho. Quando criança, eu fazia artesanato e ajudava minha mãe. Eu gostava de pintar e adornar. Colocávamos umas pedras que pareciam diamantes, depois colocávamos no forno e ele ficava brilhando. Quando decidi vir para cá, meu padrasto perguntou se eu não ia levá-lo comigo, dizendo que meu companheiro iria chorar. Preferi não trazê-lo, mas depois pensei que devia ter trazido. Eu quis deixar lá e deixei. Ele falava que eu podia vendê-lo aqui. Quando estava arrumando minha mala, também pensei em trazer meu perfume, que eu gostava muito. Aqui acho que não tinha, encontrei depois, só que é caro, lá é barato. É fabricado lá. Minha tia disse que eu não devia levá-lo, pois ia ficar no aeroporto. Arrumei minhas malas e fiquei pensando que não sabia que tipo de perfume vendia no Brasil. A minha ex-namorada me acompanhou até o aeroporto e me deu um presente. Eu abri e era o perfume. O pacote completo da marca, a melhor marca de perfume de lá. Só que eu não sabia como dizer que não podia levar. Aí comecei a passar em mim para ficar com o cheiro no meu corpo. Ela perguntou porque eu estava fazendo aquilo e disse que sentia muito, mas o presente ia ficar com ela. Ela disse que ia jogar no lixo, mas não sei se era verdade. O cheiro do perfume era bom, eu gosto dos amadeirados.
  • 29. 29Histórias que se cruzam na kantuta Depois de um ano e meio voltei, fui com uma emoção, cheguei lá e não tinha nada no vidro de perfume, não sei quem usou. Me disseram que tinha evaporado. A única solução foi a resignação. Para finalizar, gosto de um poema, intitulado “Recomeçar”, do brasileiro Paulo Roberto Gaefke, que diz assim: “Não importa onde você parou, em que momento da vida você cansou, o que importa é que sempre é possível e necessário ‘Recomeçar’. Recomeçar é dar uma nova chance a si mesmo. É renovar as esperanças na vida e o mais importante: acreditar em você de novo.”
  • 30. 30 Sí, yo puedo! uma ouTra imaGem do BrasiL Franz Mijail Sanabria Galván Sou Franz Mijail Sanabria Galván, tenho vinte e quatro anos e sou boliviano. Nasci na cidade de Potosí na Bolívia e me criei sozinho. Não conheci meu pai e quando eu tinha um ano, minha mãe foi para a Argentina trabalhar. Meus avós me criaram. Fui morando de cidade em cidade. Mudei de Potosí para Sucre e de Sucre para Cochabamba. Tudo por causa de estudo. Fiz Ensino Fundamental em Sucre, depois Ensino Médio em Cochabamba e voltei a Sucre para estudar na universidade. Estou em São Paulo há três anos. Potosí é uma cidade fria, porque fica na Cordilheira dos Andes, faz fronteira com parte do Chile. O clima é frio e por ser um clima frio as pessoas também são assim. Não é tão amigável, é mais fechada. Saímos dessa cidade em busca de um melhor clima e de um centro econômico, que naquele momento estava se desenvolvendo em Sucre. Isso foi o que contaram meus avós, pois saí de lá quando tinha dois anos. Em Sucre, fiquei até meus treze anos. Sucre é uma
  • 31. 31Histórias que se cruzam na kantuta cidade pequena, onde você chega a conhecer toda a cidade por ser muito pequena. O clima é temperado. Passei minha infância nos parques de lá com meus primos. Em Cochabamba houve uma mudança, pois passei a viver com meu tio. Meus avós ficaram em Sucre. Eu estava sozinho lá e penso que foi uma etapa da minha vida em que tomei consciência de mim como pessoa. Fui me tornando mais independente. Foi a etapa que mais desfrutei, pois eu auto me governava. Mas também tinha minhas restrições. Foi a melhor época! Estudei em uma universidade pública em Sucre e quando terminei, estudei Inglês por dois anos, depois vim pra cá. Na infância, eu era muito enfermito. Durante o inverno sempre adoecia, pois tinha doenças pulmonares, gripe e tosse. Isso me ajudou. Se você está doente, você valoriza mais sua saúde. Enquanto eu estava doente, meu tio, que esteve na Rússia, me emprestava alguns livros e me fazia ler. Eu não tinha nenhum interesse, lia por ler. Depois ele me perguntava o que eu tinha conseguido entender dos textos e me dizia que eu tinha que analisar as personagens, pois cada personagem tinha uma vida própria, que ia se desenvolvendo na obra. O conteúdo para um criança era muito complexo. Em todos os livros que li, sempre vi refletida uma parte de mim nas personagens. O modo como viviam, agiam, pensavam. Quando voltou da Rússia, meu tio nos trouxe outra perspectiva da vida. E isso marcou a todos. Ele trouxe a possibilidade de observar a vida de outra forma. Durante a época universitária, trabalhei com meu professor. Eleeraengenheiroelétricoeeuestagiavanaoficinadele,arrumando motores. Trabalhei, aproximadamente, dois anos com ele. Eu fiz graduação em mecânica industrial, pois meu avô é mecânico, então quis seguir seus passos. Terminei o curso, mas não tive tempo de trabalhar nessa área. Mas penso que o tempo de estágio com meu professor foi suficiente. Foi nessa época que se apresentou a oportunidade de vir aqui. Tinha assistido um documentário, que não era sobre o Brasil, mas dizia que quanto mais experiências você tiver em sua vida, mais conhecimento você vai adquirir. Assim, quando se apresentou a oportunidade de vir, eu a tomei, pois quanto mais experiências novas eu tiver, mais conhecimento. Esse, então, foi o motivo, não tanto o futuro econômico, porque não dou tanta importância ao dinheiro. Falei do documentário para meu tio e ele disse que se eu quisesse podia vir ficar seis meses ou um ano com ele, só para conhecer essa outra realidade que era o Brasil. Eu respondi: “Tá certo!”.
