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Reja)
A França, em meados do séc. XVII é governada por Ana da Áustria, viúva de Luís XIII, e por seu
ministro todo-poderoso, o Cardeal Mazarino. O país, arrasado pela Guerra dos Trinta Anos, atravessa
momentos difíceis, enquanto aguarda a maioridade de Luís XIV. A hostilidade surda entre católicos e
protestantes explode ao menor pretexto. Os nobres conspiram, fazem e desfazem alianças, cobiçando
favores e privilégios. Nos povoados e aldeias, os camponeses vivem sobressaltados, ora atacados por
bandoleiros, ora intimidados pelos coletores de impostos extorsivos.
Bem longe da corte, na aldeola de Monteloup, Angélica, a filha predileta do bom e rústico Barão
Armando de Sancé, vive no castelo em ruínas da família. Solta pelos campos, para os aldeões é uma
linda fada, a quem o futuro não preocupa. Para a família, por sua beleza excepcional, um trunfo a ser
explorado.
O pai a casa com o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse, o homem mais poderoso do sul da
França, mais rico e mais nobre que o próprio rei. Angélica não o conhece, mas dizem que é um
feiticeiro, que tem pacto com o Demônio. Um bruxo visado pela Inquisição...
"Você foi feita para amar ' suspira o trovador. "Seu corpo sedutor levará os homens
à loucura!"
Angélica ia se casar.
Um mistério cercava a fortuna de seu futuro marido, o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse.
Tanto fausto, tanto esplendor ela não imaginara nem nos devaneios mais delirantes de mocinha pobre do
interior. Naquele momento, parecia-lhe estar vivendo um sonho ameaçador, em que se prenunciava um
destino terrível. O seu destino.
Ainda há pouco, ela dera adeus ao velho castelo da família, aos amores da juventude, à suave
existência como Marquesa dos Anjos, doce ninfa dos pântanos e florestas de sua terra natal, Monteloup.
Agora estava à mercê daquele estranho que todos diziam ser um verdadeiro monstro, desfigurado e
manco, um mago encantador de mulheres, acusado pela Inquisição de ter pacto com o Demônio.
Em sua ingenuidade, Angélica não podia prever que o futuro lhe reservava uma existência
excepcional. Ela era uma dessas pessoas marcadas pela sorte: a quem os deuses dariam tudo, mas de
quem também pediriam muito em troca...
Os Amores de Angélica
Anne e Serge Golon
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Os Amores de Angélica
ANNE E SERGE GOLON
Título: Os Amores de Angélica
Autor: ANNE E SERGE GOLON
Título original: --
Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989
Género: Romance Histórico
Digitalização e correção: Nina
Estado da Obra: Corrigida
MARQUESA DOS ANJOS (1645)
CAPITULO I
A infância de Angélica no castelo campestre
— Babá — perguntou Angélica —, para que Gil de Retz matava tantas crianças?
—Para o Demônio, filhinha. Gil de Retz, o papão de Mache-coul, queria ser o senhor mais poderoso
de seu tempo. Em seu castelo havia somente retortas, frascos e panelas repletos de caldos vermelhos e
vapores espantosos. O Diabo pedia que lhe oferecessem em sacrifício o coração de uma criaturinha.
Assim tiveram início os crimes. E as mães aterrorizadas apontavam com o dedo o negro torreão de
Machecoul, rodeado de corvos, tantos eram os cadáveres de crianças inocentes que havia em seus
calabouços.
—E ele comia todas? — perguntou, com voz trêmula, Made-lon, a pequenina irmã de Angélica.
—Não todas. Não teria podido — respondeu a ama.
Curvada sobre o caldeirão em que o toucinho e a couve ferviam
lentamente, mexeu a sopa alguns instantes em silêncio.
Hortênsia, Angélica e Madelon, as três filhas do Barão de Sancé de Monteloup, de colher em punho
junto a suas éscudelas, esperaram ansiosamente o prosseguimento da história.
—Havia algo pior que comê-las — continuou por fim a ama, com voz amarga. — Primeiro fazia levar
à sua presença o pobrezinho ou a pobrezinha, que, tremendo de medo, gritava por sua mãe. O senhor,
deitado em seu leito, rejubilava-se com o pavor da criaturinha. Depois, mandava pendurá-la na parede,
em uma espécie de forca que lhe ia apertando o peito e o pescoço, estrangulando-a, embora não o
bastante p, ra matá-la. A criança estrebuchava como um frango pendurado, seus gritos se extinguiam, os
olhos esbugalhavam-se e ela se tornava azul. Na grande sala não se ouviam se não os risos dos homens
cruéis e os gemidos da pequena vítima. Então, Gil de Retz mandava dependurá-la, punha-a sentada
sobre os joelhos e apoiava ao peito a fronte do pobre anjinho. Falava-lhe com doçura. "Não foi nada",
dizia. "Só queríamos divertir-nos, mas já terminou." Iam dar-lhe doces, teria um formoso leito com
colchão de penas, uma roupa de seda como a de um pajenzinho. A criança se tranqüilizava. Um brilho
de alegria cintilava em seus olhos cheios de lágrimas. Então o senhor, subitamente, enterrava-lhe a
adaga no pescoço. O mais espantoso, porém, era quando raptavam moças novas.
— Que lhes fazia? — perguntou Hortênsia.
Foi aí que interveio o velho Guilherme, que, sentado a um canto, junto ao fogão, picava um pedaço de
fumo. Resmungou com sua barba amarelada:
— Cale-se, velha louca! Até mesmo a mim, que sou um guerreiro, você me agita o coração com suas
histórias fantásticas.
A rude Fantina Lozier retrucou-lhe com vivacidade:
— Histórias fantásticas!... Vê-se logo que você não nasceu no Poitou, Guilherme Lützen. Basta
caminhar um pouco em direção a Nantes e logo encontrará o castelo maldito de Machecoul. Já faz dois
séculos que se cometeram os crimes e, no entanto, as pessoas que passam pelas redondezas ainda se
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benzem. Mas você não é desta terra e nada sabe de seus antepassados.
— Belos antepassados, se todos forem como o seu Gil de Retz!
— Gil de Retz foi tão grande no mal que nenhuma terra além do Poitou pode orgulhar-se de ter tido
um criminoso como ele. E quando morreu, julgado e condenado em Nantes, mas batendo no peito,
confessando sua culpa e pedindo perdão a Deus, todas as mães cujos filhos ele havia torturado e
comido puseram luto por ele.
— Isso, sim, é que é grandioso! — exclamou o velho.
— Assim somos nós, do Poitou. Grandes no mal, grandes no perdão!
Carrancuda, a ama dispôs as panelas sobre a mesa e abraçou com ardor o pequeno Dionísio.
— É verdade — disse — que fui pouco à escola, mas sei distinguir entre uma história para espantar o
sono e uma narrativa dos tempos antigos. Gil de Retz foi um homem que existiu de verda de. Sua alma
talvez ainda erre por perto de Machecoul, mas seu corpo apodreceu nesta nossa terra. Por isso não se
pode falar dele frivolamente, como das fadas e dos duendes que passeiam entre as grandes pedras dos
campos. Também não é conveniente troçar demasiado de tais espíritos malignos...
—E dos fantasmas, minha bá, pode-se troçar? — perguntou An-gélica;
—É melhor não troçar, querida. Os fantasmas não são maus, mas a maioria deles são tristes e
desconfiados, e para que aumentar com zombarias os tormentos desses infelizes?
—Por que chora a velha senhora que aparece no castelo?
—Quem pode saber? A última vez que me encontrei com ela, há seis anos, entre a antiga sala da
guarda e o grande corredor, pareceu-me que já não chorava, talvez graças às preces que o avô de vocês
mandou rezar por sua alma na capela.
—Eu ouvi seus passos na torre — afirmou Nanette, a criada.
—Devia ser um rato. A velha dama de Monteloup é discreta e não quer fazer mal a ninguém. Talvez
tenha sido cega, pois sempre estende a mão para a frente como se procurasse tatear. Ou então procura
alguma coisa. Às vezes aproxima-se das crianças adormecidas e passa-lhes a mão no rosto.
A voz de Fantina tornava-se lúgubre.
—Quem sabe se não procura alguma criança morta?
—Boa mulher, você tem o espírito mais macabro que a vista de um ossário — voltou a protestar pai
Guilherme. — E possível que seu senhor de Retz, do qual tanto se orgulha de ser conterrânea, a dois
séculos de distância, seja um grande homem e que a senhora de Monteloup seja muito respeitável, mas
afirmo-lhe que não fica bem perturbar estas crianças, já tão assustadas que se esquecem de comer.
—Você se faz agora sensível, grosseiro soldado, assecla do Demônio! Quantos ventres de criaturas
como essas não terá atravessado com sua lança quando servia o imperador da Áustria nos campos da
Alemanha, da Alsácia e da Picardia? Quantas palhoças não incendiou, fechando a porta para torrar lá
dentro a família toda? Nunca enforcou nenhum aldeão? Foram tantos que até se gastaram os ramos das
árvores! E as mulheres e as moças, não as violou até matá-las de vergonha?
—Como todo mundo, como todo mundo, boa mulher. Essa e a vida do soldado. Isso é a guerra. Mas a
vida dessas crianças que aqui vemos é feita de brincadeiras e de histórias alegres.
——Até o dia em que passarem pelo povoado os soldados e os bandidos, como nuvens de gafanhotos.
Então, a vida das crianças se converterá na vida do soldado, da guerra, da miséria e do medo...
Amargurada, a ama destampava uma grande panela de barro cheia de patê de lebre, e passava manteiga
em fatias de pão que distribuía em volta, sem esquecer o velho Guilherme. — Esta que lhes fala... eu,
Fantina Lozier... escutem-me, filhas...
Hortênsia, Angélica e Madelon, que haviam aproveitado a discussão para esvaziar suas escudelas,
levantaram de novo a cabeça, e Gontran, seu irmão de dez anos, saiu do canto escuro em que estava
amuado e aproximou-se da mesa. Havia chegado a hora da guerra e dos saques, da soldadesca e dos
bandidos, tudo confundido no mesmo clarão vermelho dos incêndios, no retinir das espadas, nos gritos
lancinantes das mulheres...
—Guilherme Lützen, você conhece meu filho, que é carroceiro do nosso amo, o Barão de Sancé de
Monteloup, aqui mesmo, neste castelo?
—Conheço. Ê um belo rapaz.
—Pois tudo o que posso dizer de seu pai é que fazia parte dos exércitos do Sr. Cardeal de Richelieu,
quando este se dirigia para La Rochelle a fim de exterminar os protestantes. Eu não era hu-guenote, e
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sempre rezara à Virgem Santíssima para conservar a castidade até o casamento. Mas, depois que as
tropas do nosso cris-tianíssimo Rei Luís XIII passaram pela região, o mínimo que posso dizer é que
havia deixado de ser donzela. E dei a meu filho o nome de João Couraça, em memória de todos aqueles
demônios, um dos quais é seu pai, cujas couraças cheias de cravos rasgaram a única camisa que eu
possuía naquele tempo... E quanto aos saqueadores e bandidos que a fome atirou tantas vezes nos cami-
nhos, poderia manter vocês acordados a noite inteira contando o que me fizeram entre a palha do celeiro,
enquanto queimavam os pés de meu homem no fogo da lareira para fazê-lo confessar onde guardava as
economias. É eu supunha, pelo cheiro, que assavam o porco.
Ao recordá-lo, a grande Fantina pôs-se a rir; depois bebeu água de pé de maçã para refrescar a língua,
que havia secado de tanto ela falar.
Assim, a vida de Angélica de Sancé de Monteloup teve início sob o signo do Ogro, dos fantasmas e
dos saqueadores.
A ama tinha nas veias um pouco daquele sangue mouro que os árabes levaram, pelo século XI, até os
umbrais do Poitou. Angélica mamara aquele leite de paixão e de sonhos em que se concentrava o antigo
espírito de sua província, terra de pântanos e de bosques, aberta como um golfo aos tépidos ventos do
oceano.
Assimilara confusamente um mundo de dramas e de histórias de fadas. Tinha tomado gosto por ele e
adquirido uma espécie de imunidade contra o medo. Olhava com pena para sua irmã mais nova,
Madelon, que tremia, ou para a mais velha, Hortênsia, muito reservada, e que, no entanto, morria de
desejo de perguntar à ama o que lhe haviam feito os bandidos entre a palha do celeiro.
Angélica, aos oito anos, adivinhava muito bem o que havia sucedido no palheiro. Quantas vezes não
havia levado a vaca ao touro ou a cabra ao bode? E seu amigo, o pastorzinho Nicolau, explicara-lhe que,
para ter filhos, os homens e as mulheres faziam o mesmo. Fora assim que a ama tivera João Couraça.
Mas o que intrigava Angélica era que, ao falar de tais coisas, a ama adotava, às vezes, uma entonação
lânguida e de êxtase, e outras a do horror mais sincero.
Mas não era necessário procurar compreender a ama, seus silêncios, seus arroubos de cólera. Era
suficiente que estivesse ali, gran-dalhona, sempre em movimento, com seus braços robustos, seu regaço
amplo formado pela saia de fustão, e que nele acolhesse as crianças como passarinhos, para entoar-lhes
uma cantiga de ninar ou falar-lhes de Gil de Retz.
Mais simples era o velho Guilherme Lützen, que falava com uma voz lenta de acento áspero. Diziam
que era suíço ou alemão. Há quinze anos o haviam visto chegar, coxeando e descalço, pela estrada
romana que vai de Angers até St. Jean d'Angély. Entrou no Castelo de Monteloup e pediu uma escudela
de leite. E ali ficou como criado para tudo: ferreiro, carpinteiro, correio do Barão de Sancé, que o
mandava levar suas cartas aos amigos e o encarregava de receber o agente fazendário quando vinha
cobrar os impostos. O velho Guilherme escutava-o com muita calma e respondia-lhe no seu dialeto de
montanhês suíço ou tirolês, e aquele funcionário acabava indo embora descoroçoado.
Tinha vindo dos campos de batalha do norte ou do leste? E por que motivo aquele mercenário
estrangeiro parecia proceder da Bretanha quando o encontraram? Tudo quanto sabiam dele era que
havia estado em Lützen sob as ordens do Condottiere Wallenstein e que havia tido a honra de atravessar
a pança do gordo e magnífico rei da Suécia, Gustavo Adolfo, quando este, perdido na neblina, no
decorrer da batalha, esbarrou com os lanceiros austríacos.
No sótão em que habitava viam-se brilhar ao sol, entre as teias de aranha, sua velha armadura e seu
capacete, no qual continuava bebendo seu vinho quente e, às vezes, tomava a sopa. Sua imensa lança,
três vezes mais alta que ele, servia-lhe para "sacudir as nogueiras no tempo da colheita.
Mas, acima de tudo, Angélica invejava-lhe o pequeno picador de fumo. Era de concha marchetada, e
Guilherme chamava-o sua grivoise, segundo o hábito dos militares alemães a serviço da França, que
recebiam a alcunha de grivois.
Na vasta cozinha do castelo, após o anoitecer, as portas que davam para fora não paravam de se abrir e
fechar; e por elas entravam, com um forte cheiro de estrume, criados, criadas e o carroceiro João
Couraça, tão trigueiro como sua mãe.
Também apareciam os cães, os dois lebréus Marte e Manjerona e os bassês enlameados até os olhos.
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Do interior do castelo, as portas davam acesso à graciosa Na-nette, que se exercitava como aia,
esperando aprender boas maneiras para deixar seus amos pobres e ir servir em casa do Sr. Marquês du
Plessis de Bellière, a pequena distância de Monteloup. Iam e vinham também os dois criadinhos, a
grenha sobre os olhos, carregando lenha para a sala grande e água para os quartos. Depois aparecia a
baronesa. Tinha o rosto suave, desgastado pelo ar do campo e pelos numerosos partos. Trajava-se de
sarja cinza e capuz de lã negra, porque a atmosfera da sala grande, onde sempre estava com o sogro e as
duas cunhadas, era mais úmida que a da cozinha.
Perguntava se logo estaria pronta a tisana do senhor barão e se o bebê tinha mamado sem problemas.
De passagem, acariciava as faces de Angélica, meio adormecida, e cujos longos cabelos de ouro escuro
se estendiam sobre a mesa e brilhavam ao clarão da lareira.
— É hora de dormir, filhinhas. Pulquéria vos levará para a cama.
E Pulquéria, uma das velhas tias, se apresentava sempre dócil. Assumira por vontade o papel de
governanta de suas pequenas sobrinhas, pois não havia encontrado marido nem convento que a quisesse
receber sem dote, e, como fazia algo útil em vez de passar o dia gemendo e bordando tapeçaria,
tratavam-na com certo desprezo e com menos atenção que à outra tia, a gorda Joana.
Pulquéria reunia as sobrinhas. As amas agasalhariam as menores, e Gontran, o menino sem preceptor,
iria, quando bem o quisesse, deitar-se em sua enxerga no último andar.
Acompanhando a magra solteirona, Hortênsia, Angélica e Ma-delon chegavam à sala do castelo, onde
a lareira e três velas não dissipavam inteiramente o amontoado de sombras acumulado pelos séculos sob
as altas abóbadas medievais. Estendidos pelas paredes, alguns tapetes tentavam protegê-las da umidade,
mas eram tão velhos e estavam tão bichados que mal se distinguiam, nas cenas que representavam, os
olhos espantados das lívidas personagens que pareciam vigiar atentamente com ar severo.
As meninas faziam uma reverência ao senhor seu avô. Estava este sentado em frente ao fogo, com seu
casacão negro guarnecido de peles quase sem pêlos. Mas suas brancas mãos, apoiadas no cas-tão da
bengala, eram mãos de rei. Cobria-se com um grande chapéu de feltro negro, e sua barba, quadrada
como a do finado Rei Henrique IV, descansava sobre uma pequena gola pregueada, que parecia a
Hortênsia, embora ela se abstivesse de dizê-lo, completamente fora de moda.
Outra reverência a tia Joana, cujos lábios mal-humorados não se dignavam sorrir, e logo subiam a
grande escada de pedra, úmida como uma gruta. Os quartos de dormir eram gelados no inverno mas
frescos no verão. Não entravam neles senão para meter-se na cama. Aquela em que dormiam as três
meninas reinava como um monumento no canto de um aposento devastado, cujos móveis tinham sido
vendidos no decurso das últimas gerações. As lajes do piso, cobertas de palha durante o inverno,
estavam quebradas em muitos lugares. Para dar acesso ao leito havia um escabelo de três degraus.
