A importância da relação médico-paciente: de Hipócrates às orientações
virtuais
Josiane Maria de Freitas Tonelotto, Profa. Dra.1
O processo de restabelecimento da saúde depende de um conjunto de
variáveis que incluiu a qualidade do relacionamento mantido entre aquele que a
perdeu e o aquele que supostamente será responsável por resgatá-la. Essa é
uma relação que se apresenta sob duas dimensões: a de ajuda e a técnica,
que são igualmente importantes e fundamentais para que seja bem sucedida.
Por ser uma relação inclui necessariamente um conjunto de afetos como medo,
compaixão, aversão, empatia, antipatia e outros decorrentes do contato entre
pessoas numa determinada situação.
Dizer que afetos estão presentes durante todo o tempo não implica em
dizer que esse relacionamento pode ser resumido a uma relação afetiva.
Precisa sim necessariamente ser um relacionamento ético e para tal não pode
ser anônimo. O anonimato facilita de certa maneira ou a negação das
responsabilidades envolvidas ou a auto-proteção que exime muitas vezes o
profissional médico de assumir a parte que lhe cabe.
Num momento em que a humanidade experimenta tantas crises de
relacionamentos e de toda ordem, seria uma exceção se a relações médico-
paciente não fossem evidenciadas. A má qualidade de grande parte dos
serviços de saúde em nosso país é destaque nos veículos de comunicação
diariamente. Além disso, observa-se falta de investimento em prevenção, falta
de profissionais qualificados e um sem número de motivos que faz com que o
dia a dia do profissional da saúde torne-se um desafio de superação.
Erros médicos, atendimentos relâmpagos e falta de contato visual no
momento da consulta são as queixas mais comuns daqueles que, chamados
de pacientes, tornam-se a cada dia mais impacientes. Talvez um dos aspectos
que possa justificar esse distanciamento seja a idéia de que ele proporcione ao
1
Mestre e Doutora em Ciências Médicas pela UNICAMP, diretora acadêmica da Universidade Anhembi
Morumbi, bolsista produtividade em pesquisa CNPq e bolsista FAPESP.
médico maior possibilidade de acerto e uso da lógica por estar mais isento das
emoções e envolvimento. Se de um lado esse raciocínio parece razoável, de
outro configura num dos piores empecilhos para que o cuidado processo de
reconquistar a saúde.
Desde a origem da medicina a importância da relação médico-paciente
vem sendo discutida. Sabe-se que ela é fundamental para a melhoria dos
serviços prestados em saúde e satisfação do paciente de uma forma geral,
além de configurar-se como elemento definitivo para melhorar os resultados e a
adesão aos tratamentos propostos pelo médico.
Uma pesquisa em qualquer base de dados de pesquisa, e não exclusiva
da área médica, remete a um grande conjunto de referências de pesquisa
sobre o assunto. A diversidade de enfoques torna rica uma discussão que
remonta aos primórdios da medicina e de uma visão que já foi mais
humanizada e que é definitiva para uma profissão tão importante à manutenção
da vida.
O modelo Hipocrático, baseado na visão humanista da profissão médica,
era abrangente e concebia que as doenças eram originadas e seguiam seu
curso para além dos limites biológicos. Havia uma constante busca das
questões psicossociais para que os agravantes ou determinantes dos quadros
patológicos fossem identificados. O modelo inspirado nos estudos e atuação de
Hipócrates apoiava-se em dois pilares essenciais: o exame físico e a qualidade
da relação desenvolvida entre o médico e seu paciente. Pode-se dizer que
esse período foi identificado como o de cura como uma operação humano-
científica em que a relação sujeito-sujeito era o ponto principal.
Durante muito tempo perdurou na relação em que a autoridade
profissional conferia ao médico toda a de decidir o melhor. Não era necessário
informar ou detalhar aspectos do tratamento. Existia uma verdade, ela
pertencia ao médico e ao paciente cabia a missão de aceitá-la e de cumprir
determinações.
Com o passar do tempo e à medida que os avanços tecnológicos e mais
precisamente na área médica foram se configurando, os exames laboratoriais e
de imagem ganharam um espaço de vital importância nas consultas médicas.
Assim iniciava-se um período em que a conversa e o entendimento da queixa
foram substituídos, totalmente ou em parte por um conjunto de auxílios que
permite ao médico ver além do que seu paciente relata.
A partir desse momento a medicina passou a ser vista como uma pratica
menos humanista e muito mais lógica e exata. A relação médico-paciente
deixou de ser enfocada como ponto imprescindível para o processo de cura,
que por sua vez foi entendido como cientificista e ela passou a se configurar
como uma relação sujeito-objeto.
