Este conto relata a história de uma idosa que se sente cansada e desiludida com a vida. Ela sonha em voar livremente como as aves. Uma noite, tem um sonho onde ascende uma escadaria para o Paraíso, onde se sente feliz e jovem novamente. No Paraíso, continua sem conseguir voar, mas uma entidade gentil lhe diz que um dia as suas asas a levarão pelos "rios de vento".
3. Edições BiblioFaria
Escola Secundária Severim de Faria
Estrada das Alcáçovas, 7000 - Évora
Reservados todos os direitos
de acordo com a legislação em vigor
Junho de 2009
Título original: Kathársis
Revisão:
Paginação:
1ª edição: Junho de 2009
Depósito legal: 13 13 13 /07
Impressão e acabamento: escola-casa- reprografia
ISBN:
3
5. PREFÁCIO
À LAIA DE INTRODUÇÃO
É-me particularmente grato aceder ao convite que me foi endereçado
para, em duas palavras, assinalar o décimo aniversário do Concurso
Literário “Kathársis”, promovido pela Escola Secundária de Severim de
Faria. Não se trata, em rigor, de um prefácio por excelência, dado que
neste texto se não faz, nem pode fazer, qualquer espécie de apreciação
literária. O que aqui, um pouco à laia de nota introdutória, se pretende
firmar é a relevância que um concurso desta natureza assume nos tempos
que correm. Pouco importará, neste contexto, enaltecer os premiados,
que merecem, naturalmente, um enfático estímulo, mas sublinhar o
carácter de ampla participação de alunos de todos os anos de
escolaridade que têm contribuído, como anónimos militantes, para a
causa da Língua Portuguesa e a ela associada para a reflexão sobre o papel
do Eu e do Nós, em turbilhões de sentimentos, de contradições, de
histórias, de atitudes, de ideias, de construções, de vontades e vivências.
Atrever-me-ia mesmo a dizer que a Língua Portuguesa tem de ganhar o
estatuto de grande causa. O “Kathársis”, fruto da persistência, do
envolvimento, do esforço, da dedicação e determinação e, às vezes contra
ventos e marés, tem sabido responder a este desafio, a todos os títulos
cativante, que aos Portugueses se coloca e se deve colocar, e de forma
muito actuante, aos nossos estudantes na defesa e na expansão desta
Língua, única, complexa, rica, depressiva, altiva, vibrante, símbolo de um
património que não se pode permitir ser ameaçado.
Dez anos é muito tempo numa escola com pouco mais de trinta de
existência, razão por que o “Kathársis” se constitui, indubitavelmente
nesta data, como um selo cultural da nossa vida interna e colectiva. E
continua a construir-se, insistindo num posicionamento de não
conformismo perante a contra-corrente dos que, há muito, ou há pouco,
desistem da língua enquanto seus cultores, e sobretudo, perderam o
5
6. sentido da magia das palavras. E essa afirmação da palavra não é uma das
menores virtudes do concurso que agora honramos.
Por tudo isto, e certamente por muito mais, o “Kathársis” está de
parabéns, como de parabéns estão todos os que o edificam, sendo, em
absoluto, justo destacar a Dr. Ana Paula Fadigas por ser a sua máxima,
pertinaz, obreira. O “Kathársis” é hoje uma marca fundamental de uma
Escola que teima em fazer da cultura um desiderato identitário. Para
sempre.
Carlos Percheiro
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9. VIAGEM AO PALEOLÍTICO
Olá, eu sou o MELF. Vivo no Paleolítico Superior e vou relatar mais um
dia normal da minha pequena vida.
Levantei-me quando o primeiro raio de sol bateu no meu acampamento.
Quando já todos nos tínhamos levantado, começámos a trabalhar e o nosso
chefe foi ver o que é que nós estávamos a fazer.
Agarrei no meu percutor e comecei a dar pancadas precisas no núcleo,
a fim de fabricar uma ponta de lança. Acabei e fui colher bagas para o meu
almoço. Passada essa fase, fiz uma agulha com todo o cuidado, para a minha
mulher confeccionar algum vestuário, utilizando as peles da caçada que
tínhamos realizado há alguns dias. Depois, com um arpão que construí, fui ao
rio pescar, e aproveitei para trazer água para o meu acampamento. Nesta
actividade, demorei o dia quase todo. Então, apanhei uns bocados de madeira.
Produzi o fogo com muita paciência, e assei a carne da caçada. Comi e convivi
com a família e os amigos à volta da fogueira.
Finalmente, fui-me deitar para me preparar para outro emocionante dia
que, de novo, me espera.
Miguel Ferrão,
7º Ano
9
10. DESEJO
Devia ter uns sete anos, não sei ao certo, mas caminhava sozinho pela
rua, arrastava a sola dos sapatos no alcatrão e cantarolava. Parecia feliz, tinha
um grande sorriso e um brilho nos olhos. Carregava uma mochila verde seco
às costas e na mão direita tinha um isqueiro, com o qual se divertia. Olhou para
o céu e por cima de si voavam três pássaros, voavam livres, sem barreiras,
sentiam o vento nas asas e dirigiam-se para o sol que já se punha. Parecia que
iam ao encontro da luz. O rapaz começou a correr para acompanhar os
pássaros, mas ao aperceber-se que não era tão rápido como eles, nem tinha
asas para voar, parou. Levantou a mão, olhou para o isqueiro e, com um gesto
brusco, atirou-o para o chão. Pisou-o e seguiu caminho com um ar mais livre
enquanto corria de braços abertos, na tentativa de levantar voo. Segui-o com o
olhar até o deixar de ver por completo.
No lugar do sol estava agora a lua, era lua cheia, bem redonda. O céu
iluminava-se de estrelas, pequenos pontinhos cintilantes sobre o manto escuro
que se tinha posto. Sentei-me na cadeira de baloiço do meu pai. Há muito que
estava no terraço da minha casa. Olhei para a noite escura e densa, sim, a
noite que em tempos tinha sido vadia, a noite que tinha sido uma criança livre e
inocente. Agora acorrentada à velhice, tinha perdido o seu brilho intenso.
Costumava dizer que as estrelas eram chamas que ardiam e duravam,
longas chamas que aqueciam o meu coração. Agora o pavio estava a chegar
ao fim, as luminosas chamas que, em tempos tinham sido a minha luz, eram
agora pequenos pontinhos que se apagavam aos poucos.
Todas as noites me sentava a olhar para o céu e sempre que alguma
chama se apagava, morria um pouco de mim, pois cada chama levava com ela
memórias e recordações dos velhos tempos. Os tempos em que o coração era
grande e batia à velocidade da luz, os tempos em que as lágrimas eram de
felicidade e os sonhos eram doces como o chocolate, os tempos em que as
histórias eram castelos, cavaleiros e palácios de princesas encantadas, os
tempos em que a vida era páginas de livros de fantasia e tudo tinha um final
feliz. Agora, tudo isso fazia parte da colecção de livros da estante, aqueles que
estavam cobertos de pó e cheiravam a antigo, pois há muito que as suas
histórias não eram abertas. Fazia tudo parte do passado.
O meu coração a cada minuto era mais pequeno, e já não batia à
velocidade da luz, agora era como um caracol que trepa um muro. Os
pontinhos no céu eram cada vez menos, e eu era menos um bocadinho de
mim. Lembrei-me que, quando era pequena, vi uma estrela cadente, e como
qualquer criança sonhadora e inocente pedi um desejo. Pedi que um dia o
príncipe encantado me viesse buscar no seu cavalo branco e me levasse para
o mundo das fadas.
O príncipe nunca apareceu, e as fadas, essas nunca as vi. Nesse
momento, pequenas borboletas esvoaçavam à minha volta, eram todas
diferentes e coloridas. Pousaram em mim, olhei para o céu e o último pavio
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11. tinha-se apagado, o meu coração era agora um ponto final, sem parágrafo a
seguir. A luz branca da lua ofuscou-me e, quando dei por mim, estava sentada
num lindo cavalo branco que galopava em direcção ao mundo das cores e dos
sonhos. As borboletas continuavam a esvoaçar à minha volta, mas desta vez, o
bater das suas asas tinha um som diferente que me deixava feliz. Pois é, as
borboletas eram agora as fadas do mundo encantado.
Há muito tempo que estou neste mundo, e todas as noites me deito à
beira do lago dos cisnes. Olho para o céu, a lua não é cheia, é quarto
crescente, e as estrelas são chamas que ardem eternamente.
Sofia Colaço, 9º Ano
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12. RIOS DE VENTO
Ultimamente os dias têm sido cheios de nada, o tempo é o único que
passa pela minha vida, mais nada se atreve a quebrar a monotonia dos meus
dias.
Estou velha e cansada, o pouco tempo que me resta passa a correr, a
cada momento me sinto mais perto do fim. Os dias já não sorriem para mim, já
nada me sorri, já nada me faz dar um passo, já nem os sonhos me perseguem.
Há muito que não sonho, nem me lembro bem o que é sonhar, mas,
cada vez que penso nisso, sinto conforto, portanto, sonhar deve ser algo bom.
Lembro-me que em tempos sonhava; era tão feliz nessa altura, tudo sorria para
mim, até o tempo. Desde criança o meu maior desejo é voar.Nunca consegui,
nem mesmo em sonhos, mas era algo que eu queria experimentar, sentir o
vento a puxar os cabelos para trás, seguir um rumo sem destino, observar o
mais belo que há lá em cima e atravessar as nuvens. Eu acredito que
consigamos voar, mas apesar de acreditar muito nunca consegui. Tenho
pensado muito nesse meu desejo ultimamente, mas com o meu fim já perto, as
esperanças de voar desapareceram.
Agora tenho outras esperanças e outros desejos. Tenho esperança que
o meu fim não seja doloroso e que tudo melhore quando o tempo já não passar
por mim. Tenho o desejo de que, num dos poucos dias que me restam consiga
sonhar…
Os dias passaram, o tempo envelheceu-me um pouco mais e numa noite
as estrelas trouxeram-me um sonho. Nesse meu tão esperado sonho tinha uma
longa escadaria diante de mim, não se conseguia ver o seu fim. Ao meu lado
estava um ser perfeito de olhos escuros que cintilavam e penetravam os meus.
Esse ser pegou na minha mão e reparei que a sua pele era macia como seda.
Olhei para as minhas mãos, todas as rugas e sinais do tempo tinham
desaparecido, espantada virei-me para ele e numa voz doce ele disse ―Estas
são as escadas para o Paraíso‖. Não resisti e subi o primeiro degrau, logo a
seguir o segundo e não parei até chegar ao último degrau. Ele acompanhou-
me ao longo daquela viagem. Não trocámos palavras, apenas olhares, e a sua
mão não largou a minha.
Quando cheguei ao cimo das escadas, uma luz muito forte quase me
cegou, e depois, diante dos meus olhos, um prado verdejante apareceu. Era
lindo, os raios de sol penetravam por entre os ramos das árvores, e um
pequeno riacho cantava. O Paraíso era de facto um lugar harmonioso. Nesse
prado havia outros seres, tão perfeitos como aquele que me tinha
acompanhado ao longo da escadaria, mas nenhum deles tinha um olhar tão
doce como aquele que me acariciava a mão.
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13. Voltei a sentir-me criança e sorri, coisa que já não fazia há algum tempo.
Corri, saltei e por fim deitei-me no meio daquele lindo prado e olhei o céu. Já
não sentia o tempo a passar por mim; ali o tempo não existia, os dias eram
infinitamente recheados de encanto e perfeição.
O céu não tinha nuvens, apenas pássaros que agitavam as suas asas à
medida que se deslocavam naquele azul imenso. O desejo de voar voltou a
palpitar no meu peito, levantei-me, abri os braços e fechei os olhos. Tentei,
tentei e tentei, mas não consegui. Desisti e fiquei desiludida, nem no Paraíso
conseguia voar. Olhei à minha volta e o ser perfeito continuava a olhar
docemente para mim, fitou-me durante um bocado, avançou na minha
direcção, estendeu o braço, acariciou-me a face e por fim disse: ―Ainda não
está na altura, mas um dia as tuas asas levar-te-ão levemente ao longo dos
rios de vento.‖. Não consegui dizer nada perante aquela voz tão meiga, a voz
acalmava e dava-me um conforto enorme.
Decidi ir passear pelo Paraíso, aquele ser nunca me largou a mão.
