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r e v i s ta
               direitos
               humanos
                        NavaNEthEm Pillay

                           BoavENtura dE
                            SouSa SaNtoS

                      lEoNardo Sakamoto
                       marcuS BarBEriNo

                     Paulo Sérgio PiNhEiro

                           Silvia PimENtEl

                        Nilmário miraNda

                          JoSé gEraldo dE
                             SouSa JúNior

                            horácio coSta

                      João roBErto riPPEr

                               Paulo BEtti




                     02
                      junho 2009
Apresentação
                                                                                                                     “A vida é procurar cada vez mais.
                                                                                                              E se um dia alcançarmos o nosso sonho,
                                                                                                             então temos que sonhar mais alto ainda!”.




C
         om tal enunciado poético, Augusto Boal fechou sua antológica            restrito a número limitado de brasileiros, segue envergonhando o País e
         entrevista ao número 1 desta revista, pouco antes de morrer, le-        nos convocando à construção de amplo consenso em torno da necessi-
         gando a todos nós o desafio de prosseguir na busca.                     dade de erradicá-la imediatamente.
     Aqui está o número 2 da revista, orgulhosa do sucesso da edição                  O reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa,
inaugural, com dez mil exemplares rapidamente distribuídos, e já deci-           jurista conhecido pelas brilhantes conceituações a respeito do “Direito
dida a tornar-se quadrimestral. O plano é lançar o número 3 em setem-            Achado na Rua”, analisa toda a temática da Educação em Direitos Hu-
bro e o número 4 em dezembro deste ano.                                          manos no Brasil e o conteúdo mais central do Plano Nacional em curso
     Nesta nova edição, a própria Alta Comissária de Direitos Humanos            desde 2003, que ele próprio ajudou a formular e implementar.
da ONU, a sul-africana Navanethem Pillay, atendeu a nosso convite para                O direito à diversidade sexual, como legítimo Direito Humano do
escrever sobre a real importância da Conferência de Revisão de Durban            segmento LGBT, está também presente na revista, tanto no belo poema
contra o Racismo, ocorrida em Genebra, no final de maio. Seu relato po-          do professor da Universidade de São Paulo (USP) Horácio Costa, quanto
sitivo corrige o festival de distorções patrocinado pela mídia de muitos         na homenagem a nosso companheiro Paulo Biagi, que coordenou, até o
países, sob pretexto do lamentável discurso de Ahmadinejad colocando             último domingo de Páscoa, o Programa Brasil sem Homofobia.
em dúvida o Holocausto.                                                               Neste número 2, a sessão permanente de entrevistas focaliza o ator
     O conhecido professor e sociólogo de Coimbra, Boaventura de Sou-            Paulo Betti, protagonista de filmes e novelas, mas também militante enga-
sa Santos, ofereceu à revista denso ensaio, aqui resumido, com refle-            jado em diferentes causas dos Direitos Humanos, em especial nas ativida-
xão instigante sobre as perspectivas de universalização da agenda dos            des da Casa da Gávea, no Rio de Janeiro, e do Quilombinho, em Sorocaba,
Direitos Humanos e seus condicionantes. Sem defender o relativismo               direcionadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade.
cultural, seu texto mostra que é imprescindível dialogar com tradições                O ensaio fotográfico deste número estampa impressionantes ima-
afastadas do racionalismo ocidental – como o Hinduísmo e o Islamis-              gens de João Roberto Ripper, sempre portadoras de aguda sensibilidade
mo – para que a pretendida universalidade não se limite a bordão tão             social. Quanto às ilustrações, foram cedidas pelo artista plástico equa-
repetitivo quanto oco de sentidos.                                               toriano Pavel Égüez.
     A jurista Sílvia Pimentel, das mais respeitadas lideranças brasileiras na        Ao final, a revista segue publicando os mais importantes instrumen-
luta das mulheres, reconstrói os avanços conquistados nessa temática an-         tos internacionais sobre Direitos Humanos. Na edição anterior, tratou-se
gular dos Direitos Humanos, da Constituinte de 1986 à Lei Maria da Penha.        de destacar a própria Declaração Universal, em seu aniversário de 60
     Paulo Sérgio Pinheiro, com sua autoridade de relator da ONU em              anos. Este número 2 traz a Convenção da ONU sobre os Direitos da
distintas questões (violência contra a criança no mundo, Mianmar, Bu-            Criança, que completa 20 anos em 2009.
rundi etc.), e também membro da Comissão Interamericana de Direitos                   Com certeza, a leitura atenta deste número 2 da Revista Direitos
Humanos, desenha possibilidades otimistas nos Estados Unidos e no                Humanos, bem como sua discussão com turmas de alunos e colegas
planeta, com a posse e com os primeiros cem dias de Barack Obama.                em salas de aula, sua veiculação pela internet, seu debate em reuniões
     O ex-ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, reconstrói            de sindicatos, associações, ONGs e movimentos populares, ajudarão a
o processo histórico da Anistia de 1979 – que em agosto completará               reforçar mais um pouco a longa caminhada para concretizar e efetivar                  3
30 anos –, deixando claro que ela não foi “ampla, geral e irrestrita”,           esses direitos no cotidiano nacional brasileiro.
                                                                                                                                                             Revista Direitos Humanos




conforme desinformação muito reiterada nos últimos meses, seja pela
grande imprensa, seja pela voz de altíssimas autoridades da República.                                                          Brasília, junho de 2009
     Leonardo Sakamoto e o juiz trabalhista Marcus Barberino partilham                                                                   Paulo Vannuchi
artigo apontando o potencial e as dificuldades do combate ao trabalho                                               Ministro da Secretaria Especial dos
escravo no Brasil, mancha histórica e ética que, não importando se                                       Direitos Humanos da Presidência da República
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sumário   Wilson Dias/ABr
                                                6    O início de uma história
                                                     de sucesso
                                                     NavaNEthEm Pillay




                                                10   Direitos Humanos: o desafio
                                                     da interculturalidade
                                                     BoavENtura dE SouSa SaNtoS




          Arquivo pessoal     Arquivo pessoal



                                                     Combate ao trabalho

                                                19   escravo: como plantar uma
                                                     floresta de Direitos Humanos
                                                     lEoNardo Sakamoto E
                                                     marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES




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                                                23   Obama: uma comissão da
                                                     verdade para os torturadores?
                                                     Paulo Sérgio PiNhEiro




          Fernanda Monteiro



                                                      A superação da cegueira

                                                27    de gênero: mais do que um
                                                      desafio – um imperativo
                                                      Silvia PimENtEl
Expediente
                                                            Presidente da República
                                                            Luiz Inácio Lula da Silva
                                                            Ministro da Secretaria Especial dos Direitos
Foca Lisboa
                                                            Humanos da Presidência da República
                                                            Paulo Vannuchi


                       31   Aos 30 anos, anistia ainda é
                            um processo inconcluso
                                                            Secretário Adjunto
                                                            Rogério Sottili
                                                            Conselho editorial
                                                            Paulo Vannuchi (Presidente)
                            Nilmário miraNda                Aída Monteiro
                                                            André Lázaro
                                                            Carmen Silveira de Oliveira
                                                            Dalmo Dallari
                                                            Darci Frigo
                                                            Egydio Salles Filho
Diógenis Santos                                             Erasto Fortes Mendonça
                                                            José Geraldo de Sousa Júnior
                                                            José Gregori


                       35
                                                            Marcos Rolim
                            Educação em Direitos Humanos:   Marília Muricy
                                                            Izabel de Loureiro Maior
                            desafio às universidades        Maria Victoria Benevides
                                                            Matilde Ribeiro
                            JoSé gEraldo dE SouSa JúNior    Nilmário Miranda
                                                            Oscar Vilhena
                                                            Paulo Carbonari
                                                            Paulo Sérgio Pinheiro
                                                            Perly Cipriano
                                                            Ricardo Brisolla Balestreri
Pedro Stephan
                                                            Samuel Pinheiro Guimarães
                                                            Coordenação editorial:


                       41
                                                            Erasto Fortes Mendonça
                                                            Mariana Carpanezzi
                            Poemas                          Paulo Vannuchi
                                                            Patrícia Cunegundes

                            horácio coSta                   Tradução:
                                                            Mariana Carpanezzi
                                                            Revisão:
                                                            Bárbara de Castro e Joíra Coelho
                                                            Colaboração:
Fátima Monteiro
                                                            Fernanda Reis Brito
                                                            Projeto gráfico:


                       42
                                                            Wagner Ulisses
                            Imagens                         Diagramação:
                                                            Erika Yoda, Fabrício Martins
                                                            e Maria Luísa Barsanelli
                            João roBErto riPPEr             Capa e ilustrações:
                                                            Pavel Égüez
                                                            Produção editorial:
                                                            Jacumã Comunicação

Juliana Hallack                                             Secretaria Especial dos Direitos Humanos
                                                            Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício
                                                            Sede, sala 424



                       50
                                                            70.064-900 Brasília – DF
                                                            direitoshumanos@sedh.gov.br
                            Entrevista                      www.direitoshumanos.gov.br
                                                            ISSN 1984-9613
                                                            Distribuição gratuita                                                   5
                            Paulo BEtti                     Tiragem: 10.000 exemplares
                                                                                                                          Revista Direitos Humanos




                                                            Direitos Humanos é uma revista de distribuição gratuita,
                                                            publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos
                                                            da Presidência da República.




                  >>
                                                            As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade


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artigo




                           O início de uma
                           história de sucesso
                           NavaNEthEm Pillay




                                                               A
                           NavaNEthEm Pillay é                          Conferência das Nações Unidas para     por alhear-se ao processo a retomar seu lugar
                           alta-comissária das Nações Unidas            a Revisão de Durban foi concluída em   nos esforços internacionais de superação da
                           para os Direitos Humanos                     Genebra no dia 24 de abril de 2009     discriminação e da intolerância, apontados no
                                                               com amplo acordo enunciando medidas que         documento final da conferência. Muitos entre
                                                               reafirmam a tolerância, o respeito à diversi-   esses Estados haviam se engajado nos traba-
                                                               dade e a continuidade da luta para combater     lhos de redação da versão preliminar do docu-
        6
                                                               o racismo. A rápida e consensual adoção do      mento e se colocado como parte do consenso
Revista Direitos Humanos




                                                               documento final da conferência prova a con-     emergente até a véspera da Conferência de Re-
                                                               fiança que muitos países e inúmeras vítimas     visão. Espero que reexaminem o documento fi-
                                                               depositaram no processo de revisão.             nal, que o valorizem considerando o mérito que
                           Tradução para o português                Tal resultado deveria convencer os Esta-   detém, e que a partir deste olhar reconsiderem
                           Mariana Carpanezzi                  dos-membros das Nações Unidas que optaram       sua posição de afastar-se das discussões.
"Racismo e discriminação racial atacam e
podem corromper as próprias fundações da
dignidade de um indivíduo”

     Uma tal reavaliação seria simplesmente      culturais ou de argumentos falaciosos apre-     das formas mais comuns de violação dos
justa. Apesar das críticas apontadas por al-     sentados como evidências científicas. A         Direitos Humanos e tende a intensificar-se
guns analistas, a conferência fez jus ao que     história insiste em nos provar que, uma vez     em condições de ressurgência de precon-
se propunha realizar: uma celebração da          enraizados, a discriminação, o racismo e a      ceitos e medos, bem como em situações de
dignidade e da tolerância para todos. Con-       intolerância despedaçam os próprios pilares     competição por recursos e oportunidades de
cluímos aquele encontro com sentimento de        que sustentam a sociedade e os corrompem        trabalho. Ela é também, e de modo frequente,
realização que nos renovou e reenergizou a       por gerações. Posso dizê-lo a partir de minha   inerente às assimetrias de poder nas socieda-
determinação e o projeto de luta. Tal senti-     própria experiência de ter crescido e vivido    des. Ela explora e perverte o desejo humano
mento e consciência certamente nos ajuda-        durante o regime do apartheid sul-africano.     de pertencimento, assim como as legítimas
rão a levar em frente a tarefa que se coloca     Conheço a força destrutiva que reside no ra-    aspirações a um espaço cultural, históri-
para o futuro: o duro trabalho de honrar nos-    cismo institucionalizado.                       co e psicológico que preserve e alimente a
sos compromissos; a urgente obrigação de             Apesar da garantia de não discriminação     identidade pessoal.
aportar efeitos concretos ao documento da        inscrever-se em todo e qualquer instrumento          Tudo isso explica a importância da con-
conferência; o imperativo de apagar essa an-     de Direitos Humanos, as leis de alguns paí-     ferência em Genebra. Ela representou uma
tiga vergonha que o racismo representa.          ses e as práticas de muitos outros, em todas    chance para que todas as nações pudessem
     Não há dúvida de que o racismo, a into-     as regiões do mundo, ainda autorizam e tole-    reunir-se e acordar um só documento que
lerância e a discriminação subsistem entre       ram a discriminação. O presidente Luiz Inácio   inscrevesse aspiração comum – combater o
as questões mais urgentes de nosso tempo.        Lula da Silva já se pronunciou de maneira       racismo, em todas as suas manifestações, e
Não apenas a discriminação persiste, como        eloquente sobre os desafios que enfrentou       expressá-lo conjuntamente numa só voz. Foi
vai adquirindo novas formas e dando origem       como garoto pobre de uma família do campo,      uma oportunidade de dar ímpeto à imple-
a sinistras agendas baseadas no mito da          exposto a arraigados preconceitos, vivendo      mentação dos compromissos assumidos oito
supremacia de um grupo sobre outro. Ne-          “na periferia do mundo o drama da estag-        anos atrás em Durban, em 2001, no curso
nhuma sociedade, grande ou pequena, rica         nação e da profunda desigualdade social”.       da Conferência Mundial contra o Racismo,
ou pobre, é imune a ele. A carga do racismo      Além disso, o presidente também já fez notar    a Discriminação Racial, a Xenofobia e Outras
é pesada tanto para indivíduos quanto para       que a maioria de seus predecessores, mesmo      Formas de Intolerância.
comunidades inteiras.                            os reformistas, governou para poucos, preo-          A Declaração e Programa de Ação de Dur-
     Racismo e discriminação racial atacam e     cupando-se com “um Brasil no qual apenas        ban (DDPA), documento final daquela confe-
podem corromper as próprias fundações da         um terço da população importava”.               rência, foi adotada por consenso. Constitui a
dignidade de um indivíduo, uma vez que bus-          Sem desconsiderar o conhecimento que        mais completa plataforma internacional para a
cam dividir a família humana entre categorias    acumulamos a respeito dos efeitos pernicio-     luta contra o racismo, o preconceito, a xenofo-
                                                                                                                                                             7
de pessoas e atribuir-lhes valor diferenciado.   sos que a intolerância, a opressão e a sub-     bia e outras formas correlatas de intolerância.
                                                                                                                                                   Revista Direitos Humanos




     Todos os aspectos da discriminação de-      jugação vêm produzindo através dos séculos      A esperança de milhões de vítimas está anco-
vem ser denunciados e forçosamente rejei-        e dos continentes, temos de continuar em-       rada na implementação do documento, mas
tados, sempre que se manifestem em suas          preendendo esforços para que nos livremos       essa nobre carta se reduzirá a retórica vazia
várias expressões de ódio, seja sob a forma      da discriminação e da marginalização. A         se os compromissos que ela enfeixa não ge-
de oportunismo político, de pressupostos         discriminação racial, particularmente, é uma    rarem efeitos práticos. Precisamos monitorar
artigo   O início de uma história de sucesso