Depois de vestirem a camisola e a touca de dormir e de se haverem ajoelhado para dar graças a Deus
pelos benefícios recebidos, as três mocinhas de Sancé de Monteloup subiam para seus colchões de boa
pluma e se enrodilhavam entre as cobertas esburacadas. Angélica procurava imediatamente o furo do
lençol correspondente ao do cobertor e por ele passava o pé cor-de-rosa, mexendo os dedos para fazer rir
Madelon.
A pequena tremia como um coelho ao recordar as histórias que a ama contara. Hortênsia também, mas
não dizia nada porque era a mais velha. Somente Angélica saboreava com prazer exaltado aquele temor.
A vida era feita de mistérios e de descobertas. Ouviam-se os ratos roendo o madeirame e as corujas
revoando nos telhados das duas torres, soltando pios agudos. Os lebréus ganiam nos pátios e um mulo
da pradaria vinha coçar-se contra a muralha.
As vezes, nas noites de nevada, ouviam-se os uivos dos lobos que desciam da selvagem floresta de
Monteloup em busca de lugares habitados. Também chegavam ao castelo, desde as primeiras noites da
primavera, as cantigas dos aldeões, que davam alguma festa ao luar...
Uma das muralhas do Castelo de Monteloup deitava para os pântanos. Era a parte mais antiga,
construída por um antigo senhor de Ridoué de Sancé, companheiro de Du Guesclin no século XII. Era
flanqueada por duas grossas torres, com caminhos de ronda cobertos de madeira, e quando Angélica
subia até lá com Gon-tran ou Dionísio divertiam-se cuspindo nos balestreiros por onde os soldados da
Idade Média haviam despejado baldes de azeite fervendo sobre os assaltantes. As muralhas surgiam de
um pequeno promontório de calcário, além do qual começavam os pântanos. Nos velhos tempos dos
primeiros homens, o mar chegava até ali. Ao retirar-se, deixou um aranhol de rios, canais e lagoas, que
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agora estavam cobertos por uma trama de ervas e salgueiros, domínio das enguias e das rãs, no qual os
aldeões não circulavam senão em canoas. As aldeias e as choças isoladas eram construídas sobre as ilhas
do antigo golfo. Havendo percorrido aquela província das águas, o Sr. Duque de Ia Trémoille, que em
certo verão foi hóspede do Marquês du Plessis e tinha a mania do exotismo, deu-lhe o nome de Veneza
Verde.
A vasta planície líquida, o pântano doce, estendia-se desde Niort e Fontenay-le-Comte até o oceano.
Juntava-se um pouco antes de Marans, de Chaillé e mesmo de Luçon com os pântanos amargos, isto é,
as terras ainda salgadas. Depois já era a verdadeira praia, com sua alva barreira de sal precioso,
disputado avidamente por guardas alfandegários e contrabandistas.
Se a ama não costumava contar as histórias dos agentes aduaneiros em sua luta com os contrabandistas
de sal, as quais apaixonavam todo o pântano, era porque tinha nascido em terra firme e jactava-se de
desprezar as pessoas que viviam com os pés dentro da água, e que, além do mais, eram protestantes.
Pelo lado da terra o Castelo de Monteloup apresentava uma fachada mais moderna, com inúmeras
janelas. Somente uma velha ponte levadiça, de correntes enferrujadas, e ocupada por galinhas e perus,
separava a entrada principal da pradaria em que pastavam os muares. A direita havia o pombal
senhorial, com sua cobertura de telhas redondas, e uma das fazendas cultivadas por um meeiro. As
outras ficavam para além do fosso. Mais adiante via-se o campanário da aldeia de Monteloup.
Depois começava a floresta espessa de carvalhos e castanheiros. Essa mata podia conduzir, sem a
menor clareira, até o norte da Gâtine e do Bocage vendeano, e quase até o Loire e o Anjou, a quem se
dispusesse a atravessá-la de lado a lado sem medo dos lobos e salteadores.
O bosque de Nieul, o mais próximo, pertencia ao senhor do Plessis. Os habitantes de Monteloup aí
faziam pastar os seus porcos e estavam sempre envolvidos em disputa com o administrador do marquês,
um tal Molines, de mãos rapaces. Também andavam por ali alguns fabricantes de tamancos, carvoeiros e
uma bruxa, a velha Melusina. Esta, no inverno, por vezes saía do bosque e se aproximava para beber
uma escudela de leite nas casas do povoado, em troca de algumas plantas medicinais.
Seguindo-lhe o exemplo, Angélica recolhia flores e raízes, punha-as para secar, fervia-as, triturava-as e
metia-as em saquinhos num esconderijo que só o velho Guilherme conhecia. Pulquéria esganiçava-se
horas inteiras chamando-a, e ela não aparecia.
As vezes Pulquéria chorava, quando pensava em Angélica. Via nela o malogro não apenas do que
pensava ser uma educação tradicional, mas também de sua raça e nobreza, que iam perdendo toda a
dignidade por causa da pobreza e da miséria.
Ao romper da aurora, a menina escapulia, cabelos ao vento, vestida com uma camisa, um ralo corpete
e uma saia desbotada, e seus pés, miúdos como os de uma princesa, eram duros como cornos, porque
escondia o seu calçado na primeira moita que aparecesse, para correr mais depressa. Se a chamavam,
voltava um pouco o rosto redondo e dourado pelo sol, no qual cintilavam dois olhos verde-azulados, da
mesma cor de uma planta que cresce nos pântanos e tem o seu nome.
— Deveriam mandá-la para um convento — gemia Pulquéria.
Mas o Barão de Sancé, taciturno e roído de preocupações, encolhia os ombros. Como poderia mandar
para o convento sua segunda filha, quando não podia mandar nem a maior, pois tinha somente quatro
mil libras de renda por ano e precisava dar quinhentas para a educação de seus dois filhos mais velhos
nos agos-tinianos de Poitiers?
Para o lado dos pântanos, Angélica tinha um amigo: Valentim, o filho do moleiro.
Do lado dos bosques, seu amigo era Nicolau, um dos sete filhos de um lavrador e que já era pastor a
serviço do Sr. de Sancé.
Com Valentim andava de barco, percorrendo os canais margeados de miosótis, hortelãs e angélicas.
Valentim colhia braçadas dessa planta alta, espessa e de cheiro esquisito, e ia logo vendê-la aos monges
da abadia de Nieul, que fabricavam com suas raízes e flores um licor medicinal, e doces com os talos.
Em troca, os monges lhe davam escapulários e terços, de que se servia para lançá-los à cabeça dos
meninos das aldeias protestantes, que fugiam em algazarra como se o próprio Demônio lhes tivesse
cuspido no rosto. Seu pai, moleiro, deplorava aquelas façanhas. Embora católico, vangloriava-se de ser
tolerante. E que necessidade tinha o filho de comerciar braçadas de angélicas quando recebia como
herança o posto de moleiro e não precisava senão instalar-se no cômodo moinho, edificado sobre pilotis
à beira da água?
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Mas Valentim era um rapaz difícil de se compreender. Corado, hercúleo já aos doze anos, mais
silencioso que uma carpa, tinha o olhar vago, e as pessoas que invejavam o moleiro diziam que era meio
idiota.
Nicolau, o pastor, tagarela e gabolas, levava Angélica a recolher cogumelos, amoras e mirtilos. Ia com
ela também apanhar castanhas. No bosque, fazia para a pequena flautas com ramos de ave-leira, que
tornava ocos.
Os dois rapazes sentiam reciprocamente ciúmes mortais dos favores de Angélica. Já era tão bonita que
os aldeões a olhavam como viva personificação das fadas que habitavam o grande dólmen do campo
feiticeiro.
Ela alimentava idéias de grandeza.
—Sou marquesa — declarava a quantos quisessem ouvi-la.
—Ah, sim? E por quê?
—Porque me casei com um marquês — respondia.
O "marquês" era tanto Valentim como Nicolau ou qualquer um dos vadios, tão inofensivos como
passarinhos, que levava atrás de si pelos prados e bosques.
Dizia também com muita graça:
— Sou Angélica; conduzo à guerra os meus anjinhos.
Daí proveio seu apelido: a Marquesinha dos Anjos.
No início do verão de 1648, quando Angélica completou onze anos, a ama Fantina pôs-se a esperar os
soldados e saqueadores. A região, contudo, parecia em paz, mas a ama, que adivinhava tantas coisas,
"farejava" os bandidos no calor daquele estio sufocante. Vivia com o rosto voltado para o norte, na
direção da estrada real, como se o vento carregado de poeira lhes houvesse trazido o odor.
Bastavam-lhe muito poucos indícios para saber o que se passava a distância, não somente na região,
mas em toda a província e até em Paris.
Depois de haver comprado ao mascate da Auvergne um pouco de cera e algumas fitas, era capaz de
informar o senhor barão acerca das novidades mais importantes que se relacionassem com a vida do
reino da França.
Ia ser criado um novo imposto; estava sendo travada uma batalha em Flandres; a rainha-mãe já não
sabia o que inventar para arranjar dinheiro a fim de satisfazer os príncipes ambiciosos. Ela mesma, a
soberana, enfrentava as suas dificuldades, e o rei de cachos louros usava calças demasiado curtas, bem
como seu irmão-zinho, a quem chamavam Petit Monskur, visto que seu tio, Monsieur, irmão do Rei Luís
XIII, era vivo ainda.
Entretanto, o Cardeal Mazarino acumula bibelôs e quadros da Itália. A rainha o ama. O Parlamento de
Paris não está satisfeito. Ouve o clamor dos pobres, camponeses, arruinados pelas guerras e pelos
impostos. Em suas carruagens, paramentados com trajes magníficos, forrados de arminho, os senhores
do Parlamento se transportam ao Palácio do Louvre, onde vive o reizinho, agarrado com uma das mãos
à saia negra de sua mãe espanhola e com a outra à batina vermelha do Cardeal Mazarino, o italiano.
Explicam àqueles figurões, que não sonham senão com poder e riquezas, que o povo não pode pagar
mais, que os burgueses já nao podem comerciar, que todos estão cansados de pagar tributos ate sobre o
mais ínfimo dos seus bens. Será que não se vai pagar, ern breve, até sobre a escudela em que se come?
A rainha-mãe não esta contente. Nem o Sr. Mazarino. Então os grandes senhores conduzem o reizinho
ao seu trono no Parlamento. Com voz bem timbrada, embora vacilando um pouco ao repetir a lição que
lhe fora ensinada, responde àquelas graves personagens que é preciso dinheiro para os exércitos, para a
paz que se vai firmar muito em breve. Falou o rei. O Parlamento curva-se. Vai-se criar novo imposto.
Os intendentes das províncias vão pôr em ação os seus coletores. Os coletores vão ameaçar. A boa gente
vai suplicar, chorar, empunhar suas foices para matar os recebedores, vai lançar-se aos caminhos para
juntar-se às tropas dispersas, virão os bandidos... Ouvindo a ama, ninguém poderia crer que aquele
bufarinheiro embrutecido houvesse podido contar-lhe tantas coisas. Atribuem à imaginação o que era
adivinhação. Uma palavra, uma sombra, a passagem de um mendigo demasiado atrevido, de um
mercador inquieto, punham-na no caminho da verdade. Pressentia os bandidos no calor violento daquele
belo verão de 1648 e, como ela, Angélica os esperava...
CAPÍTULO II
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Os saqueadores
Naquela tarde, Angélica tinha resolvido ir apanhar caranguejos com o pastor Nicolau.
Galopara, sem aviso prévio, para a cabana dos Merlot, pais de Nicolau. A aldeola em que habitavam,
de três ou quatro casebres, estava situada na orla da grande floresta de Nieul. As terras que cultivavam
pertenciam, contudo, ao Barão de Sancé.
Reconhecendo a filha do amo, a camponesa levantou a tampa do caldeirão sobre o fogo e pôs na sopa
um pedaço de toucinho para melhorar seu sabor.
Angélica pôs sobre a mesa uma ave, que acabara de torcer o pescoço no pátio do castelo. Não era a
primeira vez que se fazia convidar daquela maneira em casa de um ou outro camponês, e nunca deixava
de oferecer um presentinho, pois os castelões eram quase os únicos que possuíam, na região, pombal e
galinheiro, por direito senhorial.
O homem sentado perto do fogão comia pão preto. Francina, a filha mais velha, aproximou-se de
Angélica e beijou-a. Tinha dois anos mais que ela, mas, encarregada, havia muito, de cuidar dos
menores e de trabalhar no campo, não podia ir pescar caranguejos nem buscar cogumelos, como seu
vagabundo irmão Nicolau. Era amável e polida, tinha belas faces rosadas e frescas, e a Sra. de Sancé
desejava tê-la como aia em substituição a Nanette, que a desconcertava com sua insolência.
Depois de comerem, Nicolau levou Angélica.
— Venha ao estábulo, vamos buscar a lanterna.
Saíram. A noite estava muito escura porque a tempestade ameacava ainda. Angélica recordou mais
tarde que tinha virado o rosto em direção à estrada romana que passava a meia légua dali e que lhe
parecera ouvir um vago rumor. O bosque ainda estava mais escuro.
—Não tenha medo dos lobos — disse Nicolau. — No verão não vêm até aqui.
—Não tenho medo.
Chegaram logo ao regato e colocaram os cestos com uma isca de toucinho no fundo da água.
Puxavam-nos de quando em quando, escorrendo água e carregados de caranguejos azuis, que a luz havia
atraído, e os despejavam numa cesta que tinham trazido para esse fim. Angélica não pensava que os
guardas do Castelo do Plessis poderiam surpreendê-los e que se armaria um escândalo ao descobrir-se
que uma das filhas do Barão de Sancé andava pescando furtivamente à noite com um valdevinos.
De repente ela se levantou, e Nicolau fez o mesmo.
—Não ouviu nada?
—Ouvi. Gritaram.
Os dois jovens ficaram imóveis um instante e depois voltaram a seus cestos. Mas estavam
preocupados e logo tornaram a abandonar a pescaria.
—Desta vez ouço bem. Gritam lá embaixo.
—É do lado da aldeia.
Rapidamente Nicolau recolheu os apetrechos de pesca e pôs a cesta às costas. Angélica pegou a
lanterna. Voltaram caminhando sem ruído por uma trilha coberta de musgo. Quando se aproximavam da
beira do bosque, imobilizaram-se subitamente. Um clarão vermelho penetrava por entre as árvores e
iluminava os troncos.
—Não é... que está amanhecendo? — murmurou Angélica.
—Não. É fogo!
—Meu Deus! Vamos ver se não é a sua casa que se está incendiando. Vamos depressa!
Mas ele a deteve.
—Espere! Gritam demais para um incêndio. Deve ser outra coisa.
Avançaram devagarinho até as primeiras árvores. Adiante, um
grande prado em declive descia até a primeira casa, que era a dos Merlot, e quinhentas varas mais longe
agrupavam-se, à beira do caminho, as outras três casinhas. Uma delas era a que ardia. As chamas que
saíam do teto iluminavam uma multidão movimentada de homens que gritavam e corriam, entravam nas
cabanas e delas saíam carregados de presuntos ou puxando vacas e asnos. Vinham da estrada romana e
corriam pela ruazinha vazia, como um rio caudaloso e negro. A onda eriçada de paus e lanças passou
por cima da granja dos Merlot, submergiu-a e continuou em direção de Monteloup. Nicolau ouviu sua
mãe gritar. Soou um tiro de arma de fogo. Era o pai Merlot, que tivera tempo de despendurar seu velho
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mosquete e carregá-lo. Mas pouco depois o arrastaram até o quintal, como um saco, e o mataram a
pauladas.
Angélica viu uma mulher em camisa, que atravessava o pátio de uma das casinhas e procurava fugir;
gritava e soluçava. Vários homens a perseguiam. A mulher tentava chegar ao bosque. Angélica e
Nicolau retrocederam e, de mãos dadas, fugiram tropeçando nos espinheiros.
Quando voltaram, fascinados a contragosto pelo incêndio e por aquele alarido uniforme que se elevava
no meio da noite, viram que os perseguidores haviam alcançado a mulher e a arrastavam pela pradaria.
—É Paulina — cochichou Nicolau.
Apertados um contra o outro, por trás do tronco de um enorme carvalho, contemplavam arquejantes,
com olhos esbugalhados, o horrível espetáculo.
—Levaram nosso asno e nosso porco — disse ainda Nicolau.
Chegou a aurora, fazendo esmaecer os fulgores do incêndio, que
já se extinguia. Os bandidos não tinham incendiado as outras casinhas. A maior parte deles não se havia
detido naquele povoado sem importância. Os homens haviam seguido para Monteloup. Os que se
haviam encarregado de saquear as quatro casas já abandonavam o teatro de suas proezas. Viam-se suas
roupas esfarrapadas, suas caras magras e sombreadas pelas barbas. Alguns usavam grandes chapéus de
plumas, e um deles uma espécie de capacete que podia fazê-lo passar por militar. Mas a maior parte ia
vestida com roupa sem forma nem cor. Envoltos na neblina da madrugada que subia dos pântanos,
chamavam uns aos outros. Já não eram mais de quinze. Um pouco além da casa dos Merlot fizeram alto
para verificar o botim. Por seus gestos e modo de discutir via-se que o achavam escasso: alguns lenços e
lençóis encontrados nos baús, panelas, pães, queijos. Um deles mordia um presunto. Os animais
roubados iam na frente. Os últimos saqueadores reuniram em dois ou três embrulhos os pobres objetos
recolhidos e afastaram-se sem ao menos voltar a cabeça.
Angélica e Nicolau tardaram a abandonar o refúgio das árvores. Já o sol brilhava e fazia cintilar o
orvalho dos prados, quando se arriscaram a descer até o lugarejo agora estranhamente silencioso.
Ao se aproximarem da granja dos Merlot, ouviram um choro de criança.
—É meu irmãozinho — cochichou Nicolau. — Ele, pelo me nos, não morreu.
Receando a presença de algum bandido retardatário, entraram silenciosamente no quintal. Iam de mãos
dadas e detinham-se quase a cada passo. Deram primeiro com o pai Merlot, o nariz enterrado no estéreo.
Nicolau inclinou-se e procurou levantar a cabeça de seu pai.
—Responda, papai, o senhor está morto?