  • 32. 32 Sí, yo puedo! Na Bolívia, eu assisti o filme Cidade de Deus. Por causa desse filme, eu tinha criado uma outra imagem do Brasil, achei que se você chegasse aqui, você morria. Outro que assisti foi o de um moleque que sequestrava um ônibus, Parada 184. Eu conheci a Projeto Sí, Yo Puedo! quando fui perguntar sobre uma documentação. Queria regularizar meu diploma para trabalhar na área que me formei. Cheguei a averiguar no consulado e tinha que fazer muitos trâmites, muito burocráticos. Achei melhor estudar de novo. Sempre mantenho contato com meus avós, já voltei três vezes à Bolivia desde que cheguei aqui. Quando volto, lá parece muito diferente. A relação com meus parentes não mudou. A parte afetiva também não mudou nada. Mas as cidades mudaram muito. Sinto falta da Bolívia, pois lá tenho mais liberdade, talvez por ser meu país e eu poder ir a qualquer lugar. Lá você pode entrar nas diversas comunidades. Mas aqui não. Quando cheguei aqui a barreira não foi o idioma. Eu me surpreendi porque pensei que aqui as pessoas entendiam espanhol, pois como o Brasil está rodeado de países que falam espanhol, era como obrigação, não? O Brasil fica isolado do resto. Todavia, fui me adaptando e foi mais fácil. A leitura de textos e livros me ajudou bastante. Eu sabia que ia ter dificuldade pela língua, porque era diferente. Antes de chegar aqui a imagem era outra. Achava que eu ia ter dificuldade com o idioma e passar por uma possível discriminação das pessoas, mas quando cheguei aqui fui tudo ao contrário. A gente brasileira é muito acolhedora. O português é similar ao espanhol, então foi fácil entender a língua. Antes de vir pra cá, meus amigos engenheiros também haviam dito que por causa do présal tinha muita oportunidade na minha área. Minha família é uma família pequena. Meu avô tem sete filhos. Eu tenho seis tios. Também tenho uma irmã que já terminou medicina. Eu vivi com meus avós porque naquela época meus tios eram adultos, estavam estudando ou morando em outras cidades e meus avós estavam sozinhos, então fiquei com eles. Ao criarme com meus avós, consegui aprender o dialeto quechua. Aprendi muitas coisas lá com meus avós. Hojetrabalhocomcostura.Trabalhoparameutio.Égracioso lembrar que, durante o colégio, eu tinha um círculo de amigos que gostava de rock. Eles pediam que meu tio, que era alfaiate, fizesse calças pretas ou deixasse as calças pretas mais justas. Meu tio não queria fazer isso e foi aí que comecei a costurar. Costurava as calças
  • 33. 33Histórias que se cruzam na kantuta dos meus amigos. E também ganhava algum dinheiro. Trabalhei com meu avô também, na área de mecânica, sempre o ajudei. Quando decidi vir pra cá, estava em Sucre, a cidade onde atualmente minha família mora. Eu já tinha falado com eles dois meses antes da minha viagem. Estávamos aguardando a data da viagem. Na última semana, consegui me despedir dos amigos e organizar meus papéis. Eu não estava trabalhando naquele momento. Todo mundo concordou, só que minha mãe falou que eu teria que trabalhar e ganhar experiência na minha área lá na Bolívia antes de vir para o Brasil. Como eu já tinha falado com meu tio, que morava aqui, foi mais fácil convencêla de que eu iria estudar aqui. Eu gostei da gente daqui, muito alegre, sempre trata de bater papo, são amigáveis. Meus planos agora são passar no vestibular da USP e fazer a faculdade de Letras. Me falaram que na USP você tem a opção de estudar inglês, francês e russo. Posso trabalhar como intérprete ou tradutor. E posso conseguir emprego numa editora. Também quero realizar outros projetos que tenho com meus amigos na área de confecção de roupas. Eu e um grupo de amigos estamos pensando em montar uma loja online de venda de roupas. Cada amigo terá uma função, por exemplo, de cortador, desenhador, estilista, piloteiro e costureiro. Antes de vir, preenchi no formulário que eu viria para estudar. Se você vem como turista tem que comprar a passagem de ida e de volta. Em outra modalidade só precisa da passagem de ida. Quando cheguei, tirei todos os documentos aqui. Foi fácil. Eu me surpreendi! Porque a organização aqui quanto a entrega de documentação é certinha, você marca a data e eles entregam. É bastante diferente lá da Bolívia. É complicado tirar a documentação lá. Quando tirei a documentação não tinha conhecimento das instituições que auxiliam os imigrantes, mas foi mais fácil pra mim, porque meu tio já tinha toda a documentação e me orientou. Eu me considero privilegiado, porque é muito mais fácil morar com uma pessoa que você já conhece e que já está aqui há mais tempo. Eu vim de ônibus. A viagem foi legal, durante o trajeto eu tive a oportunidade, numa parada, de ter um primeiro contato com um brasileiro. Foi minha primeira experiência com a Língua Portuguesa. Os ônibus que partem de lá chegam na estação Barra Funda.Essaestaçãoémuitolotadaequandochegueimesurpreendi, porque tinha muita, muita gente. Quando cheguei, meu tio estava me aguardando lá. Ele comprou os bilhetes do metrô e foi a primeira vez que eu passei por uma catraca e andei de metrô. Como eu tinha
  • 34. 34 Sí, yo puedo! medo de me perder em São Paulo, passei a tomar como ponto de referência as estações de metrô, pois uma das primeira coisas que aprendi foi me locomover pelas linhas do metrô. Meu tio me falou de um centro, onde tinham eventos culturais, com ingresso gratuito ou que custava um real, comecei a ir às apresentações de música, de teatro e passei a frequentar a Biblioteca São Paulo. Aqui você tem muitas oportunidades, é só aproveitar! Conhecer gente e fazer contatos ajuda muito. Nesses três anos, eu consegui conhecer muita gente, aprender a língua e também conhecer gente não só do Brasil, mas de outros países. Eu cheguei a trabalhar como voluntário na Copa de 2014 e conheci muita gente! Trabalhei no credenciamento. Já fiz inscrição para trabalhar no mundial da Rússia. No momento de fazer a mala, minha mãe não estava e eu enchi a mala: uma metade com livros e a outra metade com roupas. No momento de pegar a mala, minha mãe perguntou o que eu estava levando, porque estava muito pesada, e eu não disse nada pra ela, falei que eram só roupas. Quando chegamos na fronteira, ela revisou as malas e encontrou os livros. Ela quase enlouqueceu, perguntando porque