                                                            e avaliar quantas dessas solenes promessas      sobre os Direitos das Populações Indígenas
                                                            enunciadas pelos Estados em 2001 foram          são igualmente promissoras.
                                                            realizadas. Ao mesmo tempo, precisamos de            Apesar dos ganhos obtidos, imensos
                                                            compreensão mais clara sobre as lacunas que     desafios ainda se colocam à nossa frente.
                                                            ainda persistem na esfera da proteção das ví-   Um breve olhar sobre o trabalho recente do
                                                            timas, assim como das negligências observa-     Comitê para a Eliminação de Todas as For-
                                                            das com relação ao DDPA.                        mas de Discriminação Racial revela que as
                                                                 A região latino-americana e caribenha já   leis nacionais e as medidas para garantir a
                                                            deu início a tal processo de avaliação. Se-     eliminação do racismo são tanto inadequadas
                                                            guindo a conferência de 2001 em Durban, a       quanto ineficientes. É preocupante o limitado
                                                            região demonstrou forte compromisso com a       número de Estados da região que detêm in-
                                                            implementação dos objetivos e recomenda-        dicadores para aferir os progressos no tema
                                                            ções contidos no DDPA. No nível nacional,       de combate ao racismo. A representação de
                                                            praticamente todas as Constituições da região   grupos minoritários em cargos públicos é
                                                            garantem o princípio da igualdade. Muitos       diminuta. Há ainda poucas campanhas edu-
                                                            países empreenderam reformas jurídicas para     cacionais públicas voltadas à promoção da
                                                            eliminar leis discriminatórias. Alguns países   igualdade, da diversidade e da tolerância.
                                                            passaram a adotar planos de ação nacionais           Dado o legado histórico deixado pelo ra-
                                                            contra o racismo, tal como recomendado pelo     cismo na região – exclusão social de popu-
                                                            DDPA. Embora nem todos os planos tenham         lações indígenas e afrodescendentes –, mais
                                                            sido integralmente implementados, a adoção      Estados deveriam adotar medidas para pro-
                                                            do plano, por si só, configura um passo na      mover a participação e a representação dos
                                                            direção correta.                                grupos marginalizados e vulneráveis. Se a re-
                                                                 Noto, com satisfação, que a maioria        gião, por um lado, guarda bons registros com
                                                            dos países da região já ratificou os prin-      respeito à ratificação de tratados internacio-
                                                            cipais tratados internacionais de Direitos      nais sobre os Direitos Humanos, por outro é
                                                            Humanos das Nações Unidas e do sistema          preciso notar que importantes instrumentos,
                                                            regional. Fortalecendo e expandindo esse        tais como a Convenção para a Proteção dos
                                                            corpo de leis, a versão provisória da futura    Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Mem-
                                                            Convenção Interamericana contra o Racis-        bros de suas Família, a Convenção nº 169 da
                                                            mo e Todas as Formas de Discriminação e         Organização Internacional do Trabalho (sobre
                                                            Intolerância promete converter-se em agen-      Populações Indígenas e Tribais) e a Conven-
                                                            te catalisador desse processo. Apesar de a      ção sobre os Direitos das Pessoas com De-
                                                            convenção ainda não ter atingido sua ver-       ficiência têm sido objeto de apoio modesto.
                                                            são final, ela constitui desde já instrumento        Os problemas que a região enfrenta não
                                                            que contempla e enfrenta universo amplo         são restritos ao Hemisfério Ocidental. Como
                                                            de diversas formas de discriminação, como       repetidamente venho fazendo notar, a imple-
                                                            jamais outro o fez. A criação, em 2005, do      mentação da Declaração e Programa de Ação
        8                                                   mandato de relator especial para os Direitos    de Durban vem sendo dificultada em diferen-
                                                            Humanos das Populações de Origem Afri-          tes localidades por toda sorte de obstáculos.
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                                                            cana e para a Discriminação Racial consti-      No seio das devastadoras consequências da
                                                            tui outra pedra fundamental no combate ao       atual crise financeira e da recessão econô-
                                                            racismo. As atuais discussões relacionadas      mica, a pobreza e a exclusão continuarão a
                                                            à adoção de uma Declaração Americana            representar desafios centrais. A convergência
dessas crises com os efeitos da mudança cli-       e espírito de compromisso sem precedentes.
mática certamente afetarão desproporcional-        Todos foram agudamente sensíveis ao fato de
mente todos os grupos vulneráveis dentro de        que o racismo, quer institucionalizado, quer
suas respectivas sociedades.                       manifesto como mero ódio contra pessoas,
    A globalização sublinha o desafio de           religião ou classes, constitui simples e pura
garantir respeito mútuo entre indivíduos           negação dos Direitos Humanos.
que carregam consigo diferentes trajetó-                No conjunto das várias histórias nacio-
rias de vida nas sociedades multiculturais.        nais, já assistimos a casos de intolerância
Com a intensificação dos movimentos de             que negam as identidades do “outro”, ou
pessoas através das fronteiras nacionais,          que rejeitam os sofrimentos das minorias que
os migrantes passam a ser percebidos               recusam dividir a chamada “história oficial”.
como competidores pelos escassos recur-            Vimos emergi-los sob novas formas, como
sos disponíveis, bem como ameaça para os           o tráfico de pessoas, cujas vítimas tendem
modos de vida de outros grupos. Por fim,           a ser preferencialmente mulheres e crianças
a exploração da diferença – étnica, racial         de situação socioeconômica desprivilegiada.
ou religiosa – continua a funcionar como           Refugiados, asilados, trabalhadores migran-
combustível para os conflitos armados e            tes e migrantes sem documentação vêm
para tensões dentro das comunidades.               sendo cada vez mais estigmatizados, se não
    O documento final da Conferência de            perseguidos. Uma nova política de xenofobia
Revisão de Durban convoca os Estados a             encontra-se em estágio de ascensão.
prevenir manifestações de racismo, de dis-              A discriminação não desaparece por si
criminação racial e de xenofobia, especial-        própria. Ela deve ser desafiada a todo mo-
mente com relação a migrantes, refugiados          mento. Não devemos esperar. Cada nação
e asilados. Os Estados também são instados         deve ser parceira nessa luta.
a promover maior grau de participação e de              A magnitude da tarefa que se coloca dian-
oportunidades para as pessoas de descen-           te de nós deve incentivar nossa união, para
dência africana ou asiática, populações indí-      que façamos o melhor uso de nossas energias
genas e indivíduos pertencentes a minorias         e recursos, com o propósito de criar um mun-
étnicas, religiosas ou linguísticas. A centrali-   do de oportunidades e de tratamentos iguais
dade da liberdade de expressão é reafirmada        para todos, independentemente de raça, gê-
lado a lado com a sua compatibilidade com          nero, língua, religião, opinião, posição políti-
os instrumentos internacionais que proíbem a       ca, origem social ou nacional, de propriedade,
incitação ao ódio, com vistas a harmonizar o       de nascimento ou de qualquer outra condição.
conflito artificial que se estabeleceu entre os         Tal como a vejo, a Conferência em Gene-
dois princípios.                                   bra é o começo de um processo, muito mais
    Estados ainda reconheceram as injusti-         do que o seu fim. A longa marcha da huma-
ças e atrocidades do passado e compromete-         nidade em sua campanha contra o racismo
ram-se a evitar sua repetição. Nesse sentido,      nunca foi fácil. Como podemos pensar que
envidaram esforços para proibir atividades         ficará mais fácil no futuro? Assim, faço ape-                9
violentas, racistas e xenófobas de grupos          lo a todos os países para que se unam nesta
                                                                                                      Revista Direitos Humanos




propagadores de ideologias extremistas.            marcha à frente. Se a tolerância e o respeito
    Demonstrando sensibilidade pelas de-           pela diversidade constituem nosso horizonte
mandas de nossos tempos, os participantes          futuro, o melhor é que comecemos a praticar
demonstraram flexibilidade, clareza de projeto     essas mesmas qualidades aqui e agora.
Direitos Hum
                                                                                o desafio
                                                                                BoavENtura dE SouSa SaNtoS




                                                                                A
                                                                                        forma como os Direitos Humanos
                                                                                        se transformaram, nas duas últimas
                                                                                        décadas, na linguagem da política
                                                                                progressista, em quase sinônimo de eman-
                                                                                cipação social causa alguma perplexidade.
                                                                                De fato, durante muitos anos, após a Se-
                                                                                gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos
                                                                                foram parte integrante da política da guerra
                                                                                fria, e como tal foram considerados pelas
                                                                                forças políticas de esquerda. Duplos crité-
                                                                                rios na avaliação das violações dos Direitos
                                                                                Humanos, complacência para com ditadores
                                                                                amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos
                                                                                Direitos Humanos em nome dos objetivos
                                                                                do desenvolvimento – tudo isso tornou os
                                                                                Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro
                                                                                emancipatório.
                                                                                     Quer nos países centrais, quer em todo
                                                                                o mundo em desenvolvimento, as forças
                                                                                progressistas preferiram a linguagem da re-
                                                                                volução e do socialismo para formular uma
                                                                                política emancipatória. E no entanto, perante
                                                                                a crise aparentemente irreversível desses pro-
                           BoavENtura dE SouSa SaNtoS é professor
                                                                                jetos de emancipação, são essas mesmas for-
                                    catedrático da Faculdade de Economia da
                                                                                ças que recorrem hoje aos Direitos Humanos
                                 Universidade de Coimbra, distinguished legal
                                                                                para reinventar a linguagem da emancipação.
                             scholar da Faculdade de Direito da Universidade
                                                                                É como se os Direitos Humanos fossem in-
                              de Wisconsin-Madison e global legal scholar da
                                                                                vocados para preencher o vazio deixado pelo
                             Universidade de Warwick. É diretor do Centro de
                                                                                Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos
    10                          Estudos Sociais da Universidade de Coimbra,
                                                                                emancipatórios. Poderão realmente os Direi-
                           diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da
Revista Direitos Humanos




                                                                                tos Humanos preencher tal vazio? A minha
                             mesma universidade e coordenador científico do
                                                                                resposta é um sim muito condicional.
                             Observatório Permanente da Justiça Portuguesa.
                                                                                     O meu objetivo neste trabalho é identifi-
                              Este artigo foi resumido de um ensaio maior por
                                                                                car as condições em que os Direitos Huma-
                           Erasto Fortes Mendonça, com autorização do autor     nos podem ser colocados a serviço de uma
manos:
o da interculturalidade
   política progressista e emancipatória. Tal ta-    forma de Estado e interesses e grupos so-      pós-nacional. A efetividade dos Direitos
   refa exige que sejam claramente entendidas        ciais que se reproduzem melhor sob a forma     Humanos tem sido conquistada em pro-
   as três tensões dialéticas que informam a         de sociedade civil, tornando o âmbito efe-     cessos políticos de âmbito nacional, e por
   modernidade ocidental. A primeira ocorre en-      tivo dos Direitos Humanos inerentemente        isso a fragilização do Estado Nação pode
   tre regulação social e emancipação social. A      problemático. Historicamente, nos países       trazer consigo a fragilização dos Direitos
   segunda ocorre entre o Estado e a sociedade       do Atlântico Norte, a primeira geração dos     Humanos. Por outro lado, os Direitos Hu-
   civil. A terceira ocorre entre o Estado Nação e   Direitos Humanos, dos direitos civis e polí-   manos aspiram hoje a um reconhecimento
   o que designamos por globalização.                ticos, foi concebida como luta da sociedade    mundial e podem mesmo ser considerados
        A primeira tensão dialética entre regula-    civil contra o Estado, considerado principal   como um dos pilares fundamentais de uma
   ção social – simbolizada pela crise do Estado     violador potencial dos Direitos Humanos.       emergente política pós-nacional. A ree-
   intervencionista e do Estado-providência – e      A segunda e terceira gerações, dos direi-      mergência dos Direitos Humanos é hoje
   emancipação social – simbolizada pela crise       tos econômicos, sociais e culturais e da       entendida como sinal do regresso do cultu-
   da revolução social e do Socialismo como          qualidade de vida foram concebidas como        ral e até mesmo do religioso. Ora, falar de
   transformação radical – deixou de ser, nes-       atuações do Estado, considerado principal      cultura e de religião é falar de diferença, de
   te início de século, tensão criativa. As crises   garantidor dos Direitos Humanos.               fronteiras, de particularismos. Como pode-
   de regulação e emancipação sociais são si-             Por fim, a terceira tensão ocorre entre   rão os Direitos Humanos ser uma política
   multâneas e alimentam-se uma da outra. A          o Estado Nação e o que designamos por          simultaneamente cultural e global?
   política de Direitos Humanos, que pode ser        globalização. Hoje, a erosão seletiva do Es-        Nessa ordem de ideias, o meu objetivo
   simultaneamente uma política regulatória e        tado Nação, imputável à intensificação da      é desenvolver um quadro analítico capaz de
   uma política emancipatória, está armadilhada      globalização, coloca a questão de saber se,    reforçar o potencial emancipatório da política
   nessa dupla crise, ao mesmo tempo em que          quer a regulação social, quer a emancipa-      dos Direitos Humanos no duplo contexto da
   é sinal do desejo de a ultrapassar.               ção social, deverão ser deslocadas para o      globalização, por um lado, e da fragmentação
        A segunda tensão dialética que ocorre        nível global. É nesse sentido que se come-     cultural e da política de identidades, por ou-
   entre o Estado e a sociedade civil, apesar        ça a falar em sociedade civil global, gover-   tro. Pretendo apontar as condições que per-
   de considerado o dualismo fundador da             nança global, equidade global e cidadania      mitem conferir aos Direitos Humanos, tanto
   modernidade ocidental, aponta como pro-
   blemáticas e contraditórias a distinção e a
   relação entre ambos.
        Nas últimas décadas, tornou-se mais
                                                     “É como se os Direitos Humanos
   claro que a distinção entre o Estado e a so-      fossem invocados para preencher                                                                        11
                                                                                                                                                     Revista Direitos Humanos




   ciedade civil, longe de ser um pressuposto
   da luta política moderna, é o resultado dela.
                                                     o vazio deixado pelo Socialismo
   A tensão deixa, assim, de ser entre Estado        ou, mais em geral, pelos projetos
   e sociedade civil para ser entre interesses
   e grupos sociais que se reproduzem sob a          emancipatórios”
artigo           Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade

                           o escopo global como a legitimidade local,       gua inglesa em língua franca, a globalização
                           para fundar uma política progressista de Di-     do fast food americano ou da sua música
                           reitos Humanos – Direitos Humanos concebi-       popular, ou seja a adoção mundial das leis
                           dos como a energia e a linguagem de esferas      de propriedade intelectual ou de telecomu-
                           públicas locais, nacionais e transnacionais      nicações dos EUA.                                   “A globali
                           atuando em rede para garantir novas e mais
                           intensas formas de inclusão social.
                                                                                 À segunda forma de globalização chamo
                                                                            globalismo localizado. Consiste no impacto
                                                                                                                                processo
                                                                            específico de práticas e imperativos transna-     determinad
                           acErca daS gloBalizaçõES                         cionais nas condições locais. Tais globalis-
                                Muitas definições de globalização cen-      mos localizados incluem: desflorestamento        ou entidade l
                           tram-se na economia. Privilegio, no entanto,
                           uma definição mais sensível às dimensões
                                                                            e destruição maciça dos recursos naturais
                                                                            para pagamento da dívida externa; tesouros
                                                                                                                                 a sua infl
                           sociais, políticas e culturais. Não existe es-   históricos, lugares ou cerimônias religio-             todo o
                           tritamente uma entidade única chamada glo-       sos, artesanato e vida selvagem postos à
                           balização, mas, em vez disso, globalizações,     disposição da indústria global do turismo;
                           termo que, a rigor, só deveria ser usado no      “compra” pelos países do Terceiro Mundo
                           plural e que, como feixes de relações sociais,   de lixos tóxicos produzidos nos países capi-
                           envolvem conflitos, vencedores e vencidos.       talistas centrais para gerar divisas externas;
                           Frequentemente, o discurso sobre globaliza-      conversão da agricultura de subsistência
                           ção é a história dos vencedores.                 em agricultura para exportação como parte
                                Proponho, pois, a seguinte definição: a     do “ajustamento estrutural”; alterações le-
                           globalização é o processo pelo qual deter-       gislativas e políticas impostas pelos países
                           minada condição ou entidade local estende        centrais ou pelas agências multilaterais que
                           a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo,   eles controlam; uso de mão de obra local
                           desenvolve a capacidade de designar como         por parte de empresas multinacionais sem
                           local outra condição social ou entidade rival.   qualquer respeito por parâmetros mínimos
                                Aquilo que chamamos globalização é          de trabalho (labor standards). A divisão in-
                           sempre a globalização bem-sucedida de            ternacional da produção da globalização as-
                           determinado localismo. Em termos ana-            sume o seguinte padrão: os países centrais
                           líticos, seria correta a utilização do termo     especializam-se em localismos globaliza-
                           localização em vez de globalização para          dos, enquanto aos países periféricos cabe
                           designar a presente situação. O motivo da        tão só a escolha entre várias alternativas de
                           preferência para o último termo é basica-        globalismos localizados. O sistema-mundo
                           mente porque o discurso científico hege-         é uma trama de globalismos localizados e
                           mônico tende a privilegiar a história do         localismos globalizados.
                           mundo na versão dos vencedores.                       À terceira forma de globalização de-
                                Distingo quatro modos de produção da        signo por cosmopolitismo, conjunto muito
                           globalização, os quais, em meu entender,         vasto e heterogêneo de iniciativas, movi-
    12                     dão origem a quatro formas de globalização.      mentos e organizações que partilham a luta
                           A primeira forma de globalização é o localis-    contra a exclusão e a discriminação sociais
Revista Direitos Humanos




