O jovem rural: empreendedor, capitalista ou trabalhador
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O jovem rural:
empreendedor e capitalista?
O “empreendedor”: de mecanismo econômico a valor social
Algum tempo atrás, a Marco Social (**) anunciava que o Sebrae “aplica, no campo, programa da cidade”. Com o título “Sucesso a caminho do meio rural”, a matéria noticiava os esforços do Serviço Nacional de Apoio às Micro e Pequenas Empresas para “disseminar a cultura do empreendedorismo por todos os setores da sociedade” e, em particular, para oferecer aos produtores rurais “as ferramentas gerenciais para transformar sua propriedade em empresa rural”. Assim, programas como o Empretec Rural ou o Programa Brasil Empreendedor Rural ensinam ao produtor “a ver sua pequena propriedade como um negócio e não apenas como um meio de subsistência”. Longe de tentar fazer uma avaliação desses programas, gostaria de chamar a atenção para a grande difusão que conceitos como “empreendedor” e “empreendedorismo” ganharam nos últimos anos, tanto na mídia quanto nas doutrinas de administração e programas de gestão e, até, em alguns setores da academia. Cabe perguntar por que esses termos tornaram-se tão populares nos últimos tempos e o que devemos entender por “empreendedor” e por “empreendedorismo”.
Segundo o presidente do Sebrae: “o empreendedorismo não é o privilégio da iniciativa privada, o empreendedorismo é a atitude de um povo”. Em outras palavras, o empreendedorismo não seria apenas uma maneira de ser e de agir característica de alguns poucos empresários, seria (ou melhor: deveria ser) a atitude de um povo. Esta noção do empreendedorismo como uma atitude desejável na grande maioria da população parece ser uma boa síntese do sentido que prevalece na maioria dos usos atuais do conceito. No entanto, resulta curioso constatar que, nessa acepção, o conceito se opõe radicalmente à definição dada há cem anos por quem é reverenciado mundialmente como o “pai do empreendedor”. Para Joseph Schumpeter, o economista que de forma mais sistemática e consistente chamara a atenção para a importância da iniciativa econômica para o desenvolvimento da economia, o empreendedorismo é um tipo de atitude que só é acessível em proporção muito desigual e referida a relativamente poucos indivíduos. Para o jovem Schumpeter, a atitude empreendedora é privilégio de algumas poucas pessoas – “muito menos numerosas que todas aquelas que têm a possibilidade ‘objetiva’ de a desempenhar”. Nesse sentido, ele dá um exemplo que não deixa dúvidas sobre o seu caráter restrito: é como a habilidade de cantar, afirmará, embora praticamente
“O fortalecimento do capital humano e social parece estar, assim, na base das estratégias de desenvolvimento local no meio rural.”
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(**) Marco Social n° 2, maio de 2001.
Osvaldo López-Ruiz
Fotos: Sergio Zacchi
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todo indivíduo possa cantar, a aptidão para cantar não deixa de ser uma característica distintiva e o atributo de uma minoria. É claro que o que interessa a Schumpeter para explicar o fenômeno do desenvolvimento econômico são apenas os “Carusos”, ou seja, aqueles nos quais a iniciativa econômica e a capacidade para inovar se apresentam como um atributo acima da média, como uma qualidade supranormal que define um tipo de pessoa, diferente por natureza – e não apenas em grau, salientará – daquelas que apresentam uma mera conduta econômica racional.
Quando, com pouco mais de 25 anos, Schumpeter escreveu sua “Teoria do desenvolvimento econômico”, o que procurava era explicar o funcionamento da economia por meio de uma teoria estritamente econômica do desenvolvimento; em outras palavras, o que interessava a ele era descobrir o mecanismo interno à própria economia que desse conta das transformações da vida econômica. E para quem, como ele, escreve nos primeiros anos do século XX, como não pensar nas figuras míticas da Revolução Industrial, aqueles grandes empresários como Henry Ford, Emil Ratheau ou Werner Siemens? Como não começar com os que na época eram considerados praticamente heróis civilizadores por “terem trazido o progresso”? Como não se referir a esses homens concretos quando se tratava de explicar as enormes transformações registradas na economia?