eu estava trazendo tantos livros. Mas eu precisava trazer. Eu costumo ler de vez em quando, porque cada livro tem seu significado. Decidi trazer livros dos quais eu gosto muito, por exemplo, eu trouxe Dostoievski, pois gosto da literatura russa. Um autor que admiro muito é Jorge Luis Borges. Outro autor é Frederico Garcia Lorca, que morreu durante a guerra civil espanhola, foi assassinado. Ele era amigo de Salvador Dali. Trouxe também um livro de Albert Einstein, que não é sobre o conteúdo matemático, mas sobre a filosofia da teoria da relatividade. Outro autor que é um gênio é Antón Chéjov. Tenho também um livro de Nietzsche, Humano, demasiado humano, que na verdade era de minha mãe. Ela lia bastante quando morava na Argentina. A maioria dos livros que tenho tem uma numeração, isso significa que pertenceram a uma biblioteca. Lá em Sucre tinha uma biblioteca financiada por uma Ong espanhola, mas a biblioteca quebrou e para pagar as contas de luz e água, eles tiveram que vender o acervo. E a gente colaborou! Consegui comprar alguns livros. Foi dessa forma que obtive a maioria dos livros. Deixei muitos livros lá, mas os que eu trouxe são dos autores que eu mais admiro. Muitos desses livros, cheguei a compartilhar com outras pessoas, não ficaram só comigo. Eu difundi entre meus primos,
  • 35. 35Histórias que se cruzam na kantuta emprestei para eles. Alguns foram devolvidos, outros não. Emprestei para amigos também. Esses livros me lembram meus amigos, familiares e pessoas próximas que conheci. As relações que tive antes de vir para cá.
  • 36. 36 Sí, yo puedo! aQui É Tudo muiTo LoNGe! Lucia Ireyo Raimundo Meu nome é Lucia Ireyo Raimundo, tenho cinquenta e cinco anos e sou de Bolívia. Hoje estou trabalhando de babá e estou aprendendoafazeroutrascoisas,comopintar,costurar,tudo!Minha história é um pouquinho triste. Quando eu era pequena, minha mãe faleceu e as três irmãs ficaram sem mãe. Somos três irmãs. Assim, aprendi na vida, sofri tanto, fui crescendo, crescendo. Estudei um pouco e parei. Meu pai não nos fazia estudar. Assim fui crescendo e apareceu um trabalho com uma senhora que é minha conhecida, fiz contrato com ela e vim aqui ao Brasil trabalhar, para cuidar de suas duas filhas. Estou há quatro anos aqui. Tive quatro filhos, que vivem na Bolívia. Deixei meus filhos e vim sozinha pra cá. Uma esteve doente e faleceu. Ela tinha 31 anos, sua doença, era leucemia. Um vírus contagioso lhe subiu ao cérebro e ela não resistiu. Isso foi em 2014. Havia ido para a Bolívia e outra vez voltei ao Brasil para seguir trabalhando, com o coração
  • 37. 37Histórias que se cruzam na kantuta partido, longe de minha família. Aqui tenho amizades que me apoiam bastante. Meu filho mais velho quer que eu volte à Bolívia para que a família fique toda junta. Vamos ver se sigo aqui ou vou regressar. Só Deus sabe o que vai passar. Sei que quero continuar trabalhando. Estou um pouco triste, um pouco alegre, mas estou feliz. Fico triste quando penso em minha filha que faleceu e já não está presente. E alegre quando estou com minhas amizades. Quando nos reunimos e estamos em grupo fico um pouco alegre e me esqueço de tudo. Mas vai passar, porque isso passa, embora não se possa esquecer tão rápido. Lá na Bolívia, eu trabalhava muito, tinha um negócio e vendia cachorro-quente, frango, batata, arroz e salada. Vendia de tarde até uma da manhã. Depois, me levantava cedo para novamente ir às compras. Eu gosto de cozinhar. O povo que me conhecia lá, me pedia para que eu preparasse almoço e janta. E assim vivi! Trabalhei bastante, sem descansar. Aqui já descanso, quase não trabalho muito. Descanso sábado e domingo. E durante a semana trabalho normal, cuidando das meninas. Já trabalhei muito para ajudar os meus filhos, pagar água, comida e luz. Quando separei do pai deles, ele não ajudou. Eu morava em Santa Cruz, mas nasci em outro lugar, em Yacuiba. Como meu pai gostava de trabalhar indo de um lugar a outro, saímos de nossa casa e fomos para outra cidade, onde faleceu minha mãe, no parto. Eu tinha cinco anos. Fomos para Santa Cruz e meu pai permaneceu aí, trabalhando. Antigamente, você não podia estar conversando com um menino fora se não levava palmada, apanhava. Minha irmã teve que casar aos treze anos, pois estava conversando com um menino de dezoito anos. Mas ela não dormiu com ele, porque era muito menina. A sogra da minha irmã cuidou dela e, depois, de nós, pois meu pai foi embora com outra mulher. Crescíamos e já não havia como comprar um livro ou um lápis para mim e para minha irmã, porque meu pai não aparecia e minha irmã não trabalhava. Não terminei a escola. Ficamos sem estudar quando eu tinha oito anos. Tenho uma tia, por parte de mãe, que nos levou para morar com ela. Passamos dois anos com minha tia e ela morreu, enfarto. E assim fui crescendo, comecei a trabalhar, me casei, não me casei, me juntei. Tampouco fui feliz com esse homem, fracassei em meu matrimônio. Acabou tudo porque ele bebia muito. Depois de muito tempo voltei com ele e ia casar, mas ele não mudou e eu já
  • 38. 38 Sí, yo puedo! não estava acostumada, então separei mesmo. Fui amadurecendo, criando meus filhos e trabalhando. Meus filhos e meus netos são minha vida! Gostaria de voltar a casar, necessito de um companheiro para conversar. Meus filhos não querem que eu case, que eu namore, que nada! Porque eles têm medo que o homem me bata ou que eu sofra. Um brasileiro, quando eu morava em Curitiba, já tentou casar comigo, mas eu não quis, pois tinha que trabalhar aqui. Toda a família dele era muito boa comigo, mas tenho que pensar bem para ter uma relação com alguém. Em todo lugar que íamos, havia um brasileiro enamorado por mim. Todavia, eu não dava chance. Por fim, mudamos para São Paulo e aqui já não tenho namorados, só admiradores. Quando cheguei da Bolívia fui direto para Curitiba, morei cinco meses lá, depois mudamos para Cuiabá. Sempre quis vir ao Brasil para trabalhar e gostei de ter vindo, porque sempre pensava: “Eu quero ir ao Brasil!”. Porém, quando cheguei, queria ir embora, pois eu não aguentava e chorava, porque já não estava acostumada a cuidar de crianças. Eu chorava e dizia “Deus meu, o que tanto fiz para vir parar aqui?”