SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 3
Descargar para leer sin conexión
“VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?”


          O ato de comer tem determinado instintivamente as nossas primeiras atitudes
desde o momento em que a vida se faz, portanto não poderíamos deixar de atentar
para o fato de que ele se reveste de significados muito maiores que simplesmente
suprir nosso corpo físico da energia necessária para se manter.
          Mesmo entre os animais o “momento da refeição” é também um momento de
reafirmação das posições hierárquicas no grupo, a exemplo dos leões onde, mesmo
que a caçada seja feita pelas leoas, existe uma ordem na divisão da mesma, sendo
que o leão macho, líder do grupo, é o primeiro a comer. Depois, nessa ordem, as
fêmeas mais fortes, as mais fracas e os filhotes. Não se pode dizer que não há
agressividade na hora de dividir a comida – as leoas chegam a lutar entre si pelo
direito de comer primeiro. (Revista Superinteressante Edição 212 A abril/2005)
          Se os animais mantêm praticamente inalterado seu comportamento em
relação à comensalidade, nós Humanos, ao contrário, alteramos com o tempo os
sentidos que atribuímos aos atos da partilha dos alimentos e nossas relações à
mesa, sendo que estes sentidos nos ajudam a organizar as regras e a hierarquia
social.
          Se aceitarmos que esta distinção entre homens e animais se faz
especialmente pela possibilidade da adequação dos “sentidos que atribuímos aos
atos de partilha” considerando mudanças sociais, culturais, enfim do ambiente e das
pessoas à seu tempo, poderíamos supor que traços ancestrais de simbolismos
mantidos “à mesa” nos reportam a fatores de dominação, de inclusão e exclusão
social, grupal ou familiar. Se os animais ainda que por instinto mantêm inalterados
comportamentos que na divisão da presa denotam a sua posição no grupo naquele
momento, poderia caber a nós, portanto, avaliarmos se nos humanos alguns destes
fatores se apresentam ainda hoje pouco ou nada alterados desde os primórdios e
sempre estariam de certa maneira ligados a rituais de dominação daqueles que
detinham ou buscavam a ascensão sobre determinado grupo ou indivíduos ou até
mesmo a manutenção do seu “status” gerando barreiras que impediriam ou
dificultariam a mobilidade entre as diversas camadas sociais.
Portanto está aí um aspecto social de fundamental importância que é a
relação que temos com aqueles que “sentam à mesa” conosco, quando consciente
ou inconscientemente buscamos demonstrar e distinguir nossa posição na
sociedade, por meio do quê, onde e com quem comemos. Por certo que temos ali a
preocupação com o sustento do corpo, mas nossa mesa é posta de necessidades
muito além das dietéticas, estando sobretudo nos momentos do comer, também
oportunidades de reafirmarmos nossa posição social, oportunidades de ascensão e
de geração de alianças e influências.
      A   importância   que   damos     não   somente   ao   que   comemos,   mas
primordialmente com quem comemos pode-se observar pelo próprio significado da
palavra COMPANHEIRO (como no francês compagnon e no inglês companion)
provém de cum panem, “os que compartilham o pão”. Desde um simples cafezinho
que se oferece a um convidado ou um banquete medieval onde as grandes alianças
eram feitas e a distribuição dos lugares à mesa e dos pratos que eram servidos a
cada comensal denotavam sua distinção social, podemos observar traços culturais
onde os alimentos se transubstanciam em algo muito maior que a matéria que os
compõe, se tornando em símbolos de integração, hierarquia, identificação cultural,
histórica, como se estivéssemos comendo cultura, historia, afeto, sensações de ser
transportado para o prazeroso – desejável, a busca do alimento como compensação
de nossas incontáveis necessidades.


      Mesmo que em tempos atuais esta procura pelas relações de afinidade à
mesa se torne muito mais importante que a posição social e a “modernidade” traga
então relações por convergência de gosto sem a pretensão de gerar relações
duradouras e diferenciação hierárquica; que a ascensão ao grupo social esteja muito
mais associada ao “bom gosto”       do que fincada somente no poder financeiro,
permitindo que o “plebeu” venha a desfrutar, momentaneamente, da mesa dos
“senhores” e sentir-se participante de um estrato social “distinto”, mesmo assim a
Influência daquele que dá o banquete ainda esta culturalmente enraizada e o poder
de inclusão e exclusão que a gastronomia tem é fortemente sentido e usado de
maneira deliberada ou instintiva como homens ou animais que somos.