                           mo globalizado. Consiste no processo pelo        e a destruição ambiental produzidas pelos
                           qual determinado fenômeno local é globali-       localismos globalizados e pelos globalis-
                           zado com sucesso, seja a atividade mundial       mos localizados, recorrendo a articulações
                           das multinacionais, a transformação da lín-      transnacionais tornadas possíveis pela
revolução das tecnologias de informação e       nica. Localismos globalizados e globalismos
                 de comunicação. As atividades cosmopoli-        localizados são a globalização de-cima-para-
                 tas incluem diálogos e articulações Sul-Sul;    baixo, neoliberal ou hegemônica; cosmopo-
                 novas formas de intercâmbio operário; redes     litismo e patrimônio comum da humanidade
ização é o       transnacionais de lutas ecológicas, pelos       são a globalização de-baixo-para-cima, soli-

  pelo qual      direitos da mulher, pelos direitos dos po-
                 vos indígenas, pelos Direitos Humanos em
                                                                 dária ou contra-hegemônica.


da condição      geral; solidariedade anticapitalista entre o    oS dirEitoS humaNoS como
                 Norte e o Sul. O Fórum Social Mundial que       rotEiro EmaNciPatório
 local estende   se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001 é        A complexidade dos Direitos Humanos

fluência a       hoje a mais pujante afirmação de cosmopo-
                 litismo no sentido aqui adotado.
                                                                 reside em que eles podem ser concebidos
                                                                 e praticados, quer como forma de localis-
  globo”              Não uso cosmopolitismo no sentido mo-      mo globalizado, quer como forma de cos-
                 derno convencional. Para mim, cosmopolitis-     mopolitismo ou, por outras palavras, quer
                 mo é a solidariedade transnacional entre gru-   como globalização hegemônica, quer como
                 pos explorados, oprimidos ou excluídos pela     globalização contra-hegemônica. O meu
                 globalização hegemônica. O cosmopolitismo       objetivo é especificar as condições culturais
                 que defendo é o cosmopolitismo do subalter-     para que os Direitos Humanos constituam
                 no em luta contra a sua subalternização.        forma de globalização contra-hegemônica.
                      A quarta forma de globalização refere-     A minha tese é que, enquanto forem conce-
                 se à emergência de temas que, por sua           bidos como direitos humanos universais, os
                 natureza, são tão globais como o próprio        Direitos Humanos tenderão a operar como
                 planeta e aos quais eu chamaria, recorren-      localismo globalizado e, portanto, como
                 do ao Direito internacional, o patrimônio       forma de globalização hegemônica. Para
                 comum da humanidade. Trata-se de temas          poder operar como forma de cosmopolitis-
                 como a sustentabilidade da vida humana na       mo, como globalização contra-hegemônica,
                 Terra, por exemplo, ou temas ambientais         os Direitos Humanos têm de ser reconcei-
                 como a proteção da camada de ozônio, a          tualizados como multiculturais. Concebidos
                 preservação da Antártica, da biodiversida-      como direitos universais, como tem sucedi-
                 de ou dos fundos marinhos. Incluo, ainda,       do, os Direitos Humanos tenderão sempre
                 nessa categoria, a exploração do espaço,        a ser instrumento do “choque de civiliza-
                 da Lua e de outros planetas, dadas as inte-     ções”, tal como o concebe Samuel Hunting-
                 rações globais, físicas e simbólicas, entre     ton (1993), ou seja, como arma do Ocidente
                 eles e o planeta Terra. A preocupação com       contra o resto do mundo. É sabido que os
                 o cosmopolitismo e com o patrimônio co-         Direitos Humanos não são universais na sua
                 mum da humanidade conheceu grande de-           aplicação. Serão os direitos humanos uni-
                 senvolvimento nas últimas décadas, mas          versais, enquanto artefato cultural, um tipo
                 também fez surgir poderosas resistências.       de invariável cultural ou transcultural, parte
                      Em face da análise precedente, é fun-      de uma cultura global? A minha resposta                13
                 damental distinguir entre globalização de-      é não. Apenas a cultura ocidental tende a
                                                                                                                  Revista Direitos Humanos




                 cima-para-baixo e globalização de-baixo-        formulá-los como universais. Por outras pa-
                 para-cima, entre globalização neoliberal e      lavras, a questão da universalidade é uma
                 globalização solidária ou entre globalização    questão particular, uma questão específica
                 hegemônica e globalização contra-hegemô-        da cultura ocidental.
artigo           Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade




                                O conceito de Direitos Humanos assenta           A dualidade entre uma “política de invisi-   reitos Humanos sobre universalismo e rela-
                           num bem-conhecido conjunto de pressupos-         bilidade” e uma “política de supervisibilida-     tivismo cultural. Todas as culturas são relati-
                           tos, todos claramente ocidentais e facilmente    de” correlacionadas aos imperativos da polí-      vas, mas o relativismo cultural, como posição
                           distinguíveis de outras concepções de digni-     tica externa norte-americana foi denunciada       filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas
                           dade humana em outras culturas.                  por Richard Falk (1981), ao citar a ocultação     as culturas aspiram a preocupações e valores
                                A marca ocidental liberal do discurso       total pela mídia das notícias sobre o geno-       válidos independentemente do contexto de
                           dominante dos Direitos Humanos pode              cídio do povo maubere em Timor Leste ou a         seu enunciado, mas o universalismo cultural,
                           ser facilmente identificada em muitos ou-        situação dos cerca de duzentos milhões de         como posição filosófica, é incorreto.
                           tros exemplos: na Declaração Universal           “intocáveis” na Índia, bem como a exuberân-            A segunda premissa da transformação
                           de 1948, elaborada sem a participação da         cia com que os atropelos pós-revolucionários      cosmopolita dos Direitos Humanos é que
                           maioria dos povos do mundo; no reconhe-          dos Direitos Humanos no Irã e no Vietnã fo-       todas as culturas possuem concepções de
                           cimento exclusivo de direitos individuais,       ram relatados nos Estados Unidos.                 dignidade humana, mas nem todas elas a
                           com a única exceção do direito coletivo à             Mas essa não é toda a história das políti-   concebem em termos de Direitos Humanos.
                           autodeterminação; na prioridade concedida        cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e             A terceira premissa é que todas as cultu-
                           aos direitos civis e políticos sobre os direi-   organizações não governamentais têm luta-         ras são incompletas e problemáticas nas suas
                           tos econômicos, sociais e culturais; e no        do pelos Direitos Humanos, correndo riscos        concepções de dignidade humana. Se cada
                           reconhecimento do direito de propriedade         em defesa de grupos oprimidos vitimizados         cultura fosse tão completa como se julga,
                           como o primeiro e, durante muitos anos, o        por Estados autoritários, por práticas econô-     existiria apenas uma só cultura. Aumentar a
                           único direito econômico.                         micas excludentes ou por políticas culturais      consciência de incompletude cultural é uma
                                A história dos Direitos Humanos no pe-      discriminatórias. Tais lutas emancipatórias       das tarefas prévias à construção de uma con-
                           ríodo imediatamente posterior à Segunda          são, por vezes, explícita ou implicitamente       cepção multicultural de Direitos Humanos.
                           Guerra Mundial nos leva a concluir que as        anticapitalistas. Creio que a tarefa central da        A quarta premissa é que todas as culturas
                           políticas de Direitos Humanos estiveram em       política emancipatória do nosso tempo con-        têm versões diferentes de dignidade humana,
                           geral a serviço dos interesses econômicos e      siste em transformar a conceitualização e a       algumas mais amplas do que outras, algumas
    14                     geopolíticos dos Estados capitalistas hege-      prática dos Direitos Humanos, de um loca-         com um círculo de reciprocidade mais largo
                           mônicos. Um discurso generoso e sedutor          lismo globalizado num projeto cosmopolita.        do que outras, algumas mais abertas a outras
Revista Direitos Humanos




                           sobre os Direitos Humanos coexistiu com               Identifico três premissas dessa transfor-    culturas do que outras.
                           atrocidades indescritíveis, as quais foram       mação. A primeira premissa é a superação               Por último, a quinta premissa é que
                           avaliadas de acordo com revoltante duplici-      do debate intrinsecamente falso e prejudicial     todas as culturas tendem a distribuir as
                           dade de critérios.                               para uma concepção emancipatória dos Di-          pessoas e os grupos sociais entre dois
“Um discurso generoso e
                                                    sedutor sobre os Direitos
                                                    Humanos coexistiu com
                                                    atrocidades indescritíveis”


princípios competitivos de pertença hierár-          A hermenêutica diatópica baseia-se na       reitos Humanos, o dharma também é incom-
quica. O princípio da igualdade e o princí-      ideia de que os topoi de uma dada cultura,      pleto, dado o seu enviesamento fortemente
pio da diferença. Embora na prática os dois      por mais fortes que sejam, são tão incom-       não dialético a favor da harmonia, ocultando,
princípios se sobreponham frequentemente,        pletos quanto a própria cultura a que perten-   assim, injustiças e negligenciando totalmen-
uma política emancipatória dos Direitos          cem. Tal incompletude não é visível a partir    te o valor do conflito como caminho para
Humanos deve saber distinguir entre a luta       do interior dessa cultura, uma vez que a as-    uma harmonia mais rica. Além disso, o dhar-
pela igualdade e a luta pelo reconhecimen-       piração à totalidade induz a que se tome a      ma não está preocupado com os princípios
to igualitário das diferenças, a fim de poder    parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica     da ordem democrática, com a liberdade e a
travar ambas as lutas eficazmente.               diatópica não é, porém, atingir a completude    autonomia, e tende a esquecer que o sofri-
    Essas são as premissas de um diálogo         – objetivo inatingível – mas, pelo contrário,   mento humano possui uma dimensão indi-
intercultural sobre a dignidade humana que       ampliar ao máximo a consciência de incom-       vidual irredutível: não são as sociedades que
pode levar, eventualmente, a uma concepção       pletude mútua, por meio de um diálogo que       sofrem, mas sim os indivíduos.
mestiça de Direitos Humanos, uma concep-         se desenrola, por assim dizer, com um pé             A mesma hermenêutica diatópica pode
ção que, em vez de recorrer a falsos univer-     numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o    ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma-
salismos, se organiza como uma constelação       seu caráter dia-tópico.                         nos e o topos da umma na cultura islâmica,
de sentidos locais, mutuamente inteligíveis,         Um exemplo de hermenêutica diatópi-         que se refere sempre à comunidade étnica,
e que se constitui em rede de referências nor-   ca é a que pode ter lugar entre o topos dos     linguística ou religiosa de pessoas que são
mativas capacitantes.                            Direitos Humanos na cultura ocidental, o to-    o objeto do plano divino de salvação. Vista a
                                                 pos do dharma na cultura hindu e o topos        partir do topos da umma, a incompletude dos
a hErmENêutica diatóPica                         da umma na cultura islâmica. Vistos a partir    Direitos Humanos individuais reside no fato
      Podemos compreender topoi como             do topos do dharma, os Direitos Humanos         de, com base neles, ser impossível fundar os
lugares comuns retóricos mais abrangen-          são incompletos, na medida em que não           laços e as solidariedades coletivas, sem as
tes de determinada cultura, que funcionam        estabelecem a ligação entre a parte (o indi-    quais nenhuma sociedade pode sobreviver,
como premissas de argumentação que, por          víduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do   e muito menos prosperar. A dificuldade da
sua evidência, não se discutem e tornam          dharma, a concepção ocidental dos Direitos      concepção ocidental de Direitos Humanos               15
possíveis a produção e a troca de argu-          Humanos está contaminada por uma simetria       em aceitar direitos coletivos de grupos so-
                                                                                                                                                 Revista Direitos Humanos




mentos. Compreender determinada cultura          muito simplista e mecanicista entre direitos    ciais ou povos é um exemplo específico de
a partir dos topoi de outra cultura é tarefa     e deveres. Apenas garante direitos àqueles a    uma dificuldade muito mais ampla: a dificul-
muito difícil, para a qual proponho uma her-     quem pode exigir deveres. Por outro lado e      dade em definir a comunidade como arena
menêutica diatópica.                             inversamente, visto a partir do topos dos Di-   de solidariedades concretas, campo político
artigo     Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade

                                                               dominado por uma obrigação política hori-        fontes do Islamismo, que relativiza o con-
                                                               zontal. Esta ideia de comunidade, central para   texto histórico específico em que a Sharia
                                                               Rousseau, foi varrida do pensamento liberal,     foi criada pelos juristas dos séculos VIII e
                                                               que reduziu toda a complexidade societal à       IX. No contexto atual, haveria todas as con-
                                                               dicotomia Estado/sociedade civil.                dições para uma concepção mais alargada
                                                                    Mas, por outro lado, a partir do to-        da igualdade e da reciprocidade a partir das
                           “No contexto                        pos dos Direitos Humanos individuais, é          fontes corânicas. Estaria inclinado a sugerir
                                                               fácil concluir que a umma sublinha de-           que, no contexto muçulmano, a energia mo-
                           muçulmano,                          masiadamente os deveres em detrimen-             bilizadora necessária para um projeto cos-

                           a energia                           to dos direitos e por isso tende a perdoar
                                                               desigualdades que seriam de outro modo
                                                                                                                mopolita dos Direitos Humanos poderá ge-
                                                                                                                rar-se mais facilmente num quadro religioso
                           mobilizadora                        inadmissíveis, como a desigualdade entre         moderado. Se for esse o caso, a abordagem
                                                               homens e mulheres ou entre muçulmanos e          de An-na’im é muito promissora.
                           necessária                          não muçulmanos. A hermenêutica diatópica              Na Índia, uma via per mezzo semelhante
                           para um                             mostra-nos que a fraqueza fundamental da         está a ser prosseguida por alguns grupos de
                                                               cultura ocidental consiste em estabelecer        defesa dos Direitos Humanos, particularmen-
                           projeto                             dicotomias demasiadamente rígidas entre          te por aqueles que centram a sua ação na de-

                           cosmopolita                         o indivíduo e a sociedade, tornando-se,
                                                               assim, vulnerável ao individualismo posses-
                                                                                                                fesa dos intocáveis.
                                                                                                                     Por sua própria natureza, a hermenêuti-
                           de Direitos                         sivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia.     ca diatópica é um trabalho de colaboração
                                                               De igual modo, a fraqueza fundamental das        intercultural e não pode ser levada a cabo
                           Humanos                             culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de     a partir de uma única cultura ou por uma
                           poderá                              nenhuma delas reconhecer que o sofrimen-         só pessoa. Na minha perspectiva, An-na’im
                                                               to humano tem uma dimensão individual            aceita demasiadamente fácil e acriticamen-
                           gerar-se mais                       irredutível, a qual só pode ser adequada-        te a ideia de Direitos Humanos universais.