Chegámos a um sítio onde havia um tapete imenso de flores, todas de cores
diferentes, agachei-me e peguei numa, o perfume que dela emanava era
apaixonante, deixava-me tão leve e colorida. O ser perfeito que me
acompanhava colocou-se diante de mim, acariciou docemente a minha mão e
beijou-me a face. Nesse momento despertei do sonho, olhei-me ao espelho, as
rugas continuavam vincadas na minha pele, afinal tinha sido a, ter conseguido
sonhar.
Passei o resto do dia com um grande sorriso; para dizer a verdade, nem
senti o tempo passar, foi tão bom.
Agora só me resta sentar e esperar que a morte me consuma, enquanto
observo o fogo a arder a madeira diante de mim, e as pálpebras, já pesadas,
me correm sobre os olhos e escurecem a vista. O meu corpo torna-se leve
como a cinza e a minha alma eleva-se como o fumo cinzento que sai pela
chaminé e se dissolve nos longos rios de vento. Finalmente, estava a voar, e
ao meu lado o ser perfeito olhava-me e sorria. Demos as mãos e fomos rumo
ao infinito. Nunca mais senti o tempo a passar, agora limito-me a abrir as asas
e voar…
Sofia Colaço, 9º Ano
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14. UM DIA…
O apito do comboio soou nos meus ouvidos e os meus olhos já o
avistavam ao longe. Faltavam poucos segundos para te voltar a ver, foram os
segundos mais longos da minha vida. O comboio aproximava-se, estava cada
vez mais perto, e o meu coração batia cada vez mais rápido. A brisa tocou-me
nos cabelos, e eles voaram livres enquanto um sorriso se pintava nos meus
lábios.
O comboio não parou, seguiu viagem sem deixar ninguém para trás.
Toda a esperança que tinha, foi levada pelo comboio, com ela foram também
os sonhos e as fantasias. O meu sorriso apagou-se e os meus olhos deixaram
de brilhar.
Parecia que o mundo tinha desabado sobre mim, sentia um peso nos ombros e
um oceano nos olhos prestes a esvaziar-se.
Apercebi-me que me tinhas ignorado, aliás, eu sempre fui todos os dias
a que escolheste ignorar, mas fiquei contigo por não ter mais ninguém.
Cheguei a casa e olhei o céu que já estava estrelado, a lua brilhava, e a
sua luz branca estava mais redonda que nunca. Lembrei-me dos tempos em
que corríamos por entre as flores e seguíamos as borboletas. Lembrei-me dos
tempos em que nos sentávamos junto ao lago e olhávamos as nuvens.
Lembrei-me das noites em que me sentava na janela à tua espera, e quando
aparecias trazias-me flores de todas as cores. Lembrei-me do dia em que
fizeste as malas, apanhaste o comboio e desapareceste sem te despedires.
Lembrei-me de todas as noites em que andava perdida por entre as árvores na
esperança de te encontrar. Desde o dia que partiste, as flores nunca mais
sorriram para mim, as borboletas nunca mais me contaram segredos e o lago
nunca mais reflectiu alegria. Decidi então, que um dia iria ser feliz, mas não
encontrei a felicidade. Decidi que um dia iria voltar a amar, mas também nunca
encontrei o amor. Decidi que um dia nunca mais ia dizer ―um dia‖, até à altura
em que decidi que ia fazer uma viagem, correr mundo fora à espera de
encontrar mais flores e mais borboletas.
Apercebi-me que as coisas podem ser obscuras quando olhadas sem
sentimento. Quando olhamos para elas com olhos que amam, elas abrem-se
para nós, mostrando uma dimensão diferente, onde os sonhos e as fantasias
se tornam mesmo realidade, uma dimensão onde o vento nos leva ao céu e as
nuvens nos elevam ao sol.
Naquela noite o manto preto sobre mim estava cheio de pinceladas
brilhantes e o vento parecia empurrar-me. Deixei-me levar por ele, levou-me às
estrelas e aí percebi que o amor se encontrava junto a mim, era tudo o que me
rodeava, eram as borboletas, as flores, os pirilampos, as nuvens, o sol e a lua.
Na verdade era tudo aquilo que me fazia acreditar que um dia voltarias, e
voltaste! Encontrei-te nas pétalas, nas cores, na luz e no brilho que me
rodeava.
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15. A viagem que tinha prometido fazer estava diante do meu coração e da
minha alma, porque o que é realmente importante é aquilo que sentimos, não
aquilo que os nossos olhos aparentam ver.
Sofia Colaço, 9º Ano
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18. SONHO DE MENTIRA
És como areia
Foges-me entre os dedos
Corres para longe
E tornas reais os medos
Nunca digas que estás sozinho
Não te sintas mais perdido
Procura o teu caminho
E vê em mim o teu abrigo
Acordada de um sonho
Esboça-se um sorriso
Voam todas as dúvidas
De que és tudo o que preciso
Crio asas no pensamento
Subo devagarinho firmando-me nas esperanças
Alcanço o mais divino firmamento
Mas tudo se vai no rasgo da aliança
Sonho contigo
Deixo que a esperança me fira
Mas sonho com o impossível
Um sonho de mentira
Ana Filipa Raimundo,
10º Ano
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19. DISCRETO SER HUMANO
Prevejo os teus olhos ao nascer do Sol,
Sinto tocares-me na manhã fria,
Espero pacientemente pela tua vinda,
Quando chegavas,
Aquecias-me a alma,
Era contigo que eu sempre sonhava,
Mas diz-me o quanto gostas de mim.
Deixa-os falar,
Sempre fomos muito insubmissos,
O nosso secreto segredo,
Não deve ser revelado.
E os dias vão passando,
Sinto uma presença,
A presença da tua ausência,
Um vazio profundo.
Hoje chove,
O meu estado de espírito é reflectido no tempo,
Hoje choro,
Puras e perfumadas lágrimas de cristal, marinhas.
Hoje está bom tempo,
Regressaste,
O mais belo girassol dos campos,
Voltou a florescer.
E quando os teus lábios frios tocam os meus,
Sinto-me a levitar,
O teu perfume,
Penetra na minha pessoa.
Sobrevives no meu coração,
Alimentas-te das minhas recordações,
Sei que voltarás,
Entretanto, só quero que me beijes outra vez.
Carolina Pena,
10ºAno
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20. MEMÓRIAS DESOLADAS
Um pequeno brilho no ar,
Um cheiro antigo,
Coisas que mal me lembro.
Recordações suaves,
Momentos pousados,
Quase perdidos com o tempo.
Um salão tão grande,
Bailes sem fim,
Jantares grandiosos.
Nobres,
Imaculadamente vestidos,
Damas,
Com sapatos de cristal.
Atravessa-me a garganta,
Uma música de encantar,
Passos de dança perdidos.
Há muito tempo,
Nascida aqui,
Não sonho as vezes,
Que aqui sonhei.
Uma tempestade de memórias,
Uma canção que alguém canta,
Coisas que mal me lembro.
Carolina Pena, 10º Ano
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21. CAROLYNA
Somente mais uma rapariga,
No meio de tantas outras,
Com o mesmo nome,
Tanta vida por aí.
Esta é diferente,
Roubaram-lhe tudo,
Tiraram-lhe a alegria,
Literalmente presa ao mundo.
Coração destroçado,
Está tão melancólica,
Estes dias cinzentos,
Congelam-lhe a alma.
Esta gente avariada,
É de deixar qualquer um maluco,
Deitam-te abaixo,
Mas amanhã será melhor.
Há que erguer,
Mandar o passado para trás,
Será outro dia,
Carolyna.
Não desistas,
Ó Carolyna,
És forte,
Vais conseguir
Tudo passará,
Esse frio vai embora,
E o Sol, destapado,
Vai-te fazer brilhar,
Carolyna…
Carolina Pena, 10º Ano
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22. O SUSSURRO
Um secreto sussurro,
Caiu-me nas mãos,
Olhei para ele,
Pediu-me segredo.
No telhado o escondi,
Sob o céu estrelado,
Contemplámos o luar,
Vi o seu sorriso enigmático.
Um mistério,
O sussurro,
Soprei-o,
Por entre as minhas mãos.
Foi a voar,
Distante,
Não olhou para trás,
Não o voltei a ver.
Carolina Pena, 10º Ano
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24. Um Sonho…
Um sonho é uma viagem
Realidade ou Imaginação?
Um sonho não tem margem
Dentro do nosso coração
Serás realidade?
Serás imaginação?
Quero-te de verdade
Porque é paixão
És quem eu sempre quis
Não consigo evitar
Só tu me fazes feliz
Só contigo quero ficar
Estás diferente
Tens feridas por sarar
Tens isso na tua mente
Espero um dia te alcançar
Por ti sofro
Por ti vivo
Não sinto conforto
Mas por ti sobrevivo
Daniela Fialho, 10º Ano
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25. ESCURECER
Um dia a mais bela flor murchará
E aí tudo o resto acabará
A alegria há-de morrer
E a tristeza renascer
Os sorrisos irão acabar
E lágrimas se vão derramar
O Verão deixará de existir
E o tempo negro e escuro irá surgir
Deixaremos de sentir sabor
Deixará de haver cor
Cada momento uma lembrança
Cada sentimento uma esperança
Apenas recordações vão existir
Quando tudo à nossa volta se destruir
Daniela Fialho, 10º Ano
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26. TU…
O dia e a noite
Que diferença pode haver?
Se não há ninguém que conte
Tudo aquilo que podemos ver
Quando o mundo desabar
Não olhes para trás
Tens que superar
E encontrar a paz
Quando te sentires só
Pensa em mim
Lembra-te de nós
E serás feliz assim
Vives num mundo distante
Nem fechado nem aberto,
Podes não estar radiante
Mas quero-te sempre por perto
Daniela Fialho, 10º Ano
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27. VIDA
A vida é feita de tormentos
Mas temos que aprender,
Nos bons e maus momentos
A ganhar e a perder
A distância separa
As coisas mudam
A verdade não se encara
E as mentiras não curam
Já falei muito
E pouco resolvi
Sempre no intuito
De te ter aqui
Daniela Fialho, 10º Ano
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28. EU
Não tenho significado
Não sou nada para ninguém
Arrependo-me de ter ficado
E sinto que não estou bem
Sinto-me perdida
Como um túnel sem fim
Sei que andei iludida
Mas não posso ser assim
Sou muito rígida
Mas dou por mim a chorar
Já não sei nada da vida
Já nem sei por onde andar
Daniela Fialho, 10º Ano
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29. UMA AMIGA
Quando pensares que nada tem sentido
Lembra-te de bons momentos
Nada estará perdido
Se acreditares nos bons pensamentos
E quando estiveres triste
Com vontade de chorar
Lembra-te que existe
Alguém que te pode amar
Quando precisares
Eu estarei aqui
Para te ajudar
E te ver feliz
Daniela Fialho, 10º Ano
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30. UMA FLOR
Uma simples flor
Com um simples odor
Enterrada no mar
Louca por te amar
Enterrada no chão,
Enterrada no coração
Daniela Fialho, 10º Ano
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31. NÃO VOU RECUAR
Não eras assim
Mudaste completamente
Eras tudo para mim
E foste-te de repente
Gostava que voltasses
A ser aquilo que eras
Talvez se te ajudasse
Te conseguisses libertar dessa esfera
Custa-me assim viver
Mas embora queira voltar
Sei que é assim que tem que ser
E não vou recuar…
Daniela Fialho, 10º Ano
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32. O INCERTO
Nunca sabemos
Aquilo que nos reserva
Mas conhecemos
O inferno que é esta selva
Podemos morrer
Como podemos viver
Mas nunca vamos saber
O que há para acontecer
Podemos mudar
Ou até ficar igual
Mas não podemos rejeitar
Uma mudança pessoal
Daniela Fialho, 10º Ano
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33. LEMBRANÇA
Tu morreste
Talvez nunca viveste,
Um dia foste essencial
Mais do que especial
Foste uma vida
Foste uma esperança
Agora és uma história lida
E não passas de uma lembrança
Não te vejo
Nem sinto desejo
Não há nada a fazer
Nem nada a dizer
Foi o fim,
E por ti
Nunca mais serei assim
Daniela Fialho, 10º Ano
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35. ESPERANÇA NUMA FLOR
Luz sem vida,
O começo de uma flor.
Sozinha… Encurralada…
Sem vida… Sem cor…
Bondade pela flor,
Sem vida, estava perdida…
O céu chora com amor,
Em auxílio da sua nova amiga.
Lágrimas caem no chão,
Dando claridade ao luar.
Caiu-me a folha da mão,
Que agora está a voar.
Começa a vida, a felicidade,
Pára a chuva, pára o tempo.
Esperança para toda a sua eternidade,
Nada a derruba, nem o vento…
Joana Catela, 10º Ano
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36. AO VISLUMBRE DO LUAR
Foi naquele glorioso momento,
Uma glória sentida por céus e paraísos,
Que fui capaz de residir no teu alento,
Corpos imaginários e indecisos,
E descansar nesses teus braços meus.
Não os ouvi, não os senti,
Esses deuses teus, derrotados
Por mil e duas noites em que menti,
Eles não regressaram parados,
Para descansares nestes meus braços teus.
Acabou? Regressaste, ou nem sequer exististe,
Nesta pobre mente demente,
Que por mil e três dias foi onde caíste,
E habitaste num mundo nosso, pois, indiferente,
Onde os meus braços rodeavam os teus.
Houve final, mas sem começo,
E neste papel vazio eu fico, que habitas
Em memórias translúcidas, por onde envelheço,
Por tudo e por nada, onde tu gritas
Por teus braços dançarem nos meus.
Joana Catela, 10º Ano
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37. ENQUANTO ESTIVERES AÍ
Sou superior
Às ondas a bater na rocha
Sou superior
Ao sol a estalar o chão
Sou superior
Às escolhas que faço
Sou, também, humana
Sonhadora, mas humana
Controlada por tudo
Dependente do mundo
E de ti.
Um dia soltarei o último sorriso
Chorarei a última lágrima
E olharei uma última vez para trás
Ao fim da tarde.
Um dia deixarei de sonhar
Ou sonharei para sempre
Sem ter onde me agarrar
Para voltar a aterrar.
Continuo a ser superior
Ao que é absolutamente certo
Mesmo temendo a cada passo,
Continuo a ser superior a mim mesma,
E a viver
Enquanto fores o meu porto e a minha praia,
Enquanto estiveres aí.
Maria Teresa Vaz Freire, 10º ano
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38. POR NÃO SABER ESCREVER
Morro por não saber
O que aconteceu para me esquecer.
Dou corda ao relógio das palavras
Que se partiu em mil estilhaços
Como as simples estrelas,
Como os simples pedaços de sonhos.
É triste descrever o dia-a-dia
Mas é apenas o que agora sei fazer
Palavras banais,
Sentimentos normais
Nada onde me perder.
Por isso reino aqui
Num mundo de ilusões quebradas
Onde nas palavras que escrevo não há nada
A não ser fria solidão.
Na escolha de um passar ou vaguear
Escolhi a escolha que não tinha que fazer
A escolha que não mais sei descrever.
Foi difícil, foi errado, foi imperfeito
Mas a perfeição não existe, não se almeja:
Sente-se
E eu não sinto.
Não quero acordar e perceber
Que já nada mais tenho para ver,
Que já não tenho o mundo na minha mão
Apenas a minha sombra, a de um inimigo
Que odeio por ainda pisar este chão
Não há espaço nem tempo,
Apenas um vortex confuso
Onde ainda sou o passado
Mas também sou o futuro
Um futuro que não vai existir
Porque não quero ver partir
O meu sonho de sempre, para sempre.
Contei as gotas
Que as nuvens choraram por mim
Porque finalmente morri
Por não saber escrever.
Maria Teresa Vaz Freire, 10º ano
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39. RETICÊNCIAS
O vento sopra
E a magia paira
Nos raios de invisibilidade
Que me compõem
Tu choras esquecida
Entre pedras
Entre notas
E a nossa historia
Voa para junto de mim
As páginas de piadas
Que dissemos
Procuram-me por saber o que sentes
Por saber que não vais esquecer
O que falta:
A despedida
Acrescento um só mais capítulo
Duas palavras mais
―Até breve‖
Depois…reticências…
Maria Teresa Vaz Freire, 10º Ano
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41. E NESSE DIA?
Não sei como lidar
Com aquele aperto
Será saudade?
Será medo?
Não sei.
Ou talvez saiba
É tudo,
Também lhe posso chamar nada
Ou esperança
De que tudo nunca acabe
De que um dia seja o infinito
Não sei explicar
Como me faz sentir
O simples acto de pensar
Que um dia vais partir
Que um dia não mais te vou ver sorrir
Talvez se eu ficar sempre a espreita
E não fechar os olhos
Não te vás
Não te percas
Não te desvaneças
Talvez não possa mudar
O que vier a acontecer
Mas não posso pensar
Que um dia tudo vai mudar
Que um dia algo vai acontecer
E que eu te vou perder
Para um alguém ou alguma situação
E me vais deixar na ilusão
De que continuas para me ouvir
E que vou ter sempre tempo de me despedir
Não sei como lidar
Sem choro ou desespero
Com o simples acto de pensar
Que nada posso fazer
Para um pedaço de mim não morrer.
Maria Teresa Vaz Freire, 10º Ano
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42. COMO NUM FILME
Os dias passam
À velocidade de um segundo
O sangue corre, ou deixa de correr,
Nas nossas veias
Passamos, olhamos e seguimos
Cheios de rotinas,
Minutos marcados
Para uma liberdade
Que de livre não tem nada.
Sentimos o sol ou a chuva
Nem importa
Temos que sair para o mundo
Ante a ultima badalada
O relógio não pára
Avançando a um ritmo alucinado
E passaram milhares de horas
Desde a ultima vez que olhaste o tempo
Irónico…
Falta tempo até para o tempo.
Divagamos também
À velocidade a que as folhas caem das árvores
Tudo à nossa volta muda,
Se altera
Ouvimos explicações
E palestras
Ou apenas mentiras.
O mundo sonha
Não, ainda não deixou de sonhar
Foram-lhe feitas promessas
Que reclama a cada nascer do sol
Será que restaremos intactos
Incautos sobreviventes da onda?
Rogaremos fazer parte
De uma superioridade
Que certamente precisamos que exista?
Ou ficaremos parados
No centro de uma praça apinhada
A ver tudo mover-se e o tempo passar,
Como num filme…
Maria Teresa Vaz Freire, 10º Ano
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44. NÃO OLHES PARA TRÁS
Não olhes para trás,
Para o caminho que percorreste,
Podes não gostar do que vês,
De ver as coisas que escolheste.
Podes pensar que valeu a pena
Que talvez não tenha sido tudo em vão
Que os fins justificam os meios
Mas, e se não?
Tinha mesmo que ser assim?
Passar numa estrada escura,
Pelas mais profundas trevas
Caminhando sem rumo
À deriva, sempre à espera…
Até que encontraste o teu lugar
O teu propósito de viver
Bastante simples, não era?
Bastava ver…
Miguel Coelho, 10º Ano
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45. TRISTEZA
Num olho sem vida
Vejo mais que um olhar de despedida
É um sonho, uma canção, um pedaço de nada
Uma esperança perdida.
Mas há algo mais
Bem lá no fundo
Algo que me atormenta,
Mas que me faz querer o mundo.
É algo tão forte, mas tão sem vida,
Uma chama despida
Que arde, gelada,
No tempo parada, mas sempre viva
E tudo isto,
Sem tirar, nem pôr,
Não é amor, não é harmonia
É tristeza e monotonia.
Miguel Coelho, 10ºAno
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46. CASTIÇAIS DE CRISTAL SUSPENSOS
Existem mentiras nos espelhos
Para os quais olho.
Nestas mentiras penso,
A minha cara não é assim,
A horribilidade foi escondida,
Por detrás de uma máscara
À qual nunca atendi.
Choveram cristais
Quando apontei às mentiras.
Cristais, castiçais, espelhos,
Mentiras.
Tudo se esconde por detrás
Do falso brilho
Destes não diamantes
Tentei desvendar,
Dar tudo -
Dei demais.
Quando divisei
Da minha perfídia,
Do meu embuste,
Do que não sou.
Tiago Mariano, 10º Ano
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49. TIRO PERDIDO
Prólogo
Mal podíamos esperar que o dia acabasse e regressar a casa para podermos
falar sobre tudo o que tinha acontecido. Assim que a campainha tocou, ambas
nos despedimos de todos e pusemo-nos a caminho. Durante o nosso caminho
habitual de regresso a casa, falámos e rimos como se tivéssemos ganho a
lotaria.
E, como todos os dias, despedimo-nos com um abraço na esquina que
separava as nossas ruas. Como desejava ter sabido que aquele seria o
último…
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50. Capítulo I
Ao chegar a casa, agi como todos os dias. Tomei banho, fiz os trabalhos de
casa, jantei e, por fim, dirigi-me para a cama preparando-me para mais uma
noite de sono como qualquer outra. Mas aquela noite não era igual, muito pelo
contrário. Foi a pior noite da minha vida.
Fui acordada pela minha mãe enrolada no seu roupão de noite que, com toda a
calma que conseguiu ter, me deu a notícia mais dolorosa.
Ela, a minha melhor amiga, aquela rapariga com quem estava todos os dias.
Sim, essa menina cuja presença eu tomava como garantida, a Sofia. Algo
terrível lhe tinha acontecido. A sua mãe, desfeita em lágrimas e dor, tinha
acabado de ligar para nos contar.
Quando estava quase a chegar a casa, foi atingida por um tiro perdido de um
assalto do outro lado da rua. Morreu instantaneamente.
Eu não queria acreditar no que a minha mãe me estava a dizer. Não podia ser
verdade. Ela estava ali, comigo, há apenas umas horas atrás a rir às
gargalhadas com toda alegria que podíamos mostrar ao mundo.
Como pode ter desaparecido assim, tão de repente, como numa nuvem feita
de recordações de momentos que agora doíam ao serem lembrados?
Porquê ela… Porquê agora… Porquê? Ninguém me conseguia responder a
todas estas perguntas que me faziam chorar. Ninguém conseguia fazer-me
sentir melhor. Ninguém conseguia ocupar o vazio que ela deixara.
Por muito que tentassem falar comigo, eu nunca consegui descrever o que
senti nem desabafar sobre tudo o que me magoou.
Nos dias que se seguiram tive de ir ao seu funeral e, aos poucos, tentei voltar
ao que era. Mas, na realidade, acho que nunca voltei a ser a mesma pessoa…
50
51. Capítulo II
E agora, aqui estou… sentada no sofá da minha sala vazia de qualquer tipo de
sentimento bom. Não há lugar para eles. O espaço está completamente
preenchido por dor, saudade e talvez um pouco de raiva.
Não há dia que não pense nela e acabe a chorar. E hoje, 15 anos depois de
ela me deixar, percebo que nunca voltei a sua casa. Acho que nunca tive a
coragem para o fazer. Mas agora penso que está na hora. Não posso mais
ficar presa a esta dor. Tenho que a deixar descansar em paz.
Assim que arranjar coragem, vou visitar a sua casa e despedir-me de vez.
***
A casa onde partilhámos tantos momentos estava inabitada, entrei sem
problemas. Assim que pus um pé no jardim, o vento soprou e um arrepio
percorreu-me pelo corpo. Quando cheguei perto da porta, pensei que não
passaria dali por estar trancada. Felizmente não estava. Rodei a maçaneta e o
ranger da porta fez-me tremer. No momento em que entrei, andei sem pensar.
Fui directamente para o quarto dela. Fiquei em estado de choque ao reparar
que tudo estava onde a minha querida Sofia deixou.
Era petrificante pensar que ela tinha sido a última pessoa a tocar naquelas
coisas. Como tenho saudades dela e dos nossos velhos tempos… Daquelas
intermináveis conversas e das gargalhadas verdadeiras. Dava tudo para mudar
o passado e poder ter crescido ao seu lado.
Mas isso é impossível. Agora só posso olhar para trás e relembrar cada
momento único que partilhámos.
Vagueio pelo quarto, vendo os pormenores que não via há mais de 15 anos.
Sem poder aguentar, as lágrimas rolam pela minha cara. Sento-me na cama
ligeiramente suja para sentir que ela estava ali ao meu lado.
Quando finalmente recupero forças para me levantar, vou até à sua secretária
e vejo as nossas fotografias. Baixo-me para apanhar uma que estava caída no
chão e reparo num pequeno livrinho que nunca havia visto. Tinha uns
desenhos na capa que logo reconheci como da Sofia. Abri-o e rapidamente
percebi que era uma espécie de diário.
Sentei-me de novo na cama e comecei a lê-lo. O tempo e o espaço pararam.
Só existia eu e a Sofia a ler-me o seu pequeno diário.