Levantou-se.
—Creio que está morto. Olhe como está branco, ele que era tão corado.
Na casinhola, o garotinho se esganiçava. Sentado sobre o leito revolto, agitava as mãozinhas,
assustado. Nicolau correu para ele e tomou-o nos braços.
—Graças, Virgem Santa! O garoto não tem nada.
Angélica, com os olhos arregalados, olhava para Francina. A moça achava-se estendida no solo,
branca, com os olhos cerrados. Tinha a saia levantada até o ventre e o sangue lhe corria entre as pernas.
—Nicolau — murmurou Angélica com voz estrangulada —, que... que lhe fizeram?
Nicolau olhou e uma terrível expressão envelheceu-lhe o semblante. Voltou os olhos para a porta e
rosnou:
—Malditos, malditos!
Com gesto brusco entregou o menino a Angélica.
—Segure-o.
Ajoelhou-se perto da irmã e desceu pudicamente a saia estraçalhada.
— Francina, sou eu, Nicolau. Responda, você está morta?
Vinham lamentos do estábulo próximo. Apareceu a mãe, gemendo e curvada.
—É você, filho? Ah! meus pobres filhos, meus pobres filhos! Que desgraça! Levaram o asno e o
porco, e nossa pequena economia de escudos. Bem que eu dizia ao meu homem que era preciso
enterrá-los!
—Dói muito, mamãe?
—A mim pouco importa, filho. Sou mulher, já passei por outras. Mas minha Francina, a pobrezinha,
que é tão sensível, são capazes de tê-la assassinado.
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Acalentava a filha nós braços robustos de camponesa e chorava.
—Onde estão os outros? — perguntou Nicolau.
Depois de prolongada busca terminaram por encontrar as três crianças, um menino e duas meninas, na
ucha, onde se haviam escondido enquanto os salteadores, após roubarem o pão, se entre-tinham em
violar sua mãe e sua irmã.
Um vizinho veio saber notícias. Reuniram-se os infortunados habitantes do lugar para fazer a avaliação
de suas desditas. Tinham de chorar somente dois mortos: o pai Merlot e um velho que também procurara
usar seu mosquete. Os outros camponeses tinham sido amarrados a cadeiras, depois de terem sido
esbordoados sem crueldade excessiva. Não haviam degolado nenhuma criança, e um dos meeiros tinha
conseguido abrir a porta do estábulo para soltar suas vacas, que fugiram e sem dúvida seriam
encontradas. Mas quanto tecido e quanta roupa foram roubados! Quantos vasos de estanho, que
enfeitavam a lareira, haviam desaparecido! E os queijos, e os presuntos, e até aquele dinheiro, tão
escasso, tão contado!
Paulina continuava chorando e gritando.
—Seis se aproveitaram de mim!
—Cale-se! — disse brutalmente o pai. — Sei quem você é, e, como gosta de esconder-se com os
rapazes nos matos, acho até que aproveitou. No entanto, a nossa vaca estava prenhe! Terei mais
dificuldade para achá-la do que você para encontrar um amante!
—Precisamos sair daqui — disse a mãe Merlot, que continuava com Francina desmaiada nos braços.
— Talvez venham outros por aí.
—Vamos para o bosque com os animais que sobraram. Já fizemos isso quando passaram os exércitos
de Richelieu.
—Vamos para Monteloup.
—Para Monteloup! Com certeza eles já estão lá.
~ Vamos para o castelo — disse um.
Todos aprovaram incontinenti.
O instinto ancestral arrastava-os para a casa senhorial, em busca da proteção do amo, que, no decorrer
dos séculos, tinha estendido sobre seus trabalhos a sombra de suas muralhas e de seu torreão.
Angélica, que apertava a criança entre os braços, sentiu que o coração se lhe estreitava em um remorso
indefinido.
"Nosso pobre castelo", pensava, "está desmoronando. Como podemos agora proteger estes infelizes?
Quem sabe se os bandidos não terão ido até lá? E não seria o velho Guilherme com a sua lança quem
poderia impedi-los de entrar."
—Vamos — disse em voz alta —, vamos para o castelo. Mas não precisamos ir pela estrada real, nem
pelos atalhos dos campos. Se os bandidos estiverem emboscados neles, não poderemos aproximar-nos
da entrada. Tudo o que podemos fazer é descer até os pântanos esgotados e chegar ao castelo pelo
grande fosso. Há uma portinha que nunca se usa, mas eu sei como se abre.
Não acrescentou que aquela portinhola meio escondida pelos escombros de um subterrâneo lhe tinha
servido para fugir do castelo mais de uma vez, e que num dos calabouços que os atuais barões de Sancé
não conheciam bem estava o esconderijo em que preparava plantas e filtros, como a bruxa Melusina.
Os aldeões escutaram-na, confiantes. Alguns somente agora observavam sua presença, mas estavam
tão acostumados a considerar Angélica como uma encarnação das fadas que sua aparição no mais negro
de sua infelicidade não lhes causou grande assombro.
Uma das mulheres tirou-lhe dos braços o garoto. E Angélica, livre de sua carga, conduziu o grupinho
por um grande rodeio através dos pântanos, sob o sol escaldante, ao longo do promon-tório abrupto que
antigamente havia dominado aquele golfo do Poitou, invadido pelas águas marinhas. Com o rosto sujo
de pó e lama, animava os camponeses.
Fê-los entrar pela estreita abertura da poterna abandonada. No fresco ambiente dos subterrâneos
reúniu-os e deu-lhes ânimo, mas a obscuridade fez as crianças chorarem.
—Calma, calma — soou, tranqüilizando-as, a voz de Angélica.— Logo estaremos na cozinha, e babá
Fantina nos servirá a sopa.
A evocação da ama Fantina animou a todos.
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Seguindo a filha do Barão de Sancé,-os camponeses, gemendo I e tropeçando, subiram as escadas
meio desmoronadas e atravessa-1 ram as salas cheias de destroços, das quais fugiam os ratos. Angéb'l ca
orientava-os sem vacilação. Era seu domínio.
Quando chegaram ao grande vestíbulo, ruídos de vozes os inquietaram um momento. Mas Angélica,
tal como os aldeões, não se atrevia a supor que o castelo houvesse sido atacado. Ao se aproximarem da
cozinha, o cheiro da sopa e do vinho quente se tornou mais pronunciado. Com certeza havia muita
gente por ali, mas não eram bandidos, pois o tom das conversas era baixo, comedido e até triste.
Outros camponeses da aldeia e das fazendas vizinhas tinham vindo colocar-se sob a proteção das
velhas muralhas em ruínas.
Quando apareceram os recém-chegados, elevou-se um grito geral de pavor, pois foram tomados por
bandoleiros, mas, ao ver Angélica, a ama correu ao seu encontro e apertou-a nos braços.
—Meu tesouro! Você está viva! Graças, Senhor! Santa Radegunda! Santo Hilário! Obrigada!
Pela primeira vez Angélica não respondeu ao ardoroso abraço. Acabava de guiar "sua" gente através
dos pântanos. Horas inteiras havia tido atrás de si aquele rebanho lastimoso. Já não era uma criança!
Quase com violência, desprendeu-se de entre os braços de Fantina Lozier.
—Dê-lhes de comer — disse.
Mais tarde, como em sonho, viu sua mãe, que, com os olhos cheios de lágrimas, lhe acariciava as
faces.
—Filha, quanta inquietação você nos causou!
Pulquéria, consumida como uma vela, com sua acne inflamada pelas lágrimas, aproximou-se também,
assim como seu pai e seu avô... Parecia a Angélica muito divertido aquele desfile de fantoches. Bebera
um canecão de vinho quente e estava completamente embriagada, imersa num doce torpor. A seu redor
as pessoas trocavam comentários sobre as peripécias da trágica noite: a invasão do povoado, as
primeiras casas incendiadas, como haviam lançado o síndico pela janela do primeiro andar, que ele
estava tão orgulhoso de haver construído havia pouco.
Aqueles hereges haviam ainda invadido a pequena igreja, roubado os vasos sagrados e amarrado o
cura com a criada sobre o próprio altar! Gente possessa do Demônio! Senão, como teriam podido
inventar semelhantes coisas?
Diante de Angélica uma velha acalentava nos braços sua neta, linda adolescente que tinha o rosto
inchado de tanto chorar. A avó abanava a cabeça e repetia sem cessar, num misto de surpresa e horror:
—O que fizeram com ela! O que fizeram com ela! É incrível!...
Não falavam senão de mulheres violentadas, de homens espancados, de vacas e cabras roubadas. O
sacristão havia segurado seu burro pelo rabo, enquanto os bandoleiros o puxavam pelas orelhas.' E
quem gritava mais alto era o pobre animal!
Mas muitos haviam conseguido fugir. Uns para os bosques, outros para os pântanos, a maior parte
para o castelo. Havia lugar bastante para acolher o gado custosamente posto a salvo. Infelizmente, sua
fuga tinha atraído na mesma direção alguns salteado-res e, apesar do mosquete do Sr. de Sancé, as
coisas teriam podido acabar mal se ao velho Guilherme não houvesse ocorrido logo uma idéia genial.
Puxando as correntes enferrujadas da ponte levadiça, tinha conseguido levantá-la.
Como lobos cruéis mas medrosos, os bandidos tinham retrocedido diante do pobre fosso de água
podre.
Deu-se então um estranho espetáculo. Viu-se o velho Guilherme junto à poterna, dizendo
impropérios em seu idioma, agitar o punho para as sombras onde desapareciam vultos andrajosos. De
repente, um dos fugitivos parou e se pôs a retrucar. Houve entre eles um áspero diálogo, no meio da
noite avermelhada pelo incêndio, naquela língua tudesca que fazia tremer.
Ninguém soube ao certo o que Guilherme e seu compatriota disseram. O certo é que os bandidos não
voltaram e ao amanhecer se haviam distanciado da aldeia. Todos consideravam Guilherme um herói,
todos repousavam à sua sombra militar.
O incidente demonstrava, em todo caso, que o bando, embora parecesse composto de mendigos
camponeses ou de miseráveis das cidades, também tinha soldados vindos do norte, dispersados em
virtude do tratado de paz de Vestfália. Havia de tudo naqueles exércitos que os príncipes recrutavam
para pôr a serviço do rei: va-lões, italianos, flamengos, lorenses, espanhóis, alemães, todo um mundo
que os pacíficos habitantes do Poitou não podiam sequer ; imaginar. Alguns chegaram a afirmar que
entre os bandidos havia até um polaco, um daqueles selvagens que o Condottiere João de | Werth levara
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em outra época para a Picardia, a fim de degolar crian- . ças de peito. Tinham-no visto. De rosto
amarelo, usava um gorro de pele e possuía, sem dúvida, grande virilidade, porque, ao ter- ! minar a
jornada, todas as mulheres afirmavam ter sido suas vítimas.
Reedificaram-se as casas incendiadas da aldeola, o que não foi grande tarefa. Barro misturado com
palha e caniços formavam paredes bastante sólidas. Recolheram as messes que não foram saqueadas e a
colheita foi boa, o que consolou a muitos. Só duas mocinhas, uma delas Francina, não puderam
recuperar-se das violências sofridas. Tiveram grande febre e morreram.
Dizia-se que de Niort haviam enviado alguns soldados à procura do bando, que parecia estar isolado e
sem a menor disciplina.
Assim, a incursão dos bandidos pelas terras dos barões de Sancé não alterou grandemente a vida
rotineira do castelo. Ouviu-se o avô resmungar mais amiúde, recordando as infelicidades que havia
trazido consigo a morte do bom Rei Henrique IV e a insubordinação dos protestantes.
—Essas pessoas encarnam o espírito de destruição de um reino. Uma vez censurei o Sr. de Richelieu
por mostrar-se tão duro, mas vejo que não o foi quanto devia.
Angélica e Gontran, que naquele dia eram os únicos ouvintes da profissão de fé de seu avô, olharam-se
com ar conivente. O honesto ancião estava completamente fora da realidade!
Todos os netos adoravam o velho barão, mas raramente aceitavam suas idéias caducas.
O menino, que já ia completar doze anos, atreveu-se a observar:
—Esses bandoleiros, vovô, não eram huguenotes. Eram católicos, mas desertores de exércitos
famintos, e estrangeiros a quem não haviam pago o soldo, conforme dizem, e também aldeões dos
campos de batalha.
—Então, não precisavam vir até aqui. Além disso, você não conseguirá convencer-me de que os
protestantes não os ajudam. No meu tempo, o exército pagava mal às tropas, não nego, mas pagava
pontualmente. Creia no que eu digo: toda esta desordem tem inspiração estrangeira, talvez inglesa ou
holandesa. Entendem-se e agrupam-se, tanto mais que o Edito de Nantes foi demasiado in-dulgente para
com eles, deixando-lhes não só o direito de professar o seu credo, mas ainda a igualdade de direitos
cívicos...
—Vovô — perguntou subitamente Angélica —, que direito é esse que deixaram aos protestantes?
—Você é muito jovem para compreender, filhinha — disse o velho barão, e acrescentou: — Os
direitos cívicos representam algo que não se pode tirar a ninguém sem que se perca a honra.
—Então, não é dinheiro — disse a menina.
O velho gentil-homem felicitou-a:
—Muito bem, Angélica. Na verdade, você compreende as coisas bem demais para a
sua idade.
Mas parecia a Angélica que o assunto exigia mais explicações.
—De maneira que, embora os bandidos nos saqueiem completamente e nos deixem nus, deixam-nos,
contudo, nossos direitos cívicos?
—Exatamente, minha filha — respondeu seu irmão.
Mas havia ironia em sua voz, e Angélica perguntou a si mesma se ele não estaria troçando.
Gontran era um rapaz de quem nunca se sabia o que pensar. Falava pouco e vivia muito só. Como não
podia ter preceptor nem ir ao colégio, devia contentar-se, para seus estudos, com os rudi-mentos
intelectuais que lhe ministravam o mestre-escola e o cura da aldeia. Freqüentemente se retirava para sua
água-furtada a fim de triturar cochinilhas ou amassar argilas de cores diferentes para com elas executar
estranhas composições, a que dava o nome de "quadros" ou "pinturas".
Embora muito descuidado com a sua pessoa, como todas as crianças de Sancé, costumava reprovar
Angélica por viver feito uma selvagem e não saber honrar a sua linhagem.
—Você não é tão tola como parece — disse-lhe nesse dia, à guisa de cumprimento.
CAPÍTULO III
Os arrecadadores de impostos — A volta dos irmãos estudantes
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Após algum tempo, o velho nobre dirigiu a atenção para o pátio, de onde chegavam interpelações e
gritos misturados com ca-carejos de galinhas assustadas. Depois ouviu-se o ruído de um galope e, afinal,
exclamações mais violentas, nas quais se reconheciam os acentos de Guilherme. Era uma bela tarde de
outono, e os demais moradores do castelo deviam estar ausentes.
—Não tenham medo, meus filhos — dizia o avô. — Estão afugentando algum mendigo.
Mas já Angélica havia descido a escada aos pulos e gritava:
—Estão atacando Guilherme, querem maltratá-lo!
Coxeando, o barão foi buscar um sabre enferrujado, e Gontran voltou armado de um chicote, dos que
se utilizam para bater nos cães. Chegaram até a porta e viram o velho servidor empunhando a lança e
Angélica a seu lado.
O adversário não estava muito longe. Achava-se fora de seu alcance, do outro lado da ponte levadiça,
mas ainda o defrontava. Era um moço de aspecto famulento e parecia furioso. Procurava, ao mesmo
tempo, retomar o porte afetado e oficial.
Gontran baixou o chicote e puxou seu avô para o interior da casa, cochichando:
—E o cobrador de impostos. Já o afugentaram várias vezes...
O funcionário hostilizado continuava a retroceder lentamente, mas sem dar as costas, e adquiria novo
ânimo ante a hesitação dos reforços. Parou a distância respeitosa e, tirando do bolso um rolo de papel
bastante amassado pela rixa, pôs-se a desenrolá-lo carinhosamente, suspirando. Depois, fazendo
contorções, começou a ler a intimação segundo a qual o Barão de Sancé devia pagar sem demora a
quantia de oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros, correspondente a
impostos de meeiros atrasados, dízimos das rendas do senhor e imposto real, taxas pela cobertura de
éguas, "direitos de pó" pelos rebanhos que transitaram pela estrada real e multa pelo atraso nos
pagamentos. O velho nobre ficou vermelho de cólera.
—Por acaso você pensa, patife, que um gentil-homem vai pagar só por ouvir esse aranzel do fisco,
como se fosse um vilão qualquer? — gritou, exaltado.
—O senhor sabe de sobra que o seu filho pagou até agora regularmente os tributos anuais — disse o
homem, curvando a espinha. — Voltarei, pois, quando ele estiver aqui. Mas eu o previno: se amanhã, à
mesma hora, pela quarta vez, não estiver aqui e não pagar, mando-lhe uma citação, e seu castelo e seus
móveis serão vendidos por dívidas ao Tesouro Real.
—Fora daqui, lacaio dos usurários do Estado!
—Senhor barão, advirto-o de que sou um servidor juramentado da lei e que posso ser designado
agente executivo.
—Para a execução é preciso um julgamento — fulminou o velho fidalgo.
—Os senhores terão o julgamento facilmente, acredite, se não pagarem...
—Como quer que paguemos se não temos com quê? — exclamou Gontran, vendo que o barão se
perturbava. — Já que o senhor é oficial de justiça, venha certificar-se de que os saqueadores nos levaram
um garanhão, duas jumentas e quatro vacas, e que a maior parte do que reclama como dívida procede
dos impostos dos meeiros de meu pai. Desejou até pagar por eles, pois esses pobres camponeses não
podiam fazê-lo, mas ele mesmo nada deve. Além disso, por terem sido atacados pelos bandidos, nossos
aldeòes sofreram ainda mais que nós, e não é hoje, precisamente depois deste saque, que meu pai está
em situação de pagar essas contas...
Aquela linguagem razoável apaziguou o agente do fisco muito mais que as injúrias do velho cavaleiro.
Lançando olhares prudentes para o lado em que se encontrava Guilherme, aproximou-se um pouco e,
em tom mais brando e quase compassivo, embora firme, explicou que ele não podia senão receber e
transmitir as ordens da intendência fiscal. A seu ver, o único meio capaz de retardar o embargo seria o
barão dirigir um pedido ao intendente geral do fisco, por intermédio do intendente provincial de Poitiers.