Porém, a iniciativa econômica que inicialmente era para Schumpeter um atributo de um tipo de pessoa de carne e ossos, tornou-se logo depois na sua teoria um mecanismo que funcionava além de pessoas individuais, uma função especial da economia, baseada na atividade empresarial, que permitia explicar a mudança econômica na sociedade capitalista. Aquela atitude sui generis, privilégio de um tipo de pessoa e atributo de uma minoria, foi, ao longo da obra de Schumpeter, se tornando independente de pessoas particulares, de indivíduos com nome e sobrenome – no fim das contas, ninguém pode ser empreendedor o tempo todo a vida toda, concluiria o autor – para se transformar num conceito: a inovação, e numa função vital para o desenvolvimento da economia: o empreendimento de novas combinações. Essa função passaria a ser encarnada, assim, por uma personalidade corporativa, a que reúne de forma permanente atitudes que nenhum indivíduo combina por si só. O velho Schumpeter, que no final dos anos 1940 assistira nos Estados Unidos à consolidação das sociedades de grande escala, percebera com clareza que a função empresarial já não dependia do empreendedorismo de um indivíduo isolado, mas de um conjunto de sujeitos que exerciam essa função cooperativa e coordenadamente dentro de cada empresa.
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Contudo, há alguns anos, a figura lendária daquele
empreendedor individual de finais do século XIX e inícios do XX vem sendo recuperada com todas as características típicas descritas pelo primeiro Schumpeter. Logo, para ser empreendedor, um jovem hoje precisa desenvolver todo esse conjunto de aptidões, não já entendidas como disposições inatas, mas como habilidades e destrezas que podem ser ensinadas e aprendidas. Não surpreende, então, que a “educação empreendedora” seja o objetivo de programas como os mencionados anteriormente (há muitos outros e de instituições das mais diversas) que procuram promover, justamente, a “cultura do empreendedorismo” tanto no meio urbano quanto no rural. No entanto, o que gostaríamos de argumentar aqui é que a recuperação atual de certos temas schumpeterianos tem a ver menos com uma teoria como a de Schumpeter sobre o desenvolvimento econômico (a sua atualidade e veracidade) do que com a difusão e promoção de um conjunto de valores no mundo contemporâneo.
Em outras palavras, difundir uma cultura empreendedora não é apenas difundir um conjunto de conceitos, conhecimentos e saberes testados e legitimados pela ciência como verdadeiros. É antes disso a difusão de normas e valores que orientam as condutas das pessoas em função de um dever ser, de como elas precisam ser e agir na vida, do que se entende como bom ou ruim, do que é esperado delas.
O “capitalista” do seu capital humano e social
Em forma semelhante ao que acontece com profissionais citadinos, empregados da indústria ou executivos de corporações transnacionais, o jovem rural vem sendo lembrado com freqüência crescente da importância de investir no seu capital humano e social. Especialistas diversos, consultores de ONGs ou de organismos internacionais, assim como analistas de mercado enfatizam a importância para a economia de aumentar os estoques desses capitais investindo nas competências produtivas dos indivíduos e nos “recursos morais” das comunidades (***).
Fala-se, por exemplo, da necessidade de capacitação permanente, de provocar mudanças comportamentais, de influenciar nas atitudes e, também, que a escola rural e os centros de formação orientem seus conteúdos para as necessidades do mercado procurando novas formas de inserção econômica (produtos orgânicos, agroturismo, etc.). A educação formal é considerada, pelos difusores desses conceitos, um insumo fundamental para o desenvolvimento da agricultura sustentável. Os jovens no campo precisam, salienta-se, de uma formação técnico-gerencial voltada para a otimização econômica da propriedade agrícola. Sendo assim, um conjunto específico de conhecimentos, habilidades e destrezas
(***) O Banco Mundial, para citar apenas um exemplo, criou em 1998 uma página no seu sítio na Internet dedicada especificamente ao “capital social”. – isto é, de “capital humano” – deve ser transmitido por treinamento.
As comunidades, por sua vez, precisam gerar seu capital social e desenhar planos de investimento para aumentá-lo – planos para aumentar, por exemplo, a confiança entre as pessoas que fazem parte delas. Isto porque, será argumentado, um alto estoque de capital social atrai investidores, reduz os custos das transações e diminui os riscos dos novos investimentos.