Referências
Carneiro Henrique S. - COMIDA E SOCIEDADE: SIGNIFICADOS SOCIAIS NA
HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO - História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 71-
80, 2005. Editora UFPR.
Corsi Rita – Antropologia e história da Gastronomia - UniFMU Faculdades
metropolitanas Unidas 2006

Más contenido relacionado

Destacado

2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by HubspotMarius Sescu
 
Everything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTEverything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTExpeed Software
 
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsProduct Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsPixeldarts
 
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthHow Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthThinkNow
 
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfAI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfmarketingartwork
 
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024Neil Kimberley
 
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)contently
 
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024Albert Qian
 
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsSocial Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsKurio // The Social Media Age(ncy)
 
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Search Engine Journal
 
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summarySpeakerHub
 
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd Clark Boyd
 
Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Tessa Mero
 
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentGoogle's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentLily Ray
 
Time Management & Productivity - Best Practices
Time Management & Productivity -  Best PracticesTime Management & Productivity -  Best Practices
Time Management & Productivity - Best PracticesVit Horky
 
The six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementThe six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementMindGenius
 
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...RachelPearson36
 

Destacado (20)

2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot2024 State of Marketing Report – by Hubspot
2024 State of Marketing Report – by Hubspot
 
Everything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPTEverything You Need To Know About ChatGPT
Everything You Need To Know About ChatGPT
 
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage EngineeringsProduct Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
Product Design Trends in 2024 | Teenage Engineerings
 
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental HealthHow Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
How Race, Age and Gender Shape Attitudes Towards Mental Health
 
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdfAI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
AI Trends in Creative Operations 2024 by Artwork Flow.pdf
 
Skeleton Culture Code
Skeleton Culture CodeSkeleton Culture Code
Skeleton Culture Code
 
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
PEPSICO Presentation to CAGNY Conference Feb 2024
 
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
Content Methodology: A Best Practices Report (Webinar)
 
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
How to Prepare For a Successful Job Search for 2024
 
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie InsightsSocial Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
Social Media Marketing Trends 2024 // The Global Indie Insights
 
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
Trends In Paid Search: Navigating The Digital Landscape In 2024
 
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
5 Public speaking tips from TED - Visualized summary
 
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
ChatGPT and the Future of Work - Clark Boyd
 
Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next Getting into the tech field. what next
Getting into the tech field. what next
 
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search IntentGoogle's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
Google's Just Not That Into You: Understanding Core Updates & Search Intent
 
How to have difficult conversations
How to have difficult conversations How to have difficult conversations
How to have difficult conversations
 
Introduction to Data Science
Introduction to Data ScienceIntroduction to Data Science
Introduction to Data Science
 
Time Management & Productivity - Best Practices
Time Management & Productivity -  Best PracticesTime Management & Productivity -  Best Practices
Time Management & Productivity - Best Practices
 
The six step guide to practical project management
The six step guide to practical project managementThe six step guide to practical project management
The six step guide to practical project management
 
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
Beginners Guide to TikTok for Search - Rachel Pearson - We are Tilt __ Bright...
 

O que comemos e com quem: símbolos sociais da alimentação

  • 1. “VOCÊ TEM FOME DE QUÊ?” O ato de comer tem determinado instintivamente as nossas primeiras atitudes desde o momento em que a vida se faz, portanto não poderíamos deixar de atentar para o fato de que ele se reveste de significados muito maiores que simplesmente suprir nosso corpo físico da energia necessária para se manter. Mesmo entre os animais o “momento da refeição” é também um momento de reafirmação das posições hierárquicas no grupo, a exemplo dos leões onde, mesmo que a caçada seja feita pelas leoas, existe uma ordem na divisão da mesma, sendo que o leão macho, líder do grupo, é o primeiro a comer. Depois, nessa ordem, as fêmeas mais fortes, as mais fracas e os filhotes. Não se pode dizer que não há agressividade na hora de dividir a comida – as leoas chegam a lutar entre si pelo direito de comer primeiro. (Revista Superinteressante Edição 212 A abril/2005) Se os animais mantêm praticamente inalterado seu comportamento em relação à comensalidade, nós Humanos, ao contrário, alteramos com o tempo os sentidos que atribuímos aos atos da partilha dos alimentos e nossas relações à mesa, sendo que estes sentidos nos ajudam a organizar as regras e a hierarquia social. Se aceitarmos que esta distinção entre homens e animais se faz especialmente pela possibilidade da adequação dos “sentidos que atribuímos aos atos de partilha” considerando mudanças sociais, culturais, enfim do ambiente e das pessoas à seu tempo, poderíamos supor que traços ancestrais de simbolismos mantidos “à mesa” nos reportam a fatores de dominação, de inclusão e exclusão social, grupal ou familiar. Se os animais ainda que por instinto mantêm inalterados comportamentos que na divisão da presa denotam a sua posição no grupo naquele momento, poderia caber a nós, portanto, avaliarmos se nos humanos alguns destes fatores se apresentam ainda hoje pouco ou nada alterados desde os primórdios e sempre estariam de certa maneira ligados a rituais de dominação daqueles que detinham ou buscavam a ascensão sobre determinado grupo ou indivíduos ou até mesmo a manutenção do seu “status” gerando barreiras que impediriam ou dificultariam a mobilidade entre as diversas camadas sociais.
  • 2. Portanto está aí um aspecto social de fundamental importância que é a relação que temos com aqueles que “sentam à mesa” conosco, quando consciente ou inconscientemente buscamos demonstrar e distinguir nossa posição na sociedade, por meio do quê, onde e com quem comemos. Por certo que temos ali a preocupação com o sustento do corpo, mas nossa mesa é posta de necessidades muito além das dietéticas, estando sobretudo nos momentos do comer, também oportunidades de reafirmarmos nossa posição social, oportunidades de ascensão e de geração de alianças e influências. A importância que damos não somente ao que comemos, mas primordialmente com quem comemos pode-se observar pelo próprio significado da palavra COMPANHEIRO (como no francês compagnon e no inglês companion) provém de cum panem, “os que compartilham o pão”. Desde um simples cafezinho que se oferece a um convidado ou um banquete medieval onde as grandes alianças eram feitas e a distribuição dos lugares à mesa e dos pratos que eram servidos a cada comensal denotavam sua distinção social, podemos observar traços culturais onde os alimentos se transubstanciam em algo muito maior que a matéria que os compõe, se tornando em símbolos de integração, hierarquia, identificação cultural, histórica, como se estivéssemos comendo cultura, historia, afeto, sensações de ser transportado para o prazeroso – desejável, a busca do alimento como compensação de nossas incontáveis necessidades. Mesmo que em tempos atuais esta procura pelas relações de afinidade à mesa se torne muito mais importante que a posição social e a “modernidade” traga então relações por convergência de gosto sem a pretensão de gerar relações duradouras e diferenciação hierárquica; que a ascensão ao grupo social esteja muito mais associada ao “bom gosto” do que fincada somente no poder financeiro, permitindo que o “plebeu” venha a desfrutar, momentaneamente, da mesa dos “senhores” e sentir-se participante de um estrato social “distinto”, mesmo assim a Influência daquele que dá o banquete ainda esta culturalmente enraizada e o poder de inclusão e exclusão que a gastronomia tem é fortemente sentido e usado de maneira deliberada ou instintiva como homens ou animais que somos. Referências
  • 3. Carneiro Henrique S. - COMIDA E SOCIEDADE: SIGNIFICADOS SOCIAIS NA HISTÓRIA DA ALIMENTAÇÃO - História: Questões & Debates, Curitiba, n. 42, p. 71- 80, 2005. Editora UFPR. Corsi Rita – Antropologia e história da Gastronomia - UniFMU Faculdades metropolitanas Unidas 2006