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UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS
FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS
DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA
LABORATÓRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS
André Luis Pereira Miatello (coord.)
Aléssio Alonso Alves (org.)
Felipe Augusto Ribeiro (org.)
PERSPECTIVAS DE ESTUDO EM HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL
Anais do workshop realizado nos dias 29 e 30
de setembro de 2011, na Faculdade de
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade
Federal de Minas Gerais.
1ª Edição
Belo Horizonte
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas
2012
Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil [recurso eletrônico] : anais do worshop
realizado nos Dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais / André Luís Pereira Miatello (coord.);
Aléssio Alonso Alves, Felipe Augusto Ribeiro (orgs.).- Belo Horizonte : Faculdade de Filosofia e
Ciências Humanas, 2012.
Inclui bibliografia.
ISBN: 978-85-62707-33-9
1. Idade Média – História 2. Idade Média – Estudo e ensino.3. Europa - História. I. Miatello,
André Luis Pereira. II. Alves, Aléssio Alonso. III. Ribeiro, Felipe Augusto.
CDD 940.1
CDU: 930.9(08)
EXPEDIENTE
Reitor da UFMG
Prof. Dr. Clélio Campolina Diniz
Diretor da Fafich
Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves
Chefe do Departamento de História
Profª. Drª. Cristina Campolina
Coordenadora de Curso de Pós-
Graduação em História
Profª. Drª. Kátia Gerab Baggio
Comissão organizadora do workshop
Idealização e coordenação
Dr. André Luís Pereira Miatello
Ms. Flávia Aparecida Amaral
Monitores
Aléssio Alonso Alves
Bruna Massai do Carmo
Clycia Gracioso Silva
Daniel de Souza Ramos
Felipe Augusto Ribeiro
Ludmila Andrade Rennó
Marco Antônio Sant’Ana Camargos
Stella Ferreira Gontijo
Wanderson Henrique Pereira
Comissão editorial dos anais
Coordenação
Dr. André Luís Pereira Miatello
Organização, editoração e montagem
Aléssio Alonso Alves
Felipe Augusto Ribeiro
Arte
Ludmila Andrade Rennó
Capa
Boaz e os anciãos.
Bíblia de Luís IX, fol. 18v.
Cortesia de: Faksimile Verlag
Consultor: Richard Leson
Disponível em:
http://www.themorgan.org/collections/swf/
exhibOnline.asp?id=235
Acesso em: 25 out 2012.
Revisão dos textos a encargo dos autores
2
AGRADECIMENTOS
O núcleo UFMG do LEME – Laboratório de Estudos Medievais – agradece, por todo
o suporte na realização de nosso workshop e na publicação deste volume, ao Departamento de
História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas
Gerais, nas pessoas das professoras Dra. Cristina Campolina de Sá e Dra. Kátia Gerab
Baggio, chefe e coordenadora do departamento e do programa, respectivamente.
O LEME/UFMG agradece também ao professor Dr. Marcelo Cândido da Silva,
coordenador geral deste Laboratório, cuja participação assídua foi essencial para a
concretização do evento. A ele devemos também a apresentação destes anais.
Agradecemos, por fim, à equipe da biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências
Humanas da UFMG, pela catalogação e registro deste volume, bem como a todos os demais
integrantes da comissão organizadora do evento, pelo trabalho e dedicação: Bruna Massai do
Carmo, Clycia Gracioso Silva, Daniel de Souza Ramos, Flávia Aparecida Amaral, Ludmila
Andrade Rennó, Marco Antônio Sant’Ana Camargos, Stella Ferreira Gontijo, Wanderson
Henrique Pereira.
3
SUMÁRIO
Caderno de resumos ...................................................................................................................5
Apresentação
Marcelo Cândido da Silva ........................................................................................................13
As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)
Karen Torres da Rosa ...............................................................................................................16
“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas
Austrasianas
Edward Detmann Loss .............................................................................................................31
Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)
Bruna Giovana Bengozi ...........................................................................................................42
Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus
Diego Ribeiro dos Reis ............................................................................................................55
Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos
Verônica da Costa Silveira ...................................................................................................... 67
Diferentes visões sobre a economia no Período Carolíngio
Victor Borges Sobreira ............................................................................................................ 86
Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco
Marcelo Moreira Ferrasin ......................................................................................................106
A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)
Aléssio Alonso Alves .............................................................................................................115
4
Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o
fenômeno da santidade no Ocidente Medieval
Felipe Augusto Ribeiro ..........................................................................................................136
Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV
Vinícius Marino Carvalho ......................................................................................................150
Leis e direito na Itália do século XIV
Letícia Dias Schirm ................................................................................................................159
As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr. ...........................................................................182
O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas
Bruno Tadeu Salles ................................................................................................................197
O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política
André Luis Pereira Miatello ...................................................................................................212
Índice remissivo .....................................................................................................................226
Índice onomástico ..................................................................................................................228
5
CADERNO DE RESUMOS
As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII)
Karen Torres da Rosa
A historiografia preocupa-se desde o século XIX com a compreensão das relações de poder na
Idade Média, sendo que a partir de meados do século XX os historiadores passaram a
considerar o acúmulo de bens como uma forma de poder. Isso permitiu que as relações do
episcopado e da Igreja com seus bens fossem discutidas como relações de poder. Assim, este
será o objeto de estudo deste trabalho que analisará e comparará dois testamentos episcopais:
o de Cesário de Arles, da metade do século VI, e o de Bertrand de Mans, de 616. Relacionar
esses dois documentos e os Concílios Merovíngios também será imprescindível, uma vez que
são encontrados vários cânones que pretendem normatizar o tratamento dado pelos bispos aos
bens, referindo-se, em grande parte, à proteção dos bens eclesiásticos. Dessa forma, o foco
estará na compreensão da existência ou não de conflitos em torno dos bens, auxiliado pelo
estudo do problema da ambiguidade das relações entre os bens dos bispos e das igrejas, ou
seja, por aquele em que há a preocupação com uma separação entre tais bens.
PALAVRAS-CHAVE: Bispos. Testamentos. Bens.
“Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas
Austrasianas
Edward Detmann Loss
O presente texto tem por objetivo explorar como as “Epístolas Austrasianas” – uma
compilação de 48 epístolas trocadas entre a Austrásia e Bizâncio durante o século VI – vem
sendo utilizadas nas últimas décadas para o estudo das práticas de negociação e de troca de
legações entre as diferentes unidades políticas independentes do mediterrâneo no século VI.
Para tanto, discute-se, em um primeiro momento, as transformações historiográficas da
6
segunda metade do século XX acerca da violência medieval que permitiram pensar na
existência de mecanismos de resolução de conflitos no período e possibilitaram que essa
documentação pudesse ser analisada como fonte de estudo dessas práticas. Em seguida,
explora-se as considerações feitas pelos principais estudiosos dessas epístolas sobre as formas
de negociação entre as entidades políticas da Alta Idade Média à partir dessa documentação.
Por último, busca-se problematizar algumas dessas conclusões através da análise de
exemplares da coleção.
PALAVRAS-CHAVE: Epístolas. Austrásia. Embaixadas.
Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII)
Bruna Giovana Bengozi
A busca pelas origens dos francos e do estabelecimento destes no norte da Gália foi assunto
recorrente nos estudos de historiadores, arqueólogos, entre outros, especialmente a partir do
século XIX, período este marcado pela emergência dos Estados nacionais e do nacionalismo
étnico europeu. Diante deste contexto, os “cemitérios em fileiras” (Reihengräberfelder),
comuns no norte da Gália entre o final do século V e início do século VIII, foram utilizados
por medievalistas e arqueólogos para determinar as identidades étnicas dos ocupantes destas
necrópoles, principalmente francos e galo-romanos. Consequentemente, os estudos sobre tais
cemitérios foram usados para permitir a associação direta dos “povos” identificados aos
Estados emergentes no século XIX e para justificar discursos ideológicos e políticos
contemporâneos, postura esta criticada por muitos estudiosos a partir da Segunda Guerra
Mundial. Assim, o objetivo desta comunicação é apresentar um debate historiográfico entre
dois estudos de casos sobre os “cemitérios em fileiras”, produzidos nos séculos XIX e XX, e
refletir sobre como os historiadores e arqueólogos analisaram esse tipo de necrópole, tanto a
fim de identificação dos francos de um ponto de vista étnico quanto para a crítica a esse tipo
de interpretação. A partir dessa reflexão, buscar-se-á elucidar duas posturas historiográficas
distintas diante de discussões ligadas ao problema da etnogênese e ao uso da arqueologia
funerária, que influenciaram o entendimento sobre os francos e o tecido social durante o
7
período medieval, mas também suscitaram diversas polêmicas nos campos acadêmicos e
políticos desde o século XIX.
PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia funerária. Etnogênese. Francos.
Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus
Diego Ribeiro dos Reis
Tradicionalmente, a violência se tornou peça chave e paradigma para os estudos sobre a Idade
Média, um argumento para se “comprovar” a ausência de Estado e o desaparecimento de
instituições públicas. Assim, a Idade Média foi considerada, sobretudo por grande parte da
historiografia do século XIX, como um período atrasado no qual a violência e a desordem
prosperavam em detrimento da ordem política e social. Os estudos se centravam na violência,
e a paz era um tema pouco discutido até a segunda metade do século XX. Durante esses anos,
grande parte desses estudos se circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses
elementos, tomando-os como um par antinômico. Deste modo, documentos medievais – como
as Histórias de Raul Glaber, escritas na primeira metade do século XI e as atas dos concílios
judiciários de Paz de Deus dos séculos X, XI e XII, sobretudo – foram tomados como
testemunhos e respostas às desagregações sociais e políticas, e ao estado de violência
generalizada desse período, ou seja, uma tentativa de reestruturação da ordem pública. A
partir disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo comparativo entre as concepções de
paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus que ocorreram entre o fim
do século X e as primeiras décadas do século XI, quanto nas Histórias de Raul Glaber,
buscando compreender as particularidades e as características comuns em torno de tais
concepções, assim como indagar a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário
utilizado e quais os valores dados a ela, tendo em mente a parcialidade desse estudo.
PALAVRAS-CHAVE: Raul Glaber. Paz de Deus. Paz.
8
Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos
Verônica da Costa Silveira
O trabalho objetiva apresentar em linhas gerais e introdutórias a origem dos godos nas
Historiae de Jordanes e Isidoro de Sevilha. Indicaremos inicialmente alguns problemas
envolvidos no estudo do tema com vistas a introduzir os leitores aos debates concernentes a
possibilidade de falarmos na existência de “história” na Idade Média, para em seguida
exemplificarmos uma possibilidade de pesquisa mediante a análise comparativa do De origine
actibusque Getarum, comumente conhecido como Gética, de Jordanes, e do De origine
Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia librum unum, de Isidoro de
Sevilha à luz dos debates recentes sobre identidades na Antigüidade Tardia.
PALAVRAS-CHAVE: Jordanes. Isidoro de Sevilha. Godos.
Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco
Marcelo Moreira Ferrasin
Os ordálios, ou “juízos de Deus”, foram utilizados como meios probatórios por diferentes
sociedades, em distintos períodos. Certa historiografia considerou por longo tempo, os
ordálios como provas “irracionais”, típicos das sociedades “bárbaras” da Alta Idade Média.
Igualmente, historiadores generalizaram os “juízos de Deus” como a principal prova judiciária
de um “direito bárbaro”. Essas abordagens desempenharam influência decisiva para a imagem
depreciativa que se fez, e por ora se faz da Idade Média. Neste texto, pretendo destacar o uso
dos ordálios no espaço franco, a partir das disposições normativas expressas nas “leis dos
francos” e na “lei dos burgúndios”, como também das recentes contribuições da historiografia
sobre o assunto. O objetivo desse trabalho é demonstrar como os ordálios, e a título de
exemplo analiso o ordálio da água fervente e o duelo judiciário, inseriam-se no regime
probatório franco, como um último recurso, como um meio excepcional de se provar em casos
graves ou na falta de outras provas.
9
PALAVRAS-CHAVE: Ordálios. Lei. Francos.
A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII)
Aléssio Alonso Alves
Compostas em momentos de grandes conflitos entre frades e clérigos seculares, as Vitae
Fratrum de Gerardo de Frachet têm como escopo a autoafirmação da Ordem dos Frades
Pregadores como sendo sagrada. Presentes de forma maciça nas histórias exemplares da obra,
a morte e os mortos desempenharam um papel importante na autoapologia da Ordem e é,
portanto, objetivo deste artigo analisar como estes tópicos foram mobilizados em função desse
intuito. Para tanto, primeiramente faremos um panorama sobre os estudos historiográficos a
respeito da morte e dos mortos; em um segundo momento serão analisadas as circunstâncias
de composição da obra e, por fim, trataremos da morte e dos mortos nas Vitae Fratrum.
PALAVRAS-CHAVE: Morte. Mortos. Dominicanos.
Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o
fenômeno da santidade no Ocidente Medieval
Felipe Augusto Ribeiro
O presente texto trata sobre o fenômeno da santidade no cristianismo ocidental, com foco na
“Baixa Idade Média”. Ele faz uma reflexão puramente teórica, recuperando o emergir do
fenômeno, ainda na “Alta Idade Média”, e recolhendo, numa análise panorâmica, alguns
conceitos que podem ser importantes no estudo do fenômeno. Esses conceitos parecem
elucidativos na medida em que evidenciam a santidade no cumprimento de papéis que vão
muito além do religioso, tornando-a um bem perfeitamente inserido na dinâmica de trocas
entre centros de poder. Nesse sentido, a santidade emergiria como um fenômeno
principalmente sociológico e histórico, o que tentaremos corroborar testando os conceitos
levantados no caso de São Francisco de Assis (1182-1226) e do seu culto no centro da Itália
10
dos séculos XIII-XIV. Seguindo esse caminho, o trabalho espera ampliar os horizontes de
apreensão do fenômeno abordado.
PALAVRAS-CHAVE: Santidade. Cristianismo. Idade Média.
Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV
Vinícius Marino Carvalho
Esse trabalho propõe um olhar crítico sobre o poema cavaleiresco Sir Gawain and the Green
Knight (SGGK), problematizando seu valor como fonte e as dificuldades inerentes ao seu
estudo. Na primeira parte, faz-se uma tipologia da fonte e um apanhado geral sobre a
historiografia sobre ela tecida. Na segunda, desenvolve-se uma tentativa de interpretação,
fundamentada no delineamento de um provável público alvo em meio ao qual o poema possa
ter circulado. Propor-se-á a hipótese de que SGGK possa ter sido lido pelo grupo social
conhecido de gentry ao longo dos séculos XIV e XV. Mobiliza-se como evidência provável a
existência de versões posteriores do poema vinculadas à gentry, tal como uma menção a ele
em um inventário de um gentleman do século XV, Sir John Paston II. Por fim, estabelece-se
algumas ponderações sobre as limitações de tal enfoque, assim como diretrizes para futuros
desenvolvimentos.
PALAVRAS-CHAVE: Inglaterra. Gentry. Cavalaria.
Leis e direito na Itália do século XIV
Letícia Dias Schirm
Na península itálica, durante o século XIV, os juristas se destacaram, dentre os homens de saber,
não apenas por seu conhecimento teórico, mas também por sua atuação prática tanto como
advogados quanto como professores. Ao elaborarem glosas sobre as leis e proporem uma forma
de compreensão do direto esses homens tocaram em diversos problemas que podem ser
11
analisados pela história. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar as possibilidades
para o estudo da História Medieval por meio das fontes jurídicas, especialmente aquelas
produzidas no século XIV, momento no qual são realizadas grandes compilações e comentários
a cerca do Corpus Iuris Civilis. Espera-se atingir essa meta por meio da discussão sobre o
dominium apresentada por Bartolus da Sassoferrato (1314-1357).
PALAVRAS-CHAVE: Lei. Direito. Bartolus da Sassoferrato.
As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI
Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr.
O presente texto busca refletir sobre as relações entre política e magia nos séculos XV e XVI, tendo
em vista o reavivamento de correntes esotéricas como o hermetismo e a cabala, bem como o
surgimento de um agente principesco dedicado à comunicação cifrada, o secretarium. Discutindo
principalmente a Steganographia do abade alemão Johannes Trithemius e o De Magiae Naturalis
do italiano Giambattista della Porta, intentou-se apresentar os pontos de diálogo entre as concepções
de segredo atinentes ao magus e aquelas postas em exercício pelo secretarium. No exercício de
reflexão aqui proposto recorreu-se à discussão de Michel Senellart sobre as transformações do
exercício do poder no recorte temporal já apresentado, e, mais especificamente, aos Arcanae
Imperii, figura conceitual por ele mobilizada para pensar tal questão.
PALAVRAS-CHAVE: Política. Magia. Segredo.
O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas
Bruno Tadeu Salles
Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição do feudalismo se revelou
um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia e norte-americana. A partir do grande
volume de interpretações e de escritos sobre o tema, publicados na primeira década do século XXI,
12
propomos uma síntese das opiniões e das abordagens possíveis. Modo de produção, imaginário e
forma de governo foram apenas algumas qualidades que abordagens jurídica, culturais, econômicas,
sociais e – porque não? – políticas elaboraram no decorrer dos séculos XIX e XX sobre o
feudalismo. Do mesmo modo, a amplitude das fronteiras dessas conclusões teria sido expandida.
Falar-se-ia de feudalismo desde o Japão dos séculos XV e XVI até a América Portuguesa. A
despeito de sua amplitude e de seu caráter controverso e pouco consensual, segundo Alain Guerreau
(2002), ele era o único conceito capaz de conceber as sociedades ditas francesas dos séculos XI e
XII como um sistema, interligando aspectos jurídicos, culturais, econômico, sociais e – porque não?
– políticos. Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as
especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do
dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências senhoriais, a
nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais no complexo sistema
dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas particularidades? Neste ponto,
mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas sobre o poder senhorial dos séculos
X, XI e XII como coordenada fundamental da presente revisão historiográfica.
PALAVRAS-CHAVE: Dominium/Senhorio. Feudalismo. Historiografia.
O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política
André Luis Pereira Miatello
Neste artigo, discutimos o conceito de sociedade no período medieval, propondo o uso menos
anacrônico do termo latino ecclesia para indicar a simultaneidade dos aspectos políticos e religiosos
durante a chamada Idade Média. Questionamos os limites dos estudos historiográficos que partem
do pressuposto de um Estado reificado em sua forma nacional, liberal e laica como categoria de
análise de outros períodos da história; tal equívoco está na base do recorrente preconceito em
relação à história medieval que, por ser desprovida dos critérios da razão de Estado, passa a ser
considerada vítima de um dogmatismo religioso que impediu a emergência do político. Esperamos
reavaliar essas categorias e propor uma chave de leitura mais apropriada.
PALAVRAS-CHAVE: Igreja. Estado. Cristandade.
13
APRESENTAÇÃO
Entre os dias 29 e 30 de Setembro de 2011, o Núcleo UFMG do Laboratório de
Estudos Medievais (LEME), coordenado pelo Prof. Dr. André Pereira Miatello, organizou o
Workshop “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil”. Durante dois dias,
alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas
Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) apresentaram resultados de suas
pesquisas em curso. Esses trabalhos se encontram reunidos nesta publicação, com o apoio da
Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), do Programa de Pós-Graduação em
História e do Departamento de História da UFMG. Além das sessões de comunicação de
Iniciação Científica, o evento contou ainda com quatro mesas-redondas, das quais
participaram pós-graduandos e professores, com os seguintes temas: “Idade Média e
historiografia”; “Justiça, violência e resolução de conflitos na Alta Idade Média”; “Realeza e
poder público na Baixa Idade Média” e “Ecclesia e Sociedade cristã no Ocidente medieval”.
Esse encontro constituiu um bom indicador de algumas transformações pelas quais passaram
os estudos medievais no Brasil nos últimos anos: diversificação temática, retorno em força da
história política e fortalecimento de grupos de pesquisa estruturados em rede a partir das
universidades públicas. “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil” é um marco
na ampliação do LEME para além dos seus núcleos originais, da USP e da Universidade
Estadual de Campinas (UNICAMP), ambos criados em 2005. É também uma etapa
importante na consolidação dos estudos medievais na UFMG: o número, mas, sobretudo, a
qualidade de trabalhos apresentados, demonstram o interesse despertado pela História
Medieval entre os alunos de Graduação e de Pós-Graduação daquela universidade. Um
segundo encontro está previsto para ocorrer em outubro de 2012, o que mostra que a iniciativa
se inscreve numa visão de longo prazo que pretende situar a UFMG de maneira duradoura na
paisagem dos estudos de História Medieval no Brasil.
Um dos aspectos mais importantes dos trabalhos aqui reunidos é a sua diversidade.
De um ponto de vista cronológico, eles cobrem praticamente todo o período que chamamos de
Idade Média e que vai do século VI ao século XIV. Esses trabalhos também são construídos a
partir de uma grande gama de fontes: testamentos, epístolas, cânones conciliares, polípticos,
crônicas e histórias, leis e editos reais, vidas de santos e poemas. Mesmo a historiografia e os
relatórios de escavações arqueológicas são utilizados como “documentos”. As questões
colocadas a esses textos pelos autores são igualmente variadas. Há aquelas de cunho
14
eminentemente historiográfico: em que medida a arqueologia funerária contribuiu para a
construção de uma identidade étnica franca (Bruna Bengozi)? De que maneira as críticas à
ideia de “mutação feudal” permitiram uma reavaliação da Ordem Senhorial dos séculos XI e
XII (Bruno Salles)? Outras questões colocadas pelos autores mobilizam tipos específicos de
fontes buscando responder à questão geral, mas não menos legítima, de como essas fontes
permitem um conhecimento da sociedade que as produziu: de que maneira as fontes jurídicas
podem ser úteis para a compreensão da sociedade italiana do século XIV (Letícia Schirm)?
Como o conceito de Ecclesia permite uma melhor compreensão da especificidade do
fenômeno político na Idade Média (André Miatello)? De que forma o “segredo” e o “oculto”
se constituíram como dimensões capitais da vida política no final da Idade Média (Francisco
Mendonça Júnior)? Como a santidade pode ser um instrumento útil na compreensão das
relações sociais (Felipe Ribeiro)? Como um poema – no caso, o Sir Gawain and the Green
Knight – pode ajudar na compreensão da história da Gentry inglesa no século XV (Vinicius
Marino)? Alguns trabalhos optam por uma abordagem comparativa das fontes: qual a relação
entre o significado da “paz” nas Histórias, de Raul Glaber, e aquele que encontramos nos
concílios do mesmo período (Diego Reis)? Qual o lugar dos Ordálios nas fontes narrativas e
nos textos normativos da Gália franca (Marcelo Ferrasin)? De que maneira a análise de
testamentos e de cânones conciliares da época merovíngia pode esclarecer o problema da
disputa pelos bens (Karen Rosa)? E há também aqueles trabalhos que se dedicam a investigar
um problema específico num determinado tipo de fonte: é possível uma história da
historiografia da Antiguidade Tardia (Verônica Silveira)? Como a morte e os mortos foram
mobilizados nas Vitae Fratrum, da Ordem dos Pregadores (Aléssio Alves)? Como as epístolas
austrasianas podem ser utilizadas para o estudo das práticas de negociação no Mediterrâneo
do século VI (Edward Loss)?
Apesar da diversidade de objetos e de enfoques privilegiados, bem como dos
múltiplos estágios da pesquisa, os textos que seguem trazem alguns aspectos comuns que
merecem ser destacados. Nenhum dos autores acredita ser o primeiro a pesquisar seu tema.
Todos situam as suas pesquisas a partir da evocação e, muitas vezes, da discussão das
correntes historiográficas que ajudaram a conformar o objeto que se pretende investigar. Além
disso, há uma preocupação conceitual digna de nota. Os conceitos utilizados são explicitados,
discutidos e submetidos, na maior parte do tempo, a um questionamento fundamental: quais
os limites do seu uso no campo da reflexão histórica? Destacaria também uma preocupação
comum com as sociedades nas quais os textos estudados foram produzidos. Podemos observar
15
nos trabalhos aqui reunidos que o diálogo entre os diversos tipos de fontes leva em conta as
distintas condições de sua produção e, algumas vezes, de sua circulação. Isso é feito, no
entanto, sem nenhuma adesão a uma leitura determinista.
Finalmente, não poderia deixar de mencionar o quanto o convite para redigir esta
apresentação possui um significado especial para mim. Foi na UFMG que comecei a estudar
História Medieval, inicialmente como aluno de Iniciação Científica, em 1993, e,
posteriormente, em 1996, como aluno de Mestrado, sob a orientação do Professor Daniel
Valle Ribeiro. A pesquisa em História Medieval, naquele momento, ainda contava com pouco
respaldo institucional, isso sem contar as dificuldades que se apresentavam àqueles que
pretendiam seguir esse caminho: dificuldade de acesso às fontes, bibliotecas com bibliografia
defasada, pouca interlocução entre os pesquisadores da área no Brasil e com os colegas no
exterior. Desde então, importantes e positivas transformações ocorreram: a criação da
Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), a multiplicação dos grupos de
pesquisa na área, dos Grupos de Trabalho em História Medieval no seio da Associação
Nacional de História (ANPUH), a criação de revistas especializadas, a renovação dos acervos
das bibliotecas nacionais, o aumento do número de publicações de autores brasileiros. O livro
que aqui se apresenta é o produto desse novo cenário acadêmico.
Marcelo Cândido da Silva (USP)
16
AS DISPUTAS PELOS BENS ECLESIÁSTICOS NA GÁLIA MEROVÍNGIA
(SÉCULOS VI-VII)
Karen Torres da Rosa1
1 Introdução
A recente discussão em torno dos bens na Alta Idade Média foi estabelecida levando-
se em conta sua relação com o poder. É a intensa circulação desses bens na sociedade que
apresenta o poder daqueles que os detêm. Essas ideias só puderam ser desenvolvidas a partir
da metade do século XX, quando a historiografia passa a discutir os pressupostos modernos
de que o poder só poderia ser adquirido pela autoridade pública. Nessa época, os historiadores
passam a pensar na relação entre propriedade e Igreja2
. Assim, foi possível, juntamente com
os estudos realizados por meio do auxílio dos documentos eclesiásticos3
, perceber uma
questão pertinente ao estudo das estruturas de poder do período: a ambigüidade das relações
entre os bens dos bispos e das igrejas. Na Gália dos séculos VI e VII, essa questão é bastante
confusa para o historiador que, ao analisar os documentos provenientes deste lugar e período,
encontra divergências e semelhanças.
Esta apresentação se propõe, portanto, a compreender se os bens dos bispos
pertenciam ao patrimônio da Igreja ou se havia uma separação clara entre eles, e como essa
relação era tratada pelos textos normativos. Poderá ser notado que havia um conflito entre os
bispos e as igrejas pela aquisição dos bens eclesiásticos. Nesse sentido, resta discutir como e
porque esse conflito acontecia.
Os trabalhos dos historiadores até a metade do século XX, que se dispuseram a
compreender a questão dos dons e das trocas (ambos sendo formas de circulação de bens)
(BLOCH, 1968: 106-114), eram influenciados pelos ideais do evolucionismo do século XIX
1
Graduanda em História pela Universidade de São Paulo, bolsista pelo programa de auxílio à Iniciação
Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisadora do Laboratório de
Estudos Medievais (LEME). E-mail: karentorres@gmail.com.
2
A fim de exemplificação, há dois trabalhos importantes publicados pela Mélanges de l’École française de
Rome que tratam da transferência patrimonial como uma forma de poder relacionada, em grande parte, à
Igreja: Sauver son âme et se perpétuer : transmission du patrimoine et mémoire au haut Moyen Âge
(2005) e Dots et douaires dans le haut Moyen Âge (2002).
3
Os historiadores passam a ter interesse em utilizar as coleções de documentos e cartulários (títulos de
propriedade) monásticos e eclesiásticos que até este momento não eram utilizadas sistematicamente por eles.
Isso ocorreu, em grande medida, devido à influência da busca pela história social, em detrimento da história
política (ROSENWEIN, 1999: 563-575).
17
e, por isso, tinham a perspectiva de que havia uma diferença dos níveis das trocas, sendo o
mais elevado o comércio cuja finalidade era a procura do lucro. (DEVROEY, 2003: 175)
Algumas mudanças nesses estudos relacionados aos bens tendem a aparecer em
meados do século XX devido à influência da Antropologia nos estudos sobre a Idade Média.
Aparentemente, esses historiadores foram influenciados, e alguns o são até os dias de hoje,
pelo sistema de dom e contradom (don-échange ou gift-giving) apresentado pelo antropólogo
Marcel Mauss (1988), cuja primeira edição é de 1923. Muitos historiadores passaram a
utilizar tal sistema somente a partir dos anos 19504
, como uma forma de aproximar os estudos
sobre os bens ao campo das relações sociais. Entretanto, esse sistema criado por Mauss é
discutido e debatido dentro do próprio campo da Antropologia, como acontece por meio de
Alain Testart (2001). Segundo este antropólogo, o que separa uma troca de um dom é o
direito proveniente dessas formas de circulação. Se houver o direito de exigir uma
contrapartida, é uma troca; se não, é dom. Mesmo que o dom seja seguido de um contradom,
este não é obrigatório e, portanto, o doador não terá nenhuma legitimidade para exigi-lo.
(TESTART, 2001: 719-720) No campo historiográfico, também há aqueles que, como Eliana
Magnani, acreditam que a Antropologia não é necessária para o estudo do dom. Nesse caso,
critica aqueles que utilizaram o modelo de Mauss para estudar a Idade Média e argumenta que
o teriam feito de forma inadequada, sendo obrigados a adaptar os resultados obtidos a este
quadro teórico (MAGNANI, 2002: 309).
Entre os bens de circulação, é importante não perder de vista a propriedade, pois,
como Jean-Pierre Devroey afirma, “a terra é o principal sinal de riqueza e poder social”
(DEVROEY, 2003: 257). Ela é discutida pelos historiadores em vários aspectos, como os
direitos do proprietário sobre a terra, a possibilidade de alienação, a transmissão por herança
ou por outros meios, etc. Para Devroey, a noção de propriedade, encontrada nos documentos
como dominium, foi herdada do direito romano e possui uma série de dificuldades de
interpretação para o período medieval. O autor admite que outras palavras encontradas nos
documentos como villa, res, locus, não tinham precisão alguma, o que dificulta bastante a sua
interpretação (DEVROEY, 2003: 257-258 e 263).
4
Nesse sistema prevalece a obrigatoriedade do dom (doação feita pelo indivíduo a outro indivíduo ou instituição,
em uma sociedade situada fora do sistema industrial) e do contradom. Um dom poderia ser feito por diversos
motivos, entre eles, há a preocupação em confirmar a relação de família ou de construir ligações intertribais,
entretanto o beneficiário tinha o dever de devolver um contradom e assim por diante. Desse modo, esse sistema
apresenta o caráter social das doações, utilizado por medievalistas como Philip Grierson e Georges Duby para
explicar a natureza da economia na Alta Idade Média. (DEVROEY, 2003: 175-178; ROSENWIEN, 1989: 125-
128; CURTA, 2006: 671-673).
18
Em outra análise da questão da propriedade, Susan Reynolds nota que a concepção de
propriedade privada na Alta Idade Média não é pertinente, pois se refere a ideias que não são
encontradas no período. Não havia uma distinção clara entre público e privado, o que torna
fraca a distinção entre propriedade e governo, por exemplo (REYNOLDS, 1996: 51-53 e 61).
Segundo a autora, a transmissão de terra acontecia nos povos que ocuparam a região da Gália,
mesmo antes do período merovíngio, por meio de dotes, doações e heranças testamentárias.
Entretanto, nesse período houve uma multiplicação da alienação de propriedades nesta região
que causava tensões entre o proprietário e seus herdeiros. Os documentos mostram que esse
aumento estaria associado a dois tipos de práticas: as testamentárias romanas e as doações à
Igreja (REYNOLDS, 1996: 75-77).
Nota-se a importância das terras para a circulação de bens no período por meio da
frequência do conflito gerado em torno dessa transferência, pois essas terras proporcionariam
poder e riqueza aos seus detentores. Segundo a historiadora Régine Le Jan, esses conflitos dão
margem a duas concepções de propriedade: uma em que há a transferência completa e
definitiva da propriedade e de todos os direitos do doador ao beneficiário; e outra em que se
transfere o dominium sobre um bem, conservando os direitos sobre ele (LE JAN, 1999: 960-
961).
2 A aquisição de bens pelas igrejas
As doações de bens à Igreja poderiam ser feitas por meio das doações pro anima5
,
mais populares no final do período merovíngio, assim como por outras formas de doações de
bens à Igreja que tinham em vista a provisão dos pobres, como a esmola e os testamentos. O
testamento no período merovíngio também tinha a preocupação com a salvação da alma do
testador, pois, como propõe Josiane Barbier, ele era um ancestral daquela doação pro anima
(BARBIER, 2005: 20-21).
Desse modo, os bispos na Alta Idade Média trataram de apresentar nos cânones
conciliares (resumos das decisões tomadas pelos bispos sobre os rumos da Igreja) como a
assimilação dos bens pela Igreja é feita em função dos pobres:
Que não seja permitido a ninguém conservar, alienar e remover os bens e recursos
atribuídos legalmente, sob uma forma ou outra de esmola, às igrejas, monastérios e
5
Essas doações pro anima eram como um comércio espiritual com Deus, ou seja, eram atos de caridade ou
esmolas doadas em busca da recompensa na forma de salvação da alma. (CURTA, 2006: 674).
19
hospícios. Que aquele que o tenha feito, condenado pelas sentenças dos antigos
cânones como assassino dos pobres, seja mantido afastado dos limites da igreja até
que seja restaurado aquilo que foi tomado (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:
308-309, grifo nosso, tradução da autora)6
.
Neste cânone 13 do Concílio de Orléans V de 549 duas informações são importantes
para o tratamento dos bens eclesiásticos: as formas legais de atribuição de bens às instituições
religiosas e a preocupação com a preservação desses bens, representada pela punição dada
àquele que fizesse uso dos bens da igreja em seu benefício, chamado de “assassino dos
pobres” (necatores pauperum).
Vê-se, por exemplo, que no cânone 25 do concílio de Tours II (567) os bens dos
bispos são considerados como bens da Igreja. Isso acontece devido à proteção dada aos bens
episcopais pelo cânone contra os “assassinos dos pobres”. Há também neste cânone o trecho
“que elas (as propriedades dos bispos) também pertençam à igreja” (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 384-387) em que se percebe que as propriedades dos bispos faziam
parte da igreja e eram administradas por eles. Esse foi um meio encontrado pelo episcopado
para escapar, juntamente com a Igreja, das usurpações que poderiam ocorrer do seu
patrimônio.
No entanto, o já citado Concílio de Orléans V (549) mostra a preocupação do rei
Childeberto I em manter o bispo da igreja de Lyon sem acesso aos bens do hospício fundado
pelo rei para que não houvesse usurpação dos mesmos.7
Isso mostra que o invasor, o
“assassino dos pobres”, poderia ser alguém de dentro da própria Igreja. (ROSENWEIN, 1999:
42-43) Nesse sentido, os bens dos bispos seriam desvinculados dos bens das igrejas, de modo
que aqueles poderiam ser considerados usurpadores dos bens eclesiásticos.
A partir dessa breve discussão, nota-se claramente uma contradição em quem seriam
os proprietários dos bens eclesiásticos: se seriam os bispos ou a instituição. Esta angústia,
criada pelas primeiras leituras realizadas, foi o ponto inicial para o desenvolvimento desta
pesquisa que utiliza dois tipos de documentos: os testamentos e os concílios - ambos do
período merovíngio. Os testamentos, fonte da expressão da vontade do testador após sua
6
“Qu’il ne soit permis à personne de retenir, aliéner et soustraire les biens et ressources attribués légalement,
sous une forme ou l’autre d’aumône, aux églises, aux monastères ou aux hospices. Que quiconque l’a fait,
condamné qu’il est par les sentences des anciens canons comme assassin des pauvres, soit tenu éloigné du
seuil de l’église jusqu’à ce qu’il ait restitué ce qui a été pris on retenu”. Concílio de Orléans V (549), c. 13.
7
“De tudo o que foi ou será atribuído ao dito hospício, seja bens ou pessoas, [...] que o bispo da igreja de Lyon
jamais se atribua de nada pessoalmente e não transfira nada à propriedade da igreja”. “De tout ce qui a été ou
sera attribué audit hospice en fait des biens et des personnes, [...] que jamais l’évêque de l’église de Lyon ne
s’attribue rien personnellement ni ne transfère rien à la propriété de l’église”. Concílio de Orléans V (549), c.
15. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 310-313, tradução da autora).
20
morte, são importantes para verificar como se dá a relação do próprio bispo com seu bem. Já
os textos conciliares tinham por objetivo resolver problemas hierárquicos, doutrinários e
disciplinares. Em um estudo sobre o desenvolvimento da legislação da Igreja, Kenneth
Pennington apresenta que os concílios acabavam limitando a liberdade do bispo para governar
sua igreja, limitando por consequência sua autoridade. Essas normas e procedimentos, em
geral, deveriam ser seguidos por todas as igrejas locais, as quais os concílios abrangiam
(PENNINGTON, 2007: 389-390).
Essas características podem ser percebidas ao longo da maior parte dos cânones
conciliares merovíngios. Há no concílio de Épaone uma demonstração da preocupação do
episcopado com a obediência dessas normas. Este concílio foi reunido para organizar a igreja
do reino burgúndio em 517, logo depois da ascensão do príncipe Sigismundo (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 93). Seus cânones, entretanto, são retomados em concílios posteriores
no reino franco. O último cânone deste concílio mostra que as decisões foram tomadas em
comum acordo e sob a inspiração divina e que se um dos santos bispos que confirmaram por
sua assinatura pessoal os presentes estatutos se afastar destes ao negligenciar sua observação
integral, que ele saiba que será tido como culpado ao julgamento de Deus e de seus irmãos
(GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 120-121). Dessa forma, os 24 bispos que assinaram
esse concílio concordavam com o que estava aí escrito. O cânone 12 do referido concílio,
também restringe o poder do bispo, pois declara que nenhum bispo teria o poder de vender os
bens de sua igreja sem a permissão de seu metropolitano (GAUDEMET; BASDEVANT,
1989: 106-107).
Será feito, desse modo, um diálogo entre os dois tipos de fonte do período merovíngio
para verificar sua pertinência no estudo da ambiguidade entre os bens eclesiásticos e
episcopais. Esses documentos apresentam o conflito causado entre os bispos e a entidade da
Igreja com a finalidade de adquirir os bens eclesiásticos. Aqueles utilizados nesta pesquisa
têm como base dois testamentos episcopais (de Cesário de Arles e de Bertrand de Mans), com
uma margem temporal de aproximadamente cem anos entre eles, e alguns concílios,
realizados próximos às datas dos testamentos. Assim, poderão ser observadas suas influências
e até mesmo sua validade como textos que estabelecem algum tipo de norma.
3 Os bispos e os bens eclesiásticos
21
Os bispos, por serem chefes da Igreja, tinham a função de administrar suas
propriedades. Assim, como ressalta Susan Wood, pode ser observado nos cânones conciliares
que essas propriedades eram inalienáveis, ou seja, havia a preocupação com a proteção de
bens e patrimônios eclesiásticos8
. Isso aconteceu devido, principalmente, ao aumento das
doações de bens às igrejas, crescendo o número de suas propriedades.
Para Barbara Rosenwein, a questão da unidade eclesiástica suscita a problemática em
torno da distinção entre o patrimônio das dioceses e dos monastérios. Os bispos poderiam
usurpar os bens monásticos, ignorando a distinção entre as propriedades de sua catedral e de
seus monastérios diocesanos (ROSENWEIN, 1999: 568-569). Há, portanto, dois modos de
alienação patrimonial por parte dos bispos: dos bens eclesiásticos aos seus bens pessoais; e
dos bens eclesiásticos de outras instituições (como os monastérios) aos bens de sua igreja.
Os cânones conciliares tratam, na maioria dos casos, da alienação causada pelos reis e
pela elite secular. No entanto, também pode ser observada certa preocupação em relação aos
próprios bispos. Isso ocorre mais freqüentemente nos concílios da primeira metade do século
VI, pois corresponde ao período de aumento das doações às igrejas. Neste caso, o Concílio de
Orléans I (511) realizado no reino franco é exemplar. Há neste concílio dois cânones que se
referem à alienação dos bens doados às igrejas. Os cânones 14 e 15 mostram que os bispos
retêm metade das ofertas feitas pelos fiéis, sendo que a outra metade pertenceria ao clérigo,
mas que todos os bens deveriam permanecer sob a autoridade dos bispos. (GAUDEMET;
BASDEVANT, 1989: 81) Esses cânones apresentam advertências aos bispos sobre o modo
como eles devem gerir os bens e quais são seus limites.
[...] dos bens depositados sobre o altar como oferenda dos fiéis, o bispo retém para
ele a metade, a dividir segundo o posto, as terras permanecem, para as necessidades
gerais, sob a autoridade dos bispos (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 81,
tradução da autora)9
.
8
Mesmo os monastérios fundados por bispos, como o de Cesário de Arles, não eram previstos como uma
propriedade episcopal e, por isso, eram proibidos de serem alienados. (WOOD, 2006: 9-10 e 199). Essa
inalienação das propriedades eclesiásticas é encontrada, por exemplo, no cânone 13 do Concílio de Orléans III
(538): Quanto à interdição feita aos bispos de alienar as parcelas de terra e outros bens da igreja, ou de os
anexar por contratos inúteis, que sejam mantidas as disposições dos cânones precedentes: que não seja
permitido alienar ou anexar inutilmente por nenhum contrato os bens da igreja [...]. “Quant à l’interdiction fait
aux évêques d’aliéner des parcelles de terre et d’autres biens de l’église, ou de les engager par des contrats
inutiles, que soient maintenues les dispositions des précédents canons : qu’il ne nous soit pas permis d’aliéner
ou engager inutilement par aucun contrat les biens de l’église. […]”. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989:
243, tradução da autora).
9
“[...] des biens déposés sur l’autel comme offrande des fidèles, l’évêque retienne pour lui la moitié, à se
répartir selon le rang, les terres demeurant, pour les besoins généraux, sous l’autorité des évêques”. Concílio
de Orléans I (511), c. 14.
22
Ainda é possível citar dois outros concílios que possuem cânones referentes à disputa
pelos bens eclesiásticos. O de Carpentras (527) foi reunido pelo bispo de Arles, Cesário, e
possui apenas um cânone promulgado que tende a proteger o patrimônio eclesiástico contra as
pretensões excessivas de alguns bispos. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 144-145)
Enquanto o Concílio de Orléans III (538) retoma, com relação à interdição feita aos bispos de
alienar os bens das igrejas, as disposições dos cânones precedentes. Assim, nota-se que, pelo
menos durante esse período, os concílios retratam uma coerência sobre essa disputa pelos
bens eclesiásticos.
Nesse contexto, em que há a denúncia da alienação dos bens da Igreja por parte dos
bispos realizada por meio dos concílios, o bispo Cesário, ao morrer na metade do século VI,
deixa um testamento com o que ele deseja que seja feito após sua morte (COURREAU;
VOGÜÉ, 1994: 360-397).
No começo do testamento, Cesário se preocupa em justificar o motivo que o levou a
redigi-lo, o qual será o problema central do testamento: ele quer que as freiras do monastério
que ele mesmo fundou sejam beneficiadas com os bens pertencentes à Igreja (COURREAU;
VOGÜÉ, 1994: 360). Acredita que, assim como a Igreja garante ajuda aos estrangeiros e
indigentes pela sua bondade ou porque tal atitude lhe convém, ela também deveria ajudar
outras instituições eclesiásticas10
, como o já citado mosteiro, pois as freiras estão a serviço da
obra de Deus. Para isso, Cesário coloca-se como parte da Igreja, já que não possui bens
próprios, ou seja, não possui bens advindos de sua família para fazer doações pessoais, além
de invocar o sucesso que teve ao duplicar o patrimônio de sua igreja e ao conseguir imunidade
fiscal para a mesma.
[...] quantos dos meus cuidados fizeram crescer o patrimônio da Igreja até vós: ele
quase dobrou. Além disso, é por minha modesta pessoa que o Deus de misericórdia
também nos concedeu de sermos isentos da maioria dos impostos […]
(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 390-391)11
.
10
“Se, em sua bondade, a Igreja tem o costume de fazer, como convêm, generosidades para socorrer os
estrangeiros e os indigentes, quanto mais quando se apresenta a ocasião ou a obrigação de conceder alguma
coisa aos santos que temem a Deus, ela deve abrir todo seu grande coração cheio de misericórdia e de
bondade”. “Si, dans sa bonté, l’Église a coutume de faire, comme il sied, des largesses pour secourir les
étrangers et les indigents, combien plus, quand se présente l’occasion ou l’obligation d’accorder quelque
chose à des saints qui craignent Dieu, doit-elle ouvrir tout grand son cœur plein de miséricorde et de
bonté” (COURREAU; VOGÜÉ, 1994, p. 380-381, tradução da autora).
11
“… combien mes soins ont fait grandir le patrimoine de l’Église jusqu’à toi: il a presque doublé. En outre,
c’est par ma modeste personne que le Dieu de miséricorde nous a aussi accordé d’être exempts de la plupart
des impôts …”. Esse é um dos motivos por que Cesário acredita que ele teria legitimidade para administrar os
bens eclesiásticos, legando-os a outras instituições que não fosse a própria Igreja. Isso porque o mosteiro não
fazia parte da Igreja.
23
Os herdeiros presentes em seu testamento são nomeadamente o monastério de Saint-
Jean e o bispo de Arles, seu sucessor. Dessa forma, o testamento é destinado, em sua maior
parte, à leitura do seu sucessor que terá a função de prover o monastério, principalmente por
meio de doações de terras feitas durante a vigência de Cesário no episcopado, ou seja, ele
pede a seu sucessor apenas a confirmação desses atos. Como uma forma de convencê-lo,
Cesário exalta alguns de seus feitos no episcopado ou justifica outros, como no trecho em que
diz que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao monastério não prejudicariam a
Igreja e não eram feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam
ajudando na conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e
trabalhariam por esta obra. Essa passagem seria também uma resposta à crítica do papa com
relação às vendas dos bens da Igreja ao mosteiro (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 365-366).
Graças a Deus, de fato nós não vendemos sem discernimento nem justiça os bens da
Igreja por venda direta a quaisquer seculares, mas somente aquilo que era sem lucro
para a Igreja e sem denúncia (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da
autora)12
.
Essa preocupação relacionada à justificativa de seus atos pode representar, em certa
medida, um diálogo com os cânones conciliares promulgados no período. Cesário, ao
justificar o motivo porque faz as transferências patrimoniais de bens que não lhe pertencem,
acaba agindo de acordo com os cânones. Em uma passagem dirigida ao seu sucessor, em que
Cesário pede que as doações feitas de bens da Igreja para o monastério sejam mantidas após
sua morte, este mostra que essas doações foram feitas com o consentimento e a assinatura dos
seus santos irmãos, ou seja, de outros bispos. Isso justifica que a autorização da doação era
feita por meio do consentimento de outros bispos13
.
É importante salientar que Cesário participou do Concílio de Agde e,
consequentemente, da elaboração de seus cânones. Assim, temos uma relação entre estes
cânones e o testamento redigido por Cesário, o que também justifica as precauções
encontradas ao longo do testamento. Os dons feitos ao monastério são apresentados como
operações de interesse eclesiástico, ou seja, os cânones reconheciam positivamente a
12
“Grâce a Dieu, en effet, nous n’avons pas cédé sans discernement ni justice des biens d’Église par vente
direct à des séculiers quelconques, mais seulement ce qui était sans profit pour l’Église et de nul rapport.” O
bispo quer mostrar que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao mosteiro não prejudicariam a Igreja
e não seriam feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam ajudando na
conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e trabalhariam por esta obra.
13
“Que estas almas santas e ocupadas com Deus mantém a perpetuidade aquilo que nós lhe doamos com o
consentimento e a assinatura de nossos santos irmãos”. “Que ces âmes saintes et occupées de Dieu gardent
donc à perpétuité ce que nous leur avons donné avec le consentement et la signature de nos saints frères”
(COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da autora).
24
transmissão desses bens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 367-370). Quando Cesário fala, no já
citado trecho, que as doações dos bens da Igreja ao mosteiro eram feitas, pois estes bens não
eram úteis ou vantajosos a ela e que ele tinha o consentimento e a assinatura de outros bispos,
ele está se remetendo ao cânone 7 do Concílio de Agde. Este cânon autoriza o bispo a
emprestar os bens fundiários que são menos úteis à Igreja (COURREAU; VOGÜÉ, 1994:
388-389).
Apesar de este cânone apresentar um meio do bispo decidir sobre o futuro de um bem
eclesiástico, alguns cânones do Concílio de Agde de 506 (c. 33) e do Concílio de Épaone de
517 (c. 17), que tratam diretamente dos testamentos episcopais, reprovam o ato dos bispos de
alienar bens eclesiásticos a terceiros que não sejam à sua Igreja. Caso esta alienação indevida
aconteça, o testador deve reparar com sua fortuna pessoal ou de seus herdeiros. Como Cesário
não possui fortuna pessoal, já que prega a pobreza como forma de salvação da alma, ele
justifica suas alienações por meio do seu feito de ter dobrado o patrimônio da Igreja, bem
como ter obtido para ela uma grande imunidade fiscal. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 370-
371) Neste exemplo vê-se claramente a separação existente entre os bens do bispo e os bens
eclesiásticos, que são administrados pelos bispos, mas que devem obedecer às normas
promulgadas nos concílios, no período merovíngio.
Nesse sentido, é visto que essa separação gera um conflito entre o bispo que almeja
uma autonomia com relação às doações feitas por este por meio de testamento e a Igreja,
representada pelos bispos participantes dos concílios, que não permite a alienação. O já citado
cânone 17 do Concílio de Épaone também apresenta este conflito. O cânone diz que se um
bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que pertence à propriedade da Igreja, este ato
será nulo, a menos que ele o compense com um bem próprio cujo valor seja ao menos igual ao
daquele14
. Ou seja, o bispo não tem autoridade para alienar os bens eclesiásticos, como dito
anteriormente, o que nos faz crer que Cesário utilizou dos próprios cânones para fazer valer a
sua vontade após a morte.
No entanto, não basta saber, com base no testamento, que o comportamento dos bispos
em relação aos bens eclesiásticos é submetido às normas promulgadas nos cânones conciliares
apenas no período da primeira metade do século VI. É necessário verificar se esse panorama
14
Concílio de Épaone, c. 17: Se um bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que provém da propriedade
da Igreja, o legado será anulado, a menos que a compense por um valor ao menos igual tomado de seus
próprios bens. “Si um évêque, em rédigeant son testament, lègue um bien qui relève de la propriété de
l’Église, le legs será nul, à moins qu’il ne le compense par um valeur au moins égale prise sur ses propres
biens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 108-109).
25
permanece até, pelo menos, o século VII, para compreender a ambigüidade entre os bens
episcopais e eclesiásticos e se ela causaria conflitos em torno destes bens.
É válido notar que os concílios têm a necessidade de se adaptar às circunstâncias de
seu tempo presente.15
Assim, entre as preocupações dos bispos nos concílios do final do
século VI e início do VII encontra-se, raramente, alguma relativa à usurpação, ou melhor, à
alienação dos bens eclesiásticos pelos bispos. Existe uma preocupação referente às usurpações
dos bens eclesiásticos, porém, só daquelas feitas por reis, nobres ou laicos, em geral.
No Concílio de Clichy (626-627) há quatro cânones que remetem à relação dos bispos
com os bens eclesiásticos. Eles retomam cânones de concílios realizados no início do século
VI. Em geral, esses cânones referem-se à proibição dos bispos de assimilarem os bens das
igrejas aos seus próprios bens16
, como no cânone 15:
Que os bispos, como prescreveu a antiga autoridade dos cânones, não se permitam
vender as casas ou os escravos da igreja, ou o que quer que seja que pertença à
igreja, nem dispor, por qualquer contrato, para depois de sua morte, daquilo que
vivem os pobres (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 538-539, tradução da autora)17
.
Apesar de este concílio ser elaborado posteriormente ao testamento do bispo Bertrand
de Mans (616), ele pode retratar as necessidades contemporâneas assim como regular aquilo
que ocorria no período em que foi elaborado. Neste caso, essas práticas poderiam ser comuns
no período de Bertrand ou poderiam apresentar uma insegurança da Igreja. De qualquer
forma, é importante notar que esse tipo de preocupação era vigente na época em que Bertrand
redige seu testamento.
Assim como no caso de Cesário, Bertrand tem a preocupação em deixar uma herança
para a instituição religiosa fundada por ele, a basílica Saint Pierre-et-Paul. Entretanto, essa
não é a única questão tratada pelo testamento. Bertrand se dirige, freqüentemente, ao rei
Clotário II, mostrando sua lealdade e fidelidade e também dá ordens expressas do que deve
ser feito com seus bens, destinados, principalmente, à basílica já citada, às igrejas e à catedral
de Mans, entre outros estabelecimentos religiosos, e aos seus sobrinhos (LINGER, 1995: p.
15
No concílio de Paris V (614), os bispos apresentam na introdução que um dos motivos porque se reuniam era
a necessidade de adaptar os antigos cânones conciliares às circunstâncias presentes. (PONTAL, 1989: 205-
206).
16
São os cânones 2, 15, 22 e 24 do Concílio de Clichy. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 531-543).
17
“Que les évêques, comme l’a prescrit l’ancienne autorité des canons, ne se permettent ni de vendre des
maisons ou des esclaves de l’église, ou quoi que ce soit qui appartient à l’église, ni de disposer, par n’importe
quel contrat, pour après leur mort, de ce dont vivent les pauvres”. Concílio de Clichy (626-627), c. 15. Este
cânone remete-se ao cânone 7 do concílio de Agde (506) e aos cânones 7, 12 e 17 do concílio de Épaone
(517).
26
175). Dessa forma, vemos que esse testamento episcopal reintroduz os bens das igrejas na
circulação de mercado, se compararmos com o testamento de Cesário.
Na introdução, Bertrand justifica o motivo porque escreve seu testamento. Segundo o
bispo, o rei Clotário teria permitido que ele transmitisse, por interesse próprio, aos seus fiéis e
próximos os bens que havia herdado de seus pais, obtidos pelos benefícios dados pelo próprio
rei, ou adquiridos por outros meios18
. Essa afirmação de Bertrand se distancia bastante do
testamento de Cesário que em momento algum fala de alguma intervenção real para que
pudesse elaborar seu testamento. Todos os seus bens pertenciam, em primeira instância, à
Igreja e, portanto, o bispo nada poderia fazer para administrá-los após sua morte (conforme os
cânones conciliares), como deseja fazer por meio desse testamento. Todavia, o testamento
apresenta, mesmo que por meio de uma leitura superficial, que o rei possuía poder para julgar
a quem pertenciam os bens. Há uma clara diferença entre os bens episcopais e aqueles
pertencentes à Igreja, porém o próprio bispo não teria poder para administrar aquilo que
possuía, apenas a Igreja tinha esse poder, a menos que o rei interviesse.
Indiretamente, Bertrand faz uma separação entre os bens que já possuía antes de se
tornar bispo, como os bens herdados de seus pais, e aqueles adquiridos já como bispo.
Quando se refere aos bens herdados por ele, utiliza pronomes e verbos na primeira pessoa do
singular (LINGER, 1995: 191, disposição n° 14). Contudo, ao tratar dos bens adquiridos
durante sua permanência no episcopado, Bertrand passa para a primeira pessoa do plural
(LINGER, 1995: 191, disposição n° 11). Estes últimos bens provavelmente pertenciam ao
bispo e à igreja de Mans. Portanto, quando adquiria bens como bispo, não era para a pessoa de
Bertrand que esses bens passariam a pertencer, mas a a sua igreja de origem. O bispo não
tinha propriedade sobre tais bens, como visto na disposição nº 25 do testamento em que este
declara que as vilas que doou à santa igreja pelo testamento ou que foram adquiridos sob sua
gestão permanecessem na posse da igreja.
Nós rogamos ao nosso sucessor e o conjuramos pela Trindade divina que as villae
que eu doei à santa igreja por este testamento ou que foram adquiridas sob a minha
gestão, permaneçam na posse da igreja [...] (LINGER, 1995: 192, disposição nº 25,
tradução da autora)19
.
18
“[...] o altíssimo senhor rei Clotário, [...], doou-me um preceito confirmando de sua mão que ele me atribui a
livre escolha, [...]”. “[...] le très haut seigneur roi Clotaire, […], m’a donné un précepte confirmant de sa
main qu’il m’attribuait le libre choix, […]”. (LINGER, 1995: 190, tradução da autora).
19
“Nous supplions notre successeur et nous le conjurons par la Trinité divine que les villae que moi j’ai
données à la sainte église par ce testament ou qui ont été acquises sous ma gestion, restent en la possession
de l’église …”. O testador mostra que tudo aquilo que adquiriu em sua gestão na igreja de Mans,
27
Um bem importante para Bertrand, presente em várias disposições do testamento, são
as villae que, no entanto, em momento algum são definidas pelo testador20
. Uma justificativa
dessa importância dada às villae seria a de que, neste caso, as villae herdadas eram uma
representação da doação plena da propriedade, não apenas o direito à sua administração.
Por fim, Bertrand elege bispos para serem testemunhas de suas vontades e
transmissores de suas decisões a seu sucessor no episcopado da igreja de Mans, para que elas
não sejam desvirtuadas na sua ausência e possam ser atribuídas como salvação de sua alma.21
Ainda na conclusão faz ameaças, como de excomunhão, lepra, entre outras, a quem não
cumprir sua vontade. Assim, pôde se perceber que a qualificação do testador como
proprietário deve ser questionada por meio deste testamento.
4 Considerações finais
Desse modo, foi visto que há claramente uma distinção entre os bens episcopais e os
bens eclesiásticos, ao menos quando analisados os textos jurídicos elaborados no período
estudado. Ainda foi possível notar que houve confrontos pela propriedade de tais bens
causados pelos próprios religiosos. Os testamentos e os concílios, redigidos no mesmo
período, dialogam entre si na medida em que é apresentado nos dois documentos a
preocupação com a posse desses bens. Apesar de ambos terem sido redigidos pelos próprios
bispos, nota-se essa preocupação é de formas diferentes, e seu uso poderia beneficiar ou
prejudicar o interessado, dependendo da forma como o mesmo documento era utilizado. No
permanecerão em sua posse após a morte de Bertrand. De uma forma indireta, o bispo não permite que outros
reivindiquem esses bens como herança após sua morte. Cesário também apresentou essa preocupação.
20
As villae podem ser uma referência às propriedades em si ou apenas o direto de administrá-las. Em ambos os
casos, o beneficiário teria o dever de administrar a propriedade que ou pertence ao rei ou foi doada por ele.
Por isso, o rei Clotário presenteia Bertrand com tantas villae durante sua vida, aquele precisa de alguém em
quem confia para assegurar as funções sociais de tal região. Portanto, o bispo, ou qualquer um que recebe uma
dessas villae, torna-se uma espécie de administrador público. O benefício que estes possuem por realizar tal
serviço ao rei é o de possuir uma renda por meio da coleta dos impostos de tal propriedade. (LINGER, 1995:
181-182).
21
Josiane Barbier apresenta uma discussão sobre o interesse salvífico presente nos testamentos merovíngios
que, por isso, fariam parte de uma transição entre os testamentos romanos e as doações pro anima que passam
a surgir no período franco. Essas doações teriam uma finalidade única de salvação da alma tendo, assim, mais
facilidade de promover integralmente doações às Igrejas, enquanto nos testamentos haveria mais dificuldades.
(BARBIER, 2005: 7-79) Contudo, no caso específico dos testamentos episcopais essa afirmação da autora não
procede completamente, pois por meio desta análise pôde se perceber que não são todos os testadores que
estão preocupados com a salvação da alma (como o testamento de Bertrand) e que há testamentos, como o de
Cesário, em que o bispo faz doações apenas à Igreja, evitando que seus familiares reivindiquem alguma
herança. Esta última observação contradiz a autora quando esta afirma que os testamentos devem dirigir uma
parte da herança para os familiares mais próximos (herdeiros naturais).
28
caso de Cesário, por exemplo, o bispo conseguiu encontrar nos próprios cânones conciliares
uma maneira de argumentar a favor de suas vontades no testamento, que em tese eram
condenáveis pelos concílios.
Nesse sentido, a presente pesquisa tem como principal objetivo a compreensão dessas
disputas geradas em torno dos bens eclesiásticos pelos bispos e pela entidade eclesiástica. Por
meio do que foi apresentado, já é possível notar que o confronto entre os dois documentos de
caráter normativo apresenta bons resultados referentes à natureza dos bens descritos, apesar
de não serem suficientes para esgotar o tema proposto. A análise dos documentos suscita mais
questões que ainda precisam ser analisadas e discutidas.
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30
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31
“NEGOCIAR A PAZ”: O ENVIO DE LEGADOS FRANCOS AO IMPÉRIO NO
SÉCULO VI – AS EPÍSTOLAS AUSTRASIANAS
Edward Dettmam Loss1
Durante o século XIX – momento de transformação da História em disciplina
acadêmica – a Idade Média tornou-se um lugar privilegiado de interesse dos historiadores.
Preocupados com as prerrogativas do Estado Nacional, vários intelectuais, principalmente
franceses e alemães, buscavam situar no período o momento de nascimento de suas
respectivas nações, ou seja, a busca das origens era a grande tônica de suas produções. Ao
mesmo tempo em que empreendiam esse esforço fundacional, que acabava de certa forma por
valorizar um pouco o período, também lhes cabia a exaltação da superioridade da organização
estatal moderna em detrimento de todas as outras experiências políticas vividas até então.
Esse objetivo fez com que autores como Augustin Thierry (1833) e François Guizot
(1840) – imbuídos da ideia de que a única violência legítima era aquela monopolizada pelo
Estado – produzissem, através da análise de fontes do período, como os escritos de Gregório
de Tours, um quadro da Alta Idade Média marcado pela desordem e pelo caos, fruto de uma
violência descontrolada e, sobretudo, de caráter privado, que seria a clara demonstração da
ausência de um poder público e de estruturas de direito.
Essa ideia de desordem e de violência desenfreada não se restringia ao interior dos
chamados reinos bárbaros, sendo também projetada para a dimensão externa, ou seja, das
relações desses reinos entre si e com o Império Romano do Oriente. É o que encontramos em
trabalhos de ínicios do século XX, como o artigo escrito por Amos Hershey, intitulado: The
history of international relations during antiquity and the middle ages. Obra na qual, o autor
descreve a Alta Idade Média como marcada por violentas e permanentes guerras entre os reis
bárbaros e pela ausência de formas pacificas de negociação e de mediação pelo menos até os
séculos XI e XII, momento do chamado renascimento do direito romano2
.
Tal perspectiva persistiu na historiografia durante um longo tempo, sendo somente
questionada mais sistematicamente a partir da segunda metade do século XX. Nesse
1
Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo. Bolsista de iniciação científica da
FAPESP.
2
“It has been said that ‘international law reached its nadir in the west’ at this period or during the so-called
‘Dark Ages’, between the final disappearance of the Western Empire in 476 and the coronation of
Charlemagne as Emperor of the West by Pope Leo III in 800 A. D. In spite of the pacific teaching of Christ and
the early Fathers of the Church, ‘the history of the wars of Clovis, the hero of orthodox clergy, is the tale of
savage murder and the most hateful treachery’” (HERSHEY, 1911: 922).
32
momento, emergiam, com os processos de descolonização africana, formas de organização
política até então desconhecidas por grande parte da intelectualidade do Ocidente, que
tornavam possível se repensar a influência dos paradigmas do Estado Moderno nas análises
históricas de outros períodos.
Foi também decisiva a aproximação dos estudos históricos com a Antropologia.
Através do contato com as pesquisas sobre a faida africana fundados por E. E. Evans-
Pritchard e de estudos de outros autores, principalmente ligados à Antropologia jurídica
anglo-saxã, os historiadores reviram suas concepções a cerca da prática da vingança, base da
ideia de violência desenfreada medieval (BOUGARD, 2006: 1). Neste sentido, a obra de John
Michael Wallace-Hadrill, The Long-Haired Kings, constituiu um marco. Nesse trabalho o
autor mostrou como a própria realização da vingança na Alta Idade Média seguia parâmetros
e normas estabelecidas pela própria sociedade, não ameaçando, desta forma, a ordem social e
nem as instituições públicas.
Aceitava-se assim que os conflitos entre os dissidentes no interior dos reinos bárbaros
não levavam necessariamente a choques sanguinários, mas passavam por mecanismos de
negociação, de mediação e de arbitragem, mesmo que a violência de alguma forma fizesse
parte deles. Tal perspectiva permitiu também que fosse reavaliada a forma como se
concebiam as relações entre os reinos bárbaros e o Império, que, como exposto anteriormente,
eram marcadas pela ideia de guerra permanente e de ausência de formas pacificas de
negociação.
Desta maneira, surgia um interesse em se entender como se davam essas relações entre
as diferentes entidades políticas independentes do Mediterrâneo e quais eram as suas
características e os mecanismos empregados, já que um cenário de generalização irracional do
conflito bélico não podia mais ser aceito.
Neste processo, uma série de correspondências trocadas entre os principais soberanos
dos séculos VI e VII, que chegaram até nós na forma de compilações epistolares, deixaram de
ser tratadas como exercícios de puro estilo, esvaziadas de conteúdo real – por seus redatores
se declararem imbuídos de aspirações morais elevadas e mencionarem mais a palavra “Paz”
do que “Guerra”3
, algo que destoava da visão que se tinha sobre a violência e a avidez dos
3
Essas compilações seriam, em ordem cronológica, primeiramente as Variae de Cassiodoro (†583), referentes ao
reino Ostrogodo e escritas nas primeiras décadas do século VI, depois as cartas de Avito de Viena (†518), que
tratam sobre o período de governo do rei dos Burgúndios, Sigismundo (†524), também do início do século VI.
Em terceiro lugar, as Epístolas arlesianas, um dossiê de cartas trocadas entre os francos e Bizâncio no
momento da Reconquista de Justiniano, seguidas pelas Epístolas austrasianas, reunidas, ao que tudo indica, nos
anos 590, que serão melhor explicadas adiante, devido à sua posição de destaque nesta pesquisa. Em quinto
33
bárbaros – e passaram a ser consideradas importantes fontes para o estudo das formas de
resolução de conflito entre os reinos bárbaros e o Império no período.
Entre essas compilações epistolares da Alta Idade Média encontram-se as “Epístolas
Austrasianas”, um conjunto de 48 epístolas escritas por reis francos e bispos da Gália e
endereçadas a diversos personagens do Reino Franco e da corte do Império Romano do
Oriente durante o século VI. Preservados através de um cópia manuscrita do século IX – o
Palatinus Latinus 869 – esses documentos foram em parte negligenciados até finais do século
XIX, quando Wilhelm Gundlach fez o primeiro estudo sistemático do conjunto das epístolas,
no qual estimou a sua data de reunião, o século VI, a sua proveniência geográfica, a Austrásia,
e levantou questões sobre a identidade do compilador e do objetivo de criação da coleção
(GUNDLACH, 1888: 377). O autor terminaria por publicar a versão que ainda hoje é
considerada a mais importante dessas fontes, incluíndo-a nos Monumenta Germaniae
Historica, os M.G.H., sob o título de Epistolae Austrasicae. Tal versão teve tamanho impacto
na historiografia que o P. L. 869 seria conhecido e mencionado pelo nome de “Epístolas
Austrasianas” em trabalhos escritos mais de um século após a publicação de Gundlach4
.
Ao analisar a sua composição, percebe-se que apesar dessas epístolas terem sido
organizadas no seu século de criação como uma unidade, a coleção possui uma estrutura
interna bipartide. Por um lado, um conjunto de 24 epístolas (1-24), trocadas entre os bispos da
Gália, restritas à região da Austrásia e cobrindo um espaço temporal de aproximadamente 130
anos, e, por outro, o grupo formado pelos exemplares de 25 a 48, enviados ao Império em
nome dos reis merovíngios, abrangendo geograficamente a Austrásia, o Reino Lombardo e o
Império Romano do Oriente e centrado nas últimas décadas do século VI.
Levando em consideração as mudanças relativas ao ideal de violência na Alta Idade
Média, destacadas anteriormente nesse texto, e a consequente importância dada aos estudos
das formas pacíficas de resolução de conflitos no período, neste artigo buscar-se-á explorar
como as “epístolas dos reis” (DUMÉZIL; LIENHARD, 2011: 69), os exemplares de 25 a 48,
das Epístolas Austrasianas vem sendo utilizadas nas últimas décadas como fontes para o
lugar, a correspondência do papa Gregório o Grande (†604), também do século VI, e em seguida o Codex
visigodo de Oviedo, de inícios do século VII. Tal documentação contém a Segunda vida de São Desidério de
Viena (†608), texto hagiográfico de grande importância no estudo das relações do Reino Visigodo com os
outros reinos. O autor adiciona também a esses seis exemplares, duas outras coleções que considera
problemáticas: a correspondência de Venâncio Fortunato (†609), também do século VI, que possui um estatuto
textual complexo, e o formulário de Marculfo (†558), que teria um alto grau de dificuldade de avaliação e de
datação. (DÚMEZIL, 2011: passim).
4
Como exemplo, citamos o trabalho de Bruno Dumézil e Thomas Lienhard, produzido na primeira década do
século XXI. Cf. DUMÉZIl, LIENHARD, 2011.
34
estudo das práticas de negociação e de troca de legações entre as diferentes unidades políticas
independentes do mediterrâneo no século VI.
Tem-se por objetivo demonstrar que algumas das conclusões tecidas por autores como
Paul Goubert e Bruno Dúmezil em relação a essas práticas podem ser problematizadas através
de uma análise cuidadosa de epístolas dessa coleção. Um exemplo que será dado através do
estudo de caso da epístolas de número XL e XLII.
Comecemos por um dos primeiros trabalhos de análise realizados nessa direção e até
hoje considerado entre os mais importantes sobre as “Epístolas Austrasianas”: o de Paul
Goubert. Em um tomo de sua coleção sobre Bizâncio antes da expansão islâmica, intitulado:
Byzance et l'occident sous les successeurs de Justinien. I- Byzance et les Francs, o autor se
dedica ao estudo das relações entre o Império e os francos.
Nesta obra, Goubert situou as “Epístolas Austrasianas” no contexto da política
ocidental do Imperador Maurício, que tinha como objetivo a expansão da autoridade bizantina
a todo o antigo território do Mare Nostrum do Império romano. Ele identificou que as
“epístolas dos reis” faziam parte das tentativas de comunicação franco-imperial, devendo,
desta forma, ser consideradas fruto de embaixadas cuidadosamente organizadas e trocadas
entre o Reino Franco e Bizâncio com o objetivo último de obtenção da paz e do bom
relacionamento entre a Austrásia e o Império, que, devido a outros conflitos com os Persas e a
presença lombarda na Península Itálica, necessitava da ajuda franca para alcançar seus
objetivos
Partindo dessa constatação, Goubert realiza um estudo preciso da documentação,
enumerando e pondo em discussão o número e o caráter dessas embaixadas, assim como o
papel dessas cartas no interior dessas expedições, cujos itinerários ele faz questão de traçar,
além de estimar os seus possíveis membros5
. O autor ainda destaca a utilização frequente de
bispos e outras figuras eclesiásticas no exercício dessas funções.
Também a partir da análise do conteúdo das epístolas, o pesquisador francês versa
sobre as táticas utilizadas por Bizâncio ao negociar com os reinos bárbaros, como o envio de
dinheiro, a busca de apoio do ascendente papado, o sequestro de pessoas da família real e o
suporte de personagens que reclamam direito ao trono franco6
.
De forma geral, podemos dizer que Goubert sinalizou através de sua análise das
epístolas a existência de uma preocupação sistemática com a organização e o envio de
5
Paul Goubert dedicará cinco capítulos inteiros deste tomo as epístolas austrasianas e a essa análise.
(GOUBERT, 1955: 93-202).
6
Sobre o assunto Paul Goubert se dedica grande parte do seu livro a narrar o caso do usurpador Gundovaldo.
35
legações no século VI, algo salientado pela mobilização de agentes de grande prestígio da
corte austrasiana no papel de legados, pelo grande número de embaixadas enviadas em um
relativamente curto período de tempo e finalmente, pelos recursos empregados na manutenção
desses envios, que, em muitos casos, levavam meses para atingir o seu destino.
Durante mais de 50 anos as considerações de Paul Goubert foram praticamente as
únicas sobre as “Epístolas Austrasianas” e as práticas de negociação entre os reinos bárbaros e
o Império na Alta Idade Média. Tal perspectiva foi retomada e aprofundada recentemente, já
no século XXI, pelo pesquisador Bruno Dúmezil. Em seu artigo Les Lettres austrasiennes :
dire, cacher, transmettre les informations diplomatiques au haut Moyen Âge, o autor define
uma série de aspectos interessantes sobre aquilo que chama de “Diplomacia Merovíngia”
através do estudo dos exemplares das “Epístolas Austrasianas” e da sua comparação com
crônicas bizantinas e francas do período.
A principal característica explorada por Dúmezil diz respeito à função da mensagem
diplomática e do seu componente escrito, a epístola, no interior de uma legação enviada. Para
o autor, o papel do documento escrito em uma embaixada era bastante secundário em relação
ao objetivo da legação. Ele se limitaria a dar credibilidade ao seu portador e a assinalar que
esse recebeu instruções secretas que deveria pessoalmente expor. Desta forma, as epístolas
conteriam apenas elementos gerais sobre o assunto a ser discutido (DÚMEZIL; LIENHARD,
2011: 72).
Tal aspecto secundário para o professor francês faria com que o conteúdo desses
documentos tivesse um caráter bem mais ideológico do que descritivo, tendo por função mais
seduzir e mover o destinatário do que informar minuciosamente sobre as questões tratadas no
envio (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 70).
Uma vez que a legação atingia o seu destino, a epístola teria o seu conteúdo lido em
voz alta diante da corte estrangeira, um aspecto que, para Dúmezil, exigiria a utilização de
uma linguagem cheia de eufemismos nesses textos, que evitasse de qualquer forma causar
indisposições e ofensas entre os dois soberanos que se comunicavam. A presença de vários
elementos formais comuns à todas as “epístolas dos reis” fez com que o autor acreditasse na
existência de padrões chancelerescos que eram seguidos pelos dictatores na composição das
epístolas confiadas aos embaixadores (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 71).
Em um outro artigo seu intitulado Les ambassadeurs occidentaux au VIe siècle:
recrutement, usages et modes de distinction d'une élite de représentation à l’étranger, Bruno
Dúmezil explora os critérios de escolha desses embaixadores e das características que esses
36
deveriam ter. Através de análises prosopográficas dos indivíduos mencionados no corpo das
epístolas como legados, o autor argumenta que esses personagens seriam do mais alto escalão,
jamais de uma qualidade menor do que de Vir Illuster, provenientes das melhores famílias e,
geralmente, com passagem pela escola do palácio.
De acordo com o pesquisador, existiriam três tipos de pessoas que seriam empregadas
em uma legação: 1) Indíviduos da família real – em casos bastante excepcionais; 2) Ofíciais
civis – os mais frequentemente utilizados; 3) Bispos e figuras eclesiásticas importantes
(DÚMEZIL, 2009: 1).
O número de legados mobilizados também seria algo digno de nota. Normalmente,
uma embaixada era composta por dois indivíduos, aumentando esse número de acordo com o
impacto e a importância que se buscava dar ao envio. (DÙMEZIL, 2009: 3)
Devido à variedade de características e à riqueza de detalhes apresentadas até aqui,
pode-se dizer que os trabalhos de Bruno Dúmezil constitui uma grande contribuição para a
análise das “Epístolas Austrasianas” como fontes para o estudo da diplomacia merovíngia.
Deve-se também a ele a exploração da circulação e da influência dessa coleção, enquanto um
modelo de formulários chancelerescos, nas atividades de diplomatas ao longo da Alta Idade
Média, incluindo a própria chancelaria de Carlos Magno.
Passar-se-á agora para a última parte deste texto, na qual gostaria-se de analisar
algumas das afirmações apresentadas pelos autores anteriormente mencionados à luz da
leitura de trechos de alguns exemplares da coleção. Infelizmente, devido ao reduzido tempo
dessa exposição concentrar-se-á na exploração de um aspecto em particular: as afirmações
acerca da linguagem bastante restritiva desse tipo de documentação, que seria marcada pela
presença de eufemismos e de um tom predominantemente elogioso7
.
Na construção de tal argumento Bruno Dúmezil, como visualizamos nas notas de
rodapé de seu texto, utiliza-se das epístolas de número 26, 30, 36 e 37. De fato, esses
exemplares são bastante curtos, com aproximadamente 10 linhas cada, estão repletos de
termos laudatórios aos seus destinatários, e, em relação ao conteúdo, pouco dizem sobre o
objetivo da comunicação, com exceção de indicar que foram designadas instruções aos
embaixadores que os portavam.
7
“Ajoutons qu’étant donné que la lettre est lue en public, toute critique un peu trop ouverte est perçue comme
une agression. [...] Toute franchise étant dangereuse, mieux vaut confier les récriminations à la parole des
ambassadeurs qui s’entretiendront en secret avec le roi. La plupart des lettres officielles savent donc rester les
plus élogieuses possible” (DÚMEZIL, LIENHARDT, 2011: 75-76).
37
Entretanto, chama-se a atenção para a presença na mesma sequência da documentação
referente às “epístolas dos reis”, de exemplares bastante informativos, compostos por mais de
três páginas de texto, como o de número XLII. Escrita pelo imperador Maurício e enviada ao
rei Childeberto II, essa epístola trata de uma reclamação por parte do imperador do não
cumprimento da promessa feita pelo rei da Austrásia de enviar tropas para a expulsão dos
lombardos da Península Itálica. O que impressiona em tal documento, e que destaca-se aqui, é
o tom e a linguagem nele utilizados.
Comecemos pela própria saudação da epístola, na qual se apresentam o destinatário e
o remetente do documento. Encontramos o seguinte enunciado:
EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, O IMPERADOR CÉSAR
FLÁVIO MAURÍCIO TIBÉRIO, FIEL EM CRISTO, GENTIL, MÁXIMO,
BENÉFICO, PACÍFICO, ALAMÂNICO, GÓTICO, ÁNTICO, ALÂNICO,
VANDÁLICO, ERÚLICO, GÉPIDO, AFRICO, PIO, FELIZ, ILUSTRE,
VITORIOSO E TRIUNFADOR, SEMPRE AUGUSTO, AO HOMEM GLORIOSO,
CHILDEBERTO, REI DOS FRANCOS (EPÍSTOLA AUSTRASIANA, nº XLII)8
.
É possível notar que estão associados ao nome do imperador romano todos os títulos
dos povos já conquistados pelo Império, algo que não encontramos em todas as epístolas da
coleção escritas pelo imperador, que frequentemente só citam “do Imperador Romano
Maurício”.
Temos aqui uma clara tentativa de demonstração do poderio do Imperador e de sua
superioridade em relação à figura do rei da Austrásia, que recebe quase que somente o
adjetivo de rei. Esse tom mais agressivo se intensifica ao longo do texto da epístola.
Selecionamos três trechos que enfatizam esse aspecto:
E nos parece estranho se, afirmando ter justa intenção e que é neste ponto provada a
antiga unidade entre a nação franca e o governo romano, Vossa Eminência deu a
impressão de não mostrar até agora nenhum gesto concreto que seja coerente com
a amizade, enquanto as promessas expressas por escrito e confirmadas pela
intervenção de bispos e corroboradas por terríveis juramentos, passado tanto tempo,
não tenham sortido efeito algum (EPÍSTOLA AUSTRASIANA nº XLII, grifo
nosso)9
.
8
“IN NOMINE DOMINI DEI NOSTRI IESU CHRISTI, IMPERATOR CAESAR FLAVIUS MAURICIUS
TIBERIUS, FIDELIS IN CHRISTO, MANSUETUS, MAXIMUS, BENEFICUS, PACIFICUS, ALAMANNICUS,
GOTHICUS, ANTICUS, ALANICUS, WANDALICUS, ERULICUS, GYPEDICUS, AFRICUS, PIUS, FELIX,
INCLITUS, VICTOR E TRIUMPHATOR, SEMPER AUGUSTUS, CHILDEBERTO VIRO GLORIOSO, REGI
FRANCORUM”.
9
“Et mirum nobis videtur si, rectam habere mentem atque priscam gentis Francorum et dicioni Romanae
unitatem esse conprobatam adfirmans, nihil operis usque adhuc amicitiae congruum Eminentia Tua ostendens
visa est, dum in scriptis pollicita atque per sacerdotis firmata et terribilibus iuramentis roborata, tanto
tempore excesso, nullum effectum perceperunt”.
38
E se as coisas estão assim, com qual propósito canseis em vão os vossos legados
particulares, por um espaço deveras amplo de terra e de mar, sem confiar-lhes
respostas, com vanglória e discursos juvenis, que não possuem nenhuma
utilidade? (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII, grifo nosso)10
.
E desejamos que vós, se quiserdes conquistar a nossa amizade, vigorosamente e sem
esitação, examinais cada aspecto e não somente o digais em palavra, mas façais
cumprir virilmente, como se espera de um rei, aquilo que tivésseis dito, e dos
pares espereis a nossa pia benevolência (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII,
grifo nosso)11
.
Nesses trechos, percebemos, através da qualificação por parte do Imperador de que as
atitudes do rei Childeberto II eram vãs e juvenis, que a mensagem é bastante clara: ou o rei
atende as exigências do Imperador ou perde o apoio e a amizade do Império.
Tal constatação é bastante interessante. Através dela podemos pensar em que medida,
ao invés de seguir um padrão tão marcado, necessariamente apaziguador, a linguagem dessas
epístolas não poderia ser mais flexível variando de acordo com a posição de um interlocutor
em relação ao outro, e, principalmente, com as circunstâncias em que eles se encontravam.
Ora, no momento de composição da epístola analisada o Império detinha posse do neto da
rainha da Austrásia, Atanagildo, como refém em Constantinopla. Fator que, acreditamos,
justificaria a mudança no teor da requisição imperial de ajuda militar.
Ainda em relação ao caráter pouco informativo das epístolas sobre o assunto do qual
elas tratavam, ressaltado por Dúmezil e Lienhard nos exemplares que fazem menção às
mensagens a serem entregues oralmente pelos legados ao destinatário, a leitura da epístola de
número XL apresenta alguns elementos interessantes. Também destinada ao rei Childeberto
II e escrita pelo Imperador Maurício, como o exemplar anteriormente analisado, essa epístola
tem por objetivo informar ao rei franco da ação dos comandantes de seu exército na Península
Itálica, enviado para auxiliar o Imperador na expulsão dos lombardos.
A riqueza de detalhes desse exemplar chama a atenção. Nele encontramos a
localização específica de agentes imperiais;
Mas antes que os vossos comandantes entrassem no território da Itália, Deus por sua
misericórdia e pelas suas orações nos fez entrar, combatendo, até Modena, e também
a Altino e a Mântova – combatendo e abatendo as muralhas, de tal modo que o
exército dos Francos pôde tomar conhecimento – com a ajuda de Deus entramos,
10
“Et si hoc ita est, quid per tante spatia terrae atque maris inaniter sine responsu necessarios vestros
legatarios fatigatis, iuvenalis sermonis, qui nihil utilitatis induxerunt, iactantes?”.
11
“Et optamus vos, si amicitiam nostram appetere desideratis, valide atque incunctanter omnia disceptare et
non solum dictionibus enarrare, sed enarrata viriliter, quomodo regem oportet, peragere atque similiter
nostram piam benevolentiam expectare”.
39
apressadamente, para evitar que o nefastíssimo povo Lombardo pudesse se organizar
contra o exército dos Francos, enquanto o homem magnífico Hethin estava a 20
milhas, nos arredores de Verona, e consideramos necessário dirigir-nos a ele sem
esitação, esperando com ele podermos ver de perto e de poder dispor, através de
decisões comuns, sobre o que fosse útil à destruição daquela gente infiel
(EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)12
.
os planos a serem executados em relação aos lombardos;
E já que Autari tinha se enclausurado em Pávia e os outros comandantes e todo o seu
exército tinha se enclausurado em diversos castelos, no tratado estabelecemos o
seguinte: ir, com o exército romano e com os dromones13
- enquanto Hethin estava
em uma outra parte nos arredores (como já dissemos, 20 milhas) - para sitiar Autari
(e, junto a ele, a maior parte da vitória teria sido obtida) e então, enfim, se
tivessemos alguma coisa a dizer (ou seja, fazer) com eles, tudo teria sido dito
primeiro a vós: isso acreditamos que mesmo o poderoso exército dos Francos
quereria fazer (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)14
.
e por fim, o conteúdo de acordos estabelecidos entre a Austrásia e o Império:
Além disso, aquilo que Vossa Glória deve fazer por iniciativa sua, imploramos para
que vós o cumprais: ou seja, que ordenai que os Romanos capturados pelo exército
Franco sejam soltos em vosso mérito e de vossos filhos e netos; pois diversos são os
juramentos presentes nos tratados, incluindo, que os prisioneiros devem ser soltos, e
essa é a intenção de vosso pai, o cristianíssimo imperador, de obter mérito convosco,
dia a dia, pela libertação das almas (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)15
.
A presença desses elementos descritivos minuciosos em exemplares16
da coleção foi
mais um indício que nos levou a refletir sobre a inadequação do estabelecimento de critérios e
normas tão rigorosos para as práticas chancelerescas e para o envio de legados no período. As
12
“Ante vero quam fines Italiae vestri duces ingrederentur, Deus pro sua pietate vetrisque orationibus et
Motennensem civitatem nos pugnando ingredi fecit, pariter et Altinonam et Mantuanam civitatem – pugnando
et rumpendo muros, ut Francorum videret exercitus – Deo adiutore sumus ingressi festinantes, ne gente
nefandissimae Langobardarum se contra Francorum exercitum adunare liceret, Etheno viro magnifico in
viginti milibus prope Veronensi civitate resedente, ad quem necessarium duximus sine mora diregere,
sperantes ab eo ut nos videremus in comminus et quae essent utilia ad delendam gentem perfidam
disponeremus communi consilio”.
13
“Embarcações bizantinas ligeiras e velozes, utilizadas na águas do Pó para atacar a Pávia” (MALASPINA,
2001: p. 290).
14
“Et hoc habuimus in tractatu, quia Autharit se in Ticeno inclauserat aliique duces omnesque eius exercitus
per diversa se castella reclauserat: ut nos cum Romano exercitu et dromonibus – Etheno ab alia parte in
vicino (sicut diximus, in viginti milibus) resedente – ad obsedendum Autharit veniremus (eoque capto maxima
pars fuerat adquaesitam victuriae) et tunc demum, si forte aliqua cum eis loquenda (est ut facienda) essent,
omnia prius ad vestram notitiam differrentur: quam rem et Francorum florentissimus credemus quia facere
volebat exercitus”.
15
“Praeterea quod ex se Gloria Vestra facere consuevit, implenda deposcimus, ut Romanus, quos praedavit
Francorum exercitus, pro mercede vestra et filiorum ac nepotum vestrorum relaxare praecipiates; quia et
alia sunt in pactis posita sacramenta, est ut captivi debent relaxari, et patris vestri, christianissimi principis,
haec est intentio, ut cottidiae de animarum liberatione vobiscum mercedem adquirat.”
16
Apresentamos aqui a análise apenas do exemplar XL, como exemplo, mas, esse tipo de afirmação seria válido
também para as epístolas XLVI e XLVIII.
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Estudos funerários na Gália

  • 1.
  • 2. UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS FACULDADE DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANAS DEPARTAMENTO DE HISTÓRIA LABORATÓRIO DE ESTUDOS MEDIEVAIS André Luis Pereira Miatello (coord.) Aléssio Alonso Alves (org.) Felipe Augusto Ribeiro (org.) PERSPECTIVAS DE ESTUDO EM HISTÓRIA MEDIEVAL NO BRASIL Anais do workshop realizado nos dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais. 1ª Edição Belo Horizonte Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas 2012
  • 3. Perspectivas de estudo em história medieval no Brasil [recurso eletrônico] : anais do worshop realizado nos Dias 29 e 30 de setembro de 2011, na Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal de Minas Gerais / André Luís Pereira Miatello (coord.); Aléssio Alonso Alves, Felipe Augusto Ribeiro (orgs.).- Belo Horizonte : Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas, 2012. Inclui bibliografia. ISBN: 978-85-62707-33-9 1. Idade Média – História 2. Idade Média – Estudo e ensino.3. Europa - História. I. Miatello, André Luis Pereira. II. Alves, Aléssio Alonso. III. Ribeiro, Felipe Augusto. CDD 940.1 CDU: 930.9(08)
  • 4. EXPEDIENTE Reitor da UFMG Prof. Dr. Clélio Campolina Diniz Diretor da Fafich Prof. Dr. Jorge Alexandre Barbosa Neves Chefe do Departamento de História Profª. Drª. Cristina Campolina Coordenadora de Curso de Pós- Graduação em História Profª. Drª. Kátia Gerab Baggio Comissão organizadora do workshop Idealização e coordenação Dr. André Luís Pereira Miatello Ms. Flávia Aparecida Amaral Monitores Aléssio Alonso Alves Bruna Massai do Carmo Clycia Gracioso Silva Daniel de Souza Ramos Felipe Augusto Ribeiro Ludmila Andrade Rennó Marco Antônio Sant’Ana Camargos Stella Ferreira Gontijo Wanderson Henrique Pereira Comissão editorial dos anais Coordenação Dr. André Luís Pereira Miatello Organização, editoração e montagem Aléssio Alonso Alves Felipe Augusto Ribeiro Arte Ludmila Andrade Rennó Capa Boaz e os anciãos. Bíblia de Luís IX, fol. 18v. Cortesia de: Faksimile Verlag Consultor: Richard Leson Disponível em: http://www.themorgan.org/collections/swf/ exhibOnline.asp?id=235 Acesso em: 25 out 2012. Revisão dos textos a encargo dos autores
  • 5. 2 AGRADECIMENTOS O núcleo UFMG do LEME – Laboratório de Estudos Medievais – agradece, por todo o suporte na realização de nosso workshop e na publicação deste volume, ao Departamento de História e ao Programa de Pós-Graduação em História da Universidade Federal de Minas Gerais, nas pessoas das professoras Dra. Cristina Campolina de Sá e Dra. Kátia Gerab Baggio, chefe e coordenadora do departamento e do programa, respectivamente. O LEME/UFMG agradece também ao professor Dr. Marcelo Cândido da Silva, coordenador geral deste Laboratório, cuja participação assídua foi essencial para a concretização do evento. A ele devemos também a apresentação destes anais. Agradecemos, por fim, à equipe da biblioteca da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, pela catalogação e registro deste volume, bem como a todos os demais integrantes da comissão organizadora do evento, pelo trabalho e dedicação: Bruna Massai do Carmo, Clycia Gracioso Silva, Daniel de Souza Ramos, Flávia Aparecida Amaral, Ludmila Andrade Rennó, Marco Antônio Sant’Ana Camargos, Stella Ferreira Gontijo, Wanderson Henrique Pereira.
  • 6. 3 SUMÁRIO Caderno de resumos ...................................................................................................................5 Apresentação Marcelo Cândido da Silva ........................................................................................................13 As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII) Karen Torres da Rosa ...............................................................................................................16 “Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas Austrasianas Edward Detmann Loss .............................................................................................................31 Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII) Bruna Giovana Bengozi ...........................................................................................................42 Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus Diego Ribeiro dos Reis ............................................................................................................55 Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos Verônica da Costa Silveira ...................................................................................................... 67 Diferentes visões sobre a economia no Período Carolíngio Victor Borges Sobreira ............................................................................................................ 86 Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco Marcelo Moreira Ferrasin ......................................................................................................106 A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII) Aléssio Alonso Alves .............................................................................................................115
  • 7. 4 Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o fenômeno da santidade no Ocidente Medieval Felipe Augusto Ribeiro ..........................................................................................................136 Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV Vinícius Marino Carvalho ......................................................................................................150 Leis e direito na Itália do século XIV Letícia Dias Schirm ................................................................................................................159 As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr. ...........................................................................182 O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas Bruno Tadeu Salles ................................................................................................................197 O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política André Luis Pereira Miatello ...................................................................................................212 Índice remissivo .....................................................................................................................226 Índice onomástico ..................................................................................................................228
  • 8. 5 CADERNO DE RESUMOS As disputas pelos bens eclesiásticos na Gália merovíngia (séculos VI-VII) Karen Torres da Rosa A historiografia preocupa-se desde o século XIX com a compreensão das relações de poder na Idade Média, sendo que a partir de meados do século XX os historiadores passaram a considerar o acúmulo de bens como uma forma de poder. Isso permitiu que as relações do episcopado e da Igreja com seus bens fossem discutidas como relações de poder. Assim, este será o objeto de estudo deste trabalho que analisará e comparará dois testamentos episcopais: o de Cesário de Arles, da metade do século VI, e o de Bertrand de Mans, de 616. Relacionar esses dois documentos e os Concílios Merovíngios também será imprescindível, uma vez que são encontrados vários cânones que pretendem normatizar o tratamento dado pelos bispos aos bens, referindo-se, em grande parte, à proteção dos bens eclesiásticos. Dessa forma, o foco estará na compreensão da existência ou não de conflitos em torno dos bens, auxiliado pelo estudo do problema da ambiguidade das relações entre os bens dos bispos e das igrejas, ou seja, por aquele em que há a preocupação com uma separação entre tais bens. PALAVRAS-CHAVE: Bispos. Testamentos. Bens. “Negociar apaz”: o envio de legados francos ao Império no século VI – as Epístolas Austrasianas Edward Detmann Loss O presente texto tem por objetivo explorar como as “Epístolas Austrasianas” – uma compilação de 48 epístolas trocadas entre a Austrásia e Bizâncio durante o século VI – vem sendo utilizadas nas últimas décadas para o estudo das práticas de negociação e de troca de legações entre as diferentes unidades políticas independentes do mediterrâneo no século VI. Para tanto, discute-se, em um primeiro momento, as transformações historiográficas da
  • 9. 6 segunda metade do século XX acerca da violência medieval que permitiram pensar na existência de mecanismos de resolução de conflitos no período e possibilitaram que essa documentação pudesse ser analisada como fonte de estudo dessas práticas. Em seguida, explora-se as considerações feitas pelos principais estudiosos dessas epístolas sobre as formas de negociação entre as entidades políticas da Alta Idade Média à partir dessa documentação. Por último, busca-se problematizar algumas dessas conclusões através da análise de exemplares da coleção. PALAVRAS-CHAVE: Epístolas. Austrásia. Embaixadas. Etnogênese e arqueologia das práticas funerárias no norte da Gália (séculos V-VIII) Bruna Giovana Bengozi A busca pelas origens dos francos e do estabelecimento destes no norte da Gália foi assunto recorrente nos estudos de historiadores, arqueólogos, entre outros, especialmente a partir do século XIX, período este marcado pela emergência dos Estados nacionais e do nacionalismo étnico europeu. Diante deste contexto, os “cemitérios em fileiras” (Reihengräberfelder), comuns no norte da Gália entre o final do século V e início do século VIII, foram utilizados por medievalistas e arqueólogos para determinar as identidades étnicas dos ocupantes destas necrópoles, principalmente francos e galo-romanos. Consequentemente, os estudos sobre tais cemitérios foram usados para permitir a associação direta dos “povos” identificados aos Estados emergentes no século XIX e para justificar discursos ideológicos e políticos contemporâneos, postura esta criticada por muitos estudiosos a partir da Segunda Guerra Mundial. Assim, o objetivo desta comunicação é apresentar um debate historiográfico entre dois estudos de casos sobre os “cemitérios em fileiras”, produzidos nos séculos XIX e XX, e refletir sobre como os historiadores e arqueólogos analisaram esse tipo de necrópole, tanto a fim de identificação dos francos de um ponto de vista étnico quanto para a crítica a esse tipo de interpretação. A partir dessa reflexão, buscar-se-á elucidar duas posturas historiográficas distintas diante de discussões ligadas ao problema da etnogênese e ao uso da arqueologia funerária, que influenciaram o entendimento sobre os francos e o tecido social durante o
  • 10. 7 período medieval, mas também suscitaram diversas polêmicas nos campos acadêmicos e políticos desde o século XIX. PALAVRAS-CHAVE: Arqueologia funerária. Etnogênese. Francos. Raul Glaber e os concílios de Paz de Deus Diego Ribeiro dos Reis Tradicionalmente, a violência se tornou peça chave e paradigma para os estudos sobre a Idade Média, um argumento para se “comprovar” a ausência de Estado e o desaparecimento de instituições públicas. Assim, a Idade Média foi considerada, sobretudo por grande parte da historiografia do século XIX, como um período atrasado no qual a violência e a desordem prosperavam em detrimento da ordem política e social. Os estudos se centravam na violência, e a paz era um tema pouco discutido até a segunda metade do século XX. Durante esses anos, grande parte desses estudos se circunscrevia, de uma maneira geral, a contrapor esses elementos, tomando-os como um par antinômico. Deste modo, documentos medievais – como as Histórias de Raul Glaber, escritas na primeira metade do século XI e as atas dos concílios judiciários de Paz de Deus dos séculos X, XI e XII, sobretudo – foram tomados como testemunhos e respostas às desagregações sociais e políticas, e ao estado de violência generalizada desse período, ou seja, uma tentativa de reestruturação da ordem pública. A partir disso, o presente trabalho pretende fazer um estudo comparativo entre as concepções de paz presentes tanto em alguns textos dos concílios de Paz de Deus que ocorreram entre o fim do século X e as primeiras décadas do século XI, quanto nas Histórias de Raul Glaber, buscando compreender as particularidades e as características comuns em torno de tais concepções, assim como indagar a maneira pela qual se descreve a paz, o vocabulário utilizado e quais os valores dados a ela, tendo em mente a parcialidade desse estudo. PALAVRAS-CHAVE: Raul Glaber. Paz de Deus. Paz.
  • 11. 8 Jordanes, Isidoro de Sevilha e a origem dos godos Verônica da Costa Silveira O trabalho objetiva apresentar em linhas gerais e introdutórias a origem dos godos nas Historiae de Jordanes e Isidoro de Sevilha. Indicaremos inicialmente alguns problemas envolvidos no estudo do tema com vistas a introduzir os leitores aos debates concernentes a possibilidade de falarmos na existência de “história” na Idade Média, para em seguida exemplificarmos uma possibilidade de pesquisa mediante a análise comparativa do De origine actibusque Getarum, comumente conhecido como Gética, de Jordanes, e do De origine Gothorum et regno Sueborum et etiam Wandalorum historia librum unum, de Isidoro de Sevilha à luz dos debates recentes sobre identidades na Antigüidade Tardia. PALAVRAS-CHAVE: Jordanes. Isidoro de Sevilha. Godos. Os ordálios como procedimentos probatórios no mundo franco Marcelo Moreira Ferrasin Os ordálios, ou “juízos de Deus”, foram utilizados como meios probatórios por diferentes sociedades, em distintos períodos. Certa historiografia considerou por longo tempo, os ordálios como provas “irracionais”, típicos das sociedades “bárbaras” da Alta Idade Média. Igualmente, historiadores generalizaram os “juízos de Deus” como a principal prova judiciária de um “direito bárbaro”. Essas abordagens desempenharam influência decisiva para a imagem depreciativa que se fez, e por ora se faz da Idade Média. Neste texto, pretendo destacar o uso dos ordálios no espaço franco, a partir das disposições normativas expressas nas “leis dos francos” e na “lei dos burgúndios”, como também das recentes contribuições da historiografia sobre o assunto. O objetivo desse trabalho é demonstrar como os ordálios, e a título de exemplo analiso o ordálio da água fervente e o duelo judiciário, inseriam-se no regime probatório franco, como um último recurso, como um meio excepcional de se provar em casos graves ou na falta de outras provas.
  • 12. 9 PALAVRAS-CHAVE: Ordálios. Lei. Francos. A morte e os mortos nas Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet (século XIII) Aléssio Alonso Alves Compostas em momentos de grandes conflitos entre frades e clérigos seculares, as Vitae Fratrum de Gerardo de Frachet têm como escopo a autoafirmação da Ordem dos Frades Pregadores como sendo sagrada. Presentes de forma maciça nas histórias exemplares da obra, a morte e os mortos desempenharam um papel importante na autoapologia da Ordem e é, portanto, objetivo deste artigo analisar como estes tópicos foram mobilizados em função desse intuito. Para tanto, primeiramente faremos um panorama sobre os estudos historiográficos a respeito da morte e dos mortos; em um segundo momento serão analisadas as circunstâncias de composição da obra e, por fim, trataremos da morte e dos mortos nas Vitae Fratrum. PALAVRAS-CHAVE: Morte. Mortos. Dominicanos. Apontamentos para o estudo hagiográfico: uma proposta de abordagem sobre o fenômeno da santidade no Ocidente Medieval Felipe Augusto Ribeiro O presente texto trata sobre o fenômeno da santidade no cristianismo ocidental, com foco na “Baixa Idade Média”. Ele faz uma reflexão puramente teórica, recuperando o emergir do fenômeno, ainda na “Alta Idade Média”, e recolhendo, numa análise panorâmica, alguns conceitos que podem ser importantes no estudo do fenômeno. Esses conceitos parecem elucidativos na medida em que evidenciam a santidade no cumprimento de papéis que vão muito além do religioso, tornando-a um bem perfeitamente inserido na dinâmica de trocas entre centros de poder. Nesse sentido, a santidade emergiria como um fenômeno principalmente sociológico e histórico, o que tentaremos corroborar testando os conceitos levantados no caso de São Francisco de Assis (1182-1226) e do seu culto no centro da Itália
  • 13. 10 dos séculos XIII-XIV. Seguindo esse caminho, o trabalho espera ampliar os horizontes de apreensão do fenômeno abordado. PALAVRAS-CHAVE: Santidade. Cristianismo. Idade Média. Sir Gawain and the Green Knight e a gentry inglesa no século XV Vinícius Marino Carvalho Esse trabalho propõe um olhar crítico sobre o poema cavaleiresco Sir Gawain and the Green Knight (SGGK), problematizando seu valor como fonte e as dificuldades inerentes ao seu estudo. Na primeira parte, faz-se uma tipologia da fonte e um apanhado geral sobre a historiografia sobre ela tecida. Na segunda, desenvolve-se uma tentativa de interpretação, fundamentada no delineamento de um provável público alvo em meio ao qual o poema possa ter circulado. Propor-se-á a hipótese de que SGGK possa ter sido lido pelo grupo social conhecido de gentry ao longo dos séculos XIV e XV. Mobiliza-se como evidência provável a existência de versões posteriores do poema vinculadas à gentry, tal como uma menção a ele em um inventário de um gentleman do século XV, Sir John Paston II. Por fim, estabelece-se algumas ponderações sobre as limitações de tal enfoque, assim como diretrizes para futuros desenvolvimentos. PALAVRAS-CHAVE: Inglaterra. Gentry. Cavalaria. Leis e direito na Itália do século XIV Letícia Dias Schirm Na península itálica, durante o século XIV, os juristas se destacaram, dentre os homens de saber, não apenas por seu conhecimento teórico, mas também por sua atuação prática tanto como advogados quanto como professores. Ao elaborarem glosas sobre as leis e proporem uma forma de compreensão do direto esses homens tocaram em diversos problemas que podem ser
  • 14. 11 analisados pela história. A presente comunicação tem por objetivo demonstrar as possibilidades para o estudo da História Medieval por meio das fontes jurídicas, especialmente aquelas produzidas no século XIV, momento no qual são realizadas grandes compilações e comentários a cerca do Corpus Iuris Civilis. Espera-se atingir essa meta por meio da discussão sobre o dominium apresentada por Bartolus da Sassoferrato (1314-1357). PALAVRAS-CHAVE: Lei. Direito. Bartolus da Sassoferrato. As relações entre a magia e o segredo no palco da política entre os séculos XV e XVI Francisco de Paula Souza de Mendonça Jr. O presente texto busca refletir sobre as relações entre política e magia nos séculos XV e XVI, tendo em vista o reavivamento de correntes esotéricas como o hermetismo e a cabala, bem como o surgimento de um agente principesco dedicado à comunicação cifrada, o secretarium. Discutindo principalmente a Steganographia do abade alemão Johannes Trithemius e o De Magiae Naturalis do italiano Giambattista della Porta, intentou-se apresentar os pontos de diálogo entre as concepções de segredo atinentes ao magus e aquelas postas em exercício pelo secretarium. No exercício de reflexão aqui proposto recorreu-se à discussão de Michel Senellart sobre as transformações do exercício do poder no recorte temporal já apresentado, e, mais especificamente, aos Arcanae Imperii, figura conceitual por ele mobilizada para pensar tal questão. PALAVRAS-CHAVE: Política. Magia. Segredo. O senhorio nos séculos XI e XII: perspectivas historiográficas Bruno Tadeu Salles Nas últimas duas décadas do século XX e no início do XXI, a definição do feudalismo se revelou um dos temas mais polêmicos da historiografia europeia e norte-americana. A partir do grande volume de interpretações e de escritos sobre o tema, publicados na primeira década do século XXI,
  • 15. 12 propomos uma síntese das opiniões e das abordagens possíveis. Modo de produção, imaginário e forma de governo foram apenas algumas qualidades que abordagens jurídica, culturais, econômicas, sociais e – porque não? – políticas elaboraram no decorrer dos séculos XIX e XX sobre o feudalismo. Do mesmo modo, a amplitude das fronteiras dessas conclusões teria sido expandida. Falar-se-ia de feudalismo desde o Japão dos séculos XV e XVI até a América Portuguesa. A despeito de sua amplitude e de seu caráter controverso e pouco consensual, segundo Alain Guerreau (2002), ele era o único conceito capaz de conceber as sociedades ditas francesas dos séculos XI e XII como um sistema, interligando aspectos jurídicos, culturais, econômico, sociais e – porque não? – políticos. Nas discussões historiográficas francesas e anglo-saxônicas acerca do feudalismo, as especificidades das relações e vínculos de poder senhoriais, bem como a composição do dominium/senhorio, ocupou um lugar central. Isto à medida que as interdependências senhoriais, a nível horizontal e vertical, se constituiriam no fator central das relações sociais no complexo sistema dito feudal. Como definir, portanto, o senhorio? Como analisar suas particularidades? Neste ponto, mostra-se fundamental mobilizar as reflexões historiográficas sobre o poder senhorial dos séculos X, XI e XII como coordenada fundamental da presente revisão historiográfica. PALAVRAS-CHAVE: Dominium/Senhorio. Feudalismo. Historiografia. O conceito de Ecclesia e sua funcionalidade política André Luis Pereira Miatello Neste artigo, discutimos o conceito de sociedade no período medieval, propondo o uso menos anacrônico do termo latino ecclesia para indicar a simultaneidade dos aspectos políticos e religiosos durante a chamada Idade Média. Questionamos os limites dos estudos historiográficos que partem do pressuposto de um Estado reificado em sua forma nacional, liberal e laica como categoria de análise de outros períodos da história; tal equívoco está na base do recorrente preconceito em relação à história medieval que, por ser desprovida dos critérios da razão de Estado, passa a ser considerada vítima de um dogmatismo religioso que impediu a emergência do político. Esperamos reavaliar essas categorias e propor uma chave de leitura mais apropriada. PALAVRAS-CHAVE: Igreja. Estado. Cristandade.
  • 16. 13 APRESENTAÇÃO Entre os dias 29 e 30 de Setembro de 2011, o Núcleo UFMG do Laboratório de Estudos Medievais (LEME), coordenado pelo Prof. Dr. André Pereira Miatello, organizou o Workshop “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil”. Durante dois dias, alunos de Iniciação Científica, Mestrado e Doutorado da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e da Universidade de São Paulo (USP) apresentaram resultados de suas pesquisas em curso. Esses trabalhos se encontram reunidos nesta publicação, com o apoio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas (FAFICH), do Programa de Pós-Graduação em História e do Departamento de História da UFMG. Além das sessões de comunicação de Iniciação Científica, o evento contou ainda com quatro mesas-redondas, das quais participaram pós-graduandos e professores, com os seguintes temas: “Idade Média e historiografia”; “Justiça, violência e resolução de conflitos na Alta Idade Média”; “Realeza e poder público na Baixa Idade Média” e “Ecclesia e Sociedade cristã no Ocidente medieval”. Esse encontro constituiu um bom indicador de algumas transformações pelas quais passaram os estudos medievais no Brasil nos últimos anos: diversificação temática, retorno em força da história política e fortalecimento de grupos de pesquisa estruturados em rede a partir das universidades públicas. “Perspectivas de Estudo em História Medieval no Brasil” é um marco na ampliação do LEME para além dos seus núcleos originais, da USP e da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), ambos criados em 2005. É também uma etapa importante na consolidação dos estudos medievais na UFMG: o número, mas, sobretudo, a qualidade de trabalhos apresentados, demonstram o interesse despertado pela História Medieval entre os alunos de Graduação e de Pós-Graduação daquela universidade. Um segundo encontro está previsto para ocorrer em outubro de 2012, o que mostra que a iniciativa se inscreve numa visão de longo prazo que pretende situar a UFMG de maneira duradoura na paisagem dos estudos de História Medieval no Brasil. Um dos aspectos mais importantes dos trabalhos aqui reunidos é a sua diversidade. De um ponto de vista cronológico, eles cobrem praticamente todo o período que chamamos de Idade Média e que vai do século VI ao século XIV. Esses trabalhos também são construídos a partir de uma grande gama de fontes: testamentos, epístolas, cânones conciliares, polípticos, crônicas e histórias, leis e editos reais, vidas de santos e poemas. Mesmo a historiografia e os relatórios de escavações arqueológicas são utilizados como “documentos”. As questões colocadas a esses textos pelos autores são igualmente variadas. Há aquelas de cunho
  • 17. 14 eminentemente historiográfico: em que medida a arqueologia funerária contribuiu para a construção de uma identidade étnica franca (Bruna Bengozi)? De que maneira as críticas à ideia de “mutação feudal” permitiram uma reavaliação da Ordem Senhorial dos séculos XI e XII (Bruno Salles)? Outras questões colocadas pelos autores mobilizam tipos específicos de fontes buscando responder à questão geral, mas não menos legítima, de como essas fontes permitem um conhecimento da sociedade que as produziu: de que maneira as fontes jurídicas podem ser úteis para a compreensão da sociedade italiana do século XIV (Letícia Schirm)? Como o conceito de Ecclesia permite uma melhor compreensão da especificidade do fenômeno político na Idade Média (André Miatello)? De que forma o “segredo” e o “oculto” se constituíram como dimensões capitais da vida política no final da Idade Média (Francisco Mendonça Júnior)? Como a santidade pode ser um instrumento útil na compreensão das relações sociais (Felipe Ribeiro)? Como um poema – no caso, o Sir Gawain and the Green Knight – pode ajudar na compreensão da história da Gentry inglesa no século XV (Vinicius Marino)? Alguns trabalhos optam por uma abordagem comparativa das fontes: qual a relação entre o significado da “paz” nas Histórias, de Raul Glaber, e aquele que encontramos nos concílios do mesmo período (Diego Reis)? Qual o lugar dos Ordálios nas fontes narrativas e nos textos normativos da Gália franca (Marcelo Ferrasin)? De que maneira a análise de testamentos e de cânones conciliares da época merovíngia pode esclarecer o problema da disputa pelos bens (Karen Rosa)? E há também aqueles trabalhos que se dedicam a investigar um problema específico num determinado tipo de fonte: é possível uma história da historiografia da Antiguidade Tardia (Verônica Silveira)? Como a morte e os mortos foram mobilizados nas Vitae Fratrum, da Ordem dos Pregadores (Aléssio Alves)? Como as epístolas austrasianas podem ser utilizadas para o estudo das práticas de negociação no Mediterrâneo do século VI (Edward Loss)? Apesar da diversidade de objetos e de enfoques privilegiados, bem como dos múltiplos estágios da pesquisa, os textos que seguem trazem alguns aspectos comuns que merecem ser destacados. Nenhum dos autores acredita ser o primeiro a pesquisar seu tema. Todos situam as suas pesquisas a partir da evocação e, muitas vezes, da discussão das correntes historiográficas que ajudaram a conformar o objeto que se pretende investigar. Além disso, há uma preocupação conceitual digna de nota. Os conceitos utilizados são explicitados, discutidos e submetidos, na maior parte do tempo, a um questionamento fundamental: quais os limites do seu uso no campo da reflexão histórica? Destacaria também uma preocupação comum com as sociedades nas quais os textos estudados foram produzidos. Podemos observar
  • 18. 15 nos trabalhos aqui reunidos que o diálogo entre os diversos tipos de fontes leva em conta as distintas condições de sua produção e, algumas vezes, de sua circulação. Isso é feito, no entanto, sem nenhuma adesão a uma leitura determinista. Finalmente, não poderia deixar de mencionar o quanto o convite para redigir esta apresentação possui um significado especial para mim. Foi na UFMG que comecei a estudar História Medieval, inicialmente como aluno de Iniciação Científica, em 1993, e, posteriormente, em 1996, como aluno de Mestrado, sob a orientação do Professor Daniel Valle Ribeiro. A pesquisa em História Medieval, naquele momento, ainda contava com pouco respaldo institucional, isso sem contar as dificuldades que se apresentavam àqueles que pretendiam seguir esse caminho: dificuldade de acesso às fontes, bibliotecas com bibliografia defasada, pouca interlocução entre os pesquisadores da área no Brasil e com os colegas no exterior. Desde então, importantes e positivas transformações ocorreram: a criação da Associação Brasileira de Estudos Medievais (ABREM), a multiplicação dos grupos de pesquisa na área, dos Grupos de Trabalho em História Medieval no seio da Associação Nacional de História (ANPUH), a criação de revistas especializadas, a renovação dos acervos das bibliotecas nacionais, o aumento do número de publicações de autores brasileiros. O livro que aqui se apresenta é o produto desse novo cenário acadêmico. Marcelo Cândido da Silva (USP)
  • 19. 16 AS DISPUTAS PELOS BENS ECLESIÁSTICOS NA GÁLIA MEROVÍNGIA (SÉCULOS VI-VII) Karen Torres da Rosa1 1 Introdução A recente discussão em torno dos bens na Alta Idade Média foi estabelecida levando- se em conta sua relação com o poder. É a intensa circulação desses bens na sociedade que apresenta o poder daqueles que os detêm. Essas ideias só puderam ser desenvolvidas a partir da metade do século XX, quando a historiografia passa a discutir os pressupostos modernos de que o poder só poderia ser adquirido pela autoridade pública. Nessa época, os historiadores passam a pensar na relação entre propriedade e Igreja2 . Assim, foi possível, juntamente com os estudos realizados por meio do auxílio dos documentos eclesiásticos3 , perceber uma questão pertinente ao estudo das estruturas de poder do período: a ambigüidade das relações entre os bens dos bispos e das igrejas. Na Gália dos séculos VI e VII, essa questão é bastante confusa para o historiador que, ao analisar os documentos provenientes deste lugar e período, encontra divergências e semelhanças. Esta apresentação se propõe, portanto, a compreender se os bens dos bispos pertenciam ao patrimônio da Igreja ou se havia uma separação clara entre eles, e como essa relação era tratada pelos textos normativos. Poderá ser notado que havia um conflito entre os bispos e as igrejas pela aquisição dos bens eclesiásticos. Nesse sentido, resta discutir como e porque esse conflito acontecia. Os trabalhos dos historiadores até a metade do século XX, que se dispuseram a compreender a questão dos dons e das trocas (ambos sendo formas de circulação de bens) (BLOCH, 1968: 106-114), eram influenciados pelos ideais do evolucionismo do século XIX 1 Graduanda em História pela Universidade de São Paulo, bolsista pelo programa de auxílio à Iniciação Científica da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas (FFLCH) e pesquisadora do Laboratório de Estudos Medievais (LEME). E-mail: karentorres@gmail.com. 2 A fim de exemplificação, há dois trabalhos importantes publicados pela Mélanges de l’École française de Rome que tratam da transferência patrimonial como uma forma de poder relacionada, em grande parte, à Igreja: Sauver son âme et se perpétuer : transmission du patrimoine et mémoire au haut Moyen Âge (2005) e Dots et douaires dans le haut Moyen Âge (2002). 3 Os historiadores passam a ter interesse em utilizar as coleções de documentos e cartulários (títulos de propriedade) monásticos e eclesiásticos que até este momento não eram utilizadas sistematicamente por eles. Isso ocorreu, em grande medida, devido à influência da busca pela história social, em detrimento da história política (ROSENWEIN, 1999: 563-575).
  • 20. 17 e, por isso, tinham a perspectiva de que havia uma diferença dos níveis das trocas, sendo o mais elevado o comércio cuja finalidade era a procura do lucro. (DEVROEY, 2003: 175) Algumas mudanças nesses estudos relacionados aos bens tendem a aparecer em meados do século XX devido à influência da Antropologia nos estudos sobre a Idade Média. Aparentemente, esses historiadores foram influenciados, e alguns o são até os dias de hoje, pelo sistema de dom e contradom (don-échange ou gift-giving) apresentado pelo antropólogo Marcel Mauss (1988), cuja primeira edição é de 1923. Muitos historiadores passaram a utilizar tal sistema somente a partir dos anos 19504 , como uma forma de aproximar os estudos sobre os bens ao campo das relações sociais. Entretanto, esse sistema criado por Mauss é discutido e debatido dentro do próprio campo da Antropologia, como acontece por meio de Alain Testart (2001). Segundo este antropólogo, o que separa uma troca de um dom é o direito proveniente dessas formas de circulação. Se houver o direito de exigir uma contrapartida, é uma troca; se não, é dom. Mesmo que o dom seja seguido de um contradom, este não é obrigatório e, portanto, o doador não terá nenhuma legitimidade para exigi-lo. (TESTART, 2001: 719-720) No campo historiográfico, também há aqueles que, como Eliana Magnani, acreditam que a Antropologia não é necessária para o estudo do dom. Nesse caso, critica aqueles que utilizaram o modelo de Mauss para estudar a Idade Média e argumenta que o teriam feito de forma inadequada, sendo obrigados a adaptar os resultados obtidos a este quadro teórico (MAGNANI, 2002: 309). Entre os bens de circulação, é importante não perder de vista a propriedade, pois, como Jean-Pierre Devroey afirma, “a terra é o principal sinal de riqueza e poder social” (DEVROEY, 2003: 257). Ela é discutida pelos historiadores em vários aspectos, como os direitos do proprietário sobre a terra, a possibilidade de alienação, a transmissão por herança ou por outros meios, etc. Para Devroey, a noção de propriedade, encontrada nos documentos como dominium, foi herdada do direito romano e possui uma série de dificuldades de interpretação para o período medieval. O autor admite que outras palavras encontradas nos documentos como villa, res, locus, não tinham precisão alguma, o que dificulta bastante a sua interpretação (DEVROEY, 2003: 257-258 e 263). 4 Nesse sistema prevalece a obrigatoriedade do dom (doação feita pelo indivíduo a outro indivíduo ou instituição, em uma sociedade situada fora do sistema industrial) e do contradom. Um dom poderia ser feito por diversos motivos, entre eles, há a preocupação em confirmar a relação de família ou de construir ligações intertribais, entretanto o beneficiário tinha o dever de devolver um contradom e assim por diante. Desse modo, esse sistema apresenta o caráter social das doações, utilizado por medievalistas como Philip Grierson e Georges Duby para explicar a natureza da economia na Alta Idade Média. (DEVROEY, 2003: 175-178; ROSENWIEN, 1989: 125- 128; CURTA, 2006: 671-673).
  • 21. 18 Em outra análise da questão da propriedade, Susan Reynolds nota que a concepção de propriedade privada na Alta Idade Média não é pertinente, pois se refere a ideias que não são encontradas no período. Não havia uma distinção clara entre público e privado, o que torna fraca a distinção entre propriedade e governo, por exemplo (REYNOLDS, 1996: 51-53 e 61). Segundo a autora, a transmissão de terra acontecia nos povos que ocuparam a região da Gália, mesmo antes do período merovíngio, por meio de dotes, doações e heranças testamentárias. Entretanto, nesse período houve uma multiplicação da alienação de propriedades nesta região que causava tensões entre o proprietário e seus herdeiros. Os documentos mostram que esse aumento estaria associado a dois tipos de práticas: as testamentárias romanas e as doações à Igreja (REYNOLDS, 1996: 75-77). Nota-se a importância das terras para a circulação de bens no período por meio da frequência do conflito gerado em torno dessa transferência, pois essas terras proporcionariam poder e riqueza aos seus detentores. Segundo a historiadora Régine Le Jan, esses conflitos dão margem a duas concepções de propriedade: uma em que há a transferência completa e definitiva da propriedade e de todos os direitos do doador ao beneficiário; e outra em que se transfere o dominium sobre um bem, conservando os direitos sobre ele (LE JAN, 1999: 960- 961). 2 A aquisição de bens pelas igrejas As doações de bens à Igreja poderiam ser feitas por meio das doações pro anima5 , mais populares no final do período merovíngio, assim como por outras formas de doações de bens à Igreja que tinham em vista a provisão dos pobres, como a esmola e os testamentos. O testamento no período merovíngio também tinha a preocupação com a salvação da alma do testador, pois, como propõe Josiane Barbier, ele era um ancestral daquela doação pro anima (BARBIER, 2005: 20-21). Desse modo, os bispos na Alta Idade Média trataram de apresentar nos cânones conciliares (resumos das decisões tomadas pelos bispos sobre os rumos da Igreja) como a assimilação dos bens pela Igreja é feita em função dos pobres: Que não seja permitido a ninguém conservar, alienar e remover os bens e recursos atribuídos legalmente, sob uma forma ou outra de esmola, às igrejas, monastérios e 5 Essas doações pro anima eram como um comércio espiritual com Deus, ou seja, eram atos de caridade ou esmolas doadas em busca da recompensa na forma de salvação da alma. (CURTA, 2006: 674).
  • 22. 19 hospícios. Que aquele que o tenha feito, condenado pelas sentenças dos antigos cânones como assassino dos pobres, seja mantido afastado dos limites da igreja até que seja restaurado aquilo que foi tomado (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 308-309, grifo nosso, tradução da autora)6 . Neste cânone 13 do Concílio de Orléans V de 549 duas informações são importantes para o tratamento dos bens eclesiásticos: as formas legais de atribuição de bens às instituições religiosas e a preocupação com a preservação desses bens, representada pela punição dada àquele que fizesse uso dos bens da igreja em seu benefício, chamado de “assassino dos pobres” (necatores pauperum). Vê-se, por exemplo, que no cânone 25 do concílio de Tours II (567) os bens dos bispos são considerados como bens da Igreja. Isso acontece devido à proteção dada aos bens episcopais pelo cânone contra os “assassinos dos pobres”. Há também neste cânone o trecho “que elas (as propriedades dos bispos) também pertençam à igreja” (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 384-387) em que se percebe que as propriedades dos bispos faziam parte da igreja e eram administradas por eles. Esse foi um meio encontrado pelo episcopado para escapar, juntamente com a Igreja, das usurpações que poderiam ocorrer do seu patrimônio. No entanto, o já citado Concílio de Orléans V (549) mostra a preocupação do rei Childeberto I em manter o bispo da igreja de Lyon sem acesso aos bens do hospício fundado pelo rei para que não houvesse usurpação dos mesmos.7 Isso mostra que o invasor, o “assassino dos pobres”, poderia ser alguém de dentro da própria Igreja. (ROSENWEIN, 1999: 42-43) Nesse sentido, os bens dos bispos seriam desvinculados dos bens das igrejas, de modo que aqueles poderiam ser considerados usurpadores dos bens eclesiásticos. A partir dessa breve discussão, nota-se claramente uma contradição em quem seriam os proprietários dos bens eclesiásticos: se seriam os bispos ou a instituição. Esta angústia, criada pelas primeiras leituras realizadas, foi o ponto inicial para o desenvolvimento desta pesquisa que utiliza dois tipos de documentos: os testamentos e os concílios - ambos do período merovíngio. Os testamentos, fonte da expressão da vontade do testador após sua 6 “Qu’il ne soit permis à personne de retenir, aliéner et soustraire les biens et ressources attribués légalement, sous une forme ou l’autre d’aumône, aux églises, aux monastères ou aux hospices. Que quiconque l’a fait, condamné qu’il est par les sentences des anciens canons comme assassin des pauvres, soit tenu éloigné du seuil de l’église jusqu’à ce qu’il ait restitué ce qui a été pris on retenu”. Concílio de Orléans V (549), c. 13. 7 “De tudo o que foi ou será atribuído ao dito hospício, seja bens ou pessoas, [...] que o bispo da igreja de Lyon jamais se atribua de nada pessoalmente e não transfira nada à propriedade da igreja”. “De tout ce qui a été ou sera attribué audit hospice en fait des biens et des personnes, [...] que jamais l’évêque de l’église de Lyon ne s’attribue rien personnellement ni ne transfère rien à la propriété de l’église”. Concílio de Orléans V (549), c. 15. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 310-313, tradução da autora).
  • 23. 20 morte, são importantes para verificar como se dá a relação do próprio bispo com seu bem. Já os textos conciliares tinham por objetivo resolver problemas hierárquicos, doutrinários e disciplinares. Em um estudo sobre o desenvolvimento da legislação da Igreja, Kenneth Pennington apresenta que os concílios acabavam limitando a liberdade do bispo para governar sua igreja, limitando por consequência sua autoridade. Essas normas e procedimentos, em geral, deveriam ser seguidos por todas as igrejas locais, as quais os concílios abrangiam (PENNINGTON, 2007: 389-390). Essas características podem ser percebidas ao longo da maior parte dos cânones conciliares merovíngios. Há no concílio de Épaone uma demonstração da preocupação do episcopado com a obediência dessas normas. Este concílio foi reunido para organizar a igreja do reino burgúndio em 517, logo depois da ascensão do príncipe Sigismundo (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 93). Seus cânones, entretanto, são retomados em concílios posteriores no reino franco. O último cânone deste concílio mostra que as decisões foram tomadas em comum acordo e sob a inspiração divina e que se um dos santos bispos que confirmaram por sua assinatura pessoal os presentes estatutos se afastar destes ao negligenciar sua observação integral, que ele saiba que será tido como culpado ao julgamento de Deus e de seus irmãos (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 120-121). Dessa forma, os 24 bispos que assinaram esse concílio concordavam com o que estava aí escrito. O cânone 12 do referido concílio, também restringe o poder do bispo, pois declara que nenhum bispo teria o poder de vender os bens de sua igreja sem a permissão de seu metropolitano (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 106-107). Será feito, desse modo, um diálogo entre os dois tipos de fonte do período merovíngio para verificar sua pertinência no estudo da ambiguidade entre os bens eclesiásticos e episcopais. Esses documentos apresentam o conflito causado entre os bispos e a entidade da Igreja com a finalidade de adquirir os bens eclesiásticos. Aqueles utilizados nesta pesquisa têm como base dois testamentos episcopais (de Cesário de Arles e de Bertrand de Mans), com uma margem temporal de aproximadamente cem anos entre eles, e alguns concílios, realizados próximos às datas dos testamentos. Assim, poderão ser observadas suas influências e até mesmo sua validade como textos que estabelecem algum tipo de norma. 3 Os bispos e os bens eclesiásticos
  • 24. 21 Os bispos, por serem chefes da Igreja, tinham a função de administrar suas propriedades. Assim, como ressalta Susan Wood, pode ser observado nos cânones conciliares que essas propriedades eram inalienáveis, ou seja, havia a preocupação com a proteção de bens e patrimônios eclesiásticos8 . Isso aconteceu devido, principalmente, ao aumento das doações de bens às igrejas, crescendo o número de suas propriedades. Para Barbara Rosenwein, a questão da unidade eclesiástica suscita a problemática em torno da distinção entre o patrimônio das dioceses e dos monastérios. Os bispos poderiam usurpar os bens monásticos, ignorando a distinção entre as propriedades de sua catedral e de seus monastérios diocesanos (ROSENWEIN, 1999: 568-569). Há, portanto, dois modos de alienação patrimonial por parte dos bispos: dos bens eclesiásticos aos seus bens pessoais; e dos bens eclesiásticos de outras instituições (como os monastérios) aos bens de sua igreja. Os cânones conciliares tratam, na maioria dos casos, da alienação causada pelos reis e pela elite secular. No entanto, também pode ser observada certa preocupação em relação aos próprios bispos. Isso ocorre mais freqüentemente nos concílios da primeira metade do século VI, pois corresponde ao período de aumento das doações às igrejas. Neste caso, o Concílio de Orléans I (511) realizado no reino franco é exemplar. Há neste concílio dois cânones que se referem à alienação dos bens doados às igrejas. Os cânones 14 e 15 mostram que os bispos retêm metade das ofertas feitas pelos fiéis, sendo que a outra metade pertenceria ao clérigo, mas que todos os bens deveriam permanecer sob a autoridade dos bispos. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 81) Esses cânones apresentam advertências aos bispos sobre o modo como eles devem gerir os bens e quais são seus limites. [...] dos bens depositados sobre o altar como oferenda dos fiéis, o bispo retém para ele a metade, a dividir segundo o posto, as terras permanecem, para as necessidades gerais, sob a autoridade dos bispos (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 81, tradução da autora)9 . 8 Mesmo os monastérios fundados por bispos, como o de Cesário de Arles, não eram previstos como uma propriedade episcopal e, por isso, eram proibidos de serem alienados. (WOOD, 2006: 9-10 e 199). Essa inalienação das propriedades eclesiásticas é encontrada, por exemplo, no cânone 13 do Concílio de Orléans III (538): Quanto à interdição feita aos bispos de alienar as parcelas de terra e outros bens da igreja, ou de os anexar por contratos inúteis, que sejam mantidas as disposições dos cânones precedentes: que não seja permitido alienar ou anexar inutilmente por nenhum contrato os bens da igreja [...]. “Quant à l’interdiction fait aux évêques d’aliéner des parcelles de terre et d’autres biens de l’église, ou de les engager par des contrats inutiles, que soient maintenues les dispositions des précédents canons : qu’il ne nous soit pas permis d’aliéner ou engager inutilement par aucun contrat les biens de l’église. […]”. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 243, tradução da autora). 9 “[...] des biens déposés sur l’autel comme offrande des fidèles, l’évêque retienne pour lui la moitié, à se répartir selon le rang, les terres demeurant, pour les besoins généraux, sous l’autorité des évêques”. Concílio de Orléans I (511), c. 14.
  • 25. 22 Ainda é possível citar dois outros concílios que possuem cânones referentes à disputa pelos bens eclesiásticos. O de Carpentras (527) foi reunido pelo bispo de Arles, Cesário, e possui apenas um cânone promulgado que tende a proteger o patrimônio eclesiástico contra as pretensões excessivas de alguns bispos. (GAUDEMET; BASDEVANT, 1989: 144-145) Enquanto o Concílio de Orléans III (538) retoma, com relação à interdição feita aos bispos de alienar os bens das igrejas, as disposições dos cânones precedentes. Assim, nota-se que, pelo menos durante esse período, os concílios retratam uma coerência sobre essa disputa pelos bens eclesiásticos. Nesse contexto, em que há a denúncia da alienação dos bens da Igreja por parte dos bispos realizada por meio dos concílios, o bispo Cesário, ao morrer na metade do século VI, deixa um testamento com o que ele deseja que seja feito após sua morte (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 360-397). No começo do testamento, Cesário se preocupa em justificar o motivo que o levou a redigi-lo, o qual será o problema central do testamento: ele quer que as freiras do monastério que ele mesmo fundou sejam beneficiadas com os bens pertencentes à Igreja (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 360). Acredita que, assim como a Igreja garante ajuda aos estrangeiros e indigentes pela sua bondade ou porque tal atitude lhe convém, ela também deveria ajudar outras instituições eclesiásticas10 , como o já citado mosteiro, pois as freiras estão a serviço da obra de Deus. Para isso, Cesário coloca-se como parte da Igreja, já que não possui bens próprios, ou seja, não possui bens advindos de sua família para fazer doações pessoais, além de invocar o sucesso que teve ao duplicar o patrimônio de sua igreja e ao conseguir imunidade fiscal para a mesma. [...] quantos dos meus cuidados fizeram crescer o patrimônio da Igreja até vós: ele quase dobrou. Além disso, é por minha modesta pessoa que o Deus de misericórdia também nos concedeu de sermos isentos da maioria dos impostos […] (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 390-391)11 . 10 “Se, em sua bondade, a Igreja tem o costume de fazer, como convêm, generosidades para socorrer os estrangeiros e os indigentes, quanto mais quando se apresenta a ocasião ou a obrigação de conceder alguma coisa aos santos que temem a Deus, ela deve abrir todo seu grande coração cheio de misericórdia e de bondade”. “Si, dans sa bonté, l’Église a coutume de faire, comme il sied, des largesses pour secourir les étrangers et les indigents, combien plus, quand se présente l’occasion ou l’obligation d’accorder quelque chose à des saints qui craignent Dieu, doit-elle ouvrir tout grand son cœur plein de miséricorde et de bonté” (COURREAU; VOGÜÉ, 1994, p. 380-381, tradução da autora). 11 “… combien mes soins ont fait grandir le patrimoine de l’Église jusqu’à toi: il a presque doublé. En outre, c’est par ma modeste personne que le Dieu de miséricorde nous a aussi accordé d’être exempts de la plupart des impôts …”. Esse é um dos motivos por que Cesário acredita que ele teria legitimidade para administrar os bens eclesiásticos, legando-os a outras instituições que não fosse a própria Igreja. Isso porque o mosteiro não fazia parte da Igreja.
  • 26. 23 Os herdeiros presentes em seu testamento são nomeadamente o monastério de Saint- Jean e o bispo de Arles, seu sucessor. Dessa forma, o testamento é destinado, em sua maior parte, à leitura do seu sucessor que terá a função de prover o monastério, principalmente por meio de doações de terras feitas durante a vigência de Cesário no episcopado, ou seja, ele pede a seu sucessor apenas a confirmação desses atos. Como uma forma de convencê-lo, Cesário exalta alguns de seus feitos no episcopado ou justifica outros, como no trecho em que diz que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao monastério não prejudicariam a Igreja e não eram feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam ajudando na conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e trabalhariam por esta obra. Essa passagem seria também uma resposta à crítica do papa com relação às vendas dos bens da Igreja ao mosteiro (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 365-366). Graças a Deus, de fato nós não vendemos sem discernimento nem justiça os bens da Igreja por venda direta a quaisquer seculares, mas somente aquilo que era sem lucro para a Igreja e sem denúncia (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da autora)12 . Essa preocupação relacionada à justificativa de seus atos pode representar, em certa medida, um diálogo com os cânones conciliares promulgados no período. Cesário, ao justificar o motivo porque faz as transferências patrimoniais de bens que não lhe pertencem, acaba agindo de acordo com os cânones. Em uma passagem dirigida ao seu sucessor, em que Cesário pede que as doações feitas de bens da Igreja para o monastério sejam mantidas após sua morte, este mostra que essas doações foram feitas com o consentimento e a assinatura dos seus santos irmãos, ou seja, de outros bispos. Isso justifica que a autorização da doação era feita por meio do consentimento de outros bispos13 . É importante salientar que Cesário participou do Concílio de Agde e, consequentemente, da elaboração de seus cânones. Assim, temos uma relação entre estes cânones e o testamento redigido por Cesário, o que também justifica as precauções encontradas ao longo do testamento. Os dons feitos ao monastério são apresentados como operações de interesse eclesiástico, ou seja, os cânones reconheciam positivamente a 12 “Grâce a Dieu, en effet, nous n’avons pas cédé sans discernement ni justice des biens d’Église par vente direct à des séculiers quelconques, mais seulement ce qui était sans profit pour l’Église et de nul rapport.” O bispo quer mostrar que as doações e vendas feitas de bens eclesiásticos ao mosteiro não prejudicariam a Igreja e não seriam feitas a seculares, ou seja, ela não estaria perdendo seus bens. Estes estariam ajudando na conservação da “obra de Deus”, uma vez que as freiras são servas de Deus e trabalhariam por esta obra. 13 “Que estas almas santas e ocupadas com Deus mantém a perpetuidade aquilo que nós lhe doamos com o consentimento e a assinatura de nossos santos irmãos”. “Que ces âmes saintes et occupées de Dieu gardent donc à perpétuité ce que nous leur avons donné avec le consentement et la signature de nos saints frères” (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389, tradução da autora).