O fortalecimento do capital humano e social parece estar, assim, na base das estratégias de desenvolvimento local no meio rural. A equação parece simples: se há capital humano e social numa localidade ou território específico, haverá capital financeiro e físico para o seu desenvolvimento. Se há capitalistas dispostos a investir seu dinheiro num local será porque no local encontram parceiros que investem seu capital
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humano e social – porque, vale a pena lembrar, como o capital humano compõe-se de capacidades, habilidades e destrezas que não podem ser separadas da pessoa que as detém, seu possuidor é também um capitalista: “capitalista” do seu capital humano e social. Assim, provavelmente o jovem rural se sinta lisonjeado ao saber que, segundo esta “nova” concepção, ele é “capitalista”. Ora, significa isto que ele não é mais trabalhador? Não exatamente. Significa que ele além de trabalhar (“investir”) vai ter que gerir seu “capital”, e ele vai ser o único responsável por seu valor no mercado – o valor de mercado do seu “capital” e o dele próprio: no fim das contas ele só pode se tornar “capitalista” desde que ele seja capital.
É curioso observar como, há algum tempo, a literatura de negócios enfatiza que as velhas distinções entre capital e trabalho devem ser eliminadas: as pessoas não devem ser vistas nem como custos, nem como recursos ou ativos, mas como investidores. Na verdade, o que certas retóricas da administração fazem é recuperar, na década de 1990, algumas idéias e noções da Teoria do Capital Humano formulada na Universidade de Chicago na década de 1960. Esta teoria econômica inicialmente visava responder a uma questão específica: o mistério do crescimento econômico, principalmente no pós-guerra nos Estados Unidos. A conta não fechava: a soma do crescimento de cada um dos fatores de produção: terra, trabalho e capital era menor que o crescimento total da economia. Como explicar a diferença? A resposta que eles propuseram foi deixar de pensar o “trabalho” como um fator originário da produção. O trabalho que interessa à economia, o trabalho que faz crescer a economia, argumentavam, é aquele que é resultado de um investimento prévio em capacidades e conhecimentos que agregam valor. Porém, se é o resultado de um investimento, o trabalho é uma forma de capital (eis o “capital humano”!), e o trabalhador, um capitalista.
Apenas algumas perguntas
Embora possa ser argumentado que a teoria do capital humano rebate a concepção da economia clássica que considera a atividade humana na economia de forma homogênea – como força de trabalho medida em horas trabalhadas – valorizando assim as capacidades humanas diferenciadas, os investimentos em educação e, portanto, o “fator humano” nas políticas de desenvolvimento, cabe perguntar qual é o critério, além do dos investidores e o do Mercado, para deferir que capacidades e conhecimentos precisam ser transmitidos para as novas gerações? Que tipo de educação deveriam receber, por exemplo, os jovens que habitam os muito diferentes mundos rurais de um país como o Brasil? Em que capacidades, técnicas e destrezas devem eles apostar seu tempo e esforço? Aliás, quando saberemos o resultado da aposta?
Mas e se o “investimento” deu errado? E se a aposta em tal ou em qual produto deixa de ser bem vista pelo Mercado? O que acontecerá com a pequena granja que empreendeu em ecoturismo se amanhã mudar o “humor” do Mercado e os turistas escolherem outros destinos e os consumidores outros produtos? E se os investidores (de capital financeiro) decidem mudar de local, o que acontece com o capital humano e social fixado ao território? Quem será responsabilizado pelo “erro” de avaliação? Os analistas e os experts? Tudo indica que os indivíduos e as comunidades, que por não terem sabido “ler” e “interpretar” bem as tendências, perderam a oportunidade de se tornar num case de sucesso (ou seja, fracassaram: losers!).
Passando para um outro plano, é possível formular política pública – isto é, para uma população, embora possa ser a de um local particular – tendo como centrais as noções como “capital humano”, “capital social”, “empreendedor”, “empreendedorismo”? Mais ainda, a aplicação que vem sendo feita desses conceitos é socialmente responsável? Estamos realmente convencidos de que é o caminho certo para uma sociedade mais justa?
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Osvaldo López-Ruiz é sociólogo, doutor em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (Unicamp), pesquisador do CTeMe - Unicamp (Grupo de Pesquisa em Conhecimento, Tecnologia e Mercado), e do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap). Ele agradece a Fernando Lourenço, Vanda da Silva e Juliana Guanais do Ceres - Unicamp (Centro de Estudos Rurais), pelas sugestões de leitura que o aproximaram do mundo rural.