—Aqui entre nós — acrescentou o oficial de justiça, provocando com isso uma careta de repugnância
no velho senhor —, entre nós, digo ao senhor que nem mesmo meus chefes imediatos, como o
procurador e o inspetor de arrecadações, serão capazes de lhes dar derrogação ou dispensa. No entanto,
como são da nobreza, certamente conhecem as pessoas importantes. Então, devem agir dessa maneira, é
um conselho de amigo.
—Não serei eu que me orgulharei de citá-lo como amigo! — observou em tom acerbo o Barão de
Ridoué.
—Digo-lhe isto para que o senhor repita ao seu filho. A miséria é geral, podem crer. Pensam que me
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diverte andar por aí causando a todos a impressão de um fantasma e levando bordoada como se fosse um
cão sarnento? Bem, boa tarde a todos vocês, e esqueçamos o incidente.
Enfiou na cabeça o chapéu, e foi-se a capengar, observando com pena que a manga de seu dólmã se
tinha rasgado na briga.
Em sentido oposto, afastou-se, também claudicando, o velho barão. Acompanharam-no Gontran e
Angélica, ambos silenciosos.
O velho Guilherme, praguejando contra inimigos imaginários, devolveu sua antiga lança ao depósito
de relíquias históricas.
De volta ao salão, o avô pôs-se a andar de um lado para outro, e durante muito tempo seus netos não
ousaram falar. Mas, na penumbra do anoitecer, ergueu-se a voz da menina.
—Diz-me, vovô, se os bandidos nos deixaram os direitos cívicos, esse bom homem agourento não os
levou agora?
—Vai para junto de tua mãe! — disse o ancião com voz trêmula.
Tornou a sentar-se em sua grande e velha poltrona estofada e não mais falou. Depois de fazer uma
reverência, os netos se retiraram.
Quando Armando de Sancé soube da recepção que tinham feito ao arrecadador de impostos, suspirou e
cocou demoradamente a grisalha mosca que usava, à maneira de Luís XIII.
Angélica amava com afeição um tanto protetora aquele pai bondoso e tranqüilo, cujas dificuldades
cotidianas lhe haviam cavado rugas profundas na fronte queimada pelo sol.
Para criar sua numerosa prole, aquele filho de fidalgo pobre tivera de renunciar a todos os prazeres da
sua condição social. Raramente viajava e até deixara de caçar, ao contrário dos fidalgotes vizinhos, não
mais ricos do que ele, que se consolavam de sua miséria empregando boa parte da vida a perseguir
lebres e javalis.
Armando de Sancé dedicava todo o seu tempo ao trato de suas minguadas culturas. Não se vestia
muito melhor que seus camponeses e, tanto quanto eles, exalava forte odor de estéreo e de cavalos.
Amava seus filhos, que o distraíam, e orgulhava-se deles. Representavam sua melhor razão de viver.
Para ele, o mais importante no mundo eram seus filhos. Depois, os seus muares. Durante algum tempo o
gentil-homem sonhara estabelecer pequena criação dessas bestas de carga, menos delicadas que os
cavalos e mais resistentes que os asnos.
Mas agora os bandidos haviam levado seu melhor garanhão e duas jumentas. Era um desastre, e ele
quase se dispunha a vender os muares restantes e um pedaço de terra que reservava para aquele fim.
No dia seguinte_ao da visita do agente fiscal, o Barão Armando aparou cuidadosamente uma pena de
ganso e acomodou-se ante a escrivaninha a fim de redigir uma súplica ao rei, para que o isentasse dos
impostos anuais. Expunha naquela carta sua pobreza de gentil-homem.
Primeiro, desculpava-se de não poder apresentar senão nove filhos vivos, mas outros nasceriam, sem
dúvida, porque "tanto ele como sua mulher ainda eram jovens e os tinham de boa vontade".
Acrescentou que sustentava um pai inválido, sem pensão, que tinha alcançado o posto de coronel sob
Luís XIII. Que ele próprio tinha sido capitão e indicado para posto mais elevado, mas tivera de
abandonar o serviço do rei porque seu soldo de oficial de artilharia, mil e setecentas libras por ano, "não
lhe proporcionava meios para manter-se no serviço". Também salientou que sustentava duas irmãs
idosas, as quais "não puderam encontrar marido nem entrar para um convento por falta de dote, e não
podiam senão consumir-se em tarefas humildes"; que tinha quatro criados, entre eles um velho militar
sem pensão, necessário ao seu serviço. Os dois filhos mais velhos estavam no colégio e custava-lhe
quinhentas libras somente a sua educação. Também era mister enviar para o convento uma das filhas,
mas exigiam trezentas libras. Terminava dizendo que pagava havia anos os impostos de seus meeiros
para conservá-los na terra, e que por isso tudo se encontrava em débito para com o fisco, que lhe
reclamava oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros só para aquele ano. Seu
rendimento total alcançava apenas quatro mil libras por ano, tendo de alimentar dezenove pessoas e
conservar sua posição de gentil-homem, num momento em que, por cúmulo da infelicidade, os bandidos
tinham saqueado e incendiado suas terras, matando alguns de seus meeiros e deixando os sobreviventes
na maior penúria. Pedia,-para concluir, confiante na bondade real, perdão para os impostos reclamados e
uma ajuda ou adiantamento de pelo menos mil libras, e solicitava "como graça do rei" que, se fosse
preparada alguma expedição à América ou às índias, empregasse como alferes seu "cavaleiro", seu
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primogênito, que estudava lógica com os agostinianos, aos quais, acrescentava, devia um ano de pensão.
Aceitaria, por sua parte, qualquer cargo compatível com sua condição de nobre, para poder manter sua
gente, porque suas terras, ainda que as vendesse, não lhe permitiriam...
Após secar com areia tão extensa missiva, que lhe tinha custado algumas horas de trabalho, Armando
de Sancé escreveu ainda umas palavras dirigidas a seu protetor e primo, o Sr. Marquês du Plessis de
Bellière, a quem incumbia de encaminhar sua petição ao próprio rei ou à rainha-mãe, acrescentando
recomendações capazes de a fazer aceitar favoravelmente.
Terminava com esta gentileza:
"Desejo, senhor, tornar a vê-lo brevemente e achar ocasião, nesta província, de vos ser útil; seja
oferecendo-lhe belas mulas de carga, seja ofertando-lhe frutas, castanhas, queijos e boiões de coalhada
para a sua mesa".
Algumas semanas depois, o pobre Barão Armando de Sancé acrescentaria novo dissabor à sua extensa
lista.
Uma noite, em que se anunciavam as primeiras geadas, ouviu-se o galope de um cavalo na estrada, e
logo depois na ponte levadiça, que tinha recuperado seus adornos de perus.
Latiram os cães no pátio. Angélica, que tia Pulquéria conseguira reter em seu quarto, para obrigá-la a
fazer um trabalho de agulha, precipitou-se para a janela.
Avistou um cavalo do qual se apeavam dois ginetes altos e magros, vestidos de negro, enquanto uma
mula carregada de malas aparecia na trilha, conduzida por um pequeno camponês.
— Titia! Hortênsia! — gritou. — Venham ver. Acho que são nossos irmãos Josselino e Raimundo.
As duas meninas e a velha demoiselle desceram apressadamente e chegaram ao salão no momento em
que os estudantes saudavam o avô e a tia Joana. Acudiram os domésticos de todos os lados. Alguns
foram buscar o barão no campo e a baronesa na horta.
Os adolescentes respondiam secamente às ruidosas boas-vindas.
Tinham quinze e dezesseis anos, mas freqüentemente os supunham gêmeos, porque tinham a mesma
estatura e eram muito parecidos. Possuíam ambos a mesma tez mate, os olhos pardos e os cabelos negros
e rígidos, que lhes caíam sobre o colarinho branco, amarrotado é sujo do uniforme. Somente se
distinguiam pela expressão. Nas feições de Josselino havia mais franqueza; nas de Raimundo, mais
reserva.
Enquanto respondiam por monossílabos às perguntas do avô, a ama, felicíssima, estendia sobre a mesa
uma bela toalha e trazia terrinas de patê, pão, manteiga e uma panelada das primeiras castanhas.
Brilharam os olhos dos adolescentes. Sem mais espera, sentaram-se à mesa e comeram com tal
sofreguidão e incivilidade que encheram Angélica de espanto.
Notou esta, contudo, que eles estavam magros e pálidos e suas roupas de sarja preta, puídas nos
joelhos e nos cotovelos.
Baixavam os olhos quando falavam. Nenhum deles parecia reconhecê-la e, contudo, ela recordava que
antigamente havia ajudado Josselino a desaninhar passarinhos, como agora Dionísio a ajudava.
Raimundo trazia pendurado ao cinto um chifre oco. Ela perguntou-lhe o que era.
—É para a tinta — respondeu com arrogância.
—Eu joguei fora o meu — disse Josselino.
O pai e a mãe chegaram empunhando tochas. O barão, não obstante sua alegria, estava um tanto
inquieto.
—Por que motivo estão aqui, meus rapazes? No verão não vieram. Não é curioso que lhes dêem férias
no início do inverno?
—Não viemos no verão porque não tínhamos um níquel para alugar um cavalo, nem mesmo para
tomar a diligência que vai de Poitiers a Niort — explicou Raimundo.
—E se agora estamos aqui — continuou Josselino —, não é porque estejamos mais ricos...— ...mas
porque os padres nos puseram no olho da rua — concluiu Raimundo.
Houve um silêncio contrafeito.
—Por São Dionísio! — exclamou o avô. — Que falha cometeram, senhores, para lhes fazerem tão
grande afronta?
—Nenhuma. E que já faz dois anos que os agostinianos deixaram de receber a nossa pensão. Deram-
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nos a entender que outros estudantes, cujos pais eram mais generosos, precisavam dos nos- sos
lugares...
O Barão Armando pôs-se a caminhar de um lado para outro, o que era indício de grande agitação
interior.
—Mas isso não é possível. Se não fizeram nada de mau, os padres não podem pô-los na rua sem mais
nem menos. Vocês são gentis-homens! E os padres sabem disso!
Josselino, o mais velho, tomou um ar malicioso.
—É verdade, eles o sabem de sobra, e posso repetir-lhes as palavras que o administrador nos deu
como provisão de viagem. Disse que os nobres eram os piores pagadores, e que, se não tinham dinheiro,
podiam dispensar o latim e as ciências.
O velho barão ergueu altivamente o busto.
—Custa-me crer que diga a verdade. Lembre-se de que a Igreja e a nobreza formam um todo e que os
estudantes representam a futura flor do Estado. Os bons padres o sabem melhor que ninguém!
Foi Raimundo, o segundo, que estava destinado ao sacerdócio, quem replicou, sem tirar os olhos do
chão:
—Os padres ensinaram-nos que Deus teria os seus eleitos, e talvez não nos tenha julgado dignos...
—Feche o seu armazém de bobagens, Raimundo! — interveio o irmão. — Asseguro-lhe que não é o
momento de o abrir. Se quer ser monge mendicante, vá. Mas eu sou o primogênito e estou de acordo
com o nosso avô: a Igreja deve-nos consideração, a nós, os nobres! Agora, se prefere os filhos dos
burgueses e negociantes, bom proveito lhe façam. Terá escolhido sua perdição e afundará!
Os dois barões protestaram a uma voz:
—Josselino, você não tem o direito de blasfemar dessa maneira!
—Não estou blasfemando. Limito-me a consignar o que vejo. Na aula de lógica, da qual eu era o
mais jovem e o segundo entre trinta alunos, há exatamente vinte e cinco filhos de burgueses e
funcionários que pagam pontualmente, e cinco gentis-homens dos quais somente dois não se atrasam...
Armando de Sancé procurou consolar-se:
—Há, então, mais dois filhos de nobres que mandaram embora com vocês?
—Nem tanto assim. Os outros pais que não pagam são pessoas altamente colocadas e os
agostinianos têm medo deles.
—Proíbo-lhe de falar assim dos seus educadores — disse o Barão Armando, enquanto seu
velho pai resmungava como para si mesmo:
—Felizmente o rei morreu e não pode tomar conhecimento de semelhantes coisas!
—Sim, felizmente, vovô — disse Josselino em tom de mofa. — E foi até um bravo monge que
assassinou Henrique IV.
—Cale-se, Josselino! — disse prontamente Angélica. — As palavras não são o seu forte e você
parece um sapo quando fala. Além disso, quem morreu assassinado por um monge não foi
Henrique IV, mas Henrique III.
O adolescente olhou com surpresa para a menina de cabelos ane-lados, que o apostrofava
calmamente.
—Ah, falou a rã, a princesa dos brejos! "Marquesa dos Anjos"... E pensar, maninha, que até
me esqueci de cumprimentá-la!
—Por que me chama de rã?
—Porque me chamou de sapo. Além disso, você não continua gostando de desaparecer entre a
erva e os caniços dos pântanos? Ou acaso se tornou formalista e orgulhosa como Hortênsia?
—Creio que não — disse Angélica modestamente.
Sua intervenção acalmara um pouco o ambiente. Os dois irmãos tinham acabado de comer e a
ama estava tirando a mesa.
Mesmo assim, a atmosfera continuava carregada. Confusamen-te, cada qual procurava uma
solução para esse novo golpe da adversidade.
Em meio ao silêncio, ouviu-se berrar o caçula. A mãe, as tias e até Gontran valeram-se do
pretexto para "ir ver". Mas Angélica ficou entre os dois barões e seus irmãos recém-vindos da
cidade em tão triste situação.
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Indagava a si mesma se desta vez iam perder a honra. Tinha grande desejo de perguntá-lo, mas
não se atrevia. Seus irmãos inspiravam-lhe algo que se parecia vagamente com uma piedade des-
denhosa.
O velho Lützen, que estava ausente no momento em que chegaram os dois jovens, voltou trazendo
mais tochas em homenagem aos viajantes. Derramou um pouco de cera ao beijar canhestramente o mais
velho. O segundo evitou com algum desdém a rude carícia de boas-vindas.
Mas, sem se perturbar, o velho soldado não vacilou em proclamar seu ponto de vista:
—Já era tempo de voltarem ao lar. Em primeiro lugar, de que lhes serve remoer o latim e quase não
saber escrever sua própria língua? Quando Fantina me disse que os jovens senhores voltavam
definitivamente, disse logo para comigo que o Sr. Josselino podia afinal ir para o mar...
—Sargento Lützen, será necessário recordar-lhe a antiga disciplina? — interrompeu bruscamente o
velho barão.
Guilherme não insistiu e manteve-se calado. Angélica ficou surpreendida com o tom arrogante e
alterado de seu avô. Este virou-se para o primogênito:
—Espero, Josselino, que você tenha esquecido seus planos de criança de se tornar navegante.
—Por que haveria de esquecê-los, vovô? Ao contrário, parece-me que agora é que não há outra
solução para mim.
—Enquanto eu viver, você não será marinheiro. Qualquer coisa, mas não isso! — E o ancião bateu
com a bengala nas lajes rachadas do piso.
Josselino parecia aterrado pela brusca teimosia de seu avô a respeito de um projeto que acariciava no
fundo do coração e que-o havia ajudado a tolerar sem grande ressentimento a expulsão de que fora
vítima.
"Acabaram-se os padres-nossos e as recitações de latim", havia pensado. "Agora já sou um homem e
embarcarei em um navio do rei."
Armando de Sancé procurou intervir.
—Meu pai — disse —, por que essa intransigência? Talvez fosse uma solução tão boa quanto qualquer
outra. Digo-lhe, aliás, que, na súplica por mim endereçada ao rei há pouco, pedi-lhe, entre outras coisas,
que facilitasse o embarque eventual de meu primo gênito em um corsário ou navio de guerra.
Mas o velho barão agitava-se com raiva. Nunca Angélica o vira tão encolerizado, nem sequer no dia da
discussão com o arrecadador de impostos.
—Não gosto das pessoas que sentem os pés arderem no chão de seus avós. Para além dos mares
nunca encontram montes nem maravilhas, mas selvagens inteiramente nus, com os braços tatua-dos. O
primogênito de um nobre deve servir nos exércitos do rei. Isso é tudo.
—Com muito prazer servirei ao rei, mas no mar — retrucou o moço.
—Josselino tem dezesseis anos. Já é tempo, afinal, de que escolha seu destino — disse seu pai, com
alguma hesitação.
Uma expressão de dor anuviou a face encarquilhada que a curta barba branca emoldurava. O velho
ergueu a mão.
—É verdade que outros, na família, escolheram seu destino. Causar-me-á uma decepção você
também, meu filho? — acrescentou, em tom de grande tristeza.
—Longe de mim a idéia de trazer-lhe à memória recordações dolorosas, meu pai — escusou-se o
Barão Armando. — Eu nunca pensei em exilar-me e não encontro palavras para exprimir o meu apego
às nossas terras do Poitou. Mas lembro-me de quão dura e precária era a minha situação no exército.
Ainda sendo nobre, não se consegue chegar aos postos superiores sem dinheiro. Estava crivado de
dívidas e, às vezes, para manter-me, tive de vender tudo o que possuía: o cavalo, a tenda, as armas;
cheguei a alugar meu próprio criado. Recorda-se o senhor de todas as boas terras I que teve de
transformar em dinheiro para manter-me no serviço? I
Angélica seguia a conversação com muito interesse. Jamais vira I marinheiros, mas era de uma região
aonde chegam, pelos vales do I Sèvre e da Vendée, os grandes chamados do oceano. Na costa de I La
Rochelle a Nantes, pelos Sables d'01onne, sabia haver barcos I de pescadores que partiam para terras
longínquas, onde encontra-1 vam homens vermelhos como o fogo ou listrados como filhotes I de javali.
Contava-se até que um marinheiro bretão, para o lado I de Saint-Malo, havia desembarcado na França
selvagens em cujal cabeça cresciam penas como as dos pássaros.
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Ah! se ela fosse homem, não teria pedido o conselho de seu avô!-1 Teria já partido, levando para o
Novo Mundo todos os seus afl'l jinhos.
No dia seguinte de manhã, Angélica, que estava no pátio, viu que um pequeno camponês entregava ao
barão um papel amarrotado.
—Éo Intendente Molines; pede-me que passe por sua casa. Creio que não estarei de volta para o
almoço — disse o barão, mandando por acenos que o palafreneiro arreasse o cavalo.