  • 27. 24 transmissão desses bens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 367-370). Quando Cesário fala, no já citado trecho, que as doações dos bens da Igreja ao mosteiro eram feitas, pois estes bens não eram úteis ou vantajosos a ela e que ele tinha o consentimento e a assinatura de outros bispos, ele está se remetendo ao cânone 7 do Concílio de Agde. Este cânon autoriza o bispo a emprestar os bens fundiários que são menos úteis à Igreja (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 388-389). Apesar de este cânone apresentar um meio do bispo decidir sobre o futuro de um bem eclesiástico, alguns cânones do Concílio de Agde de 506 (c. 33) e do Concílio de Épaone de 517 (c. 17), que tratam diretamente dos testamentos episcopais, reprovam o ato dos bispos de alienar bens eclesiásticos a terceiros que não sejam à sua Igreja. Caso esta alienação indevida aconteça, o testador deve reparar com sua fortuna pessoal ou de seus herdeiros. Como Cesário não possui fortuna pessoal, já que prega a pobreza como forma de salvação da alma, ele justifica suas alienações por meio do seu feito de ter dobrado o patrimônio da Igreja, bem como ter obtido para ela uma grande imunidade fiscal. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 370- 371) Neste exemplo vê-se claramente a separação existente entre os bens do bispo e os bens eclesiásticos, que são administrados pelos bispos, mas que devem obedecer às normas promulgadas nos concílios, no período merovíngio. Nesse sentido, é visto que essa separação gera um conflito entre o bispo que almeja uma autonomia com relação às doações feitas por este por meio de testamento e a Igreja, representada pelos bispos participantes dos concílios, que não permite a alienação. O já citado cânone 17 do Concílio de Épaone também apresenta este conflito. O cânone diz que se um bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que pertence à propriedade da Igreja, este ato será nulo, a menos que ele o compense com um bem próprio cujo valor seja ao menos igual ao daquele14 . Ou seja, o bispo não tem autoridade para alienar os bens eclesiásticos, como dito anteriormente, o que nos faz crer que Cesário utilizou dos próprios cânones para fazer valer a sua vontade após a morte. No entanto, não basta saber, com base no testamento, que o comportamento dos bispos em relação aos bens eclesiásticos é submetido às normas promulgadas nos cânones conciliares apenas no período da primeira metade do século VI. É necessário verificar se esse panorama 14 Concílio de Épaone, c. 17: Se um bispo, ao redigir seu testamento, lega um bem que provém da propriedade da Igreja, o legado será anulado, a menos que a compense por um valor ao menos igual tomado de seus próprios bens. “Si um évêque, em rédigeant son testament, lègue um bien qui relève de la propriété de l’Église, le legs será nul, à moins qu’il ne le compense par um valeur au moins égale prise sur ses propres biens (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 108-109).
  • 28. 25 permanece até, pelo menos, o século VII, para compreender a ambigüidade entre os bens episcopais e eclesiásticos e se ela causaria conflitos em torno destes bens. É válido notar que os concílios têm a necessidade de se adaptar às circunstâncias de seu tempo presente.15 Assim, entre as preocupações dos bispos nos concílios do final do século VI e início do VII encontra-se, raramente, alguma relativa à usurpação, ou melhor, à alienação dos bens eclesiásticos pelos bispos. Existe uma preocupação referente às usurpações dos bens eclesiásticos, porém, só daquelas feitas por reis, nobres ou laicos, em geral. No Concílio de Clichy (626-627) há quatro cânones que remetem à relação dos bispos com os bens eclesiásticos. Eles retomam cânones de concílios realizados no início do século VI. Em geral, esses cânones referem-se à proibição dos bispos de assimilarem os bens das igrejas aos seus próprios bens16 , como no cânone 15: Que os bispos, como prescreveu a antiga autoridade dos cânones, não se permitam vender as casas ou os escravos da igreja, ou o que quer que seja que pertença à igreja, nem dispor, por qualquer contrato, para depois de sua morte, daquilo que vivem os pobres (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 538-539, tradução da autora)17 . Apesar de este concílio ser elaborado posteriormente ao testamento do bispo Bertrand de Mans (616), ele pode retratar as necessidades contemporâneas assim como regular aquilo que ocorria no período em que foi elaborado. Neste caso, essas práticas poderiam ser comuns no período de Bertrand ou poderiam apresentar uma insegurança da Igreja. De qualquer forma, é importante notar que esse tipo de preocupação era vigente na época em que Bertrand redige seu testamento. Assim como no caso de Cesário, Bertrand tem a preocupação em deixar uma herança para a instituição religiosa fundada por ele, a basílica Saint Pierre-et-Paul. Entretanto, essa não é a única questão tratada pelo testamento. Bertrand se dirige, freqüentemente, ao rei Clotário II, mostrando sua lealdade e fidelidade e também dá ordens expressas do que deve ser feito com seus bens, destinados, principalmente, à basílica já citada, às igrejas e à catedral de Mans, entre outros estabelecimentos religiosos, e aos seus sobrinhos (LINGER, 1995: p. 15 No concílio de Paris V (614), os bispos apresentam na introdução que um dos motivos porque se reuniam era a necessidade de adaptar os antigos cânones conciliares às circunstâncias presentes. (PONTAL, 1989: 205- 206). 16 São os cânones 2, 15, 22 e 24 do Concílio de Clichy. (COURREAU; VOGÜÉ, 1994: 531-543). 17 “Que les évêques, comme l’a prescrit l’ancienne autorité des canons, ne se permettent ni de vendre des maisons ou des esclaves de l’église, ou quoi que ce soit qui appartient à l’église, ni de disposer, par n’importe quel contrat, pour après leur mort, de ce dont vivent les pauvres”. Concílio de Clichy (626-627), c. 15. Este cânone remete-se ao cânone 7 do concílio de Agde (506) e aos cânones 7, 12 e 17 do concílio de Épaone (517).
  • 29. 26 175). Dessa forma, vemos que esse testamento episcopal reintroduz os bens das igrejas na circulação de mercado, se compararmos com o testamento de Cesário. Na introdução, Bertrand justifica o motivo porque escreve seu testamento. Segundo o bispo, o rei Clotário teria permitido que ele transmitisse, por interesse próprio, aos seus fiéis e próximos os bens que havia herdado de seus pais, obtidos pelos benefícios dados pelo próprio rei, ou adquiridos por outros meios18 . Essa afirmação de Bertrand se distancia bastante do testamento de Cesário que em momento algum fala de alguma intervenção real para que pudesse elaborar seu testamento. Todos os seus bens pertenciam, em primeira instância, à Igreja e, portanto, o bispo nada poderia fazer para administrá-los após sua morte (conforme os cânones conciliares), como deseja fazer por meio desse testamento. Todavia, o testamento apresenta, mesmo que por meio de uma leitura superficial, que o rei possuía poder para julgar a quem pertenciam os bens. Há uma clara diferença entre os bens episcopais e aqueles pertencentes à Igreja, porém o próprio bispo não teria poder para administrar aquilo que possuía, apenas a Igreja tinha esse poder, a menos que o rei interviesse. Indiretamente, Bertrand faz uma separação entre os bens que já possuía antes de se tornar bispo, como os bens herdados de seus pais, e aqueles adquiridos já como bispo. Quando se refere aos bens herdados por ele, utiliza pronomes e verbos na primeira pessoa do singular (LINGER, 1995: 191, disposição n° 14). Contudo, ao tratar dos bens adquiridos durante sua permanência no episcopado, Bertrand passa para a primeira pessoa do plural (LINGER, 1995: 191, disposição n° 11). Estes últimos bens provavelmente pertenciam ao bispo e à igreja de Mans. Portanto, quando adquiria bens como bispo, não era para a pessoa de Bertrand que esses bens passariam a pertencer, mas a a sua igreja de origem. O bispo não tinha propriedade sobre tais bens, como visto na disposição nº 25 do testamento em que este declara que as vilas que doou à santa igreja pelo testamento ou que foram adquiridos sob sua gestão permanecessem na posse da igreja. Nós rogamos ao nosso sucessor e o conjuramos pela Trindade divina que as villae que eu doei à santa igreja por este testamento ou que foram adquiridas sob a minha gestão, permaneçam na posse da igreja [...] (LINGER, 1995: 192, disposição nº 25, tradução da autora)19 . 18 “[...] o altíssimo senhor rei Clotário, [...], doou-me um preceito confirmando de sua mão que ele me atribui a livre escolha, [...]”. “[...] le très haut seigneur roi Clotaire, […], m’a donné un précepte confirmant de sa main qu’il m’attribuait le libre choix, […]”. (LINGER, 1995: 190, tradução da autora). 19 “Nous supplions notre successeur et nous le conjurons par la Trinité divine que les villae que moi j’ai données à la sainte église par ce testament ou qui ont été acquises sous ma gestion, restent en la possession de l’église …”. O testador mostra que tudo aquilo que adquiriu em sua gestão na igreja de Mans,
  • 30. 27 Um bem importante para Bertrand, presente em várias disposições do testamento, são as villae que, no entanto, em momento algum são definidas pelo testador20 . Uma justificativa dessa importância dada às villae seria a de que, neste caso, as villae herdadas eram uma representação da doação plena da propriedade, não apenas o direito à sua administração. Por fim, Bertrand elege bispos para serem testemunhas de suas vontades e transmissores de suas decisões a seu sucessor no episcopado da igreja de Mans, para que elas não sejam desvirtuadas na sua ausência e possam ser atribuídas como salvação de sua alma.21 Ainda na conclusão faz ameaças, como de excomunhão, lepra, entre outras, a quem não cumprir sua vontade. Assim, pôde se perceber que a qualificação do testador como proprietário deve ser questionada por meio deste testamento. 4 Considerações finais Desse modo, foi visto que há claramente uma distinção entre os bens episcopais e os bens eclesiásticos, ao menos quando analisados os textos jurídicos elaborados no período estudado. Ainda foi possível notar que houve confrontos pela propriedade de tais bens causados pelos próprios religiosos. Os testamentos e os concílios, redigidos no mesmo período, dialogam entre si na medida em que é apresentado nos dois documentos a preocupação com a posse desses bens. Apesar de ambos terem sido redigidos pelos próprios bispos, nota-se essa preocupação é de formas diferentes, e seu uso poderia beneficiar ou prejudicar o interessado, dependendo da forma como o mesmo documento era utilizado. No permanecerão em sua posse após a morte de Bertrand. De uma forma indireta, o bispo não permite que outros reivindiquem esses bens como herança após sua morte. Cesário também apresentou essa preocupação. 20 As villae podem ser uma referência às propriedades em si ou apenas o direto de administrá-las. Em ambos os casos, o beneficiário teria o dever de administrar a propriedade que ou pertence ao rei ou foi doada por ele. Por isso, o rei Clotário presenteia Bertrand com tantas villae durante sua vida, aquele precisa de alguém em quem confia para assegurar as funções sociais de tal região. Portanto, o bispo, ou qualquer um que recebe uma dessas villae, torna-se uma espécie de administrador público. O benefício que estes possuem por realizar tal serviço ao rei é o de possuir uma renda por meio da coleta dos impostos de tal propriedade. (LINGER, 1995: 181-182). 21 Josiane Barbier apresenta uma discussão sobre o interesse salvífico presente nos testamentos merovíngios que, por isso, fariam parte de uma transição entre os testamentos romanos e as doações pro anima que passam a surgir no período franco. Essas doações teriam uma finalidade única de salvação da alma tendo, assim, mais facilidade de promover integralmente doações às Igrejas, enquanto nos testamentos haveria mais dificuldades. (BARBIER, 2005: 7-79) Contudo, no caso específico dos testamentos episcopais essa afirmação da autora não procede completamente, pois por meio desta análise pôde se perceber que não são todos os testadores que estão preocupados com a salvação da alma (como o testamento de Bertrand) e que há testamentos, como o de Cesário, em que o bispo faz doações apenas à Igreja, evitando que seus familiares reivindiquem alguma herança. Esta última observação contradiz a autora quando esta afirma que os testamentos devem dirigir uma parte da herança para os familiares mais próximos (herdeiros naturais).
  • 31. 28 caso de Cesário, por exemplo, o bispo conseguiu encontrar nos próprios cânones conciliares uma maneira de argumentar a favor de suas vontades no testamento, que em tese eram condenáveis pelos concílios. Nesse sentido, a presente pesquisa tem como principal objetivo a compreensão dessas disputas geradas em torno dos bens eclesiásticos pelos bispos e pela entidade eclesiástica. Por meio do que foi apresentado, já é possível notar que o confronto entre os dois documentos de caráter normativo apresenta bons resultados referentes à natureza dos bens descritos, apesar de não serem suficientes para esgotar o tema proposto. A análise dos documentos suscita mais questões que ainda precisam ser analisadas e discutidas. REFERÊNCIAS BARBIER, Josiane. “Testaments et pratique testamentaire dans le royaume franc (VIe-VIIe siècle)”, In: BOUGARD, François; LA ROCCA, Cristina; LE JAN, Régine (eds.). Sauver Son Âme et se Perpétuer: Transmission du Patrimoine et Mémoire au Haut Moyen Âge. Rome: École française de Rome, 2005. BLOCH, Marc. A Sociedade Feudal. Lisboa : Edições 70, 1982. COURREAU, J.; VOGÜÉ, A. de (eds.). Ouevres Monastiques: Césaire d’Arles (Sources Chrétiennes – v. 345, p. 360-397), Paris : Les Éditions du Cerf, 1994, pp. 380-397. CURTA, Florin. “Merovingian and Carolingian Gift-Giving”.Speculum, Nº 81, 2006, pp. 671-699. DEVROEY, Jean-Pierre. Économie rurale et société dans l’Europe franque (VIe-IXe siècles). Tome I : Fondements matériels, échanges et lien social. Paris: Éditions Belin, 2003. GANZ, David. The Ideology of Sharing: Apostolic Community and Ecclesiastical Property in the Early Middle Ages. In: DAVIES, Wendy; FOURACRE, Paul (eds.). Property and Power in the Early Middle Ages. Cambridge: Cambridge University Press, 1995, p. 17-30. GAUDEMET, Jean; BASDEVANT, Brigitte. Les canons des conciles mérovingiens (VIe – VIIe siècles). Sources Chrétiennes nº 353, T. I, Paris : Les Éditions du Cerf, 1989. GUILLOT, Olivier. “Assassin des pauvres": une invective pour mieux culpabiliser les usurpateurs de biens d'église, aidant à restituer l'activité conciliaire des Gaules entre 561 et 573”, In: GUILLOT, Olivier. Arcana Imperii [I] (IVe-XIe siècle). Recueil d'articles. Limoges: PULIM (Cahiers de l'Institut d'Anthropologie juridique), 2003. HERLIHY, David. “Church property on the european continent, 701-1200”. Speculum, V. 36, Nº 1, 1961, pp. 81-105.
  • 32. 29 LE JAN, Régine. “Introduction: Les transferts patrimoniaux en Europe Occidentale”. Mélanges de l’École Française de Rome, Moyen Âge, 1999, T. 111, Nº 2, pp. 489-497. ________. “Malo ordine tenent: transferts patrimoniaux et conflits dans le monde Franc (VIIe–Xe siècle)”. Mélanges de l’École Française de Rome, Moyen Âge, 1999, T. 111, Nº 2, pp. 951-972. LESNE, Émile. “Êvêche et abbaye. Les origines du bénéfice ecclésiastique”. Revue d’Histoire de l’Église de France, T. 5, Nº 25, 1914, pp. 15-50. LINGER, Sandrine. “Acquisition et Transmission de propriétés d’après le testament de Bertrand du Mans (27 Mars 616)” In: MAGNOU-NORTIER, Elisabeth. Aux Sources de la Gestion Publique (Tome II): L’Invasio des Villae ou la Villa comme enjeu de pouvoir, Lille: Presses Universitaires de Lille, 1995, pp. 171-194. MAGNANI, Eliana. “Du don aux églises au don pour le salut de l’âme en Occident (IVe-IXe siècle) : le paradigme eucharistique”. Bulletin du Centre d’Études Médiévales d’Auxerre, Nº 2, 2008, pp. 2-16. ________. “Le don au moyen age: pratique sociale et représentations perspectives de recherche”. Revue du MAUSS, 2002, N° 19, pp. 309-322. ________. “’Un trésor dans le ciel’. De la pastorale de l’aumône aux trésors spirituels (IVe- IXe siècle)”. In : BURKART, Lucas; CORDEZ, Philippe; MARIAUX, Pierre Alain; POTIN, Yann (eds.). Le trésor au Moyen Âge: Discours, pratiques et objets. Firenze: Sismel – Edizione del Galluzzo, 2010, pp. 51-68. MAUSS, Marcel. Ensaio sobre a dádiva. Lisboa: Edições 70, 1988. PENNINGTON, Kenneth. "The Growth of Church Law," In: CASIDAY, Augustine; NORRIS, Frederick (eds.). The Cambridge History of Christianity, 2: Constantine to c. 600 Cambridge: Cambridge University Press, 2007, pp. 386-402. PONTAL, Odette. Histoire des Conciles Mérovingiens. Paris: Éditions Du Cerf, 1989. REYNOLDS, Susan. Fiefs and Vassals: The Medieval Evidence Reinterpreted. Oxford: Clarendon Press, 1996. ROSENWEIN, Barbara. Negotiating Space: Power, Restraint, and Privileges of Immunity in Early Medieval Europe. Ithaca: Cornell University Press, 1999. ________. “Property transfers and the Church, eighth to eleventh centuries. An overview.” In: Mélanges de l’École française de Rome. Moyen-Age, Temps modernes. T. 111, Nº 2, 1999, pp. 563-575. ________. To be the neighbor of Saint Peter: The social meaning of Cluny’s property, 900- 1049. Ithaca/ Londres: Cornell University Press, 1989.
  • 33. 30 TESTART, Alain. “Échange marchand, échange non marchand”. Revue française de sociologie, V. 42, N° 4, 2001, pp. 719-748. WOOD, Susan. The Proprietary Church in the Medieval West. Nova York: Oxford University Press Inc., 2006.
  • 34. 31 “NEGOCIAR A PAZ”: O ENVIO DE LEGADOS FRANCOS AO IMPÉRIO NO SÉCULO VI – AS EPÍSTOLAS AUSTRASIANAS Edward Dettmam Loss1 Durante o século XIX – momento de transformação da História em disciplina acadêmica – a Idade Média tornou-se um lugar privilegiado de interesse dos historiadores. Preocupados com as prerrogativas do Estado Nacional, vários intelectuais, principalmente franceses e alemães, buscavam situar no período o momento de nascimento de suas respectivas nações, ou seja, a busca das origens era a grande tônica de suas produções. Ao mesmo tempo em que empreendiam esse esforço fundacional, que acabava de certa forma por valorizar um pouco o período, também lhes cabia a exaltação da superioridade da organização estatal moderna em detrimento de todas as outras experiências políticas vividas até então. Esse objetivo fez com que autores como Augustin Thierry (1833) e François Guizot (1840) – imbuídos da ideia de que a única violência legítima era aquela monopolizada pelo Estado – produzissem, através da análise de fontes do período, como os escritos de Gregório de Tours, um quadro da Alta Idade Média marcado pela desordem e pelo caos, fruto de uma violência descontrolada e, sobretudo, de caráter privado, que seria a clara demonstração da ausência de um poder público e de estruturas de direito. Essa ideia de desordem e de violência desenfreada não se restringia ao interior dos chamados reinos bárbaros, sendo também projetada para a dimensão externa, ou seja, das relações desses reinos entre si e com o Império Romano do Oriente. É o que encontramos em trabalhos de ínicios do século XX, como o artigo escrito por Amos Hershey, intitulado: The history of international relations during antiquity and the middle ages. Obra na qual, o autor descreve a Alta Idade Média como marcada por violentas e permanentes guerras entre os reis bárbaros e pela ausência de formas pacificas de negociação e de mediação pelo menos até os séculos XI e XII, momento do chamado renascimento do direito romano2 . Tal perspectiva persistiu na historiografia durante um longo tempo, sendo somente questionada mais sistematicamente a partir da segunda metade do século XX. Nesse 1 Bacharel e Licenciado em História pela Universidade de São Paulo. Bolsista de iniciação científica da FAPESP. 2 “It has been said that ‘international law reached its nadir in the west’ at this period or during the so-called ‘Dark Ages’, between the final disappearance of the Western Empire in 476 and the coronation of Charlemagne as Emperor of the West by Pope Leo III in 800 A. D. In spite of the pacific teaching of Christ and the early Fathers of the Church, ‘the history of the wars of Clovis, the hero of orthodox clergy, is the tale of savage murder and the most hateful treachery’” (HERSHEY, 1911: 922).
  • 35. 32 momento, emergiam, com os processos de descolonização africana, formas de organização política até então desconhecidas por grande parte da intelectualidade do Ocidente, que tornavam possível se repensar a influência dos paradigmas do Estado Moderno nas análises históricas de outros períodos. Foi também decisiva a aproximação dos estudos históricos com a Antropologia. Através do contato com as pesquisas sobre a faida africana fundados por E. E. Evans- Pritchard e de estudos de outros autores, principalmente ligados à Antropologia jurídica anglo-saxã, os historiadores reviram suas concepções a cerca da prática da vingança, base da ideia de violência desenfreada medieval (BOUGARD, 2006: 1). Neste sentido, a obra de John Michael Wallace-Hadrill, The Long-Haired Kings, constituiu um marco. Nesse trabalho o autor mostrou como a própria realização da vingança na Alta Idade Média seguia parâmetros e normas estabelecidas pela própria sociedade, não ameaçando, desta forma, a ordem social e nem as instituições públicas. Aceitava-se assim que os conflitos entre os dissidentes no interior dos reinos bárbaros não levavam necessariamente a choques sanguinários, mas passavam por mecanismos de negociação, de mediação e de arbitragem, mesmo que a violência de alguma forma fizesse parte deles. Tal perspectiva permitiu também que fosse reavaliada a forma como se concebiam as relações entre os reinos bárbaros e o Império, que, como exposto anteriormente, eram marcadas pela ideia de guerra permanente e de ausência de formas pacificas de negociação. Desta maneira, surgia um interesse em se entender como se davam essas relações entre as diferentes entidades políticas independentes do Mediterrâneo e quais eram as suas características e os mecanismos empregados, já que um cenário de generalização irracional do conflito bélico não podia mais ser aceito. Neste processo, uma série de correspondências trocadas entre os principais soberanos dos séculos VI e VII, que chegaram até nós na forma de compilações epistolares, deixaram de ser tratadas como exercícios de puro estilo, esvaziadas de conteúdo real – por seus redatores se declararem imbuídos de aspirações morais elevadas e mencionarem mais a palavra “Paz” do que “Guerra”3 , algo que destoava da visão que se tinha sobre a violência e a avidez dos 3 Essas compilações seriam, em ordem cronológica, primeiramente as Variae de Cassiodoro (†583), referentes ao reino Ostrogodo e escritas nas primeiras décadas do século VI, depois as cartas de Avito de Viena (†518), que tratam sobre o período de governo do rei dos Burgúndios, Sigismundo (†524), também do início do século VI. Em terceiro lugar, as Epístolas arlesianas, um dossiê de cartas trocadas entre os francos e Bizâncio no momento da Reconquista de Justiniano, seguidas pelas Epístolas austrasianas, reunidas, ao que tudo indica, nos anos 590, que serão melhor explicadas adiante, devido à sua posição de destaque nesta pesquisa. Em quinto
  • 36. 33 bárbaros – e passaram a ser consideradas importantes fontes para o estudo das formas de resolução de conflito entre os reinos bárbaros e o Império no período. Entre essas compilações epistolares da Alta Idade Média encontram-se as “Epístolas Austrasianas”, um conjunto de 48 epístolas escritas por reis francos e bispos da Gália e endereçadas a diversos personagens do Reino Franco e da corte do Império Romano do Oriente durante o século VI. Preservados através de um cópia manuscrita do século IX – o Palatinus Latinus 869 – esses documentos foram em parte negligenciados até finais do século XIX, quando Wilhelm Gundlach fez o primeiro estudo sistemático do conjunto das epístolas, no qual estimou a sua data de reunião, o século VI, a sua proveniência geográfica, a Austrásia, e levantou questões sobre a identidade do compilador e do objetivo de criação da coleção (GUNDLACH, 1888: 377). O autor terminaria por publicar a versão que ainda hoje é considerada a mais importante dessas fontes, incluíndo-a nos Monumenta Germaniae Historica, os M.G.H., sob o título de Epistolae Austrasicae. Tal versão teve tamanho impacto na historiografia que o P. L. 869 seria conhecido e mencionado pelo nome de “Epístolas Austrasianas” em trabalhos escritos mais de um século após a publicação de Gundlach4 . Ao analisar a sua composição, percebe-se que apesar dessas epístolas terem sido organizadas no seu século de criação como uma unidade, a coleção possui uma estrutura interna bipartide. Por um lado, um conjunto de 24 epístolas (1-24), trocadas entre os bispos da Gália, restritas à região da Austrásia e cobrindo um espaço temporal de aproximadamente 130 anos, e, por outro, o grupo formado pelos exemplares de 25 a 48, enviados ao Império em nome dos reis merovíngios, abrangendo geograficamente a Austrásia, o Reino Lombardo e o Império Romano do Oriente e centrado nas últimas décadas do século VI. Levando em consideração as mudanças relativas ao ideal de violência na Alta Idade Média, destacadas anteriormente nesse texto, e a consequente importância dada aos estudos das formas pacíficas de resolução de conflitos no período, neste artigo buscar-se-á explorar como as “epístolas dos reis” (DUMÉZIL; LIENHARD, 2011: 69), os exemplares de 25 a 48, das Epístolas Austrasianas vem sendo utilizadas nas últimas décadas como fontes para o lugar, a correspondência do papa Gregório o Grande (†604), também do século VI, e em seguida o Codex visigodo de Oviedo, de inícios do século VII. Tal documentação contém a Segunda vida de São Desidério de Viena (†608), texto hagiográfico de grande importância no estudo das relações do Reino Visigodo com os outros reinos. O autor adiciona também a esses seis exemplares, duas outras coleções que considera problemáticas: a correspondência de Venâncio Fortunato (†609), também do século VI, que possui um estatuto textual complexo, e o formulário de Marculfo (†558), que teria um alto grau de dificuldade de avaliação e de datação. (DÚMEZIL, 2011: passim). 4 Como exemplo, citamos o trabalho de Bruno Dumézil e Thomas Lienhard, produzido na primeira década do século XXI. Cf. DUMÉZIl, LIENHARD, 2011.
  • 37. 34 estudo das práticas de negociação e de troca de legações entre as diferentes unidades políticas independentes do mediterrâneo no século VI. Tem-se por objetivo demonstrar que algumas das conclusões tecidas por autores como Paul Goubert e Bruno Dúmezil em relação a essas práticas podem ser problematizadas através de uma análise cuidadosa de epístolas dessa coleção. Um exemplo que será dado através do estudo de caso da epístolas de número XL e XLII. Comecemos por um dos primeiros trabalhos de análise realizados nessa direção e até hoje considerado entre os mais importantes sobre as “Epístolas Austrasianas”: o de Paul Goubert. Em um tomo de sua coleção sobre Bizâncio antes da expansão islâmica, intitulado: Byzance et l'occident sous les successeurs de Justinien. I- Byzance et les Francs, o autor se dedica ao estudo das relações entre o Império e os francos. Nesta obra, Goubert situou as “Epístolas Austrasianas” no contexto da política ocidental do Imperador Maurício, que tinha como objetivo a expansão da autoridade bizantina a todo o antigo território do Mare Nostrum do Império romano. Ele identificou que as “epístolas dos reis” faziam parte das tentativas de comunicação franco-imperial, devendo, desta forma, ser consideradas fruto de embaixadas cuidadosamente organizadas e trocadas entre o Reino Franco e Bizâncio com o objetivo último de obtenção da paz e do bom relacionamento entre a Austrásia e o Império, que, devido a outros conflitos com os Persas e a presença lombarda na Península Itálica, necessitava da ajuda franca para alcançar seus objetivos Partindo dessa constatação, Goubert realiza um estudo preciso da documentação, enumerando e pondo em discussão o número e o caráter dessas embaixadas, assim como o papel dessas cartas no interior dessas expedições, cujos itinerários ele faz questão de traçar, além de estimar os seus possíveis membros5 . O autor ainda destaca a utilização frequente de bispos e outras figuras eclesiásticas no exercício dessas funções. Também a partir da análise do conteúdo das epístolas, o pesquisador francês versa sobre as táticas utilizadas por Bizâncio ao negociar com os reinos bárbaros, como o envio de dinheiro, a busca de apoio do ascendente papado, o sequestro de pessoas da família real e o suporte de personagens que reclamam direito ao trono franco6 . De forma geral, podemos dizer que Goubert sinalizou através de sua análise das epístolas a existência de uma preocupação sistemática com a organização e o envio de 5 Paul Goubert dedicará cinco capítulos inteiros deste tomo as epístolas austrasianas e a essa análise. (GOUBERT, 1955: 93-202). 6 Sobre o assunto Paul Goubert se dedica grande parte do seu livro a narrar o caso do usurpador Gundovaldo.
  • 38. 35 legações no século VI, algo salientado pela mobilização de agentes de grande prestígio da corte austrasiana no papel de legados, pelo grande número de embaixadas enviadas em um relativamente curto período de tempo e finalmente, pelos recursos empregados na manutenção desses envios, que, em muitos casos, levavam meses para atingir o seu destino. Durante mais de 50 anos as considerações de Paul Goubert foram praticamente as únicas sobre as “Epístolas Austrasianas” e as práticas de negociação entre os reinos bárbaros e o Império na Alta Idade Média. Tal perspectiva foi retomada e aprofundada recentemente, já no século XXI, pelo pesquisador Bruno Dúmezil. Em seu artigo Les Lettres austrasiennes : dire, cacher, transmettre les informations diplomatiques au haut Moyen Âge, o autor define uma série de aspectos interessantes sobre aquilo que chama de “Diplomacia Merovíngia” através do estudo dos exemplares das “Epístolas Austrasianas” e da sua comparação com crônicas bizantinas e francas do período. A principal característica explorada por Dúmezil diz respeito à função da mensagem diplomática e do seu componente escrito, a epístola, no interior de uma legação enviada. Para o autor, o papel do documento escrito em uma embaixada era bastante secundário em relação ao objetivo da legação. Ele se limitaria a dar credibilidade ao seu portador e a assinalar que esse recebeu instruções secretas que deveria pessoalmente expor. Desta forma, as epístolas conteriam apenas elementos gerais sobre o assunto a ser discutido (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 72). Tal aspecto secundário para o professor francês faria com que o conteúdo desses documentos tivesse um caráter bem mais ideológico do que descritivo, tendo por função mais seduzir e mover o destinatário do que informar minuciosamente sobre as questões tratadas no envio (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 70). Uma vez que a legação atingia o seu destino, a epístola teria o seu conteúdo lido em voz alta diante da corte estrangeira, um aspecto que, para Dúmezil, exigiria a utilização de uma linguagem cheia de eufemismos nesses textos, que evitasse de qualquer forma causar indisposições e ofensas entre os dois soberanos que se comunicavam. A presença de vários elementos formais comuns à todas as “epístolas dos reis” fez com que o autor acreditasse na existência de padrões chancelerescos que eram seguidos pelos dictatores na composição das epístolas confiadas aos embaixadores (DÚMEZIL; LIENHARD, 2011: 71). Em um outro artigo seu intitulado Les ambassadeurs occidentaux au VIe siècle: recrutement, usages et modes de distinction d'une élite de représentation à l’étranger, Bruno Dúmezil explora os critérios de escolha desses embaixadores e das características que esses
  • 39. 36 deveriam ter. Através de análises prosopográficas dos indivíduos mencionados no corpo das epístolas como legados, o autor argumenta que esses personagens seriam do mais alto escalão, jamais de uma qualidade menor do que de Vir Illuster, provenientes das melhores famílias e, geralmente, com passagem pela escola do palácio. De acordo com o pesquisador, existiriam três tipos de pessoas que seriam empregadas em uma legação: 1) Indíviduos da família real – em casos bastante excepcionais; 2) Ofíciais civis – os mais frequentemente utilizados; 3) Bispos e figuras eclesiásticas importantes (DÚMEZIL, 2009: 1). O número de legados mobilizados também seria algo digno de nota. Normalmente, uma embaixada era composta por dois indivíduos, aumentando esse número de acordo com o impacto e a importância que se buscava dar ao envio. (DÙMEZIL, 2009: 3) Devido à variedade de características e à riqueza de detalhes apresentadas até aqui, pode-se dizer que os trabalhos de Bruno Dúmezil constitui uma grande contribuição para a análise das “Epístolas Austrasianas” como fontes para o estudo da diplomacia merovíngia. Deve-se também a ele a exploração da circulação e da influência dessa coleção, enquanto um modelo de formulários chancelerescos, nas atividades de diplomatas ao longo da Alta Idade Média, incluindo a própria chancelaria de Carlos Magno. Passar-se-á agora para a última parte deste texto, na qual gostaria-se de analisar algumas das afirmações apresentadas pelos autores anteriormente mencionados à luz da leitura de trechos de alguns exemplares da coleção. Infelizmente, devido ao reduzido tempo dessa exposição concentrar-se-á na exploração de um aspecto em particular: as afirmações acerca da linguagem bastante restritiva desse tipo de documentação, que seria marcada pela presença de eufemismos e de um tom predominantemente elogioso7 . Na construção de tal argumento Bruno Dúmezil, como visualizamos nas notas de rodapé de seu texto, utiliza-se das epístolas de número 26, 30, 36 e 37. De fato, esses exemplares são bastante curtos, com aproximadamente 10 linhas cada, estão repletos de termos laudatórios aos seus destinatários, e, em relação ao conteúdo, pouco dizem sobre o objetivo da comunicação, com exceção de indicar que foram designadas instruções aos embaixadores que os portavam. 7 “Ajoutons qu’étant donné que la lettre est lue en public, toute critique un peu trop ouverte est perçue comme une agression. [...] Toute franchise étant dangereuse, mieux vaut confier les récriminations à la parole des ambassadeurs qui s’entretiendront en secret avec le roi. La plupart des lettres officielles savent donc rester les plus élogieuses possible” (DÚMEZIL, LIENHARDT, 2011: 75-76).
  • 40. 37 Entretanto, chama-se a atenção para a presença na mesma sequência da documentação referente às “epístolas dos reis”, de exemplares bastante informativos, compostos por mais de três páginas de texto, como o de número XLII. Escrita pelo imperador Maurício e enviada ao rei Childeberto II, essa epístola trata de uma reclamação por parte do imperador do não cumprimento da promessa feita pelo rei da Austrásia de enviar tropas para a expulsão dos lombardos da Península Itálica. O que impressiona em tal documento, e que destaca-se aqui, é o tom e a linguagem nele utilizados. Comecemos pela própria saudação da epístola, na qual se apresentam o destinatário e o remetente do documento. Encontramos o seguinte enunciado: EM NOME DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO, O IMPERADOR CÉSAR FLÁVIO MAURÍCIO TIBÉRIO, FIEL EM CRISTO, GENTIL, MÁXIMO, BENÉFICO, PACÍFICO, ALAMÂNICO, GÓTICO, ÁNTICO, ALÂNICO, VANDÁLICO, ERÚLICO, GÉPIDO, AFRICO, PIO, FELIZ, ILUSTRE, VITORIOSO E TRIUNFADOR, SEMPRE AUGUSTO, AO HOMEM GLORIOSO, CHILDEBERTO, REI DOS FRANCOS (EPÍSTOLA AUSTRASIANA, nº XLII)8 . É possível notar que estão associados ao nome do imperador romano todos os títulos dos povos já conquistados pelo Império, algo que não encontramos em todas as epístolas da coleção escritas pelo imperador, que frequentemente só citam “do Imperador Romano Maurício”. Temos aqui uma clara tentativa de demonstração do poderio do Imperador e de sua superioridade em relação à figura do rei da Austrásia, que recebe quase que somente o adjetivo de rei. Esse tom mais agressivo se intensifica ao longo do texto da epístola. Selecionamos três trechos que enfatizam esse aspecto: E nos parece estranho se, afirmando ter justa intenção e que é neste ponto provada a antiga unidade entre a nação franca e o governo romano, Vossa Eminência deu a impressão de não mostrar até agora nenhum gesto concreto que seja coerente com a amizade, enquanto as promessas expressas por escrito e confirmadas pela intervenção de bispos e corroboradas por terríveis juramentos, passado tanto tempo, não tenham sortido efeito algum (EPÍSTOLA AUSTRASIANA nº XLII, grifo nosso)9 . 8 “IN NOMINE DOMINI DEI NOSTRI IESU CHRISTI, IMPERATOR CAESAR FLAVIUS MAURICIUS TIBERIUS, FIDELIS IN CHRISTO, MANSUETUS, MAXIMUS, BENEFICUS, PACIFICUS, ALAMANNICUS, GOTHICUS, ANTICUS, ALANICUS, WANDALICUS, ERULICUS, GYPEDICUS, AFRICUS, PIUS, FELIX, INCLITUS, VICTOR E TRIUMPHATOR, SEMPER AUGUSTUS, CHILDEBERTO VIRO GLORIOSO, REGI FRANCORUM”. 9 “Et mirum nobis videtur si, rectam habere mentem atque priscam gentis Francorum et dicioni Romanae unitatem esse conprobatam adfirmans, nihil operis usque adhuc amicitiae congruum Eminentia Tua ostendens visa est, dum in scriptis pollicita atque per sacerdotis firmata et terribilibus iuramentis roborata, tanto tempore excesso, nullum effectum perceperunt”.
  • 41. 38 E se as coisas estão assim, com qual propósito canseis em vão os vossos legados particulares, por um espaço deveras amplo de terra e de mar, sem confiar-lhes respostas, com vanglória e discursos juvenis, que não possuem nenhuma utilidade? (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII, grifo nosso)10 . E desejamos que vós, se quiserdes conquistar a nossa amizade, vigorosamente e sem esitação, examinais cada aspecto e não somente o digais em palavra, mas façais cumprir virilmente, como se espera de um rei, aquilo que tivésseis dito, e dos pares espereis a nossa pia benevolência (EPÍSTOLA AUSTRASIANA Nº XLII, grifo nosso)11 . Nesses trechos, percebemos, através da qualificação por parte do Imperador de que as atitudes do rei Childeberto II eram vãs e juvenis, que a mensagem é bastante clara: ou o rei atende as exigências do Imperador ou perde o apoio e a amizade do Império. Tal constatação é bastante interessante. Através dela podemos pensar em que medida, ao invés de seguir um padrão tão marcado, necessariamente apaziguador, a linguagem dessas epístolas não poderia ser mais flexível variando de acordo com a posição de um interlocutor em relação ao outro, e, principalmente, com as circunstâncias em que eles se encontravam. Ora, no momento de composição da epístola analisada o Império detinha posse do neto da rainha da Austrásia, Atanagildo, como refém em Constantinopla. Fator que, acreditamos, justificaria a mudança no teor da requisição imperial de ajuda militar. Ainda em relação ao caráter pouco informativo das epístolas sobre o assunto do qual elas tratavam, ressaltado por Dúmezil e Lienhard nos exemplares que fazem menção às mensagens a serem entregues oralmente pelos legados ao destinatário, a leitura da epístola de número XL apresenta alguns elementos interessantes. Também destinada ao rei Childeberto II e escrita pelo Imperador Maurício, como o exemplar anteriormente analisado, essa epístola tem por objetivo informar ao rei franco da ação dos comandantes de seu exército na Península Itálica, enviado para auxiliar o Imperador na expulsão dos lombardos. A riqueza de detalhes desse exemplar chama a atenção. Nele encontramos a localização específica de agentes imperiais; Mas antes que os vossos comandantes entrassem no território da Itália, Deus por sua misericórdia e pelas suas orações nos fez entrar, combatendo, até Modena, e também a Altino e a Mântova – combatendo e abatendo as muralhas, de tal modo que o exército dos Francos pôde tomar conhecimento – com a ajuda de Deus entramos, 10 “Et si hoc ita est, quid per tante spatia terrae atque maris inaniter sine responsu necessarios vestros legatarios fatigatis, iuvenalis sermonis, qui nihil utilitatis induxerunt, iactantes?”. 11 “Et optamus vos, si amicitiam nostram appetere desideratis, valide atque incunctanter omnia disceptare et non solum dictionibus enarrare, sed enarrata viriliter, quomodo regem oportet, peragere atque similiter nostram piam benevolentiam expectare”.
  • 42. 39 apressadamente, para evitar que o nefastíssimo povo Lombardo pudesse se organizar contra o exército dos Francos, enquanto o homem magnífico Hethin estava a 20 milhas, nos arredores de Verona, e consideramos necessário dirigir-nos a ele sem esitação, esperando com ele podermos ver de perto e de poder dispor, através de decisões comuns, sobre o que fosse útil à destruição daquela gente infiel (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)12 . os planos a serem executados em relação aos lombardos; E já que Autari tinha se enclausurado em Pávia e os outros comandantes e todo o seu exército tinha se enclausurado em diversos castelos, no tratado estabelecemos o seguinte: ir, com o exército romano e com os dromones13 - enquanto Hethin estava em uma outra parte nos arredores (como já dissemos, 20 milhas) - para sitiar Autari (e, junto a ele, a maior parte da vitória teria sido obtida) e então, enfim, se tivessemos alguma coisa a dizer (ou seja, fazer) com eles, tudo teria sido dito primeiro a vós: isso acreditamos que mesmo o poderoso exército dos Francos quereria fazer (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)14 . e por fim, o conteúdo de acordos estabelecidos entre a Austrásia e o Império: Além disso, aquilo que Vossa Glória deve fazer por iniciativa sua, imploramos para que vós o cumprais: ou seja, que ordenai que os Romanos capturados pelo exército Franco sejam soltos em vosso mérito e de vossos filhos e netos; pois diversos são os juramentos presentes nos tratados, incluindo, que os prisioneiros devem ser soltos, e essa é a intenção de vosso pai, o cristianíssimo imperador, de obter mérito convosco, dia a dia, pela libertação das almas (EPÍSTOLA AUSTRASIANA. Nº XL)15 . A presença desses elementos descritivos minuciosos em exemplares16 da coleção foi mais um indício que nos levou a refletir sobre a inadequação do estabelecimento de critérios e normas tão rigorosos para as práticas chancelerescas e para o envio de legados no período. As 12 “Ante vero quam fines Italiae vestri duces ingrederentur, Deus pro sua pietate vetrisque orationibus et Motennensem civitatem nos pugnando ingredi fecit, pariter et Altinonam et Mantuanam civitatem – pugnando et rumpendo muros, ut Francorum videret exercitus – Deo adiutore sumus ingressi festinantes, ne gente nefandissimae Langobardarum se contra Francorum exercitum adunare liceret, Etheno viro magnifico in viginti milibus prope Veronensi civitate resedente, ad quem necessarium duximus sine mora diregere, sperantes ab eo ut nos videremus in comminus et quae essent utilia ad delendam gentem perfidam disponeremus communi consilio”. 13 “Embarcações bizantinas ligeiras e velozes, utilizadas na águas do Pó para atacar a Pávia” (MALASPINA, 2001: p. 290). 14 “Et hoc habuimus in tractatu, quia Autharit se in Ticeno inclauserat aliique duces omnesque eius exercitus per diversa se castella reclauserat: ut nos cum Romano exercitu et dromonibus – Etheno ab alia parte in vicino (sicut diximus, in viginti milibus) resedente – ad obsedendum Autharit veniremus (eoque capto maxima pars fuerat adquaesitam victuriae) et tunc demum, si forte aliqua cum eis loquenda (est ut facienda) essent, omnia prius ad vestram notitiam differrentur: quam rem et Francorum florentissimus credemus quia facere volebat exercitus”. 15 “Praeterea quod ex se Gloria Vestra facere consuevit, implenda deposcimus, ut Romanus, quos praedavit Francorum exercitus, pro mercede vestra et filiorum ac nepotum vestrorum relaxare praecipiates; quia et alia sunt in pactis posita sacramenta, est ut captivi debent relaxari, et patris vestri, christianissimi principis, haec est intentio, ut cottidiae de animarum liberatione vobiscum mercedem adquirat.” 16 Apresentamos aqui a análise apenas do exemplar XL, como exemplo, mas, esse tipo de afirmação seria válido também para as epístolas XLVI e XLVIII.