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52. 14 de Janeiro de 1994
Hoje decidi escrever um poema, apeteceu-me. É sobre tudo o que me tem
acontecido ultimamente. É ele. É quem eu procurava.
Sozinha no escuro
Vi um brilho ao fundo
Fez-me acreditar
Que eu podia gostar
Não há nada melhor
Que a vida me pudesse dar.
Ainda bem que não desisti
De te procurar.
Pergunto-me onde estavas.
Eu não tinha ninguém,
Até que perguntaste se estava bem
Ou se precisava de alguém.
Nunca pensei
Ter-te assim
Junto a mim.
Só agora consegui
Ver como és.
Olhar para ti
E ver o que nunca vi.
Agora que estou contigo
Não consigo imaginar
Como seria viver
Sem te poder abraçar.
Quando penso em ti
Esboça-se um sorriso.
Ter-te aqui
É tudo o que preciso.
***
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53. A felicidade, digo eu, não existe. Constrói-se.
E para que haja felicidade temos que errar e sofrer… É isso que nos torna
pessoas melhores. Só assim é possível aprender… Com os erros.
A vida é uma longa estrada cheia de vários caminhos e encruzilhadas. E, como
é óbvio, não vamos seguir sempre o caminho certo, o mais fácil e o mais
seguro.
Pela longa caminhada que é a vida existirá uma altura em que nos vamos
deparar com um cruzamento com várias estradas, cada uma com uma direcção
completamente diferente. Será que vão dar todas ao mesmo caminho? Não
sei. O que sei é que quando, á nossa frente, se abrirem muitas estradas temos
de ponderar bem em qual iremos seguir e não seguir por uma ao acaso. Muitas
vezes seguimos o caminho menos fácil, ou até mesmo o errado. Porém,
noutras ocasiões, iremos seguir o mais fácil e o correcto. Seguimos o caminho
certo porque erramos e aprendemos com o erro.
Quem não erra não consegue aprender, e quem não aprende com o erro nunca
poderá ensinar.
A Sofia descobriu uma enorme traição do seu grande amor e sofreu muito. A
felicidade com que antes vivia desapareceu. O grande e majestoso arranha-
céus que outrora parecia tão forte e que nunca iria cair revelava-se agora
construído por mãos pouco hábeis, frágil como um castelo de areia construído
á beira-mar que é derrubado com a primeira onda que passa. A Sofia seguiu a
estrada errada, e mesmo depois de tudo o que aconteceu não conseguia
perdoá-lo mas também não conseguia esquecê-lo.
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54. 31 de Janeiro de 1994
Continuas a preencher-me o coração e eu odeio-te por isso… Odeio-te porque
és muito especial para mim e o pior é mesmo odiar-me por não te conseguir
odiar.
Odeio-te porque te conheci, pelo modo como falas comigo e como sabes
sempre o que dizer.
Odeio quando ficas com aquele olhar, tão encantador, onde me perco.
Odeio quando estás longe de mim e ao mesmo tempo sempre no meu
pensamento…
Odeio pensar que não te consigo esquecer e que não consigo viver sem ti...
Odeio-te por te amar!
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55. 16 de Fevereiro de 1994
Amigo… Não há definição escrita num dicionário porque a amizade não se
define, vive-se! Vive-se todos os dias com todas as nossas forças.
Quando crescemos, vamos reconhecendo o valor de cada pessoa presente
nas nossas vidas.
Ao mesmo tempo em que existe a pessoa que conhecemos e acabamos por
esquecer, também existe aquela de quem jamais nos queremos distanciar e
com a qual nunca queremos perder contacto, nem por um segundo!
A amizade é um dos sentimentos mais belos que existem.
A vida sem amigos nada seria.
Mas um amigo verdadeiro…. Sim, um amigo verdadeiro é aquele que te
acompanha nas tuas derrotas e vitórias, é aquele que te oferece o ombro para
te desfazeres em lágrimas, é aquele que te oferece um sorriso e, acima de
tudo, que te leva dentro do coração para onde quer que vá.
Não tem medo de mostrar o que sente.
Tenho tudo isto numa amiga… Aquela que nunca me deixou e neste momento
difícil foi a luz ao fundo túnel.
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56. 2 de Março de 1994
Chateei-me com a minha melhor amiga… Agora que tinha superado toda a
minha tristeza com a sua ajuda, ela afasta-se de mim magoando-me desta
maneira?!
Apetece-me escrever a história da nossa amizade para ver se consigo aliviar
um pouco este peso que tenho em cima.
Passou muito tempo até te conhecer, dantes não te falava e dizia mal de ti,
parece estranho mas foi assim. Acho que te odiava, nem sequer olhava para ti.
Sabia quem eras mas não te conhecia de verdade.
Mas, de repente, a amizade surgiu e foi ganhando cada vez mais confiança.
A minha vida mudou
Ganhei uma amiga
Uma grande amizade foi estabelecida
Foste a pessoa em quem passei a confiar.
Tantas palavras ditas que nos fizeram chorar, rir, abraçar.
Lembro-me de todos esses momentos, dos bons dias que me dás sempre a
sorrir.
Onde estão as palavras que me dizias?
Espero que tudo volte ao normal entre nós rapidamente porque eu preciso de ti
como nunca precisei de ninguém.
Dediquei-me à nossa amizade de corpo e alma e não me deste o devido valor,
gostava que entendesses isto um dia.
Como podes fazer isto comigo? Como podes passar ao lado de tantas
recordações e ignorares? Como? Gostava de poder entender…
***
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57. Tudo o que acontece deixa marcas. Por vezes boas, por vezes más.
Na nossa amizade, a nossa zanga só deixou marcas boas. Tornámo-nos mais
próximas e prometemos nunca mais magoarmo-nos.
No coração da Sofia, aquele grande amor atraiçoado deixou marcas muito
más. Ela perdeu confiança e auto-estima.
Por muito que eu tentasse fazer-lhe ver a pessoa fantástica que ela era, os
meus esforços eram em vão. Não conseguia confiar noutro rapaz. Aliás, a
única pessoa em quem ela confiava agora, era eu. Era a pessoa que ela sabia
que nunca a magoaria.
Um dia, ela olhou para um rapaz de maneira diferente. E todos sabiam como
ele gostava dela desde que eram crianças.
Era a pessoa perfeita para a ajudar a melhorar mas ela não queria admitir o
que sentia. Tinha medo de confiar num rapaz de novo. Tinha medo de entregar
o seu amor assim a um rapaz. Simplesmente tinha medo de sofrer.
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58. 26 de Março de 1994
Não posso, não quero e não consigo!
Por muito que tente não dá.
É um sentimento muito forte mas nada é forte o suficiente para fazer
desaparecer as feridas deixadas outrora.
De novo o mesmo sentimento
Se apodera do meu coração
De novo o mesmo sentimento
Me invade como um trovão
Tenho medo de sofrer
Medo de cair
Medo de me aleijar
Medo de a ferida nunca sarar
Medo de deixar uma cicatriz
Medo de não conseguir ser feliz.
O que fazer?
Esquecer?
Ou tentar algo em que tudo pode acontecer
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59. 15 de Abril de 1994
Sinto-me feliz e de repente todos os receios e preocupações desapareceram.
Finalmente abri a minha mente, reflecti e cheguei á conclusão que se
cometemos um erro temos de aprender com ele e evitar repeti-lo de novo.
Afinal é para isso que os erros servem, para aprendermos com eles. Eu tinha
medo de voltar a gostar de alguém, abrir o meu coração e contagiar-me. Mas
esse medo passou, percebi que as pessoas são diferentes umas das outras e
lá porque alguém nos magoou não significa que outra pessoa nos vá magoar
de igual forma. Eu cometi um erro e segui a estrada errada mas, ao fim de um
tempo consegui voltar ao caminho certo.
Se a vida nos dá oportunidades temos de as aproveitar. Este rapaz foi essa
oportunidade, a minha segunda oportunidade de ser feliz. Ele faz-me feliz como
nunca antes fui. Nunca ninguém me fez tão feliz como ele.
A minha vida está perfeita…
Tenho a melhor amiga que alguém pode pedir na vida e uma pessoa que gosta
de mim de verdade.
Hoje, neste preciso momento, apetece-me olhar para o imenso céu azul e gritar
― Hoje sou feliz! ―
***
Foi neste dia.
A minha vida mudou
E a vida da Sofia acabou.
Toda a felicidade que o coração dela guardava naquele caminho de regresso a
casa foi-lhe tirada por um tiro. Um tiro acabou com o sorriso com o qual a Sofia
contagiava toda a gente.
Ela era, é, e sempre será a minha melhor amiga.
Ana Lurdes Lopes, 10º Ano
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61. A MENINA DOS CABELOS DA COR DO CÉU
Era uma vez dois jovens inexperientes: o Sol e a Lua.
À medida que foram crescendo, foi-lhes dito que deveriam, conjuntamente,
tratar do jovem planeta que estava aí para vir: o seu nome era Terra.
Uma vez que eram apenas dois, cada um tinha de tratar do seu lado do
planeta.
Nenhum tinha algo a opor, até que o recém-nascido chegou e cada um teve de
ir para seu lado.
As saudades foram aumentando até que o Sol não aguentou mais aquela
tortura e foi em busca da Lua.
Estes encontram-se e da sua relação ilícita, nasceram duas gémeas. As duas
muito belas, tendo uma o cabelo azul claro e a outra o cabelo azul muito
escuro, quase preto.
Uma vez este procedimento foi de uma tamanha irresponsabilidade, tendo
deixado as pessoas muito assustadas, os jovens pais foram castigados e a Lua
fugiu com a segunda filha (a que tinha os cabelos escuros), deixando a outra
com o Sol, prometendo que nunca mais o procuraria.
Assim sendo, quando o Sol estava num lado da Terra com a filha mais velha, a
Lua estava sempre do outro lado com a filha mais nova, andando sempre ao
mesmo passo à volta do planeta azul, nunca se encontrando, como tinha sido
antes determinado.
As duas meninas foram crescendo cada vez mais formosas.
Dependendo do seu estado de espírito, o cabelo das duas irmãs ia mudando:
quando a primeira estava feliz, os raios do seu pai reflectiam-se com maior
júbilo nos seus cabelos; o cabelo da segunda, quando esta estava feliz, enchia-
se de pequenas estrelas brilhantes.
Os seus cabelos eram, então, o céu. O da mais velha era o céu de dia; o da
mais nova era o céu de noite.
À medida que foram crescendo, nenhum dos progenitores falou da existência
da outra irmã à filha que lhe tinha sido encarregue.
Mas a mais velha começava a desconfiar do secretismo do pai sempre que ela
lhe perguntava a identidade da mãe.
Um dia, quando estava pensativa e umas nuvens brancas lhe passeavam pelos
cabelos, ouviu dois homens a conversar sobre o pai.
Logo as nuvens se afastaram um pouco e ela prestou mais atenção à
conversação.
Muitos dos nomes que os homens disseram, ela desconhecia. Falaram da Lua
e das Estrelas...
Então, ela foi ter com o pai e perguntou-lhe:
— Pai, o que é a Lua? E o que são...?
Mas o Sol nem acabou de ouvir as perguntas. Furioso, gritou com a filha:
— Que não te ouça falar disso nunca mais!
A menina, furiosa e assustada, fugiu.
O Sol bem tentou apanhá-la, a fim de evitar outra catástrofe, mas ele já não era
nada jovem e a filha era muito rápida, ainda mais com a ajuda do vento.
Fugiu para o mais longe que conseguiu até que foi esbarrar contra uma outra
menina, exactamente igual a ela, mas com o cabelo muito mais escuro.
As duas raparigas ficaram aterrorizadas, mas não tanto como as pessoas da
Terra, que viam o céu de duas cores completamente diferentes.
61
62. A Lua, que viu a outra filha aproximar-se, correu para as duas e disse:
— Tens de te afastar! As pessoas estão espavoridas! Tens de ir ter com o teu
pai, minha filha!
Logo o Sol apareceu, pegou na sua filha e foi embora.
Nenhuma das meninas questionou os pais sobre a existência da outra.
Os dias passavam-se e de dia apenas chovia (pois a mais velha chorava
incansavelmente) e à noite já não havia estrelas (pois a mais nova encontrava-
se pensativa).
Assim, a curiosidade acabou por falar mais alto e, poucos dias depois, foi a vez
da mais nova ir à procura da mais velha.
Um dia em que a Lua não estava a prestar-lhe atenção, a mais nova fugiu em
busca da sua gémea.
Acabou por encontrá-la, enquanto esta chorava.