A Sra. de Sancé, que, com um chapéu de palha colocado sobre o lenço que lhe cobria a cabeça, se
preparava para ir à horta, contraiu os lábios.
—Não são estranhos — suspirou — os tempos em que vivemos? Tolerar que um vizinho plebeu, um
intendente huguenote, se permita ingenuamente convocá-lo, a você, que é um descendente autêntico de
Filipe Augusto? Pergunto-me que honestos negócios pode ter de tratar um nobre gentil-homem com o
administrador de um castelo vizinho. Com certeza trata-se novamente de muares...
O barão não respondeu e sua mulher afastou-se, abanando a cabeça.
Angélica, durante aquela cena, entrara na cozinha, onde sabia que se encontravam seus sapatos e seu
manto. Depois juntou-se ao pai, na estrebaria.
—Posso acompanhá-lo, pai? — perguntou com seu mais gracioso sorriso.
O barão não pôde resistir e fê-la montar atravessada na sela. Angélica era sua filha predileta. Achava-a
muito bonita e às vezes sonhava que ela se casaria com um duque.
CAPÍTULO IV
Estranho oferecimento ao pai de Angélica
Aquele dia outonal estava claro, e a floresta muito próxima, ainda não despojada de suas folhas,
estendia para o céu azul suas ramagens cor de ferrugem.
Ao passar em frente à grade do Castelo do Plessis-Bellière, Angélica curvou-se, procurando enxergar,
no fim da aléia de castanheiros, a branca visão do encantador edifício que se refletia no jjflago como
uma nuvem de sonho. Tudo estava em silêncio, e o castelo, em estilo renascentista, que os donos
haviam abandonado para morar na corte, parecia dormir no mistério de seu parque e de seus jardins. As
corças do bosque de Nieul, que lhe ficava próximo, pastavam nas alamedas desertas.
A habitação do administrador Molines ficava meia légua além, em uma das entradas do parque. Belo
pavilhão de tijolos vermelhos, coberto de ardósia azul, parecia, em sua solidez burguesa, o guardião
prudente de uma construção leve, cuja graça italiana continuava assombrando os habitantes da região,
acostumados aos castelos medievais.
O administrador era a imagem viva de sua casa. Austero e ricaço, cônscio de seus direitos e de seu
papel, era quem de fato parecia o proprietário daquele vasto domínio do Plessis, cujo dono estava
perpetuamente fora. Uma ou outra vez, no outono para as caçadas ou na primavera para colher os
lírios-do-vale, uma nuvem de senhores e senhoras descia sobre o Plessis, com seus co-ches, seus
cavalos, seus lebréus e seus músicos. Durante alguns dias havia uma série de festas e diversões que
enlouqueciam um pouco os fidalgotes da vizinhança, convidados para alvo de zombarias. Depois, toda
aquela gente regressava a Paris e a mansão recaía em seu silêncio sob a égide do severo intendente.
Ao ruído dos cascos do cavalo, Molines avançou pelo pátio de sua casa e inclinou-se várias vezes com
uma flexibilidade que não lhe exigia esforço, pois fazia parte de suas funções. Angélica, que sabia como
era duro e arrogante aquele homem, não apreciava aquela excessiva cortesia, mas o Barão Armando não
disfarçava o seu contentamento.
—Esta manhã tinha tempo de sobra e não achei conveniente fazê-lo esperar, Sr. Molines.
—Agradeço-lhe, senhor barão. Receava que lhe tivesse parecido descortês o convite por intermédio
de um criado.
—Não me ofendi. Sei que o senhor evita vir a minha residência por causa de meu pai, que insiste em
considerá-lo um perigoso huguenote.
—O senhor barão tem o espírito muito arguto. Realmente, não queria causar desgostos ao Sr. de
Ridoué, nem à senhora baronesa, que é muito devota. Prefiro, pois, falar-lhe em minha casa e espero que
o senhor me dê a honra de partilhar de nossa mesa, bem como sua filhinha.
—Já não sou uma criança — disse Angélica com vivacidade. — Tenho dez anos e meio, e em nossa
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casa vieram depois de mim Madelon, Dionísio, Maria Inês, Alberto e o bebê que acaba de nascer.
—Peço à Srta. Angélica que me desculpe. Ser a mais velha exige, com efeito, juízo e maturidade de
espírito. Muito feliz eu seria se minha pequena Berta freqüentasse a sua casa, porque, ai de mim! as
religiosas de seu convento me afirmam que é uma cabeça de avelã, donde não sairá grande coisa.
—O senhor exagera, Sr. Molines — protestou cortesmente o Barão Armando.
"Desta vez sou da mesma opinião de Molines", pensou Angélica, que detestava a filha do intendente,
pequena trigueira e sonsa.
Em relação ao intendente, seus sentimentos eram mais indecisos. Embora o achasse desagradável,
sentia por ele certa admiração, baseada sem dúvida no aspecto confortável de sua pessoa e de sua casa.
As roupas do intendente, sempre escuras, eram de belo pano, e deviam ser dadas ou vendidas antes que
nelas se percebesse o menor sinal de desgaste. Usava sapatos com fivela e tacão bastante alto, segundo a
nova moda.
Em sua casa comia-se maravilhosamente. O narizinho de Angélica estremeceu quando penetraram na
primeira sala, lajeada e reluzente de limpeza, que dava para a cozinha. A Sra. Molines mergulhou em
suas saias, numa reverência profunda, e em seguida voltou aos seus bolos.
O intendente conduziu seus convidados a um pequeno gabinete, para onde mandou trazer água fresca
e uma garrafa de vinho.
—Gosto muito deste vinho — disse ele, após erguer o copo. — É produto de uma colina que esteve
muito tempo inculta. Graças a cuidados especiais, pude vindimá-la no outono passado. Os vinhos do
Poitou não se comparam com os do Loire, mas são excelentes.
Depois de uma pequena pausa, acrescentou:
—Não seria demais repetir-lhe, senhor, quanto estou feliz por haver atendido pessoalmente ao meu
chamado. Para mim, isso é sinal de que o negócio em que estou pensando tem probabilidades de
realizar-se.
—Em suma, o senhor fez comigo uma experiência.
—Rogo ao senhor barão que não me leve a mal. Não sou homem de elevada educação, pois recebi
apenas uma instrução de aldeia. Mas confesso-lhe que o orgulho de alguns nobres nunca me pareceu
indício de inteligência. E para tratar de negócios, por modestos que sejam, é preciso inteligência.
O gentil-homem camponês recostou-se na poltrona estofada e passou a observar com curiosidade o
intendente. Estava um tanto ansioso pelo que pudesse propor-lhe aquele vizinho cuja reputação não era
das melhores.
Era tido por muito rico. No princípio, tinha-se mostrado duro com os camponeses e com os rendeiros,
mas nos últimos anos esforçava-se por ser amável até com os aldeões mais pobres.
Pouco se sabia acerca das causas de tal mudança e de tão insólita bondade. Os camponeses
desconfiavam, mas, como agora se mostrava tratável a respeito das contribuições que o castelo exigia
em nome do rei e do marquês, olhavam-no com respeito.
Os maliciosos insinuavam que ele procedia assim para encher de dívidas o seu amo sempre ausente.
Quanto à marquesa e seu filho Filipe, não se interessavam pelas terras mais que o próprio marquês.
—Se o que dizem é verdade, o senhor está simplesmente a ponto de tomar por sua conta todo o
domínio do Plessis — disse Armando de Sancé um tanto brutalmente.
—Pura calúnia, senhor barão. Não só me empenho em servir com lealdade o senhor marquês, como
não vejo nenhuma vantagem em semelhante aquisição. Para acalmar seus escrúpulos, confiar Ihe-ei,
embora não traia nenhum segredo, que esta propriedade já está há muito hipotecada!
—Não me proponha que a compre. Não tenho meios para tanto...
—Longe de mim tal pensamento, senhor barão... Um pouco de vinho?
Angélica, a quem a conversa não interessava, escapou silenciosamente do gabinete e voltou para a
grande sala, onde a Sra. Moli-nes se ocupava em enrolar a massa de uma enorme torta. Sorriu para a
menina e estendeu-lhe uma caixa que exalava delicioso aroma.
—Tome, querida, coma isto. E angélica confeitada. Tem o seu nome. Preparo-a eu mesma com o belo
açúcar branco. E melhor que a dos padres da abadia, que a fazem com açúcar mascavo. Como querem
que os pasteleiros de Paris apreciem esse condimento, se perdeu todo o seu sabor por ser fervido
grosseiramente nos enormes caldeirões mal lavados de suas sopas e morcelas?
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Ouvindo-a com atenção, Angélica mordia com prazer os finos talos, pegajosos e verdes. Então era
naquilo que se convertiam, depois de cortadas, aquelas grandes e fortes plantas do brejo, cujo aroma, no
estado natural, era tão pronunciado!
Olhava em redor com admiração. Os móveis rebrilhavam. A um canto havia um relógio, essa invenção
que seu avô dizia ser obra do Diabo. Para vê-lo melhor e ouvir seu ruído, aproximou-se do gabinete
onde estavam conversando os dois homens. Ouviu seu pai, que dizia:
—Por São Dionísio, Molines, o senhor me desconcerta! Contam muitas coisas a seu respeito, mas,
afinal, todo mundo está de acordo em reconhecer no senhor uma forte personalidade e um espírito
penetrante. E agora, por seus lábios, fico sabendo que cultiva as mais incríveis utopias.
—Em que lhe parece tão pouco razoável o que acabo de expor, senhor barão?
—Veja bem. O senhor sabe que me interesso por muares e que consegui por cruzamento uma
belíssima raça, e me propõe que intensifique a criação, ficando o senhor encarregado de dar escoamento
ao produto. Tudo isso está muito bem. Mas não o entendo e quando pensa em um contrato de longa
duração com... a Espanha. Meu amigo... estamos em guerra com a Espanha!
—A guerra não durará sempre, senhor barão.
—Assim o esperamos. Mas não se pode fundar um compromisso sobre uma esperança desse gênero.
O intendente esboçou um sorriso que o nobre arruinado não percebeu. Este continuou com veemência:
— Como quer comerciar com uma nação que está em guerra conosco? Em primeiro lugar, está
proibido, e muito justamente, porque a Espanha é um país inimigo. Além disso, as fronteiras estão
fechadas e as comunicações e as portagens vigiadas. Quero acreditar que fornecer muares ao inimigo
não seja tão grave como fornecer-lhe armas, principalmente porque as hostilidades não se desenrolam
aqui, mas em território estrangeiro. Para concluir: tenho muito poucos animais para que valha a pena
comerciar com eles. Custaria muito caro e vários anos de trabalho. Meus recursos não me permitem essa
experiência.
Por amor-próprio não acrescentou que estava prestes a liquidar seu plantei.
— O senhor barão me fará a fineza de considerar a circunstância de que já possui quatro garanhões
excepcionais e que lhe seria muito mais fácil que a mim conseguir muitos outros entre os nobres das
redondezas. Quanto às jumentas, podem-se encontrar centenas delas a dez ou vinte libras por cabeça.
Um pequeno trabalho adicional de drenagem dos pântanos pode melhorar os pastos, por que as suas
mulas de tiro são muito rústicas. Creio que com vinte mil libras poderíamos levar a sério este negócio,
que começaria a dar resultados daqui a três ou quatro anos.
O pobre barão parecia tomado de vertigem.
— Por São Dionísio, o senhor vê as coisas com excessivo otimismo! Vinte mil libras! Acredita serem
tão preciosos meus pobres muares de que todo mundo se ri abertamente? Vinte mil libras! Não será
certamente o senhor quem me adiantará essa quantia.
—E por que não? — disse calmamente Molines.
O barão encarou-o com espanto.
— Seria uma loucura da sua parte, Molines! Apresso-me em dizer-lhe que não tenho nenhum fiador.
— Contentar-me-ei com um simples contrato de sociedade em partes iguais e uma hipoteca sobre a
criação, mas o faríamos a título privado e secreto em Paris.
— Se o senhor quer saber, receio não ter os meios necessários, e por muito tempo, para ir à capital. À
primeira vista, sua proposta me parece perturbadora e arriscada, e gostaria de consultar previamente
alguns amigos...
—Nesse caso, senhor barão, nada feito. Porque a chave do nos so êxito está no segredo absoluto. Sem
isto, nada há que fazer.
—Mas não posso atirar-me, sem pedir conselhos, a um negócio que, além do mais, me parece
contrário aos interesses do meu próprio país!
—Que é também o meu, senhor barão...
—Ninguém o diria, Molines!
—Então não falemos mais nisto, senhor barão. Vejo agora que me enganei. Diante dos seus
excepcionais resultados, supus que o senhor fosse o único capaz de estabelecer um grande
plantei, e sob seu nome, nestas terras.
O barão sentiu-se justamente lisonjeado.
—Essa não é a questão...
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—Então, permita-me o senhor barão observar-lhe quão próxima se acha essa questão da que o
preocupa, isto é, o cuidado de instalar condignamente sua numerosa família...
—Mereceria uma chicotada, Molines, porque estes são assuntos que não lhe dizem respeito!
—Seja como deseja, senhor barão. Entretanto, embora meus recursos sejam mais modestos do
que alguns pensam, tinha cogitado de acrescentar imediatamente — a título de adiantamento
sobre nosso futuro negócio, naturalmente — um empréstimo de soma igual: vinte mil libras, que
lhe permitiriam dedicar-se a sua propriedade sem cuidados excessivamente fatigantes acerca de
seus filhos. Sei por experiência própria que os trabalhos não caminham muito rápido quando se
tem o espírito distraído pela inquietação.
—E quando o fisco o aperta — disse o barão, um tanto agitado.
—Para que esses empréstimos entre nós não pareçam suspeitos, penso que não teríamos
nenhum interesse em divulgar nosso acordo. Insisto em que, qualquer que seja sua decisão, não
repita a ninguém nossa conversa.
—Entendo-o perfeitamente. Mas deve compreender que minha mulher deve ser sabedora da
proposta que o senhor acaba de fazer-me. Trata-se do futuro de nossos dez filhos.
—Desculpe-me o senhor barão por lhe fazer essa indiscreta pergunta, mas será a senhora
baronesa capaz de silenciar? Nunca ouvi dizer que uma mulher soubesse guardar um segredo.
—Minha mulher tem fama de falar pouco. Além do mais, não temos relações com ninguém. Se
eu lhe pedir, não falará.
Nesse momento o intendente viu a ponta do nariz de Angélica, que, apoiada na ombreira da porta, os
escutava sem procurar esconder-se. O barão, voltando-se, viu-a também e franziu o sobrolho.
—Venha aqui, Angélica — disse secamente. — Creio que você está começando a adquirir o mau hábito
de escutar atrás das portas. Aparece sempre nos momentos inoportunos e não se percebe a sua chegada.
Essas maneiras são deploráveis.
Molines fixava na pequena um olhar penetrante, mas não parecia tão contrariado quanto o barão.
—Os camponeses dizem que é uma fada — comentou sorrindo. Ela se aproximou sem se alterar.
—Você ouviu nossa conversa? — perguntou o barão.
—Ouvi, meu pai! Molines disse que Josselino poderia ir para o exército e Hortensia para o convento,
se o senhor produzisse muitos muares.
—Você tem uma curiosa maneira de sintetizar as coisas. Agora, escute-me. Vai prometer-me não
contar esta história a ninguém.
Angélica levantou para eles seus olhos verdes.
—Posso prometer... Mas que é que ganho? O administrador sufocou o riso.
—Angélica! — exclamou o pai com assombro e decepção. Molines foi quem respondeu:
— Comece por provar-nos sua discrição, Srta. Angélica. Se, como espero, se realizar a nossa
sociedade com o senhor barão seu pai, será necessário esperar que o negócio prospere sem dificuldade,
para o que é preciso que não se divulgue nada de nossos projetos. Então, como recompensa, dar-lhe-
emos um marido...
Angélica fez um muxoxo, pareceu refletir, e disse:
— Está bem. Prometo.
Em seguida retirou-se. Na cozinha, a Sra. Molines, afastando as criadas, colocou ela mesma no forno
sua torta coberta de creme e cerejas.
— Sra. Molines, vamos comer logo? — perguntou Angélica.
— Ainda não, querida. Se você está com muita fome, eu lhe darei uma fatia de pão com manteiga.
— Não é isso, mas eu queria saber se tenho tempo para ir correndo até o Plessis.
— Claro que sim. Mandarei um garoto chamá-la quando a mesa estiver posta.
Angélica saiu correndo, e, numa curva da primeira aléia, tirou os sapatos e escondeu-os debaixo de
uma pedra, para apanhá-los na volta. Depois, correu de novo, mais rápida que uma gazela. O bosque
recendia a cogumelos e musgo, e uma chuva recente havia deixado poças aqui e acolá. Angélica
transpunha-as de um salto.
Estava feliz. O Sr. Molines havia-lhe prometido um marido. Não tinha certeza de ser um presente
importante. Que faria com ele?... Em todo caso, se fosse tão agradável como Nicolau, seria um com-
panheiro sempre disponível para ir pescar caranguejos.
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Viu aparecer no fim da aléia o perfil do castelo, sobressaindo em branco puro sobre o esmalte azul do
céu. Certamente, o Castelo do Plessis-Bellière era uma casa de conto de fadas, pois nenhum outro se
lhe assemelhava na região. Todas as moradias nobres das redondezas eram como Monteloup, cinzentas,
cheias de musgos, compactas. Aqui, no século anterior, um artista italiano havia multiplicado janelas,
trapeiras e pórticos. Uma ponte levadiça em miniatura atravessava os fossos cheios de nenúfares. As
torrinhas dos ângulos eram apenas adornos. Todavia, as linhas do edifício eram simples. Nada existia de
pesado naqueles arcos, naquelas abóbadas flexíveis, mas uma graça natural de plantas ou guirlandas. Só,
em cima do pórtico principal, um escudo com uma quimera que estirava a língua flamígera recordava a
decoração mais rebuscada da Idade Média.
Angélica, com surpreendente destreza, subiu até o terraço e, agarrando-se aos ornamentos das janelas
e balcões, chegou até o primeiro andar, onde uma biqueira lhe oferecia cômodo apoio. Colou então o
rosto ao vidro da janela. Amiúde tinha vindo àquele mesmo lugar e não se cansava de impressionar-se
com o mistério daquele aposento fechado, em cuja penumbra se via brilhar a prata e o marfim de tantos
objetos artísticos colocados sobre móveis marchetados, as cores vivas, ruivas e azuis, dos tapetes
novos, a magnificência dos quadros ao longo das paredes.