                           facilmente                          mente considerada numa sociedade não
                                                               hierarquicamente organizada.
                                                                                                                Esse autor, ao mesmo tempo em que pro-
                                                                                                                põe uma abordagem evolucionista crítica
                           num quadro                               O reconhecimento de incompletudes mú-       e contextual da tradição islâmica, faz uma
                                                               tuas é condição sine qua non de um diálogo       interpretação da Declaração Universal dos
                           religioso                           intercultural.                                   Direitos Humanos surpreendentemente ana-
                           moderado”                                Um exemplo de hermenêutica diatópica        crônica e ingenuamente universalista.
                                                               entre a cultura islâmica e a cultura ociden-          A hermenêutica diatópica conduzida por
                                                               tal dos Direitos Humanos é a proposição de       An-na’im, a partir da perspectiva da cultura
                                                               Abdullahi An-na’im (1990; 1992) de uma           islâmica e as lutas pelos Direitos Humanos
                                                               via per mezzo identificando áreas de conflito    organizadas pelos movimentos feministas
                                                               entre o sistema jurídico religioso do Islã, a    islâmicos, seguindo as ideias da “Reforma
                                                               Sharia, e os critérios ocidentais dos Direitos   islâmica” por ele propostas, têm de ser
                                                               Humanos e, sugerindo uma reconciliação           complementadas por uma hermenêutica
    16                                                         ou relação positiva entre os dois sistemas.      diatópica conduzida a partir da perspectiva
                                                               Compreendendo como problemática na               de outras culturas e, nomeadamente, da
Revista Direitos Humanos




                                                               Sharia histórica a exclusão das mulheres e       perspectiva da cultura ocidental dos Direi-
                                                               dos não muçulmanos do princípio da reci-         tos Humanos. Este é provavelmente o úni-
                                                               procidade, propõe a “Reforma Islâmica”,          co meio de integrar na cultura ocidental a
                                                               assentada numa revisão evolucionista das         noção de direitos coletivos, os direitos da
natureza e das futuras gerações, bem como
a noção de deveres e responsabilidades para
com entidades coletivas, sejam elas a co-
munidade, o mundo ou mesmo o cosmos.


aS dificuldadES da
iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
    Que possibilidades existem para um di-
álogo intercultural quando uma das culturas
em presença foi moldada por massivas e
continuadas agressões à dignidade humana
perpetradas em nome da outra cultura? O
dilema cultural que se levanta é o seguinte:
dado que, no passado, a cultura dominante
tornou impronunciáveis algumas das as-
pirações à dignidade humana por parte da
cultura subordinada, será agora possível
pronunciá-las no diálogo intercultural sem,
ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a
subordinação?
    Um dos mais problemáticos pressupos-
tos da hermenêutica diatópica é a concepção
das culturas como entidades incompletas.         como pressuposto da hermenêutica diatópi-       coNdiçõES Para uma
Pode se argumentar que, pelo contrário, só       ca, é um exercício macabro, por mais eman-      iNtErculturalidadE ProgrESSiSta
culturas completas podem participar em di-       cipatórias que sejam as suas intenções.             As seguintes orientações e imperativos
álogos interculturais sem correr o risco de           O dilema da completude cultural pode       transculturais devem ser aceitos por todos
ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas        ser assim formulado: se uma cultura se          os grupos sociais e culturais interessados no
por culturas mais poderosas. Uma variante        considera inabalavelmente completa, então       diálogo intercultural.
desse argumento reside na ideia de que so-       não terá nenhum interesse em envolver-se            1. Da completude à incompletude. O
mente a uma cultura poderosa e historica-        em diálogos interculturais; se, pelo contrá-    verdadeiro ponto de partida do diálogo é
mente vencedora, como é o caso da cultura        rio, admite, como hipótese, a incompletude      o momento de frustração ou de desconten-
ocidental, pode atribuir-se o privilégio de      que outras culturas lhe atribuem e aceita       tamento com a cultura a que pertencemos.
se autodeclarar incompleta, sem, com isso,       o diálogo, perde confiança cultural, torna-     Esse sentimento suscita a curiosidade por
correr o risco de dissolução. Assim sendo, a     se vulnerável e corre o risco de ser objeto     outras culturas. A hermenêutica diatópi-
ideia de incompletude cultural será, afinal, o   de conquista. Por definição não há saídas       ca aprofunda, à medida que progride, a
instrumento perfeito de hegemonia cultural       fáceis para esse dilema, mas também não         incompletude cultural, transformando a
e, portanto, uma armadilha quando atribuída      penso que ele seja insuperável. Tendo em        consciência inicial de incompletude, em
a culturas subordinadas.                         mente que o fechamento cultural é uma es-       grande medida difusa e pouco articulada,
    As culturas dos povos indígenas das          tratégia autodestrutiva, não vejo outra saída   numa consciência autorreflexiva.                       17
Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da     senão elevar as exigências do diálogo inter-        2. Das versões culturais estreitas às ver-
                                                                                                                                                  Revista Direitos Humanos




Índia, dentre outras, foram tão agressivamen-    cultural até um nível suficientemente alto      sões amplas. As culturas têm grande varieda-
te amputadas e descaracterizadas pela cul-       para minimizar a possibilidade de conquista     de interna, e a consciência dessa diversidade
tura ocidental que, recomendar-lhes agora        cultural, mas não tão alto que destrua a pró-   aprofunda-se à medida que a hermenêutica
a adoção da ideia de incompletude cultural,      pria possibilidade do diálogo.                  diatópica progride. Das diferentes versões de
artigo            Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade


                                                                                                                                          temas demasiadamente importantes para
                           “Temos o direito a ser iguais                                                                                  ser incluídos no diálogo com outras cultu-

                           quando a diferença nos                                                                                         ras. Ainda assim, o importante para a her-
                                                                                                                                          menêutica diatópica é a direção, a noção e
                           inferioriza; temos o direito a ser                                                                             o sentimento de incompletude da cultura.

                           diferentes quando a igualdade                                                                                      5. Da igualdade ou diferença à igualdade
                                                                                                                                          e diferença. O multiculturalismo progressista
                           nos descaracteriza.”                                                                                           pressupõe que o princípio da igualdade seja
                                                                                                                                          prosseguido de par com o princípio do re-
                                                                                                                                          conhecimento da diferença. A hermenêutica
                           uma dada cultura, deve ser escolhida para o        ferente quando tomado por uma cultura do-                   diatópica pressupõe a aceitação do seguinte
                           diálogo intercultural a que representa o círculo   minante ou por uma cultura subordinada. No                  imperativo transcultural: temos o direito a ser
                           de reciprocidade mais amplo, a versão que vai      primeiro caso, frequentemente manifestam-                   iguais quando a diferença nos inferioriza; te-
                           mais longe no reconhecimento do outro. No          se objetivos imperiais, como a “luta contra                 mos o direito a ser diferentes quando a igual-
                           que respeita às duas versões da cultura ociden-    o terrorismo”, enquanto no caso de culturas                 dade nos descaracteriza.
                           tal dos Direitos Humanos, a liberal e a social-    subordinadas trata-se, muitas vezes, de auto-
                           democrática, deve ser privilegiada a última,       defesa ante a impossibilidade de controlar mi-              coNcluSão
                           porque amplia para os domínios econômico e         nimamente os termos do diálogo. A vigilância                    Na forma como têm sido predominante-
                           social a igualdade que a versão liberal apenas     política, cultural e epistemológica da herme-               mente concebidos, os Direitos Humanos são
                           considera legítima no domínio político.            nêutica diatópica é, pois, uma condição do                  um localismo globalizado, uma espécie de
                                3. De tempos unilaterais a tempos parti-      êxito desta. Cabe às forças, aos movimentos                 esperanto que dificilmente se poderá trans-
                           lhados. Pertence a cada comunidade cultural        e às organizações cosmopolitas defender as                  formar na linguagem quotidiana da dignidade
                           decidir quando está pronta para o diálogo          virtualidades emancipatórias da hermenêutica                humana nas diferentes regiões culturais do
                           intercultural. A cultura ocidental, durante sé-    diatópica dos desvios reacionários.                         globo. Compete à hermenêutica diatópica
                           culos, não teve qualquer disponibilidade para           4. De parceiros e temas unilateralmente                aqui proposta transformá-los numa política
                           diálogos interculturais mutuamente acor-           impostos a parceiros e temas escolhidos                     cosmopolita que ligue, em rede, línguas dife-
                           dados e agora, ao ser atravessada por uma          por mútuo acordo. Talvez a condição mais                    rentes de emancipação pessoal e social e as
                           consciência difusa de incompletude, tende a        exigente da hermenêutica diatópica seja a                   torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. É
                           crer que todas as outras culturas estão igual-     ideia de que tanto os parceiros como os                     este o projeto de uma concepção multicultu-
                           mente disponíveis para reconhecer a sua            temas do diálogo devem resultar de acor-                    ral dos Direitos Humanos. Nos tempos que
                           incompletude e, mais do que isso, ansiosas         dos mútuos. No que respeita aos temas, a                    correm, esse projeto pode parecer mais do
                           para se envolver em diálogos interculturais        convergência é muito difícil de alcançar,                   que nunca utópico. É-o, certamente, tão utó-
                           com o Ocidente.                                    porque a possibilidade de tradução inter-                   pico quanto o respeito universal pela dignida-
                                O direito à pausa antes de avançar para       cultural dos temas é inerentemente proble-                  de humana. E nem por isso este último deixa
                           uma nova fase, bem como a reversibilidade          mática e porque em todas as culturas há                     de ser uma exigência ética séria.
                           do diálogo são cruciais para impedir que ele
                           se perverta e se transforme em conquista
                           cultural ou em fechamento cultural recípro-
                                                                              RefeRênCiAs
    18                     co. A ausência ou a deficiente explicitação
                                                                              AN-NA’IM, Abdullahi A. (1990), Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press.
                           de regras para o diálogo intercultural podem
Revista Direitos Humanos




                           transformá-lo na fachada benevolente sob a         AN-NA’IM, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadélfia:
                           qual se escondem trocas culturais muito desi-      University of Pennsylvania Press.

                           guais. Da mesma maneira, o estabelecimento         HUNTINGTON, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3).
                           unilateral do fim do diálogo intercultural é di-
Combate ao
   TRAbAlHO ESCRAvO:
   como plantar uma floresta de Direitos Humanos


                                                          z
lEoNardo Sakamoto E                                              é Pereira já foi alcunha de bloco de carnaval. Poderia ser
marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES                                  esta a lembrança perene e bem-humorada que o nome
                                                                 evoca no imaginário popular. Mas Zé Pereira é também
                                                          o símbolo de uma chaga encravada no meio e não na ponta
                                                          do mercado de trabalho brasileiro. José Pereira Ferreira ganhou
lEoNardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência        notoriedade em novembro de 2003, quando foi aprovada pelo
Política e coordenador da organização não governamental   Congresso Nacional uma indenização a ele no valor de R$ 52                19
Repórter Brasil.                                          mil. Zé Pereira havia sido escravizado na fazenda Espírito San-
                                                                                                                              Revista Direitos Humanos




                                                          to, em Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17
marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES é juiz                    anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários
federal do Trabalho do Tribunal Regional da 15ª Região    da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pe-
e doutorando em Desenvolvimento Econômico pela            las autoridades brasileiras, foi levado à Organização dos Esta-
Universidade Estadual de Campinas/SP  .                   dos Americanos. Para evitar uma condenação, o Brasil acabou
artigo           Combate ao trabalho escravo: como plantar uma floresta de Direitos Humanos



                           “É equivocado opor o combate                                                                        Portanto, estão sob a influência direta da eco-
                                                                                                                               nomia de mercado e dela dependem.
                           ao trabalho escravo à atividade                                                                         A análise das interações na cadeia pro-

                           econômica produtiva. Sua forma                                                                      dutiva mostra o grau de interdependência
                                                                                                                               entre o padrão de consumo dos brasileiros
                           contemporânea é uma forma                                                                           em cidades de qualquer dos estados e a
                                                                                                                               ocorrência de trabalho análogo à condição
                           monstruosa de dumping social”                                                                       de escravo e degradante. Do fast-food aos
                                                                                                                               prosaicos churrascos de fim de semana, do
                           realizando uma solução amistosa com a OEA,       pela libertação de trabalhadores. No mes-          belo par de sapatos ao automóvel de última
                           em que assumia uma série de compromissos         mo período, a Comissão Pastoral da Terra,          geração, supostamente movido a combustí-
                           para o combate ao trabalho escravo.              organização ligada à Conferência Nacional          vel eficiente e fruto de atividade econômica
                                Como Zé Pereira, a cada ano milhares de     dos Bispos do Brasil e principal referência        ambientalmente sustentável, todo o nosso
                           trabalhadores rurais provenientes de regiões     civil no combate a essa forma de explora-          cotidiano está permeado pelo sofrimento de
                           pobres do Brasil são obrigados a trabalhar em    ção, registrou denúncias envolvendo mais           brasileiros que, ao sair de suas modestas ca-
                           fazendas e carvoarias, submetidos a condições    de 50 mil trabalhadores.                           sas em busca de trabalho, dignidade e espe-
                           degradantes e impedidos de romper a relação           A incidência do problema está con-            rança, encontraram à sua frente a promessa
                           com o empregador. As vítimas mais agredidas      centrada nas regiões de expansão agro-             de um elemento tradicional no mercado de
                           permanecem presas até que terminem a tarefa      pecuária da Amazônia (de Rondônia até              trabalho brasileiro: o intermediador e o arre-
                           para a qual foram aliciadas, sob ameaças que     o Maranhão, coincidindo com o Arco do              gimentador de mão de obra, conhecido pela
                           podem ir de torturas psicológicas até espan-     Desflorestamento, onde a floresta perde            alcunha de “gato”.
                           camentos e assassinatos. No Brasil, essa for-    espaço para a agropecuária) e do Cerra-                É nesse momento que a prática mais do
                           ma de exploração é chamada de escravidão         do (principalmente na Bahia, em Goiás,             que secular da mercantilização do trabalho à
                           contemporânea, de nova escravidão ou ainda       no Mato Grosso do Sul e em Tocantins).             brasileira captura suas vítimas e esmaga seus
                           de trabalho análogo ao escravo. Sua natureza     Contudo, há casos confirmados em São               sonhos. Como autênticas veias abertas da
                           econômica a distingue da escravidão da anti-     Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa         América Latina, esse elo da cadeia produtiva
                           guidade clássica, da escravidão moderna, da      Catarina e Rio Grande do Sul, entre outras         vai espalhar pelos estados da federação cen-
                           Colônia e do Império. Mas o tratamento desu-     regiões, em que o capital e as instituições        tenas de milhares de brasileiros no trabalho
                           mano, a restrição à liberdade e o processo de    estatais já estão estabelecidos, o que de-         rural estacional, nas mais diversas culturas
                           “coisificação” do ser humano são característi-   monstra que a origem desse fenômeno não            agrícolas, na pecuária e no extrativismo.
                           cas similares às das anteriores.                 está vinculada ao locus da fronteira agrí-             A utilização de trabalho escravo contem-
                                O número de trabalhadores envolvidos        cola, mas a outro elemento que perpassa            porâneo no Brasil não é resquício de práticas
                           na forma mais tosca de trabalho escravo          realidades sociais diferentes.                     arcaicas que sobreviveram provisoriamente
                           contemporâneo é relativamente pequeno,                Os relatórios de fiscalização do Ministério   ao capitalismo, mas sim instrumento utili-
                           mas não desprezível: de 1995, quando o           do Trabalho mostram que os empregadores            zado pelo próprio capitalismo para facilitar
                           sistema de combate ao trabalho escravo           envolvidos nesse tipo de exploração não são        a acumulação em seu processo de expan-
                           contemporâneo foi criado pelo governo fe-        pequenos sitiantes isolados econômica e            são ou modernização. Esse mecanismo ga-
                           deral, até dezembro de 2008, mais de 30          geograficamente do restante da sociedade,          rante competitividade a produtores rurais de
  20
                           mil pessoas foram encontradas nessa situ-        mas, na maioria das vezes, grandes proprie-        regiões e situações de expansão agrícola
Revista Direitos Humanos