As nuvens dissiparam-se, mas, em lugar do céu azul, as pessoas, assustadas,
viram o céu tingido de duas cores completamente diferentes.
O Sol, logo começou a gritar com a sua outra filha e berrou-lhe que se fosse
embora. Mas a corajosa menina não lhe deu ouvidos. Queria desvendar o
mistério que a envolvia.
Aí apareceu a Lua, que tentou persuadir a sua preciosa filha a voltar, evitando
os olhos da outra descendente, que lhe faziam vir lágrimas aos olhos.
Como nenhuma das meninas se queria separar da outra, eis que aparece o Rei
dos Céus e cita a sua decisão:
— Uma vez que estas duas irmãs se conheceram e não querem viver uma sem
a outra, temos nas mãos um problema, pois os seus cabelos são
indispensáveis à vida na Terra. Assim sendo, só vejo uma solução: os seus
cabelos serão rapados e cada pai carregará o cabelo da filha que costumava
acolher. As meninas poderão ir viver para a Terra, sem se lembrarem de tudo o
que aconteceu.
E, dito isto, desapareceu.
Efectivamente, o cabelo das meninas foi rapado, o Sol ficou com o cabelo da
mais velha e a Lua com o da mais nova, tendo continuado cada um com as
suas andanças.
Quanto às meninas, elas foram para a Terra, onde são irmãs inseparáveis,
nem sonhando de quem são realmente filhas, se bem que a mais velha
adorava observar o céu de dia, com o Sol radiante e a as nuvens brancas, e a
mais nova adorava observar o céu à noite, com a Lua brilhante e as estrelas
cintilantes.
Mas, diga-se de passagem, nenhuma delas voltou a ter o cabelo tão bonito
quanto tinha...
Elsa Vila, 10ºAno
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63. PEQUENA HISTÓRIA DE UM PEQUENO SONHO
Era uma vez um sonho. Um sonho puro, sonho de crianças. O sonho de um
mundo diferente. Sonho de poder ser mágico.
O sonho era feliz, porque todas as crianças, pelo menos uma vez na vida,
sonhavam com ele. Mas, assim que cresciam, esqueciam-se dele.
"Porquê?", pensava o sonho. "Sou tão adorado durante um tempo da vida das
pessoas e depois sou esquecido...!"
Na verdade, era impensável sonhar com ele quando já se é grande: sonhar ser
tão forte quanto os Deuses, era pecado. Pelo que, além de as pessoas
pararem de sonhar com ele, passava até a ser odiado e renegado.
E o que é que o sonho podia fazer? Como é que podia ser reconhecido e
amado durante uma vida inteira de uma pessoa normal?
E, de tanto pensar, chegou a uma conclusão: tinha de tornar o sonho realidade.
Juntando as forças de várias crianças que sonhavam com ele, o sonho formou
um mundo. Esse mundo estava rodeado de uma tal atmosfera mágica, que
qualquer ser humano poderia ser mágico, controlar um elemento.
Tendo-se tornado algo real, o sonho transformou-se numa figura humana,
numa rapariguinha pequena e frágil, de curtos cabelos brancos, representando
a pureza dos desejos das crianças ao sonhar com ela.
Esperou e esperou e esperou. Mas as pessoas não chegavam.
"Porquê?", pensava ela, um dia, enquanto observava a linda cascata que caía
aos seus pés, respingando-os. "Tornei-me realidade para fazer as pessoas
felizes, mas elas não me descobrem!".
Então decidiu que tinha de fazer as pessoas chegar até ela...
Elsa Vila, 10º Ano
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64. MUNDO A CAIR
As poucas folhas que se aguentavam nas majestosas árvores, envergonhadas
pela sua própria nudez, acabavam sempre por desistir, e cair, deixando a farsa
revelar-se. Caíam na erva suja e molhada, indigna da sua beleza, e pintavam-
na de dourado e vermelho. Caíam mortas, nas ruas dolorosas da nossa rotina,
mas, deixavam nela, um pequeno grande rasto de vida, que esperava, tinha
esperanças, de eu não ter sido a única a seguir esse rasto. O rasto do seu
amor por ela… Pela vida…
Eu estava no carro imóvel, enquanto observava e ouvia a força das folhas, que
choravam enquanto lutavam com o ousado vento, para permanecerem juntas à
sua mão moribunda. E, oh…! O seu maravilhoso, mas triste planar…
Caíam. E coloriam o chão sujo e molhado sem vida. Eu estava no carro quieta,
sentada e confortável, enquanto observava o mais maravilhoso espectáculo a
que já tinha assistido. Ninguém seguira o rasto das folhas, pelo menos o rasto
que eu tinha seguido, que tanto lutaram para não morrerem, para viverem, para
serem algo importante. Poucos segundos passaram, quando um novo vento as
varreu daquela rua suja e molhada. Foram varridas para um novo mundo,
morto e espinhoso, que não merecia aquela beleza, tão perfeita…
O movimento no meu assento regressou dos mortos inertes. Começou a andar
como que para fugir de tão gracioso e deprimente momento. O meu olhar não
abandonava as pequenas lutadoras, que desistiam e se deixavam ir no vento
cheio de promessas com um melhor fim e com um novo começo.
Caíam mortas. E eu observava. Observava um mundo dourado e vermelho, a
planar, a chorar, a voar…
… A cair…
Joana Catela, 10º Ano
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65. O SOM DO MEU BAILAR
Eu sou um piano. Não um piano qualquer!...
… Sou um piano amado…
Já se passaram séculos desde o meu nascimento num mundo repleto de
esperança no meu existir. Eu era um novo modelo, e a minha existência fez
nascer grandes expectativas. Tinha, e continuo a ter, um maravilhoso vestido
de cauda negro, cujo som criado ao eu bailar, levantava as lágrimas de fantasia
daqueles sem este lindo sentido de ouvir. Eu era a mais bela, a mais desejada
por todos, todos me queriam tocar; o mundo adorava-me e eu adorava o
mundo.
O primeiro a tocar-me tinha um aspecto desordenado, de um louco, mas,
também, só um louco me poderia ter criado… A agitação dentro de mim e do
meu criador provocou expectativas que, ao princípio, foram destroçadas pelo
fracasso. Libertei uma tímida sinfonia, pois não sabia bem o que fazer, e como
fazer, naquele momento musical; limitei-me a obedecer às ordens de um
maestro louco. Não sabíamos como compensar aquele silêncio com um novo
som feito por nós; o meu bailar era desordenado e o meu criador estava a criar
um novo e indesejado fim. Enquanto ele me tocava com aquelas mãos antigas,
cheias de histórias por contar, eu bailei, bailei, e com o meu vestido negro,
dancei ao som da música que o meu pai me comandava libertar até me sentir
gorda de felicidade. Mas o meu criador não partilhava da mesma alegria de
criar som, como eu sentia, naquele momento mágico; várias vezes repetiu as
palavras de abdicar do meu novo som… Quase no seu limite de esperança, as
teclas tornaram-se numa melodia há tanto tempo esperada num cemitério
construtivo. Sinfonias melancólicas e melodias eléctricas invadiram a oficina da
criação do seu ser, e cantava com o meu bailar; sentia-me feliz, porque eu era
capaz, e sempre serei capaz, de encher o mundo com sentimentos que ele tão
bem nega e reprime. Sentia-me importante! Ele tocava-me tão ao de leve com
mãos delicadas e gastas pela fantasia musical, que o meu bailar e o meu
cantar se tornaram harmoniosos, num só…
Nunca mais o voltei a sentir…
No dia seguinte, fui entregue a um sistema de compra. Esperei e esperei, e
durante muito tempo fui um móvel que era constantemente limpo e observado,
e constantemente tocado. Todo o mundo que me rodeava queria ouvir o meu
som, e só os mais abastados é que tinham o direito, ou a sorte do lucro, de me
tocar. Todos olhavam especados para o som que o meu bailar fazia encher nos
seus ouvidos enfeitados. Todos me admiravam, todos me queriam, mas
ninguém me comprava. Finalmente veio o dia em que este foi comprado por
um senhor de meia-idade com os olhos mais negros que o meu vestido.
Colocaram-me numa ampla sala branca, com mais cuidado que o ouro recebe
pela sua magnífica existência. Os enormes vitrais que rodeavam a divisão,
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66. estavam cobertos por maravilhosas histórias coloridas, com o objectivo de
harmonizar; foi naquele momento que eu passei a amar anjos… Fui muito bem
recebida e tratada… com amor…
Todos os dias, eu era comandada a bailar para entreter os presentes, nunca
me cansando. As festas enchiam-se de silêncio para eu ser ouvida por todos
os cantos da casa. Festejos foram realizados com o único propósito para eu
ser tocada; um solo que todos admiravam, e que todos desejavam ter… Ficava
facilmente feliz, naqueles momentos…
Um dia fui utilizada para um recital escolar, para ser tocada por crianças
nervosas e medrosas. Nunca tinha sido tocada por crianças, por isso fiquei
surpreendida quando as mãos seguras e fortes, que eu estava tão habituada a
sentir, foram substituídas pelas mãos trémulas dos estudantes. Com mãos
suadas e receosas, eu fui comandada a dançar e libertar os sons que o publico
queria tanto ouvir. As mãos dos estudantes tremiam, quando me tocavam, e
muitas vezes eu caí, devido ao nervosismo e à pressão que as pobres criaturas
sentiam. O público nem uma gargalhada de troça libertou, no som parado por
momentos de reflexão, devido a um pequeno engano que pode provocar o
caos numa pequena divisão no mundo. Dancei, dancei e dancei, novamente,
gorda de alegria; todos os espectadores gostaram, adoraram e amaram, bem
como eu. O fim estava pronto a começar, só faltava uma criança, e eu já sentia
falta da música. Chegou a última música e um menino apresentou-se ao
público para me tocar. Fiquei surpreendida quando um ser tão pequenino teve
a confiança de me agarrar, segurar e bailar comigo, fazendo-me libertar o
maravilhoso som de uma serenata. Aí sim, houve um silêncio, quase
avassalador, que penetrou nos meus ouvidos, por parte das testemunhas que
escutavam o nosso inocente bailar. Pequenas mãos rodeavam-me e não me
largavam no caso de cair. Durante anos ansiei pelo miraculoso momento de
voltar a sentir aquelas mãos. O recital terminou, e o meu coração partiu-se em
dois, para que uma metade seguisse o meu adorado amado, e a outra
permanecesse para dedicar cada som e cada dança a essa criança.
Mas as felicidades de ser tocada, foram rapidamente dadas como
desaparecidas, quando um novo e maravilhoso piano, entrou pela minha
querida sala e ocupou o meu lugar, como o grande espectáculo. Fui de novo
posta à venda, mas ninguém me queria. O mundo estava péssimo e o som
tinha sido temido, naquele tempo; se o som do vento a bailar era escutado, o
público nada mais podia fazer, senão tentar ao seu máximo para salvar-se.
Fiquei anos sem saber se algum dia voltaria a ser tocada por alguma alma
desejosa de me escutar; o que me manteve foi a recordação do confiante e
seguro toque do meu pequeno menino, por quem eu tanto sufocava… Poucos
dias após este pensamento, fui escorraçada do sistema de compra e
abandonada à mercê de um mundo com receio do som…
Permaneci semanas nos subúrbios com a questão, e a insegurança, se algum
dia iria dançar com o meu amado, quando um homem, um senhor me salvou
da decadência das ruas, que começaram a ser tão temidas. O meu vestido
66
67. negro, outrora arruinado, foi reparado por várias pessoas, que se esforçaram
ao máximo para a perfeição se tornar comum no seu mundo moribundo. E eu,
assim, regressei ao meu mundo rodeado pelo silêncio dos restantes, para
assim o meu som ser ouvido; a admiração, o entusiasmo, a felicidade, a
tristeza, os sentimentos sentidos por eles, enchiam-me com uma vida que eu
tanto desejei que não se tivesse desvanecido. No bar do meu salvador, eu
entreguei ao meu novo público de refugiados, a vida e a morte, que os fizeram
recordar velhas histórias desaparecidas, e me fizeram gorda de felicidade, por
ser novamente tocada. Mais uma vez, fui amada e adorada por todos, naquele
pequeno grande mundo, e dia e noite, eu era comandada a tocar sinfonias
melancólicas e melodias eléctricas, que eles tanto apreciavam; transmiti assim
a minha glória e a minha vitória, não só aos meus espectadores, mas também
ao meu amor… Foi o dono do bar que me encontrou, que me salvou, que me
acolheu, que me reparou e que tocou dia e noite, todos os dias. Ele bailava
comigo, quando o bar estava mais cheio, e eu sentia-me triste ao ouvir a minha
serenata… Não eram aquelas mãos grandes e seguras que eu queria sentir, e
de que eu tanto sentia falta. Queria de volta aquelas pequenas, seguras mas
doces mãos, que me agarraram com tanto vigor e que eu tanto amava,
forçando-me a nunca esquecer que ele estava neste mundo, e que eu um dia,
talvez, o reencontraria…
Anos passaram e eu continuei a cantar e a maravilhar o público com o meu
bailar. Permaneci no lado do dono do bar, que poucas vezes me agarrava para
me tocar, e encher os ouvidos dos presentes com promessas de amor ausente,
mas cujas mãos nunca me agradaram… Mas, também nunca mais voltei a
sentir os seus sentimentos de vida e de alegria, pois ele sofreu um acidente de
viação e o seu sorriso desapareceu ao som de uma bomba, mensageira do
final. O bar fechou as portas ao mundo e fechou-me as portas, e as ruas
abriram as suas, repletas de sofrimento e decadência. Vários vagabundos,
sujos e porcos, tristes e bêbedos, tentaram tocar-me, numa tentativa de criar
alegria falsa para os seus problemas serem afastados com o meu som. Mas o
meu bailar era feio, horrível, descoordenado e errado, pois eles não sabiam
tocar-me, acabando por irritar-se e magoar-me; o meu lindo, maravilhoso
vestido negro de cauda foi destruído em poucas semanas…
Quase no meu fim, dois homens, carregaram-me para dentro de um enorme
camião que me transportou para um destino desconhecido… talvez era o
final…
Não… não era o final, mas sim o começo. Fui entregue a uma monumental
casa branca, que me fez recordar da minha sala que agora estava ocupada por
uma intrusa… mas isso também já não interessava… Bateram três vezes numa
grandíssima porta de madeira escura e, quando esta se abriu, eu gritei um som
de alegria e espanto. Ali estava o par de olhos negros como o meu vestido, que
me tinham maravilhado, durante uma magnífica serenata, de há tantos anos, e
que me tinham, naquele momento, abraçado com amor e dedicação. Com um
corpo mais desenvolvido, ele tocou-me ao de leve quando um dos homens
67
68. perguntou, com uma grande curiosidade, o porquê de ele querer um piano tão
mal tratado, e ele respondeu que eu era algo que ninguém iria entender… Aí,
os dias e as noites do resto da nossa vida mortal, fui tocada vezes sem conta…
com amor… com amor…
Eu sou um piano. Não um piano qualquer!...
… Sou um piano amado e tocado por mãos fortes e seguras…
Joana Catela, 10º Ano
68
69. CARTA A MARGOT
1 de Maio de 2009
Querida Margot,
Fico feliz por saber que está tudo a correr bem por aí. Como eu já te disse, só
te vais adaptar com o tempo. Não é fácil estar num lugar que nos é estranho,
sem ninguém familiar. Mas no entanto tenho a certeza que, quando te sentires
mais à vontade, vais adorar. Tirando o clima, que eu sei que não gostas, estás
num país fantástico e estou ansiosa por ir ter contigo nas férias.
Respondendo agora às tuas imensas questões… O Pai está bem.
Ultimamente, anda bastante eléctrico e muito entusiasmado com os projectos
que pretende realizar. Está actualmente a trabalhar na recuperação do nosso
antigo gira-discos, que há muito tempo se refugiava no sótão. Procurou e
comprou um braço novo que correspondesse ao tamanho do antigo, e mandou
fazer uma agulha (igual a esta não havia em nenhuma loja!). Penso que depois
de concluído, irá encaixar muito bem na nossa sala. O Pai comprou logo um
móvel, que já se encontra ao lado da televisão, que por agora tem apenas com
os discos de vinil na parte de baixo: The Beatles, Rolling Stones, Scorpions,
The Police, Supertramp, ACDC, Van Halen… Acho bastante agradável estarem
ali expostos, depois de tantos anos de serem lançados, é como se os
imortalizássemos.
Quanto a mim, vou-me aguentando. Às vezes sinto-me muito cansada devido
aos imensos esforços em casa e na escola. Estou com boas notas, média de
19, o que deixa o Pai muito feliz, e só por isso, já vale a pena. Mas, de
qualquer forma, é muito exaustivo chegar a casa, estudar, arrumar o que está
fora do lugar, e ainda fazer o jantar. A minha sorte é que ele costuma almoçar
com uns amigos no café ao pé do seu escritório, o que agradeço
profundamente, pois se viesse almoçar a casa teria trabalho a dobrar na noite
anterior. Gosto muito dele, mas por vezes desejava que se esforçasse mais e
que percebesse que não posso ser só eu a ―gerir‖ a casa.
O Barbas está cheio de saudades tuas, tenho reparado que os riscos no portão
aumentaram devido à sua vontade de sair de casa (à tua procura, deduzo, já
que ele nunca foi adepto de abandonar o seu ―habitat‖). Continua a largar
imenso pêlo e está enorme…
Vou, finalmente, responder à tua ―questão principal‖, como citaste.
Estou cansada do Ricardo. Sinto-me esgotada. Simplesmente não consigo
perceber a razão pela qual ele não fala comigo. Aliás, fala. Mas não como
antes. Ele mal olha para mim, parece que evita que cruzemos o olhar. Está
invulgarmente estranho e só usa frases curtas, com medo de estabelecer um
diálogo. Não sei porquê, mas parece que tem medo de estar comigo, como se
69
70. o pudesse privar de alguma coisa… Eu só posso ser muito estúpida por ainda
me preocupar, e tentar entender. É tão estranho, tão inquietante. Não percebo
por que raio tenho uma vontade imensa de lhe tocar sempre que estou perto
dele. Como se me pertencesse. E, quando tento falar com ele, reage como se
eu estivesse a pisar um risco, a ultrapassar um muro proibido, ou uma barreira
inquebrável… Estou saturada destas situações. Não sei em que parte da sua
memória é que ele depositou os nossos momentos, talvez naquela que se
designa por ―memória a curto prazo‖, que dura apenas algumas horas.
É irreal. Chego a questionar-me se alguma vez o conheci. Chego a duvidar se
alguma vez o abracei, se alguma vez o beijei. Perante a sua indiferença
comigo, aparentemente ele não se importa, não me demonstra qualquer tipo de
carinho ou preocupação. Mas, no outro dia, quando recusei ir com eles tomar
café (com o pessoal de sempre), e dei como desculpa que já tinha combinado
algo com o André (inventei no preciso momento), ele ficou… Sei lá, irado!
Como se não gostasse que eu estivesse com outra pessoa. Foi-se embora mal
eu pronunciei o nome do meu amigo fictício, dizendo que estava com pressa.
Eu tinha recusado ir com eles porque achei que o ambiente não ia ser
agradável, ele não falaria comigo e eu ficaria frustrada. Mas parece que as
minhas palavras colidiram contra ele de uma maneira arrebatadora. Ele deixou
rigorosamente de falar comigo, como pôde reagir assim? Porquê? Gostava de
perceber, juro...
Margot, Margot. É nestes momentos que preciso, ainda mais, de ti. Promete
que dás notícias. Eu morro de saudades tuas, e o pai, moderadamente,
também evidencia a falta que lhe fazes.
Peço-te ainda que não te esqueças de tirar uma foto ao rio Tamisa de uma
perspectiva que apanhe a Tower Bridge, pois ainda não concluí o meu trabalho
de história sobre as construções de Londres no século XIX, e é suposto
entregá-lo daqui a duas semanas. As outras fotos estavam muito boas.
Obrigada.
Com muito, muito amor,
Mariana.
Maria João Bilro, 10º Ano
70
71. A CADA NASCER DO SOL
― Tudo começou naquela noite escura, mais precisamente a noite mais escura
do ano: o solstício de Inverno.
Eu era apenas uma rapariga de 16 anos, sem nenhum conhecimento sobre
nenhuma das coisas importantes da vida. A minha família era uma daquelas
que estranhamente não têm problemas, em que os irmãos convivem todos em
plena felicidade, e os pais são um casal feliz e com uma vida de sonhos.
Reconheço que sempre fui o elemento mais estranho daquela família, sempre
a escapulir-me para o meu quarto para enfiar o nariz nalguma nova história.
Por sermos a família perfeita, sem nada que pudesse demonstrar estranheza,
desde os meus 12 anos que eu usava o cabelo com uma franja extremamente
comprida, que me tapava toda a testa e quase toda a parte esquerda da cara.
Foi exactamente aos 12 anos que o sinal que eu sempre tive na testa,
começou a mudar. Eu achava-o muito engraçado, começou por ser apenas
uma bolinha preta que nasceu comigo, mas começou a mudar aos poucos,
ficou maior e tomou a forma de uma lua em quarto crescente. Nunca ninguém
deu pela mudança enquanto eu não usava franja, mas comecei a usá-la porque
tinha a sensação que aquela lua deveria «brilhar» só para mim, deveria ser um
segredo só meu. Até que a franja combinava bem comigo, ao meu cabelo
enorme, preto e ondulado, sempre parecera faltar qualquer coisa, até que
descobri que a franja era a forma de o complementar. O único problema é que
escondia um dos meus enormes olhos verde-mar, cheios de pestanas, em que
toda a gente parecia perder-se.
Bem, como eu estava a dizer, toda a gente sempre achou «a Eleina uma
menina muito estranha», e ninguém sabia dizer onde os maus pais tinham
errado para eu sair assim. Enfim, lá por gostar de estar sossegada no meu
quarto com os meus 236 blocos e cadernos cheios de histórias, poemas e
desenhos, que ocupavam o meu tempo, segundo a segundo, e os meus CD,
não quer dizer que eu fosse uma miúda assim tão estranha, afinal, não me
metia em drogas, não me cortava toda, nem fazia coisas estranhas. Conclusão:
era uma miúda completamente normal que tinha nascido numa família com
sentido de normalidade diferente do resto do mundo.
Não sei porque é que foi precisamente naquela noite nem nunca ninguém me
soube explicar.
Era uma noite em que, mais uma vez, tudo tinha que estar perfeito lá em casa.
O «querido maninho mais velho» fazia os seus 18 anos, e eu tinha que me
comportar como uma princesa para não estragar o fogo de vista que o meu
irmão anunciara a todos os amigos. À força, e com a disposição de quem está
prestes a ir para a forca, lá me meti no meu vestido preto e branco, que só
tinha sido eu a comprar, para impedir a minha mãe de escolher um cor-de-rosa
às flores cor-de-laranja, que mais parecia o letreiro fluorescente de um bar. Eu
por mim, sou absolutamente fã de calças de ganga (abençoada pessoa
71
72. extremamente inteligente que fez um grande trabalho a simplificar a vida às
pessoas, com grande sentido de estilo) e de uma simples t-shirt, e não visto
mais nada, a não ser que a minha mãe me implore, claro. Os saltos altos foram
o cúmulo, afinal eu era uma rapariga de 16 anos, não uma modelo da Fashio
Week de New York, e faziam-me sentir como se tivessem sido «colocados na
cena do crime» para que eu não pudesse fugir a correr daquele jardim quando
os convidados começaram a chegar, e eu tive que tirar o meu melhor sorriso
Pepsodent do armário.
A noite estava, de facto, muito escura, e a minha mãe quase teve um ataque
quando o imprestável do meu irmão não conseguiu acender as tochas que
estavam espalhadas por todos os cantos, como se o jardim fosse uma
almofada de alfinetes, e lá teve que ir aqui a maninha fazer o trabalho sujo.
A hora da tortura aproximava-se a passos largos e eu estava cada vez mais
mal disposta. Sentia que aquela noite não devia ser desperdiçada com festas
daquelas, e que eu deveria estar noutro lugar qualquer, que não incluísse ter
de estar sempre a pentear a franja ou a afastar os brincos dos caracóis do
cabelo. Por falar em franja, eu nesse dia estava com uma comichão muito
estranha na minha lua, para falar verdade eu até já achava que era dos nervos.
Depois de dar mais uma vez os parabéns ao meu irmão, e de fazer um grande
sorriso a um grupo de amigas da minha mãe, decidi circular um bocado pelo
jardim, e foi o que fiz, enquanto mordiscava uma folha do meu carvalho
centenário, nos ramos do qual tinha acabado de estar sentada.
Quando passei em frente da porta que dava para a sala de estar, notei que o
meu pai estava lá, a beber whisky com um ar estafado, e preparando-se para
se sentar discretamente no sofá, em frente à televisão. Estava a pensar se
deveria ou não ir ter com ele quando via aparecer um sujeito muito estranho,
todo vestido de preto, com cabelo preto e olhos pretos, que se dirigiu ao meu
pai. Achei muito estranho, ninguém lá em casa conhecia gente com aquele tipo
de estilo, muito menos o meu pai. Fiquei à espreita junto á porta, e vi o meu pai
levantar-se do sofá para falar com o homem. Não aprecia nada satisfeito, como
se o homem lhe estivesse a dizer alguma coisa do tipo que ele considerava
desrespeitoso dentro da sua própria casa. Nenhum deles me viu, pareciam
estar a começar a discutir, mas no meio de tudo o que disseram eu só
consegui ouvir uma frase: «Não diga disparates homem, a minha Eleina não é
desse tipo». Então estavam a falar de mim, e era o tipo de conversa que o meu
pai não gostava…Tentei lembrar-me se conhecia aquele homem vestido de
preto de algum lado, mas não, tinha a certeza que nunca o tinha visto na vida!
Então como é que ele sabia o meu nome? E o que estaria a dizer sobre mim?
Eu estava a olhar fixamente para os dois homens, ainda a discutir, quando uma
forte e súbita dor de cabeça me fez desviar a atenção. Nesse momento houve
uma rajada de vento gelado que me arrepiou toda e que apagou as tochas, ao
mesmo tempo que também as luzes da casa se apagavam, por qualquer
motivo desconhecido. Não havia luar, e os convidados da festa estavam a
começar a ficar assustados. Ouvi a minha mãe a dizer para ficarem todos
72
73. calmos, que estava tudo controlado, e decidi entrar em casa para ver se algum
fusível tinha rebentado.
Passei pela sala, onde estava agora tudo calmo, como se a discussão tivesse
acabado de repente, quando as luzes se apagaram, e quando estava a passar
perto do sofá tropecei em alguma coisa que quase me fez cair. Não sabia o
que era, mas isso tinha de ficar para depois, agora o mais importante era
acender as luzes. Fui até ao quadro da electricidade, onde constatei que não
havia nenhum problema, apenas tinha disparado, e voltai a ligar as luzes. Pude
ouvir no jardim as vozes aliviadas dos convidados e quase fui capaz de
perceber um suspiro da minha mãe. Sem me lembrar mais de ir à sala ver em
que é que tinha tropeçado, decidi subir ao meu quarto para ver do meu
telemóvel, que me pareceu ter ouvido tocar. Subi as escadas discretamente
para ver se a minha mãe não dava por mim e me mandava fazer sala a mais
alguma tia emprestada que só me faria perguntas às quais não ia gostar das
respostas.
Quando (finalmente) consegui chegar ao meu refúgio, já o telemóvel tinha
parado de tocar, e nem me dei ao trabalho de ver de quem era a chamada,
preferi tirar aqueles sapatos horríveis e atirar-me para cima da minha cama
gigante com os cadernos onde estava o meu mais recente trabalho, à frente
dos meus olhos. Era um desenho, uma espécie de logótipo, um esquema de
figuras entrelaçadas com o qual tinha sonhado, e cuja imagem principal era a
minha lua. Estava a retocar as 6 estrelas que deveriam estar entrelaçadas à
volta da lua, quando ouvi um grito horrorizado, vindo do andar de baixo. Desci
a correr, sem me dar ao trabalho de calçar os sapatos, alinhar o vestido ou
compor o complicado penteado que a minha mãe me tinha feito, e com o
coração aos saltos como se já soubesse o que me esperava, mas sem o saber
bem.
Mas nem todas as premonições do mundo me podiam ter preparado para o
drama que se seguiu. O barulho vinha da sala onde eu vira o meu pai e o
homem de preto, e era justamente aí que se encontravam agora todos os
convidados da nossa festa, aos gritos e exclamações, como se estivessem no
mais brejeiro dos mercados. Estava toda a gente reunida à volta de qualquer
coisa, e só depois de muitos, e nada elegantes empurrões, consegui ver do
que se tratava. Talvez preferisse não ter visto, porque no chão estava o meu
pai, ainda com a mesma expressão zangada que eu lhe tinha visto, mas
indiscutivelmente morto.
Olhei em volta sem perceber nada, achando que aquilo não podia ser real, ate
que dei de caras com o homem de preto. Estava à porta da sala, olhando
discretamente para a confusão. Os seus olhos fixaram-se em mim, quando
também percebeu que eu estava a olhar para ele, e fez a coisa que mais me
indignou naquele momento: mandou-me um beijo… Depois, virou costas e foi-
se embora, com a capa, que só nessa altura reparei que tinha, a esvoaçar
atrás de si. Essa mesma capa que, segundo consegui ver, tinha na bainha uns
desenhos bordados a fio de prata. Representavam uma rosa prateada com
73
74. espinhos que se cravavam na lua em quarto crescente. Quando olhei para
aquilo voltei a sentir a dor de cabeça que tinha sentido antes de as luzes se
apagarem. Para não pensar nela, voltei a concentrar-me no drama surreal em
que se tinha tornado, de um momento para o outro, a minha vida, e que tinha
como tema principal, o meu pai morto, com um punhal espetado no coração, e
deitado no chão da sala com a minha mãe a soluçar agarrada a ele e os meus
irmãos a tentarem acalmar e mandar embora os convidados de uma festa que,
supostamente, deveria ser perfeita.
Não conseguia olhar para os olhos abertos do meu pai, por isso decidi fechá-
los, enquanto pensava no que teria acontecido e quem o teria feito. Não sei
porquê, o meu olhar foi atraído para o punhal: era de outro, trabalhado com os
mesmos desenhos que eu vira de relance na capa do homem de preto. Apesar
de não me ter apercebido disso antes, eu já tinha a certeza de que tinha sido
aquele homem, certeza essa confirmada agora pela visão dos desenhos.
Perguntei à minha mãe se alguém já tinha chamado a polícia, mas não
consegui perceber metade do que ela disse por entre os soluços, e a metade
que percebi, apenas dizia respeito a coisas da vida dela com o meu pai que ela
deveria estar a relembrar naquele momento. Não consegui dizer nada para a
confortar, nem sequer conseguia chorar, apenas lhe fiz uma leve festa na mão
que ainda segurava a do meu pai, e saí para procurar os meus irmãos.
Como ninguém ainda o tinha feito, liguei para a polícia, que apareceu pouco
depois. Dois agentes fardados e dois criminalistas fizeram as perguntas do
costume à família, que se tinha reunido na sala de jantar. Contei-lhes o que
sabia, e dei a descrição pormenorizada do homem, mesmo que, nem sei bem
porque, não acreditasse muito que o conseguissem apanhar.
Depois de levarem o corpo e de eu e o meu irmão termos obrigado a minha
mãe a tomar um calmante, foram todos dormir, e eu saí para o jardim para me
sentar no carvalho.
As coisas da festa estavam espalhadas por todos os lados, como se os copos
e os pratos estivessem à espera que os seus donos voltassem a qualquer
momento, e as tochas, que alguém tinha voltado a acender, estavam quase
apagadas.
Atravessei o jardim como um fantasma, sem um único som, e procurei refugio
na minha árvore, escondida entre as suas folhas. Ainda na semana passada o
meu pai a quisera cortar, e só depois de muita insistência e muitas desculpas
estapafúrdias, o tinha convencido a não o fazer. Agora, o meu pai estava
morto, fora assassinado por um estranho, e a minha vida tinha mudado para
sempre.
Subi para um dos ramos mais grossos e abracei-me à casca com toda a força
como se tivesse medo que desaparecesse.
- Sabia que te ia encontrar aqui… - Era a voz do meu irmão, que eu nem tinha
ouvido aproximar-se, de tão imersa em recordações que estava.
- É! – Respondi simplesmente.
74
76. - Vem para dentro Eleina, não há nada que possas fazer para mudar o que
acontecer! – Ele estava tão transtornado como eu, com o que tinha acontecido,
podia senti-lo.
- Não percebes? Aquele homem queria qualquer coisa de mim, queria falar
comigo, e sabia alguma coisa sobre mim que mais ninguém sabe! Foi por
minha culpa que o pai morreu! – Eu disse aquilo inconscientemente, mas sabia
que era inteiramente verdade.
- Como é que tu sabes o que ele queria? – Perguntou o meu irmão confuso – E
qual é o mistério que poderia haver em ti? Não digas disparates, não foi culpa
tua nem de ninguém o que aconteceu. Ou melhor, foi única e exclusivamente
culpa desse tal homem, desse louco!
- Não sei como é que o sei, mas sei que ele queria falar comigo - Não digas
disparates Eleina! Vamos para casa, é tarde, tivemos demasiadas emoções por
hoje. – Ordenou o meu irmão.
Eu desci do carvalho e juntei-me a ele no caminho para casa. Subimos as
escadas juntos e ele deixou-me à porta do meu quarto.
- Dorme bem, amanhã temos um dia difícil. – Disse ele afastando me um
bocadinho a franja.
Mas eu dormi tudo menos bem, tive um sonho estranhíssimo em que eu era
uma sacerdotisa da lua, como aquelas que apareciam nos meus livros e nas
minhas histórias.
No dia seguinte acordei sem querer acordar, o sonho tinha sido estranho, mas
a realidade tinha-se tornado mais estranha do que qualquer sonho.
A minha mãe passou o dia no quarto, mergulhada em tudo o que lhe lembrasse
o meu pai, e eu, sendo a rapariga mais velha, fiz as honras da casa a todos os
familiares, amigos e conhecidos que queriam prestar as suas condolências.
Não tive sequer tempo para falar com o Kevin, o meu melhor amigo, que
passou lá por casa para estar comigo, apenas lhe dei um abraço e me deixei
ficar alguns minutos nos seus braços.
- Estou aqui para ti, sempre, minha pequenina! – Disse-me ele, e foi o único
momento em que senti que podia chorar.
Ao fim da tarde recebemos a visita da polícia, que nos informou que não havia
impressões digitais no punhal, coisa que eu já sabia: tinha visto as luvas que o
homem usava. Quando os agentes se foram embora, fui ver das minhas irmãs
que estavam sentadas à porta, sempre fechada, do escritório do pai, a chorar.
Sentei-me ao pé delas e fiquei à espera que quisessem falar, mas não
quiseram, abraçaram-se a mim e choraram até adormecerem no meu colo.
Levei-as para cima e deitei-as, depois tranquei-me no meu quarto. Tinha
passado todo o dia por menina insensível que não chora com a morte do pai,
eu não estava minimamente interessada no que as outras pessoas pensavam,
mas, por um lado, eu queria chorar, porque sentia que talvez fosse mais fácil
se conseguisse dissolver aquela dor que tinha cá dentro. Não saiu nem uma
lágrima, lembrei-me de todos os anos que passei com o meu pai, com a minha
76
77. família que eu tanto tinha desprezado, e cada coisa que passava pela minha
mente ia aumentando o nó que tinha na garganta, tanto que quase sufocava.
Deixei-me ficar sentada no chão da varanda a sentir as lajes geladas nas
costas. A lua nova tinha acabado, e apareceu no céu um quarto crescente
perfeito, igual ao que eu tinha na testa. Fiquei a olhar fixamente para ele até ter
atingido o seu tamanho máximo. Era belo, brilhante, misterioso, era meu, a
minha natureza. A certa altura comecei a sentir aquela comichão estranha na
testa, mais leve, apenas um pequeno formigueiro. Meti a mão pela janela para
tirar o meu espelho de cima da mesa. Afastei a franja e vi a minha lua a brilhar
com uma cor prateada muito estranha, quase como a lua que estava no céu.
Esfreguei os olhos, só podia estar a sonhar, mas quando voltai a olhar a luz
continuava lá. Enquanto olhava para o espelho comecei a ver pequenas figuras
a moverem-se, como se estivessem atrás de mim, mas não estavam, tinha a
certeza.
Era o homem de preto, o homem que matara o meu pai, estava no meio de um
grupo de pessoas. Todas usavam a mesma capa, e tinham uma rosa prateada
na mão. O grupo entoava um cântico, e pelas vozes percebi que eram só
homens. Chegaram a uma parte em que diferentes parcelas do círculo
cantavam coisas diferentes, tornando o cântico extremamente confuso para
mim.
Passados alguns momentos, voltaram a unir-se numa única palavra, o meu
nome.
Eu sabia o que era aquilo, tinha lido nos meus livros: era uma invocação.
Eu só podia estar a sonhar, por isso belisquei-me. Não esperava que doesse,
mas doeu, mostrando que estava bem acordada. A invocação continuava a
acontecer no meu espelho, e eu sabia o que deveria acontecer a seguir. O meu
espírito deveria começar a abandonar o meu corpo, que entraria em transe,
permitindo ao meu espírito viajar ao encontro de quem me convocava.
Tomei consciência que estava a pensar demais. Estava a partir do principio
que aquela invocação estava MESMO a acontecer. Podia ser apenas uma
partida do meu subconsciente, a minha mãe estava sempre a dizer que eu
passava demasiado tempo agarrada à ficção.
Nesse momento, comecei a sentir-me mal, a ver tudo desfocado, a ponto de as
figuras no espelho não passarem de borrões, e tremer, a tremer muito, até que
desmaiei.
Foi uma sensação horrível, como se o meu corpo estivesse a ser transportado
pelo ar e eu não conseguisse abrir os olhos. Não conseguia, estava tudo
escuro.
Como se tudo aquilo fosse um filme de terror, um daqueles mesmo
assustadores, «acordei» no meio do círculo que vira através do espelho,
ajoelhada aos pés do homem que tinha morto o meu pai. E digo ajoelhada
porque, sabe-se lá como, o meu corpo tinha viajado juntamente com o meu
espírito até àquele cenário surreal.
- Levanta-te! – Ordenou o homem
77
78. Olhei para cima desdenhosamente.
- E se não levantar?
- Não estamos aqui a brincar, rapariga! – Vociferou o homem – Esperámos
muitos séculos por este momento. Não te atrevas a desafiar-me.
-Senão?! Espeta-me um punhal de ouro no coração? – Não deixava de me
sentir inferior a ele, ali no chão, mas não tinha medo – Acho muito estranho
que tenha um stock de punhais tão ilimitado.
- Não preciso realmente de um punhal para matar alguém.
Houve uma agitação no círculo de homens, mas ninguém disse nada.
- Não ousarias! – Estava certa das minhas palavras, mas não sabia o que
significavam – Precisas de mim viva para poderes gabar-te primeiro, senão,
porque dares-te ao trabalho de uma invocação corpórea?
Ele riu.
- Não saberás de certeza, Kea?
- Não sou Kea, ela morreu há muito.
As palavras saíam da minha boca mas não parecia ser eu que as proferia.
O homem fez um sorriso de escárnio.
-Eu sei que sim, fui eu quem a mandou matar. Só que, pelos vistos, o trabalho
não ficou bem feito e tivemos que reencarnar, para ver se desta vez fica. Olha
que pena, vou ter de te matar outra vez! – Riu com tanta vontade, e num riso
tão frio, que me arrepiou.
- Ou pode ser que desta vez eu te mate a ti! – Foram as palavras que
corajosamente saíram da minha boca…
- Ora, ora! Parece que estamos a regressar aos princípios. Afinal sempre te
lembras, é uma pena que não estejas em posição de fazer ameaças.
Realmente uma pena.
Começava mesmo a lembrar-me, parecia um sonho distante. Levantei-me com
uma leveza e altivez que, quem me conhecesse diria certamente que não eram
minhas. Agora olhava-o nos olhos, uns olhos que afinal eu bem conhecia.
- Gostaste do beijo que te mandei? Fez te lembrar os velhos tempos?
Desta vez fui eu quem sorriu.
- Acabaste de encontrar um pormenor que certamente não se irá repetir. Um
erro que não voltarei a cometer, Ewein.
- Agora chamam-me Gawen. – Explicou o homem
-Não difere muito do antigo, mas não sei como tens coragem para usar esse
nome.
Era ridículo que ele o usasse, um verdadeiro insulto a tudo o que eu alguma
vez representara, portanto perfeito para ele.
- Vejo que continuas ligada às velhas histórias – Comentou ele com um sorriso
– e que o meu nome te afecta…continuas a ser demasiado picuinhas. Já
soubeste o meu nome actual, agora resta-me saber o teu?!
Estava a começar a ficar irritada, aquele homem matara o meu pai e muitas
outras pessoas de quem eu gostava, não fazia sentido aquela conversa toda.
- Se queres mesmo saber, é Eleina.
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79. - Eleina…fica-te bem…combina contigo.
- Não sei o que queres dizer, mas também não interessa. Estou farta desta
conversa sem sentido.
- Simplesmente Eleina é o nome de uma pessoa fraca como tu.
- Sou fraca, mas tenho conseguido sobreviver-te, muita gente não foi capaz!
Não estava assustada, nunca estivera, estava irritada, cheia de vontade de
acabar com aquele homem.
- Tratemos disso!
Assumiu a sua posição de ataque: corpo direito e expressão fechada, e o seu
cabelo preto começou a esvoaçar.
- Finalmente vamos começar?
- Vocês ficam quietos, ninguém se mete. Da ultima vez não fui eu e viu-se o
que aconteceu…
- Finalmente alguma coragem!
Também o meu corpo parecia assumir uma posição de combate, mas mais
uma vez não era eu que o comandava, nem sequer percebia totalmente o que
se estava a passar.
Os homens alargaram o círculo dando-me espaço para me afastar de Ewein.
O seu cabelo cada vez esvoaçava mais, e as suas pupilas alargaram-se até
não haver mais branco nos seus olhos.
- UH! Intimidante! – Trocei eu.
Em resposta ele lançou-me um relâmpago, um autêntico relâmpago, energia
pura, que passou a centímetros de mim.
- Gostas dos novos truques?
Não tinha falado, não tinha proferido uma única palavra para me lançar o
relâmpago.
- Não me afectou, como podes ver.
Estava cada vez mais irritada.
Lançou outro, e outro, e outro, que miraculosamente não me acertava,
pareciam ser desviados por uma barreira invisível. Estava a ficar furioso a
pontos extremos, tinha uma aura de energia à sua volta, energia visível, que
lançava pequenos raios à sua volta.
- Tenho que te matar, para ires ter com o teu querido Gawen, e Deidara.
As suas intenções de me irritar estavam a ser bem sucedidas, lembrei-me de
pessoas que não me lembrava de ter visto nos últimos dezasseis anos, mas
que faziam parte de mim. Comecei a chorar de fúria, muitas, grandes e grossas
lágrimas que instantaneamente se transformavam em pingentes de vidro, ou
melhor, diamante, afiados como facas, que voavam directamente para Ewein.
Ele esforçava-se para pará-los, destruía-os com a energia, mas eram muitos,
demasiados, as suas roupas começaram a rasgar-se e começou a sangrar de
um milhão de pequenos golpes.
- Sua maldita! – Ele estava ainda mais furioso. A onda de energia intensificou-
se ainda mais, e o ar ficou pesado, fazendo com que os cabelos de todos os
presentes se levantassem. – Vais morrer!
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80. Todo o poder acumulado por ele soltou-se, demorou apenas uma fracção de
segundos, tive medo que me atingisse, verdadeiro medo, mas nessa fracção
de segundos, tudo ficou escuro…
«Será que morri?» – Pensei. Nunca tinha tido uma sensação assim, estava
leve, parecia não ter corpo. Só havia uma coisa que me incomodava: a
escuridão não acabava. Eu era uma pessoa de escuridão, mas não durante
eternidades, que era o que aquilo parecia, nunca mais acabava. Comecei a
perder-me, a desaparecer, só queria acabar com aquilo, fosse como fosse.
Ao fim de uma eternidade pareceu-me que as coisas estavam a clarear um
pouco, minuto a minuto mais um bocadinho, mas podia ser só o reflexo dos
meus desejos. Sinceramente tinha mesmo começado a acreditar que estava
morta, mas se era assim, estar morta era horrível.
Alguns momentos depois comecei a ouvir um cântico, não aquele que me
convocara, mas um mais leve e mais suave, uma música linda cantada apenas
por mulheres. A cada nota a escuridão à minha volta diminuía, era como que o
contraste da invocação. Acabei de adormecer ao som da música.
Acordei sentada na varanda, com o espelho no colo. Já era de manhã.
De repente começai a lembrar-me do que tinha acontecido na noite anterior. Já
não sabia se tinha sido real, ou apenas mais um dos meus sonhos, apenas que
era estranho.
Levantei-me e entrei no quarto calmamente, doía-me o corpo todo. Olhei para o
espelho e vi que o meu cabelo estava todo levantado, cheio de electricidade
estática, como se realmente tivesse combatido com Ewein. Penteei-me e fui
buscar um livro para ler, estava cansada e cheia de sono, mas não queria
adormecer, por medo do que iria acontecer.
Decidi-me pelo primeiro volume das Brumas de Avalon, um dos livros que mais
me fazia voar. Quando estava sentada na cama, a ler, lembrei-me da música
que tinha ouvido antes de acordar. Não era português nem inglês, era latim, e
eu sabia-o porque tinha tido aulas. Enquanto tentava decifrar o seu significado,
alguém bateu à porta. Era o meu irmão, que pediu para falar comigo.
- Eleina, estás bem?
- Estou, porque não haveria de estar?
- Não mintas! Temos que ser fortes, mas não a ponto de negar a verdade.
- Mas tu não sabes qual é a verdade, por isso nem te atrevas a falar em
verdade. Para ti, tal como para os pais, esta sempre foi uma família perfeita,
quase que ignorando a minha existência, e agora continuas a tentar manter as
tuas preciosas aparências. Não somos, nunca fomos e certamente não vamos
ser a família que vocês querem.
Gritava e esbracejava como uma louca.
- Desde que viste viver connosco que destruíste essas aparências!
- Edward! – Ouvi um grito escandalizado, enquanto as palavras do meu irmão
ecoavam na minha cabeça.
- Ela tem o direito de saber! – O meu irmão gritava em direcção à minha mãe,
que se sustinha em na ombreira da porta do meu quarto.
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81. Eu estava a ficar histérica.
- Mas saber o quê?
O meu irmão tentou falar, mas foi imediatamente interrompido pela minha mãe:
- Não te atrevas Edward, não assim!
- Mas o que é que se passa?
- Eleina, temos que falar, querida! Edward, sai.
A minha mãe olhava para mim tristemente enquanto o meu irmão abandonava
o quarto.
- O que é que se passa?
- Querida, tenho imensa pena! Não sei se há uma boa maneira de contar uma
coisa assim, mas mais vale saberes. Depois de o teu irmão ter nascido, eu e o
teu pai tentámos ter mais filhos, durante muito tempo, sem sucesso.
- Mas engravidou de mim, obviamente!
Não estava bem a perceber onde é que a minha mãe queria chegar.
- Não me interrompas! Consegui engravidar, e estávamos muito felizes. Aos
sete meses caí das escadas e perdi o bebé. Não se chegou a saber, porque
menos de uma semana depois tocaram à porta, e quando fui abrir encontrei
uma bebé linda, a olhar para mim.
A minha mãe olhava-me a medo.
- Era eu?
- Eras sim, querida. Desculpa.
A minha mãe tentou abraçar-me, mas eu fugi-lhe e saí do quarto a correr.
Refugiei-me nos ramos mais altos do meu carvalho, a chorar compulsivamente.
Não fazia ideia do que fazer, aquela era a minha casa, o meu mundo.
- Eleina, desce daí.
A minha mãe encontrava-se lá em baixo.
- Há mais alguma verdade escondida sobre a minha existência?
- Querida, és minha filha, eu e o teu pai sempre te amámos.
- As manas são suas filhas? – Perguntei de repente
- São. Tens que perceber que eu tinha que te contar. Se fosse o teu irmão a
fazê-lo nunca me perdoarias.
- O que a leva a pensar que assim perdoarei?
- Eu não espero que perdoes por agora, mas a verdade é que nunca esperei
ter que te contar.
- E os meus pais biológicos? – Perguntei muito baixinho.
- Desculpa querida, a única coisa que deixaram foi um papel que dizia ―Eleina‖.
Pensámos que seria o teu nome.
- Mãe, vá para casa. Preciso de ficar sozinha. – Pedi calmamente
- Está bem, mas não te esqueças que és e serás sempre minha!
Mais uma vez sentia-me estranhamente alheada da realidade, como se não
estivesse a viver aquele momento.
Não saí do meu carvalho durante todo o dia, tinha uma ideia em mente, mas
tinha que pensar realmente bem… Acabei por adormecer nos ramos mais
altos.
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