No fundo havia uma alcova cujo leito estava coberto com uma colcha adamascada. As cortinas
brilhavam com seus fios de ouro,
que lhe davam peso, misturados em sua trama. Sobre a chaminé atraía os olhares um grande quadro que
enchia Angélica de admiração. Um mundo, de que tinha apenas a presciência, havia vindo encerrar-se
naquele quadro: era o mundo dos habitantes do Olimpo, com sua graça paga e livre. Ali se via um deus e
uma deusa unirem-se num abraço sob o olhar de um fauno barbudo, simbolizando seus corpos
magníficos, como o próprio castelo, a graça dos Campos Elísios na vizinhança da floresta selvagem.
A emoção dominava Angélica até oprimi-la levemente.
"Todas essas coisas", pensava, "gostaria de tocá-las, acariciá-las. Quisera que algum dia fossem
minhas..."
CAPITULO V
Casamento na aldeia — Novo plantel de muares
Em maio naquela região, os rapazes, com uma espiga verde no chapéu, e as moças, engalanadas com
flores de linho, vão dançar à volta dos dólmens, essas grandes mesas de pedra que a pré-história erigiu
nos campos.
Ao regressarem, dispersam-se um pouco, aos pares, pelos prados e nas sombras da mata recendente a
lírio-do-vale.
Em junho o pai Saulier casou a filha e houve uma grande festa. Era o único arrendatário do Barão de
Sancé, que, afora aquele, não empregava senão meeiros. O homem, que era também o dono da taberna
da aldeia, desfrutava boa situação financeira.
A pequena igreja romana foi adornada de flores e círios grossos como punhos. O próprio senhor barão
conduziu a nubente ao altar.
O banquete, que durou várias horas, abundava em morcelas, chouriços, salsichas e queijos. Bebeu-se
vinho. Após a refeição vieram todas as mulheres casadas do povoado, como de praxe, ofertar seus
presentes à noiva. Esta já estava em sua nova casa, sentada em um banco diante de uma grande mesa
sobre a qual se amontoavam lençóis, baixelas, caldeirões de cobre e de estanho. Seu rosto redondo, um
tanto bovino, brilhava de prazer sob uma enorme grinalda de margaridas.
A Sra. de Sancé envergonhava-se de não levar senão um modesto presente: alguns pratos de bela
faiança que guardava para essas ocasiões. Angélica lembrou-se de que em Sancé comia em escude-las,
como os camponeses. E sentiu-se ferida por aquele ilogismo. As pessoas eram esquisitas! Podia apostar
que também a recém-casada jamais utilizaria aqueles pratos; guardá-los-ia cuidadosamente em uma arca
e continuaria comendo em sua escudela. E no Plessis havia tantos objetos maravilhosos que seus donos
abandonavam como em uma tumba!...
Angélica entristeceu-se e beijou a recém-casada sem qualquer efu-são. Entrementes, os jovens
reuniam-se junto ao grande leito conjugai e soltavam piadas.
—Ah! minha linda, com a cara que têm você e seu marido, certamente o chaudaut vos calhará bem ao
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amanhecer! — disse um deles.
—Mamãe — perguntou Angélica ao sair —, que é esse chaudaut de que falam em todos os
casamentos?
—E um costume de camponeses, como levar presentes ou dançar — respondeu evasiva a baronesa. A
explicação não satisfez a menina, que prometeu a si mesma assistir ao chaudaut.
Na praça da aldeia não se tinham iniciado ainda as danças embaixo do grande olmeiro. Os homens
permaneciam em redor das mesas armadas ao ar livre, sobre cavaletes.
Angélica ouviu os soluços de sua irmã mais velha, que pedia para voltar ao castelo, pois se
envergonhava de seu vestido simples e cerzido.
—Ora essa! — exclamou Angélica. — Você complica demais a sua vida, pobre mana! Queixo-me eu
do meu vestido, apesar de apertado e muito curto para mim? Só os sapatos me incomodam deveras. Mas
trouxe os tamancos embrulhados e os calçarei para dançar à vontade. Estou disposta a me divertir!
Hortênsia insistiu, queixando-se do calor e garantindo que se sentia mal. A Sra. de Sancé aproximou-
se do marido, que estava sentado entre os figurões da terra, e avisou-o de que se retirava, mas deixava
Angélica a seus cuidados. A menina ficou um momento junto de seu pai. Tinha comido muito e sentia-
se sonolenta.
Em torno dele estavam o cura, o síndico, o mestre-escola, que às vezes fazia o papel de chantre, o
cirurgião, o barbeiro e o sinei-Êro, e alguns lavradores que possuíam charruas puxadas por bois e
empregavam vários manobradores, formando assim uma pequena "aristocracia de aldeia. Também fazia
parte do grupo Artêmio Callot, agrimensor do burgo vizinho e nomeado provisoriamente para ajudar na
drenagem do pântano próximo, o qual figurava como sábio e estrangeiro, embora fosse, na realidade, do
Limousin. Finalmente, ali se encontrava também o pai da noiva, Paulo Saulier, criador de gado grosso e
miúdo.
Esse corpulento camponês do Poitou era o mais importante dos pequenos pecuaristas do lugar, e,
embora o Barão Armando de Sancé fosse o "dono" das terras, seu rendeiro era certamente mais rico do
que ele.
Angélica olhava para o pai, cujo semblante se mantinha carregado, e adivinhava sem esforço o que lhe
ia no íntimo.
"Eis aqui", devia pensar com melancolia, "outro sinal da decadência dos nobres."
Houve um rebuliço na praça, em torno do olmeiro, e apareceram dois homens, que, transportando
debaixo do braço uns sacos brancos já muito inflados, subiram a uns toneis. Eram os gaitei-ros. Um
tocador de flauta se juntou a eles.
—Vamos dançar! — exclamou Angélica, e precipitou-se para a casa do síndico, onde havia escondido
seus tamancos.
Seu pai viu-a voltar pulando e batendo palmas segundo o ritmo das baladas e rondas que se começaria
a dançar dali a pouco. Saltavam-lhe sobre os ombros os seus cabelos de ouro escuro. Talvez porque
trajava um vestido curto e apertado demais, sentiu logo que ela se havia desenvolvido nos últimos
meses. Ela, que fora sempre tão franzina, parecia ter agora doze anos. Seus ombros tinham-se alargado e
seu peito punha leves saliências na sarja puí-da do vestido. O sangue jovem avermelhava-lhe as faces, e
seus lábios entreabertos e úmidos sorriam, deixando aparecer os dentinhos perfeitos.
Como a maior parte das moças da aldeia, tinha posto na abertura de seu corpete um grande ramo de
prímulas amarelas e lilases. Os homens que ali estavam também se surpreenderam ante sua aparição
cheia de louçania e frescura.
—Sua filha está ficando uma bela moça — disse papai Saulier com sorriso obsequioso e lançando um
olhar malicioso a seus vizinhos.
O orgulho do barão tingiu-se de inquietude.
"Já é muito crescida para misturar-se com esses rústicos", pensou prontamente. "A ela, mais do que a
Hortênsia, é que teria de mandar para o convento..."
Angélica, sem prestar atenção aos olhares de que era alvo e aos pensamentos que ia despertando,
misturava-se alegremente com os rapazes e as moças que vinham de todos os lados em grupos ou aos
pares.
Quase esbarrou num mocinho a quem não reconheceu logo, tão ricamente vestido estava.
23
—Valentim, meu Deus! — exclamou, empregando o patoá da terra, que falava correntemente. — Que
elegante você está, meu caro!
O filho do moleiro envergava uma roupa talhada certamente na cidade, de tecido cinza tão bom que as
abas da sobrecasaca pareciam engomadas. Esta e o colete eram adornados com várias fileiras de
botõezinhos dourados e cintilantes. Trazia fivelas de metal nos sapatos e no chapéu de feltro, e ligas de
cetim azul com rose-tas. O rapaz, que aos catorze anos já tinha um físico de Hércules, parecia
extremamente desajeitado na grotesca farpeia, mas seu rosto vermelho resplandecia de satisfação.
Angélica, que passara vários meses sem vê-lo por causa da viagem que ele havia feito à cidade com o
pai, percebeu que mal lhe chegava ao ombro e sentiu-se meio atemorizada. Para esvanecer o susto,
puxou-o pela mão.
—Venha dançar — disse-lhe.
—Não, não! — protestou o moço. — Não quero estragar meu traje novo. Vou beber com os homens
— acrescentou com suficiência, dirigindo-se para o grupo das pessoas importantes, entre as quais
acabava de sentar-se seu pai.
—Venha dançar! — exclamou um moço, tomando Angélica pela cintura.
Era Nicolau. Seus olhos escuros como castanhas maduras brilhavam de alegria.
Colocaram-se frente a frente e começaram a bater com os pés no chão, ao compasso do som agudo das
gaitas e da flauta. Aquelas danças, que poderiam ter parecido pesadas e monótonas, tinham um sentido
rítmico instintivo que lhes dava uma harmonia extraordinária. Apesar das gaitas e da flauta, o
instrumento principal era precisamente o barulho surdo dos tamancos que golpeavam o solo em
uníssono, e as figuras complicadas que os dançarinos execu-ítavam no momento preciso acrescentavam
graça à perfeição do bailado campestre.
Começava a anoitecer. A frescura do fim de tarde era um refrigério para as frontes suarentas.
Completamente entregue à dança, Angélica sentia-se feliz, liberta de seus pensamentos. Seus pares se
sucediam, e nos olhos brilhantes e risonhos daqueles moços lia algo que a excitava um pouco. A poeira
subia em um leve tom pastel, colorido pelo sol poente. O flautista tinha as bochechas como duas bolas, e
os olhos saltavam-lhe das órbitas à força de soprar em seu instrumento. Foi necessário suspender a dança
para que se aproximassem das mesas, a fim de molharem a garganta.
—Em que está pensando, meu pai? — perguntou Angélica, que foi sentar-se junto ao barão, cuja
fronte não se desfranzia.
Estava afogueada e esbaforida. O barão quase se sentiu ofendido ao vê-la despreocupada e feliz,
quando ele se inquietava a ponto de não poder desfrutar a festa como de outras vezes.
—Nos impostos! — respondeu, olhando com ar sombrio para um dos figurões que tinha à sua frente, e
que outro não era senão o agente fazendário Corne, que tantas vezes fora expulso do castelo. Angélica
protestou:
—Não é bom pensar nisso quando todos se divertem. Pensam acaso eles, pensam nossos aldeões? No
entanto, são os que mais pagam. Não é verdade, Sr. Corne? — gritou para o outro lado da mesa. — Não
é certo que num dia como hoje ninguém deve pensar nas contribuições, nem mesmo o senhor?
Isso fez rir estrondosamente aos circunstantes. Começaram a cantar, e o pai Saulier entoou o estribilho
do Coletor Pilhante, que o Sr. Corne se dignou escutar com sorriso benevolente. Mas depressa chegaria
a vez das canções menos inocentes a que dão lugar todas as bodas. E Armando de Sancé, cada vez mais
inquieto pelas maneiras de sua filha, que bebia trago após trago, resolveu retirar-se.
Disse a Angélica que o acompanhasse para despedir-se dos presentes e voltar com ele ao castelo.
Raimundo e os mais novos, acompanhados pela ama, havia tempo tinham regressado a casa. Somente o
primogênito Josselino é que não tivera pressa, entretido com uma das jovens mais bonitas do lugar. O
barão absteve-se de chamá-lo à ordem. Estava satisfeito ao ver que o magro e pálido colegial recobrava,
nos braços da mãe Natureza, idéias e cores mais sadias. Com a idade do rapaz havia muito que ele
próprio já tinha estendido sobre o feno uma robusta pastora da povoação vizinha. Quem sabe! Talvez
isso viesse prendê-lo à terra.
Na certeza de que Angélica o seguia, o castelão começou a distribuir adeuses aos que ficavam.
Mas sua filha tinha outros projetos. Desde algum tempo procurava um meio de assistir à cerimônia do
chaudaut, quando despontasse o sol. Por isso, aproveitando um remoinho de gente, escapuliu para fora
do tumulto e, com os tamancos na mão, pôs-[se a correr para o extremo da aldeia, cujas casas estavam
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  • 1. Reja) A França, em meados do séc. XVII é governada por Ana da Áustria, viúva de Luís XIII, e por seu ministro todo-poderoso, o Cardeal Mazarino. O país, arrasado pela Guerra dos Trinta Anos, atravessa momentos difíceis, enquanto aguarda a maioridade de Luís XIV. A hostilidade surda entre católicos e protestantes explode ao menor pretexto. Os nobres conspiram, fazem e desfazem alianças, cobiçando favores e privilégios. Nos povoados e aldeias, os camponeses vivem sobressaltados, ora atacados por bandoleiros, ora intimidados pelos coletores de impostos extorsivos. Bem longe da corte, na aldeola de Monteloup, Angélica, a filha predileta do bom e rústico Barão Armando de Sancé, vive no castelo em ruínas da família. Solta pelos campos, para os aldeões é uma linda fada, a quem o futuro não preocupa. Para a família, por sua beleza excepcional, um trunfo a ser explorado. O pai a casa com o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse, o homem mais poderoso do sul da França, mais rico e mais nobre que o próprio rei. Angélica não o conhece, mas dizem que é um feiticeiro, que tem pacto com o Demônio. Um bruxo visado pela Inquisição... "Você foi feita para amar ' suspira o trovador. "Seu corpo sedutor levará os homens à loucura!" Angélica ia se casar. Um mistério cercava a fortuna de seu futuro marido, o temível Joffrey de Peyrac, conde de Toulouse. Tanto fausto, tanto esplendor ela não imaginara nem nos devaneios mais delirantes de mocinha pobre do interior. Naquele momento, parecia-lhe estar vivendo um sonho ameaçador, em que se prenunciava um destino terrível. O seu destino. Ainda há pouco, ela dera adeus ao velho castelo da família, aos amores da juventude, à suave existência como Marquesa dos Anjos, doce ninfa dos pântanos e florestas de sua terra natal, Monteloup. Agora estava à mercê daquele estranho que todos diziam ser um verdadeiro monstro, desfigurado e manco, um mago encantador de mulheres, acusado pela Inquisição de ter pacto com o Demônio. Em sua ingenuidade, Angélica não podia prever que o futuro lhe reservava uma existência excepcional. Ela era uma dessas pessoas marcadas pela sorte: a quem os deuses dariam tudo, mas de quem também pediriam muito em troca... Os Amores de Angélica Anne e Serge Golon 1
  • 2. Os Amores de Angélica ANNE E SERGE GOLON Título: Os Amores de Angélica Autor: ANNE E SERGE GOLON Título original: -- Dados da Edição: Editora Nova Cultural 1989 Género: Romance Histórico Digitalização e correção: Nina Estado da Obra: Corrigida MARQUESA DOS ANJOS (1645) CAPITULO I A infância de Angélica no castelo campestre — Babá — perguntou Angélica —, para que Gil de Retz matava tantas crianças? —Para o Demônio, filhinha. Gil de Retz, o papão de Mache-coul, queria ser o senhor mais poderoso de seu tempo. Em seu castelo havia somente retortas, frascos e panelas repletos de caldos vermelhos e vapores espantosos. O Diabo pedia que lhe oferecessem em sacrifício o coração de uma criaturinha. Assim tiveram início os crimes. E as mães aterrorizadas apontavam com o dedo o negro torreão de Machecoul, rodeado de corvos, tantos eram os cadáveres de crianças inocentes que havia em seus calabouços. —E ele comia todas? — perguntou, com voz trêmula, Made-lon, a pequenina irmã de Angélica. —Não todas. Não teria podido — respondeu a ama. Curvada sobre o caldeirão em que o toucinho e a couve ferviam lentamente, mexeu a sopa alguns instantes em silêncio. Hortênsia, Angélica e Madelon, as três filhas do Barão de Sancé de Monteloup, de colher em punho junto a suas éscudelas, esperaram ansiosamente o prosseguimento da história. —Havia algo pior que comê-las — continuou por fim a ama, com voz amarga. — Primeiro fazia levar à sua presença o pobrezinho ou a pobrezinha, que, tremendo de medo, gritava por sua mãe. O senhor, deitado em seu leito, rejubilava-se com o pavor da criaturinha. Depois, mandava pendurá-la na parede, em uma espécie de forca que lhe ia apertando o peito e o pescoço, estrangulando-a, embora não o bastante p, ra matá-la. A criança estrebuchava como um frango pendurado, seus gritos se extinguiam, os olhos esbugalhavam-se e ela se tornava azul. Na grande sala não se ouviam se não os risos dos homens cruéis e os gemidos da pequena vítima. Então, Gil de Retz mandava dependurá-la, punha-a sentada sobre os joelhos e apoiava ao peito a fronte do pobre anjinho. Falava-lhe com doçura. "Não foi nada", dizia. "Só queríamos divertir-nos, mas já terminou." Iam dar-lhe doces, teria um formoso leito com colchão de penas, uma roupa de seda como a de um pajenzinho. A criança se tranqüilizava. Um brilho de alegria cintilava em seus olhos cheios de lágrimas. Então o senhor, subitamente, enterrava-lhe a adaga no pescoço. O mais espantoso, porém, era quando raptavam moças novas. — Que lhes fazia? — perguntou Hortênsia. Foi aí que interveio o velho Guilherme, que, sentado a um canto, junto ao fogão, picava um pedaço de fumo. Resmungou com sua barba amarelada: — Cale-se, velha louca! Até mesmo a mim, que sou um guerreiro, você me agita o coração com suas histórias fantásticas. A rude Fantina Lozier retrucou-lhe com vivacidade: — Histórias fantásticas!... Vê-se logo que você não nasceu no Poitou, Guilherme Lützen. Basta caminhar um pouco em direção a Nantes e logo encontrará o castelo maldito de Machecoul. Já faz dois séculos que se cometeram os crimes e, no entanto, as pessoas que passam pelas redondezas ainda se 2