                           ação, de acordo com dados do Ministério          tários rurais, muitos deles produzindo com         que optam por uma via ilegal. Dessa forma,
                           do Trabalho, que, junto com o Ministério         tecnologia de ponta. Pesquisas da ONG Re-          fazem concorrência desleal com os outros
                           Público do Trabalho e as Polícias Federal        pórter Brasil apontam que esses produtores         empregadores que agem dentro da lei. Por
                           e Rodoviária Federal, é o principal órgão        fornecem commodities às grandes indús-             isso é equivocado opor o combate ao traba-
                           responsável pela apuração de denúncias e         trias e ao comércio nacional e internacional.      lho escravo à atividade econômica produtiva.
Sua forma contemporânea é uma forma          sustentáveis – e implantação, nos muni-
monstruosa de dumping social.                cípios emissores de população, de infra-
     O trabalho análogo à condição de        estrutura pública que eleve as condições
escravo tem no Brasil conceito inscrito      de bem-estar desses brasileiros, desesti-
no Direito Penal, e é esse conceito que      mulando a migração por desalento.
baliza o comportamento dos agentes de             Mas, como se trata de um fenômeno
Estado encarregados da sua repressão.        inserido numa lógica amoral de concor-
Como o Direito Penal institui seus tipos     rência no mercado de bens e serviços,
a partir do mínimo civilizatório admis-      não podemos prescindir de políticas de
sível, é possível derivar do conceito        repressão a esse comportamento econô-
adotado a gravidade das repercussões         mico violador dos Direitos Humanos de
do trabalho análogo à condição de es-        modo transversal. Em verdade, precisa-
cravo para o funcionamento do mercado        mos ampliar a utilização dos instrumentos
de trabalho e para o exercício de direitos   jurídicos de repressão a essa forma bár-
sociais dos trabalhadores.                   bara de exploração dos seres humanos.
     As ações de fiscalização, repressão e        O combate ao trabalho escravo, para
prevenção empreendidas no âmbito ad-         ser efetivo, passa por um conjunto de
ministrativo e extrajudicial pelo Ministé-   ações nacionais e multilaterais, como a
rio do Trabalho e pelo Ministério Público    repressão aos ganhos econômicos ge-
do Trabalho permitiram levantamento de       rados pela exploração dessa forma de
amplo banco de dados sobre origem e          mão de obra, não só no Brasil, mas em
destino da população afetada, seu status     todos os países. O Brasil já possui me-
de cidadania. Já sabemos de onde vêm e       canismos para que os compradores de
para onde vão esses brasileiros. É pos-      commodities não adquiram mercadorias
sível reconhecer os déficits de cidadania    produzidas com trabalho escravo, como
nos municípios de origem. Mas é neces-       a consulta ao cadastro de empregadores
sário saltar essa etapa do acúmulo de co-    que utilizaram essa prática, que ficou
nhecimento decorrente das atividades de      conhecido como a “lista suja”. Institui-
repressão e desenvolver estratégias que      ções financeiras têm negado crédito a
atuem em dois vetores: promoção de tra-      essas pessoas e as empresas signatá-
balho digno – seja por meio de um mer-       rias do Pacto Nacional pela Erradica-
cado de trabalho que ofereça empregos        ção do Trabalho Escravo têm cortado
estruturados e dotado dos mecanismos         relações comerciais com elas. Dessa
de proteção da cidadania, seja por meio      forma, é possível agir cirurgicamente,
de programas de promoção de atividades       separando o joio do trigo, limpando
econômicas social e ambientalmente           uma determinada cadeia produtiva e,



“Não podemos prescindir de                                                                    21

políticas de repressão a esse
                                                                                         Revista Direitos Humanos




comportamento econômico
violador dos Direitos Humanos”
Revista Direitos Humanos edição 02: avanços e desafios
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Revista Direitos Humanos edição 02: avanços e desafios