Essa evolução e que define dois extremos ainda contempla um ponto
importante a ser refletido e considerado: a utilização da internet como
provedora de informações sobre saúde. Hoje os pacientes são muito bem
informados sobre as doenças que os acometem. O acesso á informação é fácil
e, portanto eles passam a ser possuidores de um conjunto de conhecimento
sobre as doenças que nele se manifestam. Esse fato, sem duvidas, torna os
pacientes mais curiosos e mais questionadores, a ponto de muitas vezes
causar desconforto ao médico, que por sua vez é mais questionado sobre seus
saberes.
Assim vivemos uma reconfiguração da relação médico-paciente mediada
pelos sites de ajuda disponíveis hoje na área médica. Isso não
necessariamente se configura como ponto negativo, mas como aspecto que
merece cuidado. Já em 1999 o British Medical Journal apontava a internet
como o meio de alterar definitivamente as relações pessoais entre aquele que
cura e o que é curado. Sem dúvidas a maior parte da população hoje dispõe de
um número de informações que permite com que o médico seja mais e mais
questionado sobre o curso das doenças, tratamento, medicação e seus efeitos.
De acordo com alguns autores é possível falar-se em modelos de
interação médico paciente. Em 1994, Emanuel e Emanuel propuseram quatro
modelos para explicar os tipos de interação existentes entre médico e
pacientes. O primeiro deles é o paternalista e define que o médico é quem
decide o melhor para seu paciente, independente das vontades e valores
desse último. O segundo é o modelo informativo que define que o médico é o
provedor das informações e o paciente aplica seus valores para poder decidir.
O terceiro modelo é o interpretativo que define a atuação do médico como
conselheiro que auxilia e orienta um paciente com muitas dúvidas. O quarto e
último é o deliberativo que supõe uma atuação medica que tem como missão
ensinar valores desejáveis ao paciente para que ele atinja seus objetivos.
Tanto no modelo interpretativo quanto no deliberativo o ponto chave é a
comunicação. Dessa forma, comunicar-se bem é sinônimo de estabelecer uma
relação empática e produtiva com o paciente que seja capaz de possibilitar a
ele a capacidade de refletir e decidir sobre o curso de seu tratamento.
Identificar que a questão principal é a comunicação não resolve a maioria dos
problemas dessa relação. Se assim fosse, os currículos para formação médica
eficiente estariam repletos de técnicas de comunicação e o sucesso
profissional estaria garantido
Há que se reconhecer, no entanto que durante a formação do futuro
médico o aprendizado não pode limitar-se a aprender como se faz um
diagnóstico e se utiliza um tratamento eficaz. E cabe ao menos uma pergunta
importante a ser feita: diagnóstico de quem e para quem? Ao se pensar em
quem temos que necessariamente considerar a cultura em que um paciente
está inserido e suas condições psico-sócio-econômicas. Os currículos não
podem ignorar esses fatores ao supor que a comunicação entre o médico e seu
paciente deve ser mais eficiente.
Apesar da didática desses modelos há que se considerar que a questão
vai além de pressupostos teóricos, há uma necessidade de mudança de
postura por parte do médico diante de seu paciente. Hoje se observa uma
tentativa de re-humanizar a medicina e resgatar a idéia da visão integral do ser
humano, na qual a valorização dos detalhes seja evidenciada sem a perda do
todo, em que a empatia seja tão necessária quanto o conhecimento das
condições sociais e emocionais do paciente. É viável, prudente e necessária a
re-significação da relação médico-paciente como uma relação que se dá
sujeito-sujeito.
Re-humanizar a relação médico-paciente exclui a relação de compaixão
e de pena daquele que está em situação de desvantagem. Supõe sim uma
relação de compreensão e atenção livre voltada para a história que o paciente
traz consigo de forma que o cuidado é o ponto mais relevante. Cuidar de um
paciente é respeitar sua subjetividade, é conhecer seus valores e a cultura em
que se insere, é valorizar as expectativas que ele tem, é considerar suas
necessidades de informação, além de dimensionar seus desejos e sentimentos
em relação ao processo de obtenção ou re-obtenção da saúde. Destaque-se
aqui que o ser humano tem direito à saúde e o ser humano tem direito à saúde
e ela é indubitavelmente o maior e melhor recurso para o desenvolvimento
social de uma nação.
Praticar saúde no sentido amplo como proposto pela Organização
Mundial da Saúde (OMS), como condição de bem-estar físico, mental e social é
um grande desafio. E por mais que essa definição seja refutada ou questionada
deve nortear o dia a dia dos profissionais médicos e de outros da mesma área
principalmente porque concebe o ser humano com algo além do biológico.
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