  • 3. benzem. Mas você não é desta terra e nada sabe de seus antepassados. — Belos antepassados, se todos forem como o seu Gil de Retz! — Gil de Retz foi tão grande no mal que nenhuma terra além do Poitou pode orgulhar-se de ter tido um criminoso como ele. E quando morreu, julgado e condenado em Nantes, mas batendo no peito, confessando sua culpa e pedindo perdão a Deus, todas as mães cujos filhos ele havia torturado e comido puseram luto por ele. — Isso, sim, é que é grandioso! — exclamou o velho. — Assim somos nós, do Poitou. Grandes no mal, grandes no perdão! Carrancuda, a ama dispôs as panelas sobre a mesa e abraçou com ardor o pequeno Dionísio. — É verdade — disse — que fui pouco à escola, mas sei distinguir entre uma história para espantar o sono e uma narrativa dos tempos antigos. Gil de Retz foi um homem que existiu de verda de. Sua alma talvez ainda erre por perto de Machecoul, mas seu corpo apodreceu nesta nossa terra. Por isso não se pode falar dele frivolamente, como das fadas e dos duendes que passeiam entre as grandes pedras dos campos. Também não é conveniente troçar demasiado de tais espíritos malignos... —E dos fantasmas, minha bá, pode-se troçar? — perguntou An-gélica; —É melhor não troçar, querida. Os fantasmas não são maus, mas a maioria deles são tristes e desconfiados, e para que aumentar com zombarias os tormentos desses infelizes? —Por que chora a velha senhora que aparece no castelo? —Quem pode saber? A última vez que me encontrei com ela, há seis anos, entre a antiga sala da guarda e o grande corredor, pareceu-me que já não chorava, talvez graças às preces que o avô de vocês mandou rezar por sua alma na capela. —Eu ouvi seus passos na torre — afirmou Nanette, a criada. —Devia ser um rato. A velha dama de Monteloup é discreta e não quer fazer mal a ninguém. Talvez tenha sido cega, pois sempre estende a mão para a frente como se procurasse tatear. Ou então procura alguma coisa. Às vezes aproxima-se das crianças adormecidas e passa-lhes a mão no rosto. A voz de Fantina tornava-se lúgubre. —Quem sabe se não procura alguma criança morta? —Boa mulher, você tem o espírito mais macabro que a vista de um ossário — voltou a protestar pai Guilherme. — E possível que seu senhor de Retz, do qual tanto se orgulha de ser conterrânea, a dois séculos de distância, seja um grande homem e que a senhora de Monteloup seja muito respeitável, mas afirmo-lhe que não fica bem perturbar estas crianças, já tão assustadas que se esquecem de comer. —Você se faz agora sensível, grosseiro soldado, assecla do Demônio! Quantos ventres de criaturas como essas não terá atravessado com sua lança quando servia o imperador da Áustria nos campos da Alemanha, da Alsácia e da Picardia? Quantas palhoças não incendiou, fechando a porta para torrar lá dentro a família toda? Nunca enforcou nenhum aldeão? Foram tantos que até se gastaram os ramos das árvores! E as mulheres e as moças, não as violou até matá-las de vergonha? —Como todo mundo, como todo mundo, boa mulher. Essa e a vida do soldado. Isso é a guerra. Mas a vida dessas crianças que aqui vemos é feita de brincadeiras e de histórias alegres. ——Até o dia em que passarem pelo povoado os soldados e os bandidos, como nuvens de gafanhotos. Então, a vida das crianças se converterá na vida do soldado, da guerra, da miséria e do medo... Amargurada, a ama destampava uma grande panela de barro cheia de patê de lebre, e passava manteiga em fatias de pão que distribuía em volta, sem esquecer o velho Guilherme. — Esta que lhes fala... eu, Fantina Lozier... escutem-me, filhas... Hortênsia, Angélica e Madelon, que haviam aproveitado a discussão para esvaziar suas escudelas, levantaram de novo a cabeça, e Gontran, seu irmão de dez anos, saiu do canto escuro em que estava amuado e aproximou-se da mesa. Havia chegado a hora da guerra e dos saques, da soldadesca e dos bandidos, tudo confundido no mesmo clarão vermelho dos incêndios, no retinir das espadas, nos gritos lancinantes das mulheres... —Guilherme Lützen, você conhece meu filho, que é carroceiro do nosso amo, o Barão de Sancé de Monteloup, aqui mesmo, neste castelo? —Conheço. Ê um belo rapaz. —Pois tudo o que posso dizer de seu pai é que fazia parte dos exércitos do Sr. Cardeal de Richelieu, quando este se dirigia para La Rochelle a fim de exterminar os protestantes. Eu não era hu-guenote, e 3
  • 4. sempre rezara à Virgem Santíssima para conservar a castidade até o casamento. Mas, depois que as tropas do nosso cris-tianíssimo Rei Luís XIII passaram pela região, o mínimo que posso dizer é que havia deixado de ser donzela. E dei a meu filho o nome de João Couraça, em memória de todos aqueles demônios, um dos quais é seu pai, cujas couraças cheias de cravos rasgaram a única camisa que eu possuía naquele tempo... E quanto aos saqueadores e bandidos que a fome atirou tantas vezes nos cami- nhos, poderia manter vocês acordados a noite inteira contando o que me fizeram entre a palha do celeiro, enquanto queimavam os pés de meu homem no fogo da lareira para fazê-lo confessar onde guardava as economias. É eu supunha, pelo cheiro, que assavam o porco. Ao recordá-lo, a grande Fantina pôs-se a rir; depois bebeu água de pé de maçã para refrescar a língua, que havia secado de tanto ela falar. Assim, a vida de Angélica de Sancé de Monteloup teve início sob o signo do Ogro, dos fantasmas e dos saqueadores. A ama tinha nas veias um pouco daquele sangue mouro que os árabes levaram, pelo século XI, até os umbrais do Poitou. Angélica mamara aquele leite de paixão e de sonhos em que se concentrava o antigo espírito de sua província, terra de pântanos e de bosques, aberta como um golfo aos tépidos ventos do oceano. Assimilara confusamente um mundo de dramas e de histórias de fadas. Tinha tomado gosto por ele e adquirido uma espécie de imunidade contra o medo. Olhava com pena para sua irmã mais nova, Madelon, que tremia, ou para a mais velha, Hortênsia, muito reservada, e que, no entanto, morria de desejo de perguntar à ama o que lhe haviam feito os bandidos entre a palha do celeiro. Angélica, aos oito anos, adivinhava muito bem o que havia sucedido no palheiro. Quantas vezes não havia levado a vaca ao touro ou a cabra ao bode? E seu amigo, o pastorzinho Nicolau, explicara-lhe que, para ter filhos, os homens e as mulheres faziam o mesmo. Fora assim que a ama tivera João Couraça. Mas o que intrigava Angélica era que, ao falar de tais coisas, a ama adotava, às vezes, uma entonação lânguida e de êxtase, e outras a do horror mais sincero. Mas não era necessário procurar compreender a ama, seus silêncios, seus arroubos de cólera. Era suficiente que estivesse ali, gran-dalhona, sempre em movimento, com seus braços robustos, seu regaço amplo formado pela saia de fustão, e que nele acolhesse as crianças como passarinhos, para entoar-lhes uma cantiga de ninar ou falar-lhes de Gil de Retz. Mais simples era o velho Guilherme Lützen, que falava com uma voz lenta de acento áspero. Diziam que era suíço ou alemão. Há quinze anos o haviam visto chegar, coxeando e descalço, pela estrada romana que vai de Angers até St. Jean d'Angély. Entrou no Castelo de Monteloup e pediu uma escudela de leite. E ali ficou como criado para tudo: ferreiro, carpinteiro, correio do Barão de Sancé, que o mandava levar suas cartas aos amigos e o encarregava de receber o agente fazendário quando vinha cobrar os impostos. O velho Guilherme escutava-o com muita calma e respondia-lhe no seu dialeto de montanhês suíço ou tirolês, e aquele funcionário acabava indo embora descoroçoado. Tinha vindo dos campos de batalha do norte ou do leste? E por que motivo aquele mercenário estrangeiro parecia proceder da Bretanha quando o encontraram? Tudo quanto sabiam dele era que havia estado em Lützen sob as ordens do Condottiere Wallenstein e que havia tido a honra de atravessar a pança do gordo e magnífico rei da Suécia, Gustavo Adolfo, quando este, perdido na neblina, no decorrer da batalha, esbarrou com os lanceiros austríacos. No sótão em que habitava viam-se brilhar ao sol, entre as teias de aranha, sua velha armadura e seu capacete, no qual continuava bebendo seu vinho quente e, às vezes, tomava a sopa. Sua imensa lança, três vezes mais alta que ele, servia-lhe para "sacudir as nogueiras no tempo da colheita. Mas, acima de tudo, Angélica invejava-lhe o pequeno picador de fumo. Era de concha marchetada, e Guilherme chamava-o sua grivoise, segundo o hábito dos militares alemães a serviço da França, que recebiam a alcunha de grivois. Na vasta cozinha do castelo, após o anoitecer, as portas que davam para fora não paravam de se abrir e fechar; e por elas entravam, com um forte cheiro de estrume, criados, criadas e o carroceiro João Couraça, tão trigueiro como sua mãe. Também apareciam os cães, os dois lebréus Marte e Manjerona e os bassês enlameados até os olhos. 4
  • 5. Do interior do castelo, as portas davam acesso à graciosa Na-nette, que se exercitava como aia, esperando aprender boas maneiras para deixar seus amos pobres e ir servir em casa do Sr. Marquês du Plessis de Bellière, a pequena distância de Monteloup. Iam e vinham também os dois criadinhos, a grenha sobre os olhos, carregando lenha para a sala grande e água para os quartos. Depois aparecia a baronesa. Tinha o rosto suave, desgastado pelo ar do campo e pelos numerosos partos. Trajava-se de sarja cinza e capuz de lã negra, porque a atmosfera da sala grande, onde sempre estava com o sogro e as duas cunhadas, era mais úmida que a da cozinha. Perguntava se logo estaria pronta a tisana do senhor barão e se o bebê tinha mamado sem problemas. De passagem, acariciava as faces de Angélica, meio adormecida, e cujos longos cabelos de ouro escuro se estendiam sobre a mesa e brilhavam ao clarão da lareira. — É hora de dormir, filhinhas. Pulquéria vos levará para a cama. E Pulquéria, uma das velhas tias, se apresentava sempre dócil. Assumira por vontade o papel de governanta de suas pequenas sobrinhas, pois não havia encontrado marido nem convento que a quisesse receber sem dote, e, como fazia algo útil em vez de passar o dia gemendo e bordando tapeçaria, tratavam-na com certo desprezo e com menos atenção que à outra tia, a gorda Joana. Pulquéria reunia as sobrinhas. As amas agasalhariam as menores, e Gontran, o menino sem preceptor, iria, quando bem o quisesse, deitar-se em sua enxerga no último andar. Acompanhando a magra solteirona, Hortênsia, Angélica e Ma-delon chegavam à sala do castelo, onde a lareira e três velas não dissipavam inteiramente o amontoado de sombras acumulado pelos séculos sob as altas abóbadas medievais. Estendidos pelas paredes, alguns tapetes tentavam protegê-las da umidade, mas eram tão velhos e estavam tão bichados que mal se distinguiam, nas cenas que representavam, os olhos espantados das lívidas personagens que pareciam vigiar atentamente com ar severo. As meninas faziam uma reverência ao senhor seu avô. Estava este sentado em frente ao fogo, com seu casacão negro guarnecido de peles quase sem pêlos. Mas suas brancas mãos, apoiadas no cas-tão da bengala, eram mãos de rei. Cobria-se com um grande chapéu de feltro negro, e sua barba, quadrada como a do finado Rei Henrique IV, descansava sobre uma pequena gola pregueada, que parecia a Hortênsia, embora ela se abstivesse de dizê-lo, completamente fora de moda. Outra reverência a tia Joana, cujos lábios mal-humorados não se dignavam sorrir, e logo subiam a grande escada de pedra, úmida como uma gruta. Os quartos de dormir eram gelados no inverno mas frescos no verão. Não entravam neles senão para meter-se na cama. Aquela em que dormiam as três meninas reinava como um monumento no canto de um aposento devastado, cujos móveis tinham sido vendidos no decurso das últimas gerações. As lajes do piso, cobertas de palha durante o inverno, estavam quebradas em muitos lugares. Para dar acesso ao leito havia um escabelo de três degraus. Depois de vestirem a camisola e a touca de dormir e de se haverem ajoelhado para dar graças a Deus pelos benefícios recebidos, as três mocinhas de Sancé de Monteloup subiam para seus colchões de boa pluma e se enrodilhavam entre as cobertas esburacadas. Angélica procurava imediatamente o furo do lençol correspondente ao do cobertor e por ele passava o pé cor-de-rosa, mexendo os dedos para fazer rir Madelon. A pequena tremia como um coelho ao recordar as histórias que a ama contara. Hortênsia também, mas não dizia nada porque era a mais velha. Somente Angélica saboreava com prazer exaltado aquele temor. A vida era feita de mistérios e de descobertas. Ouviam-se os ratos roendo o madeirame e as corujas revoando nos telhados das duas torres, soltando pios agudos. Os lebréus ganiam nos pátios e um mulo da pradaria vinha coçar-se contra a muralha. As vezes, nas noites de nevada, ouviam-se os uivos dos lobos que desciam da selvagem floresta de Monteloup em busca de lugares habitados. Também chegavam ao castelo, desde as primeiras noites da primavera, as cantigas dos aldeões, que davam alguma festa ao luar... Uma das muralhas do Castelo de Monteloup deitava para os pântanos. Era a parte mais antiga, construída por um antigo senhor de Ridoué de Sancé, companheiro de Du Guesclin no século XII. Era flanqueada por duas grossas torres, com caminhos de ronda cobertos de madeira, e quando Angélica subia até lá com Gon-tran ou Dionísio divertiam-se cuspindo nos balestreiros por onde os soldados da Idade Média haviam despejado baldes de azeite fervendo sobre os assaltantes. As muralhas surgiam de um pequeno promontório de calcário, além do qual começavam os pântanos. Nos velhos tempos dos primeiros homens, o mar chegava até ali. Ao retirar-se, deixou um aranhol de rios, canais e lagoas, que 5
  • 6. agora estavam cobertos por uma trama de ervas e salgueiros, domínio das enguias e das rãs, no qual os aldeões não circulavam senão em canoas. As aldeias e as choças isoladas eram construídas sobre as ilhas do antigo golfo. Havendo percorrido aquela província das águas, o Sr. Duque de Ia Trémoille, que em certo verão foi hóspede do Marquês du Plessis e tinha a mania do exotismo, deu-lhe o nome de Veneza Verde. A vasta planície líquida, o pântano doce, estendia-se desde Niort e Fontenay-le-Comte até o oceano. Juntava-se um pouco antes de Marans, de Chaillé e mesmo de Luçon com os pântanos amargos, isto é, as terras ainda salgadas. Depois já era a verdadeira praia, com sua alva barreira de sal precioso, disputado avidamente por guardas alfandegários e contrabandistas. Se a ama não costumava contar as histórias dos agentes aduaneiros em sua luta com os contrabandistas de sal, as quais apaixonavam todo o pântano, era porque tinha nascido em terra firme e jactava-se de desprezar as pessoas que viviam com os pés dentro da água, e que, além do mais, eram protestantes. Pelo lado da terra o Castelo de Monteloup apresentava uma fachada mais moderna, com inúmeras janelas. Somente uma velha ponte levadiça, de correntes enferrujadas, e ocupada por galinhas e perus, separava a entrada principal da pradaria em que pastavam os muares. A direita havia o pombal senhorial, com sua cobertura de telhas redondas, e uma das fazendas cultivadas por um meeiro. As outras ficavam para além do fosso. Mais adiante via-se o campanário da aldeia de Monteloup. Depois começava a floresta espessa de carvalhos e castanheiros. Essa mata podia conduzir, sem a menor clareira, até o norte da Gâtine e do Bocage vendeano, e quase até o Loire e o Anjou, a quem se dispusesse a atravessá-la de lado a lado sem medo dos lobos e salteadores. O bosque de Nieul, o mais próximo, pertencia ao senhor do Plessis. Os habitantes de Monteloup aí faziam pastar os seus porcos e estavam sempre envolvidos em disputa com o administrador do marquês, um tal Molines, de mãos rapaces. Também andavam por ali alguns fabricantes de tamancos, carvoeiros e uma bruxa, a velha Melusina. Esta, no inverno, por vezes saía do bosque e se aproximava para beber uma escudela de leite nas casas do povoado, em troca de algumas plantas medicinais. Seguindo-lhe o exemplo, Angélica recolhia flores e raízes, punha-as para secar, fervia-as, triturava-as e metia-as em saquinhos num esconderijo que só o velho Guilherme conhecia. Pulquéria esganiçava-se horas inteiras chamando-a, e ela não aparecia. As vezes Pulquéria chorava, quando pensava em Angélica. Via nela o malogro não apenas do que pensava ser uma educação tradicional, mas também de sua raça e nobreza, que iam perdendo toda a dignidade por causa da pobreza e da miséria. Ao romper da aurora, a menina escapulia, cabelos ao vento, vestida com uma camisa, um ralo corpete e uma saia desbotada, e seus pés, miúdos como os de uma princesa, eram duros como cornos, porque escondia o seu calçado na primeira moita que aparecesse, para correr mais depressa. Se a chamavam, voltava um pouco o rosto redondo e dourado pelo sol, no qual cintilavam dois olhos verde-azulados, da mesma cor de uma planta que cresce nos pântanos e tem o seu nome. — Deveriam mandá-la para um convento — gemia Pulquéria. Mas o Barão de Sancé, taciturno e roído de preocupações, encolhia os ombros. Como poderia mandar para o convento sua segunda filha, quando não podia mandar nem a maior, pois tinha somente quatro mil libras de renda por ano e precisava dar quinhentas para a educação de seus dois filhos mais velhos nos agos-tinianos de Poitiers? Para o lado dos pântanos, Angélica tinha um amigo: Valentim, o filho do moleiro. Do lado dos bosques, seu amigo era Nicolau, um dos sete filhos de um lavrador e que já era pastor a serviço do Sr. de Sancé. Com Valentim andava de barco, percorrendo os canais margeados de miosótis, hortelãs e angélicas. Valentim colhia braçadas dessa planta alta, espessa e de cheiro esquisito, e ia logo vendê-la aos monges da abadia de Nieul, que fabricavam com suas raízes e flores um licor medicinal, e doces com os talos. Em troca, os monges lhe davam escapulários e terços, de que se servia para lançá-los à cabeça dos meninos das aldeias protestantes, que fugiam em algazarra como se o próprio Demônio lhes tivesse cuspido no rosto. Seu pai, moleiro, deplorava aquelas façanhas. Embora católico, vangloriava-se de ser tolerante. E que necessidade tinha o filho de comerciar braçadas de angélicas quando recebia como herança o posto de moleiro e não precisava senão instalar-se no cômodo moinho, edificado sobre pilotis à beira da água? 6