. Todavia, vim orientada por uma ministra, membro da Igreja Messiânica, que me disse que eu deveria ficar no Brasil e juntar dinheiro para garantir meu futuro. “Aguente o que venha, mesmo que chore sangue, fique”, ela me dizia. Quando decidi vir para o Brasil, minha vida lá na Bolívia estava ruim. Estava sem dinheiro e meu negócio não dava retorno. Foi quando me falaram desse trabalho, aí eu vim. Choraram tanto por mim! E eu também chorei. Eu conhecia a tia da minha chefe, que me incentivou a vir para o Brasil acompanhar sua sobrinha. Eu vinha só por um tempo, mas eles gostaram do meu trabalho e eu sou esperta para cozinhar, então fiquei. Teve uma época que fui passar as férias na Bolívia e não voltei, fiquei lá por onze meses, trabalhando para mim, pois faço de tudo relacionado a vender. Tinha minha família também. Fiquei lá, pois a mãe da minha chefe dizia que eu só ganhava dinheiro, sem fazer nada, escutei e fiquei brava. Gosto que me falem de frente. A minha chefe trouxe outra pessoa da Bolívia, mas essa pessoa brigava muito com as meninas, pelo que me disseram. Quando liguei para uma das meninas para desejar feliz aniversário, minha chefe perguntou se eu não queria voltar. E eu voltei, mas falei que ia embora outra vez, que só ficaria três meses. Mas já estava tirando documento, então fiquei.
  • 39. 39Histórias que se cruzam na kantuta Não entendia muito bem o Português, falava, mas não entendia. Falava tudo errado. Fui sozinha tirar meus documentos. Fui com medo, porque eles não me entendiam. Me disseram que eu devia ir à Lapa. E eu falava para eles: “Por que você não fala espanhol? Quase não entendo nada, explica devagar para mim!”. Tinha outro boliviano lá e foi ele quem explicou onde eu tinha que ir. Não entendia nada para tirar meu RNE. Não conhecia nada, era outro idioma e é muito difícil quando você entra e não sabe nada. Aprendi assistindo tv, escutando rádio e fui aprendendo um pouquinho. Quando saía na rua me dava medo, tinha medo de que os outros falassem comigo, porque eu não entendia nada e tão pouco eu podia perguntar algo. Eu ficava perdida, não sabia como caminhar. Não sabia falar, nem entendia. Agora entendo, porque fiz um curso. Na Bolívia, meu sonho sempre foi o Brasil. Eu tentei vir três vezes com o grupo da Igreja Messiânica, mas meu marido, com quem casei depois do meu primeiro marido, não queria. Quando vim, não acreditei que estava no Brasil. Vim de ônibus. Gosto de viajar de ônibus para desfrutar a paisagem. Eu não acreditava que era eu quem estava entrando. Graças à Deus conheci várias partes do Brasil. Para mim fui um sonho. Com a minha chefe fui para o Rio de Janeiro e conheci o mar, fomos comer peixe e camarão. Nunca em minha vida tinha visto o mar, só nos filmes. Que lindo é quando o sol adentra no mar! Foi o mar mais grande que conheci. Daqui, eu gostei muito do suco de goiaba, nunca tinha tomado. Há coisas aqui que não aproveitamos lá. Há sucos de todos os tipos aqui. Lá só chupamos as frutas e não usamos para outras coisas. O suco de acerola também é bom! Quase ninguém lá conhecia acerola. Não sabiam como preparar o suco e tão pouco sabiam o que era acerola. Aqui tem muitos tipos de sopa, como de folhas verdes. Aqui é diferente! Eu gostei das coisas aqui. É fácil de comer as coisas, porque eu gosto de comer. Aqui é tudo muito longe, muito cansativo. Para caminhar tem que sair cedo. Só isso, mas você acostuma. Antes não costumava caminhar muito. Onde eu morava, eu caminhava meia quadra até onde o ônibus passava. Não estava acostumada a caminhar tanto. Lá nunca tinha andado de elevador e escada rolante, andei aqui. Santa Cruz antes era mato, mas agora está crescendo bastante. As pessoas do interior estão indo para lá. Fui de Bolívia para Curitiba, moramos em Juruena, no Mato Grosso, muito linda, muito bonita! Eu gostei. Perto de Curitiba fomos a um lugar que
  • 40. 40 Sí, yo puedo! fazia muito frio, então mudamos para Campo Grande e ficamos lá quase um ano. De Campo Grande viemos para São Paulo e não gostava de São Paulo, porque era tudo difícil, caminhávamos muito. Eu falo para meu filho que a Bolívia é um paraíso! É tudo perto, não se caminha muito. Sobre os brasileiros, eles nunca me incomodaram, onde eu vou sempre sou muito bem recebida, por mulheres, homens e crianças. Nunca tive problemas por ser boliviana, nunca me discriminaram. Aqui, e em todas as partes que morei, fui bem recebida. Da Bolívia, tenho guardada uma caixinha cheia de bijuterias. Essa caixinha ganhei do meu filho quando fui de férias ao meu país, havia quatro brincos dentro, mas nela guardo outras bijuterias que recebi da gente de lá. Esse meu filho já veio aqui para o Brasil. Eu dei a viagem de presente de aniversário para ele. Meu filho me deu esses brincos em um dia particular. Foi a primeira vez que eu recebi um presente assim dele, acho que quis me dar por sentir carinho. Fiquei muito contente, porque esse menino é pouco carinhoso, não é muito apegado a mim. Ele é sério, tem o jeito dele. Sempre foi assim. Digo que ele é chato, não é atencioso com as pessoas, nem gentil. Só uso os brincos em casa, não para sair, porque os fechos dos brincos caem muito na rua. E não gosto de perder nada que me dão de presente, sou muito cuidadosa! Quando uso eles, lembro do meu filho. Faz tempo que eu não coloco estes brincos, estavam bem guardados. Tudo que me regalam eu guardo com carinho. Quando vou à Bolívia, já não acostumo lá, como outros alimentos e sinto dor de estômago. Lá o tempero é muito forte, tem muito azeite e sal. Mesmo assim, do que sinto mais falta é da comida de lá. Sopa de frango caipira com mandioca, acompanhada de um arroz especial, me encanta comer. Aqui galinha caipira fica longe. Meus filhos estão com saudade de mim porque eu cozinho. Querem a comida que eu faço. Eles falam: “mãe você já não vai trabalhar!”. Para mim meus filhos não são adultos. Dizem que eu não deixo meus filhos amadurecerem. Eu tenho medo de eles virem morar aqui, pois outro dia mataram um boliviano. Assaltaram ele, queriam dinheiro e como não havia dinheiro, então o mataram. Tinha vinte e quatro anos e fazia três meses que estava aqui. Lá é violento também. Eu tenho uma vizinha lá na Bolívia, que mataram seu filho, que vendia maconha. Lá é perigoso também. Só que lá matam e levam longe. Igual aqui! Matam e levam a outro lugar. Assim é.
  • 41. 41Histórias que se cruzam na kantuta LiVre aTÉ de si mesmo Miguel Ángel Saavedra Aguilar Meu nome é Miguel Ángel Saavedra Aguilar e só tenho trinta e seis anos. Sou boliviano, e sim, sei costurar. Conheço o Brasil faz onze anos. Falo que conheço, porque não morei os dez anos contínuos aqui, pois voltei para a Bolívia, morei dois anos lá, depois voltei para o Brasil por um ano, voltei para a Bolívia de novo e assim foi. Nasci em La Paz, mas nem sempre vivi em La Paz. Saí de casa aos doze anos e fui morar em Beni, trabalhei como ajudante de caminhão e comecei a viajar, por isso conheço toda a Bolívia. A primeira vez que vim ao Brasil, tinha vinte e quatro anos. E penso que vir pra cá, talvez, era minha última opção. E assim era para muitos de meus amigos. Eu venho de uma família muito pobre, mas não foi esse o motivo que me fez vir para o Brasil, pois quando eu decidi vir pra cá estava num momento muito crítico emocionalmente. Lá eu sobrevivia, mas a parte emocional foi decisiva. Foi uma série de acontecimentos que me trouxe para o Brasil. Eu lembro que minha situação econômica estava tão ruim,
  • 42. 42 Sí, yo puedo! que eu vim com uma muda de roupa. Tinha colocado na mochila um par de sapatos, dois pares de meia, minha carteirinha de jornalista, duas camisas, uma calça, a passagem de Santa Cruz até Ciudad del Este e cinco bolivianos no bolso. Era essa minha situação. Também trouxe comigo um artigo que me deram para ler, intitulado “Masculinidades en la cultura de la globalización”. É um artigo sobre masculinidades. Era um texto que falava sobre começar a ver a violência a partir dos homens. Enxergar a violência como algo dos homens e não exclusivo das mulheres. Foi um dos primeiros documentos que recebi quando comecei a trabalhar com direitos humanos, quem me deu isso foi a pessoa que me ensinou praticamente a ler. Eu sabia ler, mas daquele jeito onde você não entende nada, só repete. Grande parte do caminho que sigo hoje se deve a essa pessoa, que é um amigo. Ele fez o maior questionamento que já recebi, perguntou O QUE EU QUERIA SER NA VIDA. Disse que eu queria ser locutor de uma rádio, só de música, e ele questionou POR QUE EU NÃO QUERIA SER UM LOCUTOR LÍDER DE OPINIÃO. Esse amigo é psicólogo, agora. Foi quem me deu a primeira chance de trabalhar em outros espaços, onde muito além de utilizar as mãos, também utilizavam “o cérebro”. Lembro que eu trabalhava de Disk Jockey numa discoteca e esse meu amigo me questionava e dizia: “ATÉ QUANDO VOCÊ VAI GANHAR SEU DINHEIRO COM SUA GARGANTA? NÃO ACHA QUE É HORA DE GANHAR DINHEIRO COM SEU CÉREBRO?”. Trabalhei com ele por muito tempo. Eu era seu secretário. Ele tinha secretário, não secretária. Então, essas folhas significam para mim, o começo de um trabalho, o começo de uma vida. Quando tenho algum problema, mando email pra ele ou ligo pelo chat e trocamos opinião. Vim lendo o artigo no caminho para o Brasil para me lembrar de onde eu saí, pois esse texto é uma autorreflexão, é um questionamento sobre o que é ser homem. Quando eu vim para o Brasil, eu não esperava encontrar nada, só queria fugir do meu país. Mas tinha uma visão do Brasil, achei que fosse um “Estados Unidos”, que tivesse só prédios e mulher pelada na rua. Quando eu estava lá, víamos o carnaval do Brasil e lá, pelo menos onde eu morava, éramos muito conservadores, acho que porque lá é frio. Vim pelo Paraguai e a primeira coisa que vi foi favela, aí me assustei e questionei: “Cadê o Brasil que me contaram?”. Quando cheguei aqui, tinham poucos bolivianos. Já tinha no Brás, onde sempre teve. E a festa dos bolivianos era numa rua pequena, que era a Rua do Glicério. No ano seguinte, começou a crise na Argentina e muita gente boliviana que morava lá veio para o Brasil. Com mais pessoas, vieram as rádios comunitárias, as festas maiores e a mão de obra ficou mais barata.
  • 43. 43Histórias que se cruzam na kantuta Foi nesse momento que pude perceber que tinham muitas coisas erradas, por exemplo, os lugares que “ajudavam” os migrantes começaram a cobrar, lembro muito bem de um anúncio que tinha: “APORTE VOLUNTÁRIO POR 20 REAIS”. Se você coloca um preço, não é voluntário! Antes de vir, eu sabia que ia trabalhar doze horas por dia, comer e dormir no mesmo lugar, mas em algum momento da viagem comecei a sonhar, pensei: “Vou trabalhar, conhecer outras pessoas, vou crescer lá!”. Mas, quando estava aqui há uma semana, já queria voltar para meu país, pois nunca imaginei que era tão ruim trabalhar doze horas por dia, sem sair. É quase uma prisão. Não é nem um regime semiaberto, porque você não sai de lá. Se a minha situação emocional estava difícil, estando fechado, as coisas pioraram. E o pior é que naquela época você não ganhava nada. Era trabalhar para pagar, porque eu não sabia costurar e, mesmo que eu tivesse meu irmão aqui para me ensinar, não é tão simples assim, demora um bom tempo para você aprender a costurar. Vir para este país foi minha última chance, mas no primeiro ano que eu estava aqui, eu odiei o Brasil, eu amaldiçoei tanto o Brasil! Porque tive que trabalhar muitas horas por dia para ganhar pouco. Eu não gostei mesmo, e pensei: “Não! Eu vou embora!”. Voltei para meu país e de novo tive uma recaída emocional, então tive que tomar uma decisão, que foi retornar ao Brasil. Pensei que se costurar ia me tirar de onde eu estava, iria costurar. Eu ganhava um pouco mais, as pessoas me valorizavam mais e já comecei a interagir com outras pessoas. As pessoas me chamavam para trabalhar com elas. Percebi que meu trabalho estava melhorando. Aí comecei a estudar, comecei a procurar outras coisas. No Brasil, tentei me integrar na comunidade dos migrantes, tentei entrar no círculo dos bolivianos, só que nunca consegui me integrar por completo, talvez por minha rebeldia, sou uma pessoa muito rebelde. Então, voltei para meu país por mais dois anos. Aqui tinha feito um curso de web designer, não sabia nada, mas era mais valorizado na Bolívia, me falavam: “Nossa! No Brasil? Vem trabalhar comigo!”. Só pelo fato de ter feito curso no Brasil. “Você fala Português?”, me perguntavam. Eu não falava nada, mas respondia: “Falo, falo!”. Penso que se hoje eu volto pra Bolívia, com certeza tenho um trabalho lá. Eu penso que conheço o quão difícil é a área da costura. Sei que a costura não é opção como muitas pessoas acham. Na verdade, você é empurradoparatrabalharnela.Hoje,porexemplo,estãovindooshaitianos, todo mundo fala deles, mas os bolivianos também estão chegando e em grande quantidade. Por que ninguém fala? Por que ninguém fala dos jovens que estão vindo? Eles também estão trabalhando no mesmo regime análogo à escravidão. O boliviano é visto como trabalhador escravo e o
  • 44. 44 Sí, yo puedo! haitiano é trabalhador por direito. É muito complicado quando as pessoas, que dizem que representam os migrantes, simplesmente os utilizam como bandeira política, pois assim só fazem medidas paliativas, pois querem ficar bem com seus amigos. De tudo acontece nessas relações utilitárias. Aqui não encontrei nenhuma facilidade quando cheguei pela primeira vez, pois não tinha documentos. Minha ideia foi sair na rua, achando que ia encontrar um serviço, achando que eu ia fazer alguma coisa, mas não, ninguém te abre a porta. Caminhei, caminhei, caminhei. Bati portas, perguntei como alugava uma casa e me disseram que precisava ter documento e conta no banco. Como tinha a carteirinha de jornalista da Bolívia, fui procurar trabalho como jornalista, mas a carteirinha não era válida aqui. Hoje é mais simples, aspas, porque você chega e tem mais facilidade de obter os documentos. Quando precisei renovar a documentação no Brasil, pedi licença de um mês no trabalho, lá na Bolívia, para vir aqui e aproveitei para fazer umas entrevistas para uma matéria sobre estupros e abusos nas oficinas de costura. Nessa época, fiquei sabendo que tinha prostituição na Rua Coimbra! Só que agendaram meus documentos para seis meses depois. Pensei: “Fico ou volto?”. Liguei e disse no meu trabalho que ia ficar aqui. De volta ao Brasil, fui em um instituto de informática, do nada, e falei: “Quero dar aula!”. Pediram meu currículo, eu entreguei e me deram a oportunidade. Tive que dar aula, em português, para brasileiros e topei. Nas primeiras três turmas que peguei para dar informática, eles pagaram para me ensinar português, porque eu perguntava mais pra eles, do que eles perguntavam pra mim. Nisso, percebi a necessidade de se falar português, porque conseguia até falar, mas não me comunicar. Agora consigo entender quando as pessoas fazem piadas e brincam, naquela época não conseguia entender. Agora sou consultor, dou consultoria para microempreendedores, no campo das relações humanas, pois tenho conhecimentos em comunicação e experiência na área, que adquiri quando trabalhei com um dos melhores psicólogos da Bolívia. Também fiz cursos aqui de PNL, Coaching Sistémico e Design Thinking, o que me deu mais ferramentas ainda. Quando há problemas com produtividade, então eles me ligam e eu vou lá tentar resolver problemas. Eu cobro por solucionar problemas. Não dou conselhos, dou consultoria. Uma das coisas que eu mais gosto é me comunicar com as pessoas e perguntar, vivo fazendo isso e cobro por fazer isso. É bem legal! Entrei no mercado dos microempreendedores quando fiz um curso de empreendedorismo no SEBRAE, que te dá muitas ferramentas, mas para quem está começando não se aplica, porque a pessoa precisa de outros conhecimentos e disciplinas, uma vez que
  • 45. 45Histórias que se cruzam na kantuta entendo que o início para um microempreendedor, na maioria das vezes, é a informalidade. É nesse sentido que vejo que não se aplica. Tenho um programa de rádio, em espanhol, que é uma cópia de um programa de rádio que tínhamos lá na Bolívia, onde falávamos de direitos humanos. Eu sempre trabalhei com direitos humanos, desde 1999. É uma área que me identifico muito. E quando vim para o Brasil, me identifiquei ainda mais por causa da discriminação no acesso ao trabalho e também pela desigualdade social que tem aqui. No início, o programa era uma cópia, um programa chato que todo mundo ouvia, mas ninguém escutava. Então, fizemos um contato via skype com um amigo que mora na Argentina e do nada virou outro formato. Agora é um programa mais dinâmico, falo de tudo, desde educação até folclore. O foco é que as pessoas discutam seus problemas e em primeira pessoa. Penso que é hora de acabar com o discurso perfeito, com o politicamente correto. Mesmo que a pessoa não seja formada, não tenha um conhecimento além da sua experiência de vida, acho importante ouvir as pessoas e parar de ser guru. Em um primeiro momento procurei a Praça Kantuta para ministrar cursos lá, mas a direção da época disse: “Não!”. Fiquei muito decepcionado, pois eles falavam que faziam as coisas, mas não tinham a “cabeça aberta”. Depois conheci a Jobana Moia, que me indicou a Veronica e, assim, conheci o Projeto Sí, Yo Puedo! e passei a ser voluntario lá. No projeto, a cada final de turma, temos as formaturas e numa formatura fizeram uma peça de teatro. Depois numa outra turma, não sabíamos o que fazer para a formatura, aí resolvi fazer uma apresentação em stand-up e gostaram. O teatro foi uma coisa que apareceu do nada em minha vida. Não sou um artista, mas um aprendiz. Penso muitas coisas e não tenho onde falar. Gosto do teatro, porque posso falar o que eu quero, as pessoas podem concordar ou discordar, podem me amar ou me odiar. O teatro pra mim é um espaço criativo, onde sou eu mesmo. Tomara que as pessoas não se conformem nunca. Acho que a certeza de que está fazendo a coisa certa é um problema. Penso que a dúvida e a curiosidade são as melhores coisas! E o segredo é não se fechar, não pensar que porque sou assim, vou acabar assim. Gosto de um grafite que diz: “Livre até de mim mesmo”. Não somos artistas, mas somos a arte. Falando em preconceito, eu achava que não tinha, mas aqui tem preconceito também, penso que eu nunca sofri preconceito. Tenho uma experiência muito legal com relação ao preconceito, uma vez quando eu estive dando aulas, uma pessoa mudou de turma porque eu era boliviano. Era o que eu pensava. A pessoa falou na diretoria que ia trocar de turma, porque o professor parecia não saber o conteúdo. Eu falei para diretora que se eu não sabia, não seria na primeira aula que me diriam que não
  • 46. 46 Sí, yo puedo! sei. Eu achei que era preconceito. Foi muito difícil pra mim. Eu entrei em depressão. Olhei-me no espelho e falei: “O que de diferente tenho?”. Mas depois, foi engraçado, levei um amigo boliviano lá na escola e ele me falava que tinha uma amiga muito legal. “Ela me ajuda em tudo, entende o que eu falo”, ele me dizia. Na formatura, ele me convidou e me apresentou a amiga dele e era aquela menina que eu achava que tinha preconceito comigo. Foi um choque pra mim. Aí eu fiquei pensando: “Será que o preconceito estava nela ou em mim?”. Porque se ela fosse preconceituosa nunca teria virado amiga do meu amigo, mas ela o ajudava. Outra experiência que tive com relação ao preconceito, foi quando comecei a frequentar o Projeto Sí, Yo Puedo!. Passei a pegar o ônibus que ia para Edu Chaves, onde tinha muito boliviano, e foi quando percebi o preconceito que tinha de verdade. As pessoas maltratavam os bolivianos dentro do ônibus. Antes eu não pegava este ônibus. Quando eu subia no ônibus, já começavam com piadinhas. Eu dava dez reais para o motorista e ele dizia que não tinha troco, eu dizia que podia esperar e ele dizia que eu podia descer. Eu ficava chateado e reclamava, pois eu estava pagando, e ele insistia que não tinha troco e dizia que eu devia descer. Se eu fosse brasileiro, ele não fazia isso. Aí eu descia do ônibus. Foi quando pude ver o preconceito de algumas pessoas. Eles falavam com os bolivianos coisas como: “Fica lá no fundão! Você tá fedendo!”. Coisas duras. “Tem que tomar banho!”, diziam. Recentemente, morreu um amigo meu e disseram que mataram ele porque boliviano costuma andar com dinheiro. Disseram que foi latrocínio. Mentira! Conheço meu amigo e ele nunca teve dinheiro, pegava o dinheiro que ganhava e mandava pra Bolívia. Não se vestia bem, não tinha carro, nem uma bicicleta ou um tênis bom ou celular. Sempre questionei o discurso que muitas pessoas têm quando falam que o boliviano tem dinheiro guardado em casa, pois para mim as pessoas podem guardar o dinheiro onde quiserem. A obrigação do Estado é dar segurança, não só para os bolivianos, mas para a população em geral. Este meu amigo morava num bairro da periferia. A parte mais dura é ouvir que é “um caso excepcional”. Outro questionamento meu é entender por que, se os bolivianos “têm dinheiro em casa”, tem cada vez mais bolivianos morando nos bairros da periferia. E pior ainda, desde quando a vítima é culpada? Possibilitaram-nos abrir contas em bancos, porque bolivianos guardam dinheiro em casa, mas, não podemos guardar dinheiro em casa? Somos os responsáveis por sermos roubados? Eu tenho direito de guardar dinheiro onde eu quiser. Por que vão me obrigar a reforçar um sistema ganancioso que é o banco. Colocam a culpa na sociedade e não acho que deva ser assim. Digo isso, pois ouço muito dizer: “É que eles guardam dinheiro em
  • 47. 47Histórias que se cruzam na kantuta casa”. Outra, quantas pessoas precisam morrer? Tem que se tornar algo comum para que se faça alguma coisa? O discurso repetitivo não serve para os migrantes, não queremos nada a mais, simplesmente queremos o que todo ser humano quer, mas o Estado e as lideranças, lamentavelmente, não querem, pois muitos sobrevivem à custa dos migrantes. Acho que com relação à imigração, o maior problema não é chegar ao Brasil, o problema é antes de você sair do seu país. O Brasil tem seus problemas, mas acho que falta uma cultura de migração na Bolívia. Falta uma educação para o mundo. Você não é preparado para sair de lá. No meu país não tem uma cultura de emigração. Ouvi falar que no Uruguai tem uma cultura da migração, pois te preparam para sair do país, e isso pode se perceber quando um estrangeiro chega aqui, a primeira coisa que ele faz é aprender o idioma. Porém, de onde eu venho, na minha região pelo menos, as pessoas vêm para cá pensando em ganhar dinheiro, então aceitam tudo. Boliviano é visto como mão de obra barata. Em muitos lugares, onde eu já fui, as pessoas querem me pagar menos e acho que o motivo é o fato de eu ser boliviano. Tem um preconceito muito grande contra bolivianos no sentido profissional. Boliviano é igual costura. Tudo bem que eu sei costurar, mas isso não me impede de aprender outras coisas. Acho que a mídia dirige muito a visão com relação ao povo boliviano, boliviano profissional não é notícia, boliviano escravo é notícia. O mais triste é que na comunidade de imigrantes acontece a mesma coisa. Às vezes, as pessoas acham que aprender o idioma é a última coisa a se fazer, mas é o contrário, aprender o idioma é a primeira coisa a se fazer. O idioma é primeiro passo para a integração do imigrante. Na minha visão, olhamos o Brasil não como um lugar de oportunidades, mas um lugar onde se vai ganhar dinheiro. Se os imigrantes chegam e fazem parte da desigualdade é complicado para o próprio Estado, por isso acho que deveriam ter políticas voltadas para formação do imigrante quanto ao idioma. Hoje, eu acho que ter imigrado foi a melhor decisão que tomei. Sou muito grato ao Brasil, eu amo o Brasil por ter me dado uma segunda chance. Quando comecei a pensar que aqui eu tinha uma oportunidade, mudou toda minha vida. Se eu tiver que voltar a costurar, volto, mas vou continuar procurando outras coisas. Costurar virou mais uma ferramenta do que algo ruim pra mim. Aqui conheci muitas pessoas legais, tive oportunidades e penso que ainda vou ter muitas oportunidades. Acho que vou viver fazendo ponte entre o Brasil e a Bolívia. Algo com que não concordo, é que as pessoas te olhem com superioridade,quevenhamteensinar,comoseobolivianonãosoubessede nada. Ou talvez, eu me sinta inferior. Tenho muita dificuldade com o poder.
  • 48. 48 Sí, yo puedo! Você diz que todo mundo é igual, mas na realidade não é assim. Como todo mundo pode ser igual, se nós imigrantes nos discriminamos entre nós? Sou uma pessoa, por exemplo, que não acha ruim a costura. Não sou contra a costura, sou contra o sistema que favorece a desigualdade social e, por consequência, o trabalho análogo à escravidão. Não gosto de ser politicamente correto, mas tudo bem. Falam da costura como se você não pudesse ser costureiro, mas se você é psicólogo, você pode ser psicólogo. Penso que o problema não são as horas de trabalho, pois se você trabalha numa multinacional, com certeza não vai trabalhar oito horas, a pergunta é: Por que não falam deles? A questão principal é a desigualdade social. Ainda continuamos num sistema academista, colocamos o “título” antes do ser humano. “Você não estudou, então você não presta!”. Como se um “título” te fizesse uma pessoa melhor. Para mim, se for doutor ou morador de rua dá na mesma. Mesmo que as pessoas digam que não, elas chegam e te olham com superioridade. Os estudiosos vêm e ficam nos pesquisando, querendo saber sobre nossos problemas, acredito que são masoquistas e que gostam de ouvir histórias tristes, mas ao final acabam dizendo: “Vocês, imigrantes, têm direitos”, “vocês têm que lutar pelos seus direitos”. Eu penso que eles acham que somos muito tolos, mas não somos tão burros assim, sabemos que temos direitos. A questão é por que não exercemos nossos direitos. Será que este sistema hipócrita, onde os intelectuais da “pseudo-esquerda” são favorecidos e gozam de lugares privilegiados, na verdade não prejudica o exercício dos nossos direitos? Pois é muito cômodo questionar quando sua roupa é feita por mão de obra barata. Também acho uma perda de tempo, por exemplo, ter uma campanha para o voto, quando em dez anos que conheço o Brasil, só no ano passado ouvi falar da constituinte. É como se eu quisesse construir uma casa, mas não tenho o terreno. A mesma coisa é o voto, você quer ter direito ao voto, mas sem ter uma constituinte. Precisa ter uma mudança na Constituição, já que esta impede a participação política dos imigrantes. Hoje estamos discutindo o impeachment da Dilma e há pessoas que querem que volte a ditadura. Os meios de comunicação vendem que a ditadura teve suas partes boas. Mas se ditadura volta quem vai se ferrar são os pobres, não é o Faustão ou o Luciano Huck. Nós compramos o que a mídia nos vende. Continuamos assistindo a Globo, continuamos rindo da desgraça dos outros. Não posso exercer minha liberdade se fico preso à televisão. Na internet, eu posso exercer melhor minha liberdade de escolha. Achei errado que quem votou na Dilma não foi aos protestos, pois existe uma militância cega, que não enxerga ou não quer enxergar os erros, não digo que devam tirar a Dilma de lá, mas protestarem em busca de mudança. Você acaba votando pelo menos pior, é o que acontece na
  • 49. 49Histórias que se cruzam na kantuta Bolívia também. A democracia é aquela democracia que outros países nos ensinaram, mas por que temos que nos submeter a um modelo que foi imposto? Eu penso que as coisas aqui no Brasil estão mudando muito. A questão política está muito legal aqui hoje. Eu venho de um país muito politizado e acho que hoje estamos discutindo mais a política e isso é um avanço.