  • 1. r e v i s ta direitos humanos NavaNEthEm Pillay BoavENtura dE SouSa SaNtoS lEoNardo Sakamoto marcuS BarBEriNo Paulo Sérgio PiNhEiro Silvia PimENtEl Nilmário miraNda JoSé gEraldo dE SouSa JúNior horácio coSta João roBErto riPPEr Paulo BEtti 02 junho 2009
  • 2.
  • 3. Apresentação “A vida é procurar cada vez mais. E se um dia alcançarmos o nosso sonho, então temos que sonhar mais alto ainda!”. C om tal enunciado poético, Augusto Boal fechou sua antológica restrito a número limitado de brasileiros, segue envergonhando o País e entrevista ao número 1 desta revista, pouco antes de morrer, le- nos convocando à construção de amplo consenso em torno da necessi- gando a todos nós o desafio de prosseguir na busca. dade de erradicá-la imediatamente. Aqui está o número 2 da revista, orgulhosa do sucesso da edição O reitor da Universidade de Brasília (UnB), José Geraldo de Sousa, inaugural, com dez mil exemplares rapidamente distribuídos, e já deci- jurista conhecido pelas brilhantes conceituações a respeito do “Direito dida a tornar-se quadrimestral. O plano é lançar o número 3 em setem- Achado na Rua”, analisa toda a temática da Educação em Direitos Hu- bro e o número 4 em dezembro deste ano. manos no Brasil e o conteúdo mais central do Plano Nacional em curso Nesta nova edição, a própria Alta Comissária de Direitos Humanos desde 2003, que ele próprio ajudou a formular e implementar. da ONU, a sul-africana Navanethem Pillay, atendeu a nosso convite para O direito à diversidade sexual, como legítimo Direito Humano do escrever sobre a real importância da Conferência de Revisão de Durban segmento LGBT, está também presente na revista, tanto no belo poema contra o Racismo, ocorrida em Genebra, no final de maio. Seu relato po- do professor da Universidade de São Paulo (USP) Horácio Costa, quanto sitivo corrige o festival de distorções patrocinado pela mídia de muitos na homenagem a nosso companheiro Paulo Biagi, que coordenou, até o países, sob pretexto do lamentável discurso de Ahmadinejad colocando último domingo de Páscoa, o Programa Brasil sem Homofobia. em dúvida o Holocausto. Neste número 2, a sessão permanente de entrevistas focaliza o ator O conhecido professor e sociólogo de Coimbra, Boaventura de Sou- Paulo Betti, protagonista de filmes e novelas, mas também militante enga- sa Santos, ofereceu à revista denso ensaio, aqui resumido, com refle- jado em diferentes causas dos Direitos Humanos, em especial nas ativida- xão instigante sobre as perspectivas de universalização da agenda dos des da Casa da Gávea, no Rio de Janeiro, e do Quilombinho, em Sorocaba, Direitos Humanos e seus condicionantes. Sem defender o relativismo direcionadas a crianças e adolescentes em situação de vulnerabilidade. cultural, seu texto mostra que é imprescindível dialogar com tradições O ensaio fotográfico deste número estampa impressionantes ima- afastadas do racionalismo ocidental – como o Hinduísmo e o Islamis- gens de João Roberto Ripper, sempre portadoras de aguda sensibilidade mo – para que a pretendida universalidade não se limite a bordão tão social. Quanto às ilustrações, foram cedidas pelo artista plástico equa- repetitivo quanto oco de sentidos. toriano Pavel Égüez. A jurista Sílvia Pimentel, das mais respeitadas lideranças brasileiras na Ao final, a revista segue publicando os mais importantes instrumen- luta das mulheres, reconstrói os avanços conquistados nessa temática an- tos internacionais sobre Direitos Humanos. Na edição anterior, tratou-se gular dos Direitos Humanos, da Constituinte de 1986 à Lei Maria da Penha. de destacar a própria Declaração Universal, em seu aniversário de 60 Paulo Sérgio Pinheiro, com sua autoridade de relator da ONU em anos. Este número 2 traz a Convenção da ONU sobre os Direitos da distintas questões (violência contra a criança no mundo, Mianmar, Bu- Criança, que completa 20 anos em 2009. rundi etc.), e também membro da Comissão Interamericana de Direitos Com certeza, a leitura atenta deste número 2 da Revista Direitos Humanos, desenha possibilidades otimistas nos Estados Unidos e no Humanos, bem como sua discussão com turmas de alunos e colegas planeta, com a posse e com os primeiros cem dias de Barack Obama. em salas de aula, sua veiculação pela internet, seu debate em reuniões O ex-ministro dos Direitos Humanos, Nilmário Miranda, reconstrói de sindicatos, associações, ONGs e movimentos populares, ajudarão a o processo histórico da Anistia de 1979 – que em agosto completará reforçar mais um pouco a longa caminhada para concretizar e efetivar 3 30 anos –, deixando claro que ela não foi “ampla, geral e irrestrita”, esses direitos no cotidiano nacional brasileiro. Revista Direitos Humanos conforme desinformação muito reiterada nos últimos meses, seja pela grande imprensa, seja pela voz de altíssimas autoridades da República. Brasília, junho de 2009 Leonardo Sakamoto e o juiz trabalhista Marcus Barberino partilham Paulo Vannuchi artigo apontando o potencial e as dificuldades do combate ao trabalho Ministro da Secretaria Especial dos escravo no Brasil, mancha histórica e ética que, não importando se Direitos Humanos da Presidência da República
  • 4. Google imagens sumário Wilson Dias/ABr 6 O início de uma história de sucesso NavaNEthEm Pillay 10 Direitos Humanos: o desafio da interculturalidade BoavENtura dE SouSa SaNtoS Arquivo pessoal Arquivo pessoal Combate ao trabalho 19 escravo: como plantar uma floresta de Direitos Humanos lEoNardo Sakamoto E marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES Google imagens 23 Obama: uma comissão da verdade para os torturadores? Paulo Sérgio PiNhEiro Fernanda Monteiro A superação da cegueira 27 de gênero: mais do que um desafio – um imperativo Silvia PimENtEl
  • 5. Expediente Presidente da República Luiz Inácio Lula da Silva Ministro da Secretaria Especial dos Direitos Foca Lisboa Humanos da Presidência da República Paulo Vannuchi 31 Aos 30 anos, anistia ainda é um processo inconcluso Secretário Adjunto Rogério Sottili Conselho editorial Paulo Vannuchi (Presidente) Nilmário miraNda Aída Monteiro André Lázaro Carmen Silveira de Oliveira Dalmo Dallari Darci Frigo Egydio Salles Filho Diógenis Santos Erasto Fortes Mendonça José Geraldo de Sousa Júnior José Gregori 35 Marcos Rolim Educação em Direitos Humanos: Marília Muricy Izabel de Loureiro Maior desafio às universidades Maria Victoria Benevides Matilde Ribeiro JoSé gEraldo dE SouSa JúNior Nilmário Miranda Oscar Vilhena Paulo Carbonari Paulo Sérgio Pinheiro Perly Cipriano Ricardo Brisolla Balestreri Pedro Stephan Samuel Pinheiro Guimarães Coordenação editorial: 41 Erasto Fortes Mendonça Mariana Carpanezzi Poemas Paulo Vannuchi Patrícia Cunegundes horácio coSta Tradução: Mariana Carpanezzi Revisão: Bárbara de Castro e Joíra Coelho Colaboração: Fátima Monteiro Fernanda Reis Brito Projeto gráfico: 42 Wagner Ulisses Imagens Diagramação: Erika Yoda, Fabrício Martins e Maria Luísa Barsanelli João roBErto riPPEr Capa e ilustrações: Pavel Égüez Produção editorial: Jacumã Comunicação Juliana Hallack Secretaria Especial dos Direitos Humanos Esplanada dos Ministérios, Bloco T, Edifício Sede, sala 424 50 70.064-900 Brasília – DF direitoshumanos@sedh.gov.br Entrevista www.direitoshumanos.gov.br ISSN 1984-9613 Distribuição gratuita 5 Paulo BEtti Tiragem: 10.000 exemplares Revista Direitos Humanos Direitos Humanos é uma revista de distribuição gratuita, publicada pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República. >> As opiniões expressas nos artigos são de responsabilidade 57 exclusiva dos autores e não representam necessariamente a posição oficial da Secretaria Especial dos Direitos Humanos Serviços da Presidência da República ou do Governo Federal. Todos os direitos reservados. É permitida a reprodução parcial ou total desta obra, desde que citada a fonte e não seja para venda ou qualquer fim comercial.
  • 6. artigo O início de uma história de sucesso NavaNEthEm Pillay A NavaNEthEm Pillay é Conferência das Nações Unidas para por alhear-se ao processo a retomar seu lugar alta-comissária das Nações Unidas a Revisão de Durban foi concluída em nos esforços internacionais de superação da para os Direitos Humanos Genebra no dia 24 de abril de 2009 discriminação e da intolerância, apontados no com amplo acordo enunciando medidas que documento final da conferência. Muitos entre reafirmam a tolerância, o respeito à diversi- esses Estados haviam se engajado nos traba- dade e a continuidade da luta para combater lhos de redação da versão preliminar do docu- 6 o racismo. A rápida e consensual adoção do mento e se colocado como parte do consenso Revista Direitos Humanos documento final da conferência prova a con- emergente até a véspera da Conferência de Re- fiança que muitos países e inúmeras vítimas visão. Espero que reexaminem o documento fi- depositaram no processo de revisão. nal, que o valorizem considerando o mérito que Tradução para o português Tal resultado deveria convencer os Esta- detém, e que a partir deste olhar reconsiderem Mariana Carpanezzi dos-membros das Nações Unidas que optaram sua posição de afastar-se das discussões.
  • 7. "Racismo e discriminação racial atacam e podem corromper as próprias fundações da dignidade de um indivíduo” Uma tal reavaliação seria simplesmente culturais ou de argumentos falaciosos apre- das formas mais comuns de violação dos justa. Apesar das críticas apontadas por al- sentados como evidências científicas. A Direitos Humanos e tende a intensificar-se guns analistas, a conferência fez jus ao que história insiste em nos provar que, uma vez em condições de ressurgência de precon- se propunha realizar: uma celebração da enraizados, a discriminação, o racismo e a ceitos e medos, bem como em situações de dignidade e da tolerância para todos. Con- intolerância despedaçam os próprios pilares competição por recursos e oportunidades de cluímos aquele encontro com sentimento de que sustentam a sociedade e os corrompem trabalho. Ela é também, e de modo frequente, realização que nos renovou e reenergizou a por gerações. Posso dizê-lo a partir de minha inerente às assimetrias de poder nas socieda- determinação e o projeto de luta. Tal senti- própria experiência de ter crescido e vivido des. Ela explora e perverte o desejo humano mento e consciência certamente nos ajuda- durante o regime do apartheid sul-africano. de pertencimento, assim como as legítimas rão a levar em frente a tarefa que se coloca Conheço a força destrutiva que reside no ra- aspirações a um espaço cultural, históri- para o futuro: o duro trabalho de honrar nos- cismo institucionalizado. co e psicológico que preserve e alimente a sos compromissos; a urgente obrigação de Apesar da garantia de não discriminação identidade pessoal. aportar efeitos concretos ao documento da inscrever-se em todo e qualquer instrumento Tudo isso explica a importância da con- conferência; o imperativo de apagar essa an- de Direitos Humanos, as leis de alguns paí- ferência em Genebra. Ela representou uma tiga vergonha que o racismo representa. ses e as práticas de muitos outros, em todas chance para que todas as nações pudessem Não há dúvida de que o racismo, a into- as regiões do mundo, ainda autorizam e tole- reunir-se e acordar um só documento que lerância e a discriminação subsistem entre ram a discriminação. O presidente Luiz Inácio inscrevesse aspiração comum – combater o as questões mais urgentes de nosso tempo. Lula da Silva já se pronunciou de maneira racismo, em todas as suas manifestações, e Não apenas a discriminação persiste, como eloquente sobre os desafios que enfrentou expressá-lo conjuntamente numa só voz. Foi vai adquirindo novas formas e dando origem como garoto pobre de uma família do campo, uma oportunidade de dar ímpeto à imple- a sinistras agendas baseadas no mito da exposto a arraigados preconceitos, vivendo mentação dos compromissos assumidos oito supremacia de um grupo sobre outro. Ne- “na periferia do mundo o drama da estag- anos atrás em Durban, em 2001, no curso nhuma sociedade, grande ou pequena, rica nação e da profunda desigualdade social”. da Conferência Mundial contra o Racismo, ou pobre, é imune a ele. A carga do racismo Além disso, o presidente também já fez notar a Discriminação Racial, a Xenofobia e Outras é pesada tanto para indivíduos quanto para que a maioria de seus predecessores, mesmo Formas de Intolerância. comunidades inteiras. os reformistas, governou para poucos, preo- A Declaração e Programa de Ação de Dur- Racismo e discriminação racial atacam e cupando-se com “um Brasil no qual apenas ban (DDPA), documento final daquela confe- podem corromper as próprias fundações da um terço da população importava”. rência, foi adotada por consenso. Constitui a dignidade de um indivíduo, uma vez que bus- Sem desconsiderar o conhecimento que mais completa plataforma internacional para a cam dividir a família humana entre categorias acumulamos a respeito dos efeitos pernicio- luta contra o racismo, o preconceito, a xenofo- 7 de pessoas e atribuir-lhes valor diferenciado. sos que a intolerância, a opressão e a sub- bia e outras formas correlatas de intolerância. Revista Direitos Humanos Todos os aspectos da discriminação de- jugação vêm produzindo através dos séculos A esperança de milhões de vítimas está anco- vem ser denunciados e forçosamente rejei- e dos continentes, temos de continuar em- rada na implementação do documento, mas tados, sempre que se manifestem em suas preendendo esforços para que nos livremos essa nobre carta se reduzirá a retórica vazia várias expressões de ódio, seja sob a forma da discriminação e da marginalização. A se os compromissos que ela enfeixa não ge- de oportunismo político, de pressupostos discriminação racial, particularmente, é uma rarem efeitos práticos. Precisamos monitorar
  • 8. artigo O início de uma história de sucesso e avaliar quantas dessas solenes promessas sobre os Direitos das Populações Indígenas enunciadas pelos Estados em 2001 foram são igualmente promissoras. realizadas. Ao mesmo tempo, precisamos de Apesar dos ganhos obtidos, imensos compreensão mais clara sobre as lacunas que desafios ainda se colocam à nossa frente. ainda persistem na esfera da proteção das ví- Um breve olhar sobre o trabalho recente do timas, assim como das negligências observa- Comitê para a Eliminação de Todas as For- das com relação ao DDPA. mas de Discriminação Racial revela que as A região latino-americana e caribenha já leis nacionais e as medidas para garantir a deu início a tal processo de avaliação. Se- eliminação do racismo são tanto inadequadas guindo a conferência de 2001 em Durban, a quanto ineficientes. É preocupante o limitado região demonstrou forte compromisso com a número de Estados da região que detêm in- implementação dos objetivos e recomenda- dicadores para aferir os progressos no tema ções contidos no DDPA. No nível nacional, de combate ao racismo. A representação de praticamente todas as Constituições da região grupos minoritários em cargos públicos é garantem o princípio da igualdade. Muitos diminuta. Há ainda poucas campanhas edu- países empreenderam reformas jurídicas para cacionais públicas voltadas à promoção da eliminar leis discriminatórias. Alguns países igualdade, da diversidade e da tolerância. passaram a adotar planos de ação nacionais Dado o legado histórico deixado pelo ra- contra o racismo, tal como recomendado pelo cismo na região – exclusão social de popu- DDPA. Embora nem todos os planos tenham lações indígenas e afrodescendentes –, mais sido integralmente implementados, a adoção Estados deveriam adotar medidas para pro- do plano, por si só, configura um passo na mover a participação e a representação dos direção correta. grupos marginalizados e vulneráveis. Se a re- Noto, com satisfação, que a maioria gião, por um lado, guarda bons registros com dos países da região já ratificou os prin- respeito à ratificação de tratados internacio- cipais tratados internacionais de Direitos nais sobre os Direitos Humanos, por outro é Humanos das Nações Unidas e do sistema preciso notar que importantes instrumentos, regional. Fortalecendo e expandindo esse tais como a Convenção para a Proteção dos corpo de leis, a versão provisória da futura Direitos dos Trabalhadores Migrantes e Mem- Convenção Interamericana contra o Racis- bros de suas Família, a Convenção nº 169 da mo e Todas as Formas de Discriminação e Organização Internacional do Trabalho (sobre Intolerância promete converter-se em agen- Populações Indígenas e Tribais) e a Conven- te catalisador desse processo. Apesar de a ção sobre os Direitos das Pessoas com De- convenção ainda não ter atingido sua ver- ficiência têm sido objeto de apoio modesto. são final, ela constitui desde já instrumento Os problemas que a região enfrenta não que contempla e enfrenta universo amplo são restritos ao Hemisfério Ocidental. Como de diversas formas de discriminação, como repetidamente venho fazendo notar, a imple- jamais outro o fez. A criação, em 2005, do mentação da Declaração e Programa de Ação 8 mandato de relator especial para os Direitos de Durban vem sendo dificultada em diferen- Humanos das Populações de Origem Afri- tes localidades por toda sorte de obstáculos. Revista Direitos Humanos cana e para a Discriminação Racial consti- No seio das devastadoras consequências da tui outra pedra fundamental no combate ao atual crise financeira e da recessão econô- racismo. As atuais discussões relacionadas mica, a pobreza e a exclusão continuarão a à adoção de uma Declaração Americana representar desafios centrais. A convergência
  • 9. dessas crises com os efeitos da mudança cli- e espírito de compromisso sem precedentes. mática certamente afetarão desproporcional- Todos foram agudamente sensíveis ao fato de mente todos os grupos vulneráveis dentro de que o racismo, quer institucionalizado, quer suas respectivas sociedades. manifesto como mero ódio contra pessoas, A globalização sublinha o desafio de religião ou classes, constitui simples e pura garantir respeito mútuo entre indivíduos negação dos Direitos Humanos. que carregam consigo diferentes trajetó- No conjunto das várias histórias nacio- rias de vida nas sociedades multiculturais. nais, já assistimos a casos de intolerância Com a intensificação dos movimentos de que negam as identidades do “outro”, ou pessoas através das fronteiras nacionais, que rejeitam os sofrimentos das minorias que os migrantes passam a ser percebidos recusam dividir a chamada “história oficial”. como competidores pelos escassos recur- Vimos emergi-los sob novas formas, como sos disponíveis, bem como ameaça para os o tráfico de pessoas, cujas vítimas tendem modos de vida de outros grupos. Por fim, a ser preferencialmente mulheres e crianças a exploração da diferença – étnica, racial de situação socioeconômica desprivilegiada. ou religiosa – continua a funcionar como Refugiados, asilados, trabalhadores migran- combustível para os conflitos armados e tes e migrantes sem documentação vêm para tensões dentro das comunidades. sendo cada vez mais estigmatizados, se não O documento final da Conferência de perseguidos. Uma nova política de xenofobia Revisão de Durban convoca os Estados a encontra-se em estágio de ascensão. prevenir manifestações de racismo, de dis- A discriminação não desaparece por si criminação racial e de xenofobia, especial- própria. Ela deve ser desafiada a todo mo- mente com relação a migrantes, refugiados mento. Não devemos esperar. Cada nação e asilados. Os Estados também são instados deve ser parceira nessa luta. a promover maior grau de participação e de A magnitude da tarefa que se coloca dian- oportunidades para as pessoas de descen- te de nós deve incentivar nossa união, para dência africana ou asiática, populações indí- que façamos o melhor uso de nossas energias genas e indivíduos pertencentes a minorias e recursos, com o propósito de criar um mun- étnicas, religiosas ou linguísticas. A centrali- do de oportunidades e de tratamentos iguais dade da liberdade de expressão é reafirmada para todos, independentemente de raça, gê- lado a lado com a sua compatibilidade com nero, língua, religião, opinião, posição políti- os instrumentos internacionais que proíbem a ca, origem social ou nacional, de propriedade, incitação ao ódio, com vistas a harmonizar o de nascimento ou de qualquer outra condição. conflito artificial que se estabeleceu entre os Tal como a vejo, a Conferência em Gene- dois princípios. bra é o começo de um processo, muito mais Estados ainda reconheceram as injusti- do que o seu fim. A longa marcha da huma- ças e atrocidades do passado e compromete- nidade em sua campanha contra o racismo ram-se a evitar sua repetição. Nesse sentido, nunca foi fácil. Como podemos pensar que envidaram esforços para proibir atividades ficará mais fácil no futuro? Assim, faço ape- 9 violentas, racistas e xenófobas de grupos lo a todos os países para que se unam nesta Revista Direitos Humanos propagadores de ideologias extremistas. marcha à frente. Se a tolerância e o respeito Demonstrando sensibilidade pelas de- pela diversidade constituem nosso horizonte mandas de nossos tempos, os participantes futuro, o melhor é que comecemos a praticar demonstraram flexibilidade, clareza de projeto essas mesmas qualidades aqui e agora.
  • 10. Direitos Hum o desafio BoavENtura dE SouSa SaNtoS A forma como os Direitos Humanos se transformaram, nas duas últimas décadas, na linguagem da política progressista, em quase sinônimo de eman- cipação social causa alguma perplexidade. De fato, durante muitos anos, após a Se- gunda Guerra Mundial, os Direitos Humanos foram parte integrante da política da guerra fria, e como tal foram considerados pelas forças políticas de esquerda. Duplos crité- rios na avaliação das violações dos Direitos Humanos, complacência para com ditadores amigos do Ocidente, defesa do sacrifício dos Direitos Humanos em nome dos objetivos do desenvolvimento – tudo isso tornou os Direitos Humanos suspeitos enquanto roteiro emancipatório. Quer nos países centrais, quer em todo o mundo em desenvolvimento, as forças progressistas preferiram a linguagem da re- volução e do socialismo para formular uma política emancipatória. E no entanto, perante a crise aparentemente irreversível desses pro- BoavENtura dE SouSa SaNtoS é professor jetos de emancipação, são essas mesmas for- catedrático da Faculdade de Economia da ças que recorrem hoje aos Direitos Humanos Universidade de Coimbra, distinguished legal para reinventar a linguagem da emancipação. scholar da Faculdade de Direito da Universidade É como se os Direitos Humanos fossem in- de Wisconsin-Madison e global legal scholar da vocados para preencher o vazio deixado pelo Universidade de Warwick. É diretor do Centro de Socialismo ou, mais em geral, pelos projetos 10 Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, emancipatórios. Poderão realmente os Direi- diretor do Centro de Documentação 25 de Abril da Revista Direitos Humanos tos Humanos preencher tal vazio? A minha mesma universidade e coordenador científico do resposta é um sim muito condicional. Observatório Permanente da Justiça Portuguesa. O meu objetivo neste trabalho é identifi- Este artigo foi resumido de um ensaio maior por car as condições em que os Direitos Huma- Erasto Fortes Mendonça, com autorização do autor nos podem ser colocados a serviço de uma
  • 11. manos: o da interculturalidade política progressista e emancipatória. Tal ta- forma de Estado e interesses e grupos so- pós-nacional. A efetividade dos Direitos refa exige que sejam claramente entendidas ciais que se reproduzem melhor sob a forma Humanos tem sido conquistada em pro- as três tensões dialéticas que informam a de sociedade civil, tornando o âmbito efe- cessos políticos de âmbito nacional, e por modernidade ocidental. A primeira ocorre en- tivo dos Direitos Humanos inerentemente isso a fragilização do Estado Nação pode tre regulação social e emancipação social. A problemático. Historicamente, nos países trazer consigo a fragilização dos Direitos segunda ocorre entre o Estado e a sociedade do Atlântico Norte, a primeira geração dos Humanos. Por outro lado, os Direitos Hu- civil. A terceira ocorre entre o Estado Nação e Direitos Humanos, dos direitos civis e polí- manos aspiram hoje a um reconhecimento o que designamos por globalização. ticos, foi concebida como luta da sociedade mundial e podem mesmo ser considerados A primeira tensão dialética entre regula- civil contra o Estado, considerado principal como um dos pilares fundamentais de uma ção social – simbolizada pela crise do Estado violador potencial dos Direitos Humanos. emergente política pós-nacional. A ree- intervencionista e do Estado-providência – e A segunda e terceira gerações, dos direi- mergência dos Direitos Humanos é hoje emancipação social – simbolizada pela crise tos econômicos, sociais e culturais e da entendida como sinal do regresso do cultu- da revolução social e do Socialismo como qualidade de vida foram concebidas como ral e até mesmo do religioso. Ora, falar de transformação radical – deixou de ser, nes- atuações do Estado, considerado principal cultura e de religião é falar de diferença, de te início de século, tensão criativa. As crises garantidor dos Direitos Humanos. fronteiras, de particularismos. Como pode- de regulação e emancipação sociais são si- Por fim, a terceira tensão ocorre entre rão os Direitos Humanos ser uma política multâneas e alimentam-se uma da outra. A o Estado Nação e o que designamos por simultaneamente cultural e global? política de Direitos Humanos, que pode ser globalização. Hoje, a erosão seletiva do Es- Nessa ordem de ideias, o meu objetivo simultaneamente uma política regulatória e tado Nação, imputável à intensificação da é desenvolver um quadro analítico capaz de uma política emancipatória, está armadilhada globalização, coloca a questão de saber se, reforçar o potencial emancipatório da política nessa dupla crise, ao mesmo tempo em que quer a regulação social, quer a emancipa- dos Direitos Humanos no duplo contexto da é sinal do desejo de a ultrapassar. ção social, deverão ser deslocadas para o globalização, por um lado, e da fragmentação A segunda tensão dialética que ocorre nível global. É nesse sentido que se come- cultural e da política de identidades, por ou- entre o Estado e a sociedade civil, apesar ça a falar em sociedade civil global, gover- tro. Pretendo apontar as condições que per- de considerado o dualismo fundador da nança global, equidade global e cidadania mitem conferir aos Direitos Humanos, tanto modernidade ocidental, aponta como pro- blemáticas e contraditórias a distinção e a relação entre ambos. Nas últimas décadas, tornou-se mais “É como se os Direitos Humanos claro que a distinção entre o Estado e a so- fossem invocados para preencher 11 Revista Direitos Humanos ciedade civil, longe de ser um pressuposto da luta política moderna, é o resultado dela. o vazio deixado pelo Socialismo A tensão deixa, assim, de ser entre Estado ou, mais em geral, pelos projetos e sociedade civil para ser entre interesses e grupos sociais que se reproduzem sob a emancipatórios”
  • 12. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade o escopo global como a legitimidade local, gua inglesa em língua franca, a globalização para fundar uma política progressista de Di- do fast food americano ou da sua música reitos Humanos – Direitos Humanos concebi- popular, ou seja a adoção mundial das leis dos como a energia e a linguagem de esferas de propriedade intelectual ou de telecomu- públicas locais, nacionais e transnacionais nicações dos EUA. “A globali atuando em rede para garantir novas e mais intensas formas de inclusão social. À segunda forma de globalização chamo globalismo localizado. Consiste no impacto processo específico de práticas e imperativos transna- determinad acErca daS gloBalizaçõES cionais nas condições locais. Tais globalis- Muitas definições de globalização cen- mos localizados incluem: desflorestamento ou entidade l tram-se na economia. Privilegio, no entanto, uma definição mais sensível às dimensões e destruição maciça dos recursos naturais para pagamento da dívida externa; tesouros a sua infl sociais, políticas e culturais. Não existe es- históricos, lugares ou cerimônias religio- todo o tritamente uma entidade única chamada glo- sos, artesanato e vida selvagem postos à balização, mas, em vez disso, globalizações, disposição da indústria global do turismo; termo que, a rigor, só deveria ser usado no “compra” pelos países do Terceiro Mundo plural e que, como feixes de relações sociais, de lixos tóxicos produzidos nos países capi- envolvem conflitos, vencedores e vencidos. talistas centrais para gerar divisas externas; Frequentemente, o discurso sobre globaliza- conversão da agricultura de subsistência ção é a história dos vencedores. em agricultura para exportação como parte Proponho, pois, a seguinte definição: a do “ajustamento estrutural”; alterações le- globalização é o processo pelo qual deter- gislativas e políticas impostas pelos países minada condição ou entidade local estende centrais ou pelas agências multilaterais que a sua influência a todo o globo e, ao fazê-lo, eles controlam; uso de mão de obra local desenvolve a capacidade de designar como por parte de empresas multinacionais sem local outra condição social ou entidade rival. qualquer respeito por parâmetros mínimos Aquilo que chamamos globalização é de trabalho (labor standards). A divisão in- sempre a globalização bem-sucedida de ternacional da produção da globalização as- determinado localismo. Em termos ana- sume o seguinte padrão: os países centrais líticos, seria correta a utilização do termo especializam-se em localismos globaliza- localização em vez de globalização para dos, enquanto aos países periféricos cabe designar a presente situação. O motivo da tão só a escolha entre várias alternativas de preferência para o último termo é basica- globalismos localizados. O sistema-mundo mente porque o discurso científico hege- é uma trama de globalismos localizados e mônico tende a privilegiar a história do localismos globalizados. mundo na versão dos vencedores. À terceira forma de globalização de- Distingo quatro modos de produção da signo por cosmopolitismo, conjunto muito globalização, os quais, em meu entender, vasto e heterogêneo de iniciativas, movi- 12 dão origem a quatro formas de globalização. mentos e organizações que partilham a luta A primeira forma de globalização é o localis- contra a exclusão e a discriminação sociais Revista Direitos Humanos mo globalizado. Consiste no processo pelo e a destruição ambiental produzidas pelos qual determinado fenômeno local é globali- localismos globalizados e pelos globalis- zado com sucesso, seja a atividade mundial mos localizados, recorrendo a articulações das multinacionais, a transformação da lín- transnacionais tornadas possíveis pela
  • 13. revolução das tecnologias de informação e nica. Localismos globalizados e globalismos de comunicação. As atividades cosmopoli- localizados são a globalização de-cima-para- tas incluem diálogos e articulações Sul-Sul; baixo, neoliberal ou hegemônica; cosmopo- novas formas de intercâmbio operário; redes litismo e patrimônio comum da humanidade ização é o transnacionais de lutas ecológicas, pelos são a globalização de-baixo-para-cima, soli- pelo qual direitos da mulher, pelos direitos dos po- vos indígenas, pelos Direitos Humanos em dária ou contra-hegemônica. da condição geral; solidariedade anticapitalista entre o oS dirEitoS humaNoS como Norte e o Sul. O Fórum Social Mundial que rotEiro EmaNciPatório local estende se reuniu em Porto Alegre a partir de 2001 é A complexidade dos Direitos Humanos fluência a hoje a mais pujante afirmação de cosmopo- litismo no sentido aqui adotado. reside em que eles podem ser concebidos e praticados, quer como forma de localis- globo” Não uso cosmopolitismo no sentido mo- mo globalizado, quer como forma de cos- derno convencional. Para mim, cosmopolitis- mopolitismo ou, por outras palavras, quer mo é a solidariedade transnacional entre gru- como globalização hegemônica, quer como pos explorados, oprimidos ou excluídos pela globalização contra-hegemônica. O meu globalização hegemônica. O cosmopolitismo objetivo é especificar as condições culturais que defendo é o cosmopolitismo do subalter- para que os Direitos Humanos constituam no em luta contra a sua subalternização. forma de globalização contra-hegemônica. A quarta forma de globalização refere- A minha tese é que, enquanto forem conce- se à emergência de temas que, por sua bidos como direitos humanos universais, os natureza, são tão globais como o próprio Direitos Humanos tenderão a operar como planeta e aos quais eu chamaria, recorren- localismo globalizado e, portanto, como do ao Direito internacional, o patrimônio forma de globalização hegemônica. Para comum da humanidade. Trata-se de temas poder operar como forma de cosmopolitis- como a sustentabilidade da vida humana na mo, como globalização contra-hegemônica, Terra, por exemplo, ou temas ambientais os Direitos Humanos têm de ser reconcei- como a proteção da camada de ozônio, a tualizados como multiculturais. Concebidos preservação da Antártica, da biodiversida- como direitos universais, como tem sucedi- de ou dos fundos marinhos. Incluo, ainda, do, os Direitos Humanos tenderão sempre nessa categoria, a exploração do espaço, a ser instrumento do “choque de civiliza- da Lua e de outros planetas, dadas as inte- ções”, tal como o concebe Samuel Hunting- rações globais, físicas e simbólicas, entre ton (1993), ou seja, como arma do Ocidente eles e o planeta Terra. A preocupação com contra o resto do mundo. É sabido que os o cosmopolitismo e com o patrimônio co- Direitos Humanos não são universais na sua mum da humanidade conheceu grande de- aplicação. Serão os direitos humanos uni- senvolvimento nas últimas décadas, mas versais, enquanto artefato cultural, um tipo também fez surgir poderosas resistências. de invariável cultural ou transcultural, parte Em face da análise precedente, é fun- de uma cultura global? A minha resposta 13 damental distinguir entre globalização de- é não. Apenas a cultura ocidental tende a Revista Direitos Humanos cima-para-baixo e globalização de-baixo- formulá-los como universais. Por outras pa- para-cima, entre globalização neoliberal e lavras, a questão da universalidade é uma globalização solidária ou entre globalização questão particular, uma questão específica hegemônica e globalização contra-hegemô- da cultura ocidental.
  • 14. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade O conceito de Direitos Humanos assenta A dualidade entre uma “política de invisi- reitos Humanos sobre universalismo e rela- num bem-conhecido conjunto de pressupos- bilidade” e uma “política de supervisibilida- tivismo cultural. Todas as culturas são relati- tos, todos claramente ocidentais e facilmente de” correlacionadas aos imperativos da polí- vas, mas o relativismo cultural, como posição distinguíveis de outras concepções de digni- tica externa norte-americana foi denunciada filosófica, é incorreto. Por outro lado, todas dade humana em outras culturas. por Richard Falk (1981), ao citar a ocultação as culturas aspiram a preocupações e valores A marca ocidental liberal do discurso total pela mídia das notícias sobre o geno- válidos independentemente do contexto de dominante dos Direitos Humanos pode cídio do povo maubere em Timor Leste ou a seu enunciado, mas o universalismo cultural, ser facilmente identificada em muitos ou- situação dos cerca de duzentos milhões de como posição filosófica, é incorreto. tros exemplos: na Declaração Universal “intocáveis” na Índia, bem como a exuberân- A segunda premissa da transformação de 1948, elaborada sem a participação da cia com que os atropelos pós-revolucionários cosmopolita dos Direitos Humanos é que maioria dos povos do mundo; no reconhe- dos Direitos Humanos no Irã e no Vietnã fo- todas as culturas possuem concepções de cimento exclusivo de direitos individuais, ram relatados nos Estados Unidos. dignidade humana, mas nem todas elas a com a única exceção do direito coletivo à Mas essa não é toda a história das políti- concebem em termos de Direitos Humanos. autodeterminação; na prioridade concedida cas dos Direitos Humanos. Muitas pessoas e A terceira premissa é que todas as cultu- aos direitos civis e políticos sobre os direi- organizações não governamentais têm luta- ras são incompletas e problemáticas nas suas tos econômicos, sociais e culturais; e no do pelos Direitos Humanos, correndo riscos concepções de dignidade humana. Se cada reconhecimento do direito de propriedade em defesa de grupos oprimidos vitimizados cultura fosse tão completa como se julga, como o primeiro e, durante muitos anos, o por Estados autoritários, por práticas econô- existiria apenas uma só cultura. Aumentar a único direito econômico. micas excludentes ou por políticas culturais consciência de incompletude cultural é uma A história dos Direitos Humanos no pe- discriminatórias. Tais lutas emancipatórias das tarefas prévias à construção de uma con- ríodo imediatamente posterior à Segunda são, por vezes, explícita ou implicitamente cepção multicultural de Direitos Humanos. Guerra Mundial nos leva a concluir que as anticapitalistas. Creio que a tarefa central da A quarta premissa é que todas as culturas políticas de Direitos Humanos estiveram em política emancipatória do nosso tempo con- têm versões diferentes de dignidade humana, geral a serviço dos interesses econômicos e siste em transformar a conceitualização e a algumas mais amplas do que outras, algumas 14 geopolíticos dos Estados capitalistas hege- prática dos Direitos Humanos, de um loca- com um círculo de reciprocidade mais largo mônicos. Um discurso generoso e sedutor lismo globalizado num projeto cosmopolita. do que outras, algumas mais abertas a outras Revista Direitos Humanos sobre os Direitos Humanos coexistiu com Identifico três premissas dessa transfor- culturas do que outras. atrocidades indescritíveis, as quais foram mação. A primeira premissa é a superação Por último, a quinta premissa é que avaliadas de acordo com revoltante duplici- do debate intrinsecamente falso e prejudicial todas as culturas tendem a distribuir as dade de critérios. para uma concepção emancipatória dos Di- pessoas e os grupos sociais entre dois
  • 15. “Um discurso generoso e sedutor sobre os Direitos Humanos coexistiu com atrocidades indescritíveis” princípios competitivos de pertença hierár- A hermenêutica diatópica baseia-se na reitos Humanos, o dharma também é incom- quica. O princípio da igualdade e o princí- ideia de que os topoi de uma dada cultura, pleto, dado o seu enviesamento fortemente pio da diferença. Embora na prática os dois por mais fortes que sejam, são tão incom- não dialético a favor da harmonia, ocultando, princípios se sobreponham frequentemente, pletos quanto a própria cultura a que perten- assim, injustiças e negligenciando totalmen- uma política emancipatória dos Direitos cem. Tal incompletude não é visível a partir te o valor do conflito como caminho para Humanos deve saber distinguir entre a luta do interior dessa cultura, uma vez que a as- uma harmonia mais rica. Além disso, o dhar- pela igualdade e a luta pelo reconhecimen- piração à totalidade induz a que se tome a ma não está preocupado com os princípios to igualitário das diferenças, a fim de poder parte pelo todo. O objetivo da hermenêutica da ordem democrática, com a liberdade e a travar ambas as lutas eficazmente. diatópica não é, porém, atingir a completude autonomia, e tende a esquecer que o sofri- Essas são as premissas de um diálogo – objetivo inatingível – mas, pelo contrário, mento humano possui uma dimensão indi- intercultural sobre a dignidade humana que ampliar ao máximo a consciência de incom- vidual irredutível: não são as sociedades que pode levar, eventualmente, a uma concepção pletude mútua, por meio de um diálogo que sofrem, mas sim os indivíduos. mestiça de Direitos Humanos, uma concep- se desenrola, por assim dizer, com um pé A mesma hermenêutica diatópica pode ção que, em vez de recorrer a falsos univer- numa cultura e outro, noutra. Nisso reside o ser ensaiada entre o topos dos Direitos Huma- salismos, se organiza como uma constelação seu caráter dia-tópico. nos e o topos da umma na cultura islâmica, de sentidos locais, mutuamente inteligíveis, Um exemplo de hermenêutica diatópi- que se refere sempre à comunidade étnica, e que se constitui em rede de referências nor- ca é a que pode ter lugar entre o topos dos linguística ou religiosa de pessoas que são mativas capacitantes. Direitos Humanos na cultura ocidental, o to- o objeto do plano divino de salvação. Vista a pos do dharma na cultura hindu e o topos partir do topos da umma, a incompletude dos a hErmENêutica diatóPica da umma na cultura islâmica. Vistos a partir Direitos Humanos individuais reside no fato Podemos compreender topoi como do topos do dharma, os Direitos Humanos de, com base neles, ser impossível fundar os lugares comuns retóricos mais abrangen- são incompletos, na medida em que não laços e as solidariedades coletivas, sem as tes de determinada cultura, que funcionam estabelecem a ligação entre a parte (o indi- quais nenhuma sociedade pode sobreviver, como premissas de argumentação que, por víduo) e o todo (o cosmos). Vista a partir do e muito menos prosperar. A dificuldade da sua evidência, não se discutem e tornam dharma, a concepção ocidental dos Direitos concepção ocidental de Direitos Humanos 15 possíveis a produção e a troca de argu- Humanos está contaminada por uma simetria em aceitar direitos coletivos de grupos so- Revista Direitos Humanos mentos. Compreender determinada cultura muito simplista e mecanicista entre direitos ciais ou povos é um exemplo específico de a partir dos topoi de outra cultura é tarefa e deveres. Apenas garante direitos àqueles a uma dificuldade muito mais ampla: a dificul- muito difícil, para a qual proponho uma her- quem pode exigir deveres. Por outro lado e dade em definir a comunidade como arena menêutica diatópica. inversamente, visto a partir do topos dos Di- de solidariedades concretas, campo político
  • 16. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade dominado por uma obrigação política hori- fontes do Islamismo, que relativiza o con- zontal. Esta ideia de comunidade, central para texto histórico específico em que a Sharia Rousseau, foi varrida do pensamento liberal, foi criada pelos juristas dos séculos VIII e que reduziu toda a complexidade societal à IX. No contexto atual, haveria todas as con- dicotomia Estado/sociedade civil. dições para uma concepção mais alargada Mas, por outro lado, a partir do to- da igualdade e da reciprocidade a partir das “No contexto pos dos Direitos Humanos individuais, é fontes corânicas. Estaria inclinado a sugerir fácil concluir que a umma sublinha de- que, no contexto muçulmano, a energia mo- muçulmano, masiadamente os deveres em detrimen- bilizadora necessária para um projeto cos- a energia to dos direitos e por isso tende a perdoar desigualdades que seriam de outro modo mopolita dos Direitos Humanos poderá ge- rar-se mais facilmente num quadro religioso mobilizadora inadmissíveis, como a desigualdade entre moderado. Se for esse o caso, a abordagem homens e mulheres ou entre muçulmanos e de An-na’im é muito promissora. necessária não muçulmanos. A hermenêutica diatópica Na Índia, uma via per mezzo semelhante para um mostra-nos que a fraqueza fundamental da está a ser prosseguida por alguns grupos de cultura ocidental consiste em estabelecer defesa dos Direitos Humanos, particularmen- projeto dicotomias demasiadamente rígidas entre te por aqueles que centram a sua ação na de- cosmopolita o indivíduo e a sociedade, tornando-se, assim, vulnerável ao individualismo posses- fesa dos intocáveis. Por sua própria natureza, a hermenêuti- de Direitos sivo, ao narcisismo, à alienação e à anomia. ca diatópica é um trabalho de colaboração De igual modo, a fraqueza fundamental das intercultural e não pode ser levada a cabo Humanos culturas hindu e islâmica deve-se ao fato de a partir de uma única cultura ou por uma poderá nenhuma delas reconhecer que o sofrimen- só pessoa. Na minha perspectiva, An-na’im to humano tem uma dimensão individual aceita demasiadamente fácil e acriticamen- gerar-se mais irredutível, a qual só pode ser adequada- te a ideia de Direitos Humanos universais. facilmente mente considerada numa sociedade não hierarquicamente organizada. Esse autor, ao mesmo tempo em que pro- põe uma abordagem evolucionista crítica num quadro O reconhecimento de incompletudes mú- e contextual da tradição islâmica, faz uma tuas é condição sine qua non de um diálogo interpretação da Declaração Universal dos religioso intercultural. Direitos Humanos surpreendentemente ana- moderado” Um exemplo de hermenêutica diatópica crônica e ingenuamente universalista. entre a cultura islâmica e a cultura ociden- A hermenêutica diatópica conduzida por tal dos Direitos Humanos é a proposição de An-na’im, a partir da perspectiva da cultura Abdullahi An-na’im (1990; 1992) de uma islâmica e as lutas pelos Direitos Humanos via per mezzo identificando áreas de conflito organizadas pelos movimentos feministas entre o sistema jurídico religioso do Islã, a islâmicos, seguindo as ideias da “Reforma Sharia, e os critérios ocidentais dos Direitos islâmica” por ele propostas, têm de ser Humanos e, sugerindo uma reconciliação complementadas por uma hermenêutica 16 ou relação positiva entre os dois sistemas. diatópica conduzida a partir da perspectiva Compreendendo como problemática na de outras culturas e, nomeadamente, da Revista Direitos Humanos Sharia histórica a exclusão das mulheres e perspectiva da cultura ocidental dos Direi- dos não muçulmanos do princípio da reci- tos Humanos. Este é provavelmente o úni- procidade, propõe a “Reforma Islâmica”, co meio de integrar na cultura ocidental a assentada numa revisão evolucionista das noção de direitos coletivos, os direitos da
  • 17. natureza e das futuras gerações, bem como a noção de deveres e responsabilidades para com entidades coletivas, sejam elas a co- munidade, o mundo ou mesmo o cosmos. aS dificuldadES da iNtErculturalidadE ProgrESSiSta Que possibilidades existem para um di- álogo intercultural quando uma das culturas em presença foi moldada por massivas e continuadas agressões à dignidade humana perpetradas em nome da outra cultura? O dilema cultural que se levanta é o seguinte: dado que, no passado, a cultura dominante tornou impronunciáveis algumas das as- pirações à dignidade humana por parte da cultura subordinada, será agora possível pronunciá-las no diálogo intercultural sem, ao fazê-lo, justificar e mesmo reforçar a subordinação? Um dos mais problemáticos pressupos- tos da hermenêutica diatópica é a concepção das culturas como entidades incompletas. como pressuposto da hermenêutica diatópi- coNdiçõES Para uma Pode se argumentar que, pelo contrário, só ca, é um exercício macabro, por mais eman- iNtErculturalidadE ProgrESSiSta culturas completas podem participar em di- cipatórias que sejam as suas intenções. As seguintes orientações e imperativos álogos interculturais sem correr o risco de O dilema da completude cultural pode transculturais devem ser aceitos por todos ser descaracterizadas ou mesmo absorvidas ser assim formulado: se uma cultura se os grupos sociais e culturais interessados no por culturas mais poderosas. Uma variante considera inabalavelmente completa, então diálogo intercultural. desse argumento reside na ideia de que so- não terá nenhum interesse em envolver-se 1. Da completude à incompletude. O mente a uma cultura poderosa e historica- em diálogos interculturais; se, pelo contrá- verdadeiro ponto de partida do diálogo é mente vencedora, como é o caso da cultura rio, admite, como hipótese, a incompletude o momento de frustração ou de desconten- ocidental, pode atribuir-se o privilégio de que outras culturas lhe atribuem e aceita tamento com a cultura a que pertencemos. se autodeclarar incompleta, sem, com isso, o diálogo, perde confiança cultural, torna- Esse sentimento suscita a curiosidade por correr o risco de dissolução. Assim sendo, a se vulnerável e corre o risco de ser objeto outras culturas. A hermenêutica diatópi- ideia de incompletude cultural será, afinal, o de conquista. Por definição não há saídas ca aprofunda, à medida que progride, a instrumento perfeito de hegemonia cultural fáceis para esse dilema, mas também não incompletude cultural, transformando a e, portanto, uma armadilha quando atribuída penso que ele seja insuperável. Tendo em consciência inicial de incompletude, em a culturas subordinadas. mente que o fechamento cultural é uma es- grande medida difusa e pouco articulada, As culturas dos povos indígenas das tratégia autodestrutiva, não vejo outra saída numa consciência autorreflexiva. 17 Américas, da Austrália, da Nova Zelândia, da senão elevar as exigências do diálogo inter- 2. Das versões culturais estreitas às ver- Revista Direitos Humanos Índia, dentre outras, foram tão agressivamen- cultural até um nível suficientemente alto sões amplas. As culturas têm grande varieda- te amputadas e descaracterizadas pela cul- para minimizar a possibilidade de conquista de interna, e a consciência dessa diversidade tura ocidental que, recomendar-lhes agora cultural, mas não tão alto que destrua a pró- aprofunda-se à medida que a hermenêutica a adoção da ideia de incompletude cultural, pria possibilidade do diálogo. diatópica progride. Das diferentes versões de
  • 18. artigo Direiros humanos: o Desafio da Interculturalidade temas demasiadamente importantes para “Temos o direito a ser iguais ser incluídos no diálogo com outras cultu- quando a diferença nos ras. Ainda assim, o importante para a her- menêutica diatópica é a direção, a noção e inferioriza; temos o direito a ser o sentimento de incompletude da cultura. diferentes quando a igualdade 5. Da igualdade ou diferença à igualdade e diferença. O multiculturalismo progressista nos descaracteriza.” pressupõe que o princípio da igualdade seja prosseguido de par com o princípio do re- conhecimento da diferença. A hermenêutica uma dada cultura, deve ser escolhida para o ferente quando tomado por uma cultura do- diatópica pressupõe a aceitação do seguinte diálogo intercultural a que representa o círculo minante ou por uma cultura subordinada. No imperativo transcultural: temos o direito a ser de reciprocidade mais amplo, a versão que vai primeiro caso, frequentemente manifestam- iguais quando a diferença nos inferioriza; te- mais longe no reconhecimento do outro. No se objetivos imperiais, como a “luta contra mos o direito a ser diferentes quando a igual- que respeita às duas versões da cultura ociden- o terrorismo”, enquanto no caso de culturas dade nos descaracteriza. tal dos Direitos Humanos, a liberal e a social- subordinadas trata-se, muitas vezes, de auto- democrática, deve ser privilegiada a última, defesa ante a impossibilidade de controlar mi- coNcluSão porque amplia para os domínios econômico e nimamente os termos do diálogo. A vigilância Na forma como têm sido predominante- social a igualdade que a versão liberal apenas política, cultural e epistemológica da herme- mente concebidos, os Direitos Humanos são considera legítima no domínio político. nêutica diatópica é, pois, uma condição do um localismo globalizado, uma espécie de 3. De tempos unilaterais a tempos parti- êxito desta. Cabe às forças, aos movimentos esperanto que dificilmente se poderá trans- lhados. Pertence a cada comunidade cultural e às organizações cosmopolitas defender as formar na linguagem quotidiana da dignidade decidir quando está pronta para o diálogo virtualidades emancipatórias da hermenêutica humana nas diferentes regiões culturais do intercultural. A cultura ocidental, durante sé- diatópica dos desvios reacionários. globo. Compete à hermenêutica diatópica culos, não teve qualquer disponibilidade para 4. De parceiros e temas unilateralmente aqui proposta transformá-los numa política diálogos interculturais mutuamente acor- impostos a parceiros e temas escolhidos cosmopolita que ligue, em rede, línguas dife- dados e agora, ao ser atravessada por uma por mútuo acordo. Talvez a condição mais rentes de emancipação pessoal e social e as consciência difusa de incompletude, tende a exigente da hermenêutica diatópica seja a torne mutuamente inteligíveis e traduzíveis. É crer que todas as outras culturas estão igual- ideia de que tanto os parceiros como os este o projeto de uma concepção multicultu- mente disponíveis para reconhecer a sua temas do diálogo devem resultar de acor- ral dos Direitos Humanos. Nos tempos que incompletude e, mais do que isso, ansiosas dos mútuos. No que respeita aos temas, a correm, esse projeto pode parecer mais do para se envolver em diálogos interculturais convergência é muito difícil de alcançar, que nunca utópico. É-o, certamente, tão utó- com o Ocidente. porque a possibilidade de tradução inter- pico quanto o respeito universal pela dignida- O direito à pausa antes de avançar para cultural dos temas é inerentemente proble- de humana. E nem por isso este último deixa uma nova fase, bem como a reversibilidade mática e porque em todas as culturas há de ser uma exigência ética séria. do diálogo são cruciais para impedir que ele se perverta e se transforme em conquista cultural ou em fechamento cultural recípro- RefeRênCiAs 18 co. A ausência ou a deficiente explicitação AN-NA’IM, Abdullahi A. (1990), Toward an Islamic Reformation. Siracusa: Syracuse University Press. de regras para o diálogo intercultural podem Revista Direitos Humanos transformá-lo na fachada benevolente sob a AN-NA’IM, Abdullahi A. (1992) (org.), Human Rights in Cross-Cultural Perspectives. A Quest for Consensus. Filadélfia: qual se escondem trocas culturais muito desi- University of Pennsylvania Press. guais. Da mesma maneira, o estabelecimento HUNTINGTON, Samuel (1993), The Clash of Civilizations?, Foreign Affairs, 72(3). unilateral do fim do diálogo intercultural é di-
  • 19. Combate ao TRAbAlHO ESCRAvO: como plantar uma floresta de Direitos Humanos z lEoNardo Sakamoto E é Pereira já foi alcunha de bloco de carnaval. Poderia ser marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES esta a lembrança perene e bem-humorada que o nome evoca no imaginário popular. Mas Zé Pereira é também o símbolo de uma chaga encravada no meio e não na ponta do mercado de trabalho brasileiro. José Pereira Ferreira ganhou lEoNardo Sakamoto é jornalista e doutor em Ciência notoriedade em novembro de 2003, quando foi aprovada pelo Política e coordenador da organização não governamental Congresso Nacional uma indenização a ele no valor de R$ 52 19 Repórter Brasil. mil. Zé Pereira havia sido escravizado na fazenda Espírito San- Revista Direitos Humanos to, em Sapucaia, Sul do Pará. Em setembro de 1989, com 17 marcuS mENEzES BarBEriNo mENdES é juiz anos, fugiu dos maus-tratos e foi emboscado por funcionários federal do Trabalho do Tribunal Regional da 15ª Região da propriedade, que atingiram seu rosto. O caso, esquecido pe- e doutorando em Desenvolvimento Econômico pela las autoridades brasileiras, foi levado à Organização dos Esta- Universidade Estadual de Campinas/SP . dos Americanos. Para evitar uma condenação, o Brasil acabou
  • 20. artigo Combate ao trabalho escravo: como plantar uma floresta de Direitos Humanos “É equivocado opor o combate Portanto, estão sob a influência direta da eco- nomia de mercado e dela dependem. ao trabalho escravo à atividade A análise das interações na cadeia pro- econômica produtiva. Sua forma dutiva mostra o grau de interdependência entre o padrão de consumo dos brasileiros contemporânea é uma forma em cidades de qualquer dos estados e a ocorrência de trabalho análogo à condição monstruosa de dumping social” de escravo e degradante. Do fast-food aos prosaicos churrascos de fim de semana, do realizando uma solução amistosa com a OEA, pela libertação de trabalhadores. No mes- belo par de sapatos ao automóvel de última em que assumia uma série de compromissos mo período, a Comissão Pastoral da Terra, geração, supostamente movido a combustí- para o combate ao trabalho escravo. organização ligada à Conferência Nacional vel eficiente e fruto de atividade econômica Como Zé Pereira, a cada ano milhares de dos Bispos do Brasil e principal referência ambientalmente sustentável, todo o nosso trabalhadores rurais provenientes de regiões civil no combate a essa forma de explora- cotidiano está permeado pelo sofrimento de pobres do Brasil são obrigados a trabalhar em ção, registrou denúncias envolvendo mais brasileiros que, ao sair de suas modestas ca- fazendas e carvoarias, submetidos a condições de 50 mil trabalhadores. sas em busca de trabalho, dignidade e espe- degradantes e impedidos de romper a relação A incidência do problema está con- rança, encontraram à sua frente a promessa com o empregador. As vítimas mais agredidas centrada nas regiões de expansão agro- de um elemento tradicional no mercado de permanecem presas até que terminem a tarefa pecuária da Amazônia (de Rondônia até trabalho brasileiro: o intermediador e o arre- para a qual foram aliciadas, sob ameaças que o Maranhão, coincidindo com o Arco do gimentador de mão de obra, conhecido pela podem ir de torturas psicológicas até espan- Desflorestamento, onde a floresta perde alcunha de “gato”. camentos e assassinatos. No Brasil, essa for- espaço para a agropecuária) e do Cerra- É nesse momento que a prática mais do ma de exploração é chamada de escravidão do (principalmente na Bahia, em Goiás, que secular da mercantilização do trabalho à contemporânea, de nova escravidão ou ainda no Mato Grosso do Sul e em Tocantins). brasileira captura suas vítimas e esmaga seus de trabalho análogo ao escravo. Sua natureza Contudo, há casos confirmados em São sonhos. Como autênticas veias abertas da econômica a distingue da escravidão da anti- Paulo, Rio de Janeiro, Minas Gerais, Santa América Latina, esse elo da cadeia produtiva guidade clássica, da escravidão moderna, da Catarina e Rio Grande do Sul, entre outras vai espalhar pelos estados da federação cen- Colônia e do Império. Mas o tratamento desu- regiões, em que o capital e as instituições tenas de milhares de brasileiros no trabalho mano, a restrição à liberdade e o processo de estatais já estão estabelecidos, o que de- rural estacional, nas mais diversas culturas “coisificação” do ser humano são característi- monstra que a origem desse fenômeno não agrícolas, na pecuária e no extrativismo. cas similares às das anteriores. está vinculada ao locus da fronteira agrí- A utilização de trabalho escravo contem- O número de trabalhadores envolvidos cola, mas a outro elemento que perpassa porâneo no Brasil não é resquício de práticas na forma mais tosca de trabalho escravo realidades sociais diferentes. arcaicas que sobreviveram provisoriamente contemporâneo é relativamente pequeno, Os relatórios de fiscalização do Ministério ao capitalismo, mas sim instrumento utili- mas não desprezível: de 1995, quando o do Trabalho mostram que os empregadores zado pelo próprio capitalismo para facilitar sistema de combate ao trabalho escravo envolvidos nesse tipo de exploração não são a acumulação em seu processo de expan- contemporâneo foi criado pelo governo fe- pequenos sitiantes isolados econômica e são ou modernização. Esse mecanismo ga- deral, até dezembro de 2008, mais de 30 geograficamente do restante da sociedade, rante competitividade a produtores rurais de 20 mil pessoas foram encontradas nessa situ- mas, na maioria das vezes, grandes proprie- regiões e situações de expansão agrícola Revista Direitos Humanos ação, de acordo com dados do Ministério tários rurais, muitos deles produzindo com que optam por uma via ilegal. Dessa forma, do Trabalho, que, junto com o Ministério tecnologia de ponta. Pesquisas da ONG Re- fazem concorrência desleal com os outros Público do Trabalho e as Polícias Federal pórter Brasil apontam que esses produtores empregadores que agem dentro da lei. Por e Rodoviária Federal, é o principal órgão fornecem commodities às grandes indús- isso é equivocado opor o combate ao traba- responsável pela apuração de denúncias e trias e ao comércio nacional e internacional. lho escravo à atividade econômica produtiva.
  • 21. Sua forma contemporânea é uma forma sustentáveis – e implantação, nos muni- monstruosa de dumping social. cípios emissores de população, de infra- O trabalho análogo à condição de estrutura pública que eleve as condições escravo tem no Brasil conceito inscrito de bem-estar desses brasileiros, desesti- no Direito Penal, e é esse conceito que mulando a migração por desalento. baliza o comportamento dos agentes de Mas, como se trata de um fenômeno Estado encarregados da sua repressão. inserido numa lógica amoral de concor- Como o Direito Penal institui seus tipos rência no mercado de bens e serviços, a partir do mínimo civilizatório admis- não podemos prescindir de políticas de sível, é possível derivar do conceito repressão a esse comportamento econô- adotado a gravidade das repercussões mico violador dos Direitos Humanos de do trabalho análogo à condição de es- modo transversal. Em verdade, precisa- cravo para o funcionamento do mercado mos ampliar a utilização dos instrumentos de trabalho e para o exercício de direitos jurídicos de repressão a essa forma bár- sociais dos trabalhadores. bara de exploração dos seres humanos. As ações de fiscalização, repressão e O combate ao trabalho escravo, para prevenção empreendidas no âmbito ad- ser efetivo, passa por um conjunto de ministrativo e extrajudicial pelo Ministé- ações nacionais e multilaterais, como a rio do Trabalho e pelo Ministério Público repressão aos ganhos econômicos ge- do Trabalho permitiram levantamento de rados pela exploração dessa forma de amplo banco de dados sobre origem e mão de obra, não só no Brasil, mas em destino da população afetada, seu status todos os países. O Brasil já possui me- de cidadania. Já sabemos de onde vêm e canismos para que os compradores de para onde vão esses brasileiros. É pos- commodities não adquiram mercadorias sível reconhecer os déficits de cidadania produzidas com trabalho escravo, como nos municípios de origem. Mas é neces- a consulta ao cadastro de empregadores sário saltar essa etapa do acúmulo de co- que utilizaram essa prática, que ficou nhecimento decorrente das atividades de conhecido como a “lista suja”. Institui- repressão e desenvolver estratégias que ções financeiras têm negado crédito a atuem em dois vetores: promoção de tra- essas pessoas e as empresas signatá- balho digno – seja por meio de um mer- rias do Pacto Nacional pela Erradica- cado de trabalho que ofereça empregos ção do Trabalho Escravo têm cortado estruturados e dotado dos mecanismos relações comerciais com elas. Dessa de proteção da cidadania, seja por meio forma, é possível agir cirurgicamente, de programas de promoção de atividades separando o joio do trigo, limpando econômicas social e ambientalmente uma determinada cadeia produtiva e, “Não podemos prescindir de 21 políticas de repressão a esse Revista Direitos Humanos comportamento econômico violador dos Direitos Humanos”