  • 7. Mas Valentim era um rapaz difícil de se compreender. Corado, hercúleo já aos doze anos, mais silencioso que uma carpa, tinha o olhar vago, e as pessoas que invejavam o moleiro diziam que era meio idiota. Nicolau, o pastor, tagarela e gabolas, levava Angélica a recolher cogumelos, amoras e mirtilos. Ia com ela também apanhar castanhas. No bosque, fazia para a pequena flautas com ramos de ave-leira, que tornava ocos. Os dois rapazes sentiam reciprocamente ciúmes mortais dos favores de Angélica. Já era tão bonita que os aldeões a olhavam como viva personificação das fadas que habitavam o grande dólmen do campo feiticeiro. Ela alimentava idéias de grandeza. —Sou marquesa — declarava a quantos quisessem ouvi-la. —Ah, sim? E por quê? —Porque me casei com um marquês — respondia. O "marquês" era tanto Valentim como Nicolau ou qualquer um dos vadios, tão inofensivos como passarinhos, que levava atrás de si pelos prados e bosques. Dizia também com muita graça: — Sou Angélica; conduzo à guerra os meus anjinhos. Daí proveio seu apelido: a Marquesinha dos Anjos. No início do verão de 1648, quando Angélica completou onze anos, a ama Fantina pôs-se a esperar os soldados e saqueadores. A região, contudo, parecia em paz, mas a ama, que adivinhava tantas coisas, "farejava" os bandidos no calor daquele estio sufocante. Vivia com o rosto voltado para o norte, na direção da estrada real, como se o vento carregado de poeira lhes houvesse trazido o odor. Bastavam-lhe muito poucos indícios para saber o que se passava a distância, não somente na região, mas em toda a província e até em Paris. Depois de haver comprado ao mascate da Auvergne um pouco de cera e algumas fitas, era capaz de informar o senhor barão acerca das novidades mais importantes que se relacionassem com a vida do reino da França. Ia ser criado um novo imposto; estava sendo travada uma batalha em Flandres; a rainha-mãe já não sabia o que inventar para arranjar dinheiro a fim de satisfazer os príncipes ambiciosos. Ela mesma, a soberana, enfrentava as suas dificuldades, e o rei de cachos louros usava calças demasiado curtas, bem como seu irmão-zinho, a quem chamavam Petit Monskur, visto que seu tio, Monsieur, irmão do Rei Luís XIII, era vivo ainda. Entretanto, o Cardeal Mazarino acumula bibelôs e quadros da Itália. A rainha o ama. O Parlamento de Paris não está satisfeito. Ouve o clamor dos pobres, camponeses, arruinados pelas guerras e pelos impostos. Em suas carruagens, paramentados com trajes magníficos, forrados de arminho, os senhores do Parlamento se transportam ao Palácio do Louvre, onde vive o reizinho, agarrado com uma das mãos à saia negra de sua mãe espanhola e com a outra à batina vermelha do Cardeal Mazarino, o italiano. Explicam àqueles figurões, que não sonham senão com poder e riquezas, que o povo não pode pagar mais, que os burgueses já nao podem comerciar, que todos estão cansados de pagar tributos ate sobre o mais ínfimo dos seus bens. Será que não se vai pagar, ern breve, até sobre a escudela em que se come? A rainha-mãe não esta contente. Nem o Sr. Mazarino. Então os grandes senhores conduzem o reizinho ao seu trono no Parlamento. Com voz bem timbrada, embora vacilando um pouco ao repetir a lição que lhe fora ensinada, responde àquelas graves personagens que é preciso dinheiro para os exércitos, para a paz que se vai firmar muito em breve. Falou o rei. O Parlamento curva-se. Vai-se criar novo imposto. Os intendentes das províncias vão pôr em ação os seus coletores. Os coletores vão ameaçar. A boa gente vai suplicar, chorar, empunhar suas foices para matar os recebedores, vai lançar-se aos caminhos para juntar-se às tropas dispersas, virão os bandidos... Ouvindo a ama, ninguém poderia crer que aquele bufarinheiro embrutecido houvesse podido contar-lhe tantas coisas. Atribuem à imaginação o que era adivinhação. Uma palavra, uma sombra, a passagem de um mendigo demasiado atrevido, de um mercador inquieto, punham-na no caminho da verdade. Pressentia os bandidos no calor violento daquele belo verão de 1648 e, como ela, Angélica os esperava... CAPÍTULO II 7
  • 8. Os saqueadores Naquela tarde, Angélica tinha resolvido ir apanhar caranguejos com o pastor Nicolau. Galopara, sem aviso prévio, para a cabana dos Merlot, pais de Nicolau. A aldeola em que habitavam, de três ou quatro casebres, estava situada na orla da grande floresta de Nieul. As terras que cultivavam pertenciam, contudo, ao Barão de Sancé. Reconhecendo a filha do amo, a camponesa levantou a tampa do caldeirão sobre o fogo e pôs na sopa um pedaço de toucinho para melhorar seu sabor. Angélica pôs sobre a mesa uma ave, que acabara de torcer o pescoço no pátio do castelo. Não era a primeira vez que se fazia convidar daquela maneira em casa de um ou outro camponês, e nunca deixava de oferecer um presentinho, pois os castelões eram quase os únicos que possuíam, na região, pombal e galinheiro, por direito senhorial. O homem sentado perto do fogão comia pão preto. Francina, a filha mais velha, aproximou-se de Angélica e beijou-a. Tinha dois anos mais que ela, mas, encarregada, havia muito, de cuidar dos menores e de trabalhar no campo, não podia ir pescar caranguejos nem buscar cogumelos, como seu vagabundo irmão Nicolau. Era amável e polida, tinha belas faces rosadas e frescas, e a Sra. de Sancé desejava tê-la como aia em substituição a Nanette, que a desconcertava com sua insolência. Depois de comerem, Nicolau levou Angélica. — Venha ao estábulo, vamos buscar a lanterna. Saíram. A noite estava muito escura porque a tempestade ameacava ainda. Angélica recordou mais tarde que tinha virado o rosto em direção à estrada romana que passava a meia légua dali e que lhe parecera ouvir um vago rumor. O bosque ainda estava mais escuro. —Não tenha medo dos lobos — disse Nicolau. — No verão não vêm até aqui. —Não tenho medo. Chegaram logo ao regato e colocaram os cestos com uma isca de toucinho no fundo da água. Puxavam-nos de quando em quando, escorrendo água e carregados de caranguejos azuis, que a luz havia atraído, e os despejavam numa cesta que tinham trazido para esse fim. Angélica não pensava que os guardas do Castelo do Plessis poderiam surpreendê-los e que se armaria um escândalo ao descobrir-se que uma das filhas do Barão de Sancé andava pescando furtivamente à noite com um valdevinos. De repente ela se levantou, e Nicolau fez o mesmo. —Não ouviu nada? —Ouvi. Gritaram. Os dois jovens ficaram imóveis um instante e depois voltaram a seus cestos. Mas estavam preocupados e logo tornaram a abandonar a pescaria. —Desta vez ouço bem. Gritam lá embaixo. —É do lado da aldeia. Rapidamente Nicolau recolheu os apetrechos de pesca e pôs a cesta às costas. Angélica pegou a lanterna. Voltaram caminhando sem ruído por uma trilha coberta de musgo. Quando se aproximavam da beira do bosque, imobilizaram-se subitamente. Um clarão vermelho penetrava por entre as árvores e iluminava os troncos. —Não é... que está amanhecendo? — murmurou Angélica. —Não. É fogo! —Meu Deus! Vamos ver se não é a sua casa que se está incendiando. Vamos depressa! Mas ele a deteve. —Espere! Gritam demais para um incêndio. Deve ser outra coisa. Avançaram devagarinho até as primeiras árvores. Adiante, um grande prado em declive descia até a primeira casa, que era a dos Merlot, e quinhentas varas mais longe agrupavam-se, à beira do caminho, as outras três casinhas. Uma delas era a que ardia. As chamas que saíam do teto iluminavam uma multidão movimentada de homens que gritavam e corriam, entravam nas cabanas e delas saíam carregados de presuntos ou puxando vacas e asnos. Vinham da estrada romana e corriam pela ruazinha vazia, como um rio caudaloso e negro. A onda eriçada de paus e lanças passou por cima da granja dos Merlot, submergiu-a e continuou em direção de Monteloup. Nicolau ouviu sua mãe gritar. Soou um tiro de arma de fogo. Era o pai Merlot, que tivera tempo de despendurar seu velho 8
  • 9. mosquete e carregá-lo. Mas pouco depois o arrastaram até o quintal, como um saco, e o mataram a pauladas. Angélica viu uma mulher em camisa, que atravessava o pátio de uma das casinhas e procurava fugir; gritava e soluçava. Vários homens a perseguiam. A mulher tentava chegar ao bosque. Angélica e Nicolau retrocederam e, de mãos dadas, fugiram tropeçando nos espinheiros. Quando voltaram, fascinados a contragosto pelo incêndio e por aquele alarido uniforme que se elevava no meio da noite, viram que os perseguidores haviam alcançado a mulher e a arrastavam pela pradaria. —É Paulina — cochichou Nicolau. Apertados um contra o outro, por trás do tronco de um enorme carvalho, contemplavam arquejantes, com olhos esbugalhados, o horrível espetáculo. —Levaram nosso asno e nosso porco — disse ainda Nicolau. Chegou a aurora, fazendo esmaecer os fulgores do incêndio, que já se extinguia. Os bandidos não tinham incendiado as outras casinhas. A maior parte deles não se havia detido naquele povoado sem importância. Os homens haviam seguido para Monteloup. Os que se haviam encarregado de saquear as quatro casas já abandonavam o teatro de suas proezas. Viam-se suas roupas esfarrapadas, suas caras magras e sombreadas pelas barbas. Alguns usavam grandes chapéus de plumas, e um deles uma espécie de capacete que podia fazê-lo passar por militar. Mas a maior parte ia vestida com roupa sem forma nem cor. Envoltos na neblina da madrugada que subia dos pântanos, chamavam uns aos outros. Já não eram mais de quinze. Um pouco além da casa dos Merlot fizeram alto para verificar o botim. Por seus gestos e modo de discutir via-se que o achavam escasso: alguns lenços e lençóis encontrados nos baús, panelas, pães, queijos. Um deles mordia um presunto. Os animais roubados iam na frente. Os últimos saqueadores reuniram em dois ou três embrulhos os pobres objetos recolhidos e afastaram-se sem ao menos voltar a cabeça. Angélica e Nicolau tardaram a abandonar o refúgio das árvores. Já o sol brilhava e fazia cintilar o orvalho dos prados, quando se arriscaram a descer até o lugarejo agora estranhamente silencioso. Ao se aproximarem da granja dos Merlot, ouviram um choro de criança. —É meu irmãozinho — cochichou Nicolau. — Ele, pelo me nos, não morreu. Receando a presença de algum bandido retardatário, entraram silenciosamente no quintal. Iam de mãos dadas e detinham-se quase a cada passo. Deram primeiro com o pai Merlot, o nariz enterrado no estéreo. Nicolau inclinou-se e procurou levantar a cabeça de seu pai. —Responda, papai, o senhor está morto? Levantou-se. —Creio que está morto. Olhe como está branco, ele que era tão corado. Na casinhola, o garotinho se esganiçava. Sentado sobre o leito revolto, agitava as mãozinhas, assustado. Nicolau correu para ele e tomou-o nos braços. —Graças, Virgem Santa! O garoto não tem nada. Angélica, com os olhos arregalados, olhava para Francina. A moça achava-se estendida no solo, branca, com os olhos cerrados. Tinha a saia levantada até o ventre e o sangue lhe corria entre as pernas. —Nicolau — murmurou Angélica com voz estrangulada —, que... que lhe fizeram? Nicolau olhou e uma terrível expressão envelheceu-lhe o semblante. Voltou os olhos para a porta e rosnou: —Malditos, malditos! Com gesto brusco entregou o menino a Angélica. —Segure-o. Ajoelhou-se perto da irmã e desceu pudicamente a saia estraçalhada. — Francina, sou eu, Nicolau. Responda, você está morta? Vinham lamentos do estábulo próximo. Apareceu a mãe, gemendo e curvada. —É você, filho? Ah! meus pobres filhos, meus pobres filhos! Que desgraça! Levaram o asno e o porco, e nossa pequena economia de escudos. Bem que eu dizia ao meu homem que era preciso enterrá-los! —Dói muito, mamãe? —A mim pouco importa, filho. Sou mulher, já passei por outras. Mas minha Francina, a pobrezinha, que é tão sensível, são capazes de tê-la assassinado. 9
  • 10. Acalentava a filha nós braços robustos de camponesa e chorava. —Onde estão os outros? — perguntou Nicolau. Depois de prolongada busca terminaram por encontrar as três crianças, um menino e duas meninas, na ucha, onde se haviam escondido enquanto os salteadores, após roubarem o pão, se entre-tinham em violar sua mãe e sua irmã. Um vizinho veio saber notícias. Reuniram-se os infortunados habitantes do lugar para fazer a avaliação de suas desditas. Tinham de chorar somente dois mortos: o pai Merlot e um velho que também procurara usar seu mosquete. Os outros camponeses tinham sido amarrados a cadeiras, depois de terem sido esbordoados sem crueldade excessiva. Não haviam degolado nenhuma criança, e um dos meeiros tinha conseguido abrir a porta do estábulo para soltar suas vacas, que fugiram e sem dúvida seriam encontradas. Mas quanto tecido e quanta roupa foram roubados! Quantos vasos de estanho, que enfeitavam a lareira, haviam desaparecido! E os queijos, e os presuntos, e até aquele dinheiro, tão escasso, tão contado! Paulina continuava chorando e gritando. —Seis se aproveitaram de mim! —Cale-se! — disse brutalmente o pai. — Sei quem você é, e, como gosta de esconder-se com os rapazes nos matos, acho até que aproveitou. No entanto, a nossa vaca estava prenhe! Terei mais dificuldade para achá-la do que você para encontrar um amante! —Precisamos sair daqui — disse a mãe Merlot, que continuava com Francina desmaiada nos braços. — Talvez venham outros por aí. —Vamos para o bosque com os animais que sobraram. Já fizemos isso quando passaram os exércitos de Richelieu. —Vamos para Monteloup. —Para Monteloup! Com certeza eles já estão lá. ~ Vamos para o castelo — disse um. Todos aprovaram incontinenti. O instinto ancestral arrastava-os para a casa senhorial, em busca da proteção do amo, que, no decorrer dos séculos, tinha estendido sobre seus trabalhos a sombra de suas muralhas e de seu torreão. Angélica, que apertava a criança entre os braços, sentiu que o coração se lhe estreitava em um remorso indefinido. "Nosso pobre castelo", pensava, "está desmoronando. Como podemos agora proteger estes infelizes? Quem sabe se os bandidos não terão ido até lá? E não seria o velho Guilherme com a sua lança quem poderia impedi-los de entrar." —Vamos — disse em voz alta —, vamos para o castelo. Mas não precisamos ir pela estrada real, nem pelos atalhos dos campos. Se os bandidos estiverem emboscados neles, não poderemos aproximar-nos da entrada. Tudo o que podemos fazer é descer até os pântanos esgotados e chegar ao castelo pelo grande fosso. Há uma portinha que nunca se usa, mas eu sei como se abre. Não acrescentou que aquela portinhola meio escondida pelos escombros de um subterrâneo lhe tinha servido para fugir do castelo mais de uma vez, e que num dos calabouços que os atuais barões de Sancé não conheciam bem estava o esconderijo em que preparava plantas e filtros, como a bruxa Melusina. Os aldeões escutaram-na, confiantes. Alguns somente agora observavam sua presença, mas estavam tão acostumados a considerar Angélica como uma encarnação das fadas que sua aparição no mais negro de sua infelicidade não lhes causou grande assombro. Uma das mulheres tirou-lhe dos braços o garoto. E Angélica, livre de sua carga, conduziu o grupinho por um grande rodeio através dos pântanos, sob o sol escaldante, ao longo do promon-tório abrupto que antigamente havia dominado aquele golfo do Poitou, invadido pelas águas marinhas. Com o rosto sujo de pó e lama, animava os camponeses. Fê-los entrar pela estreita abertura da poterna abandonada. No fresco ambiente dos subterrâneos reúniu-os e deu-lhes ânimo, mas a obscuridade fez as crianças chorarem. —Calma, calma — soou, tranqüilizando-as, a voz de Angélica.— Logo estaremos na cozinha, e babá Fantina nos servirá a sopa. A evocação da ama Fantina animou a todos. 10
  • 11. Seguindo a filha do Barão de Sancé,-os camponeses, gemendo I e tropeçando, subiram as escadas meio desmoronadas e atravessa-1 ram as salas cheias de destroços, das quais fugiam os ratos. Angéb'l ca orientava-os sem vacilação. Era seu domínio. Quando chegaram ao grande vestíbulo, ruídos de vozes os inquietaram um momento. Mas Angélica, tal como os aldeões, não se atrevia a supor que o castelo houvesse sido atacado. Ao se aproximarem da cozinha, o cheiro da sopa e do vinho quente se tornou mais pronunciado. Com certeza havia muita gente por ali, mas não eram bandidos, pois o tom das conversas era baixo, comedido e até triste. Outros camponeses da aldeia e das fazendas vizinhas tinham vindo colocar-se sob a proteção das velhas muralhas em ruínas. Quando apareceram os recém-chegados, elevou-se um grito geral de pavor, pois foram tomados por bandoleiros, mas, ao ver Angélica, a ama correu ao seu encontro e apertou-a nos braços. —Meu tesouro! Você está viva! Graças, Senhor! Santa Radegunda! Santo Hilário! Obrigada! Pela primeira vez Angélica não respondeu ao ardoroso abraço. Acabava de guiar "sua" gente através dos pântanos. Horas inteiras havia tido atrás de si aquele rebanho lastimoso. Já não era uma criança! Quase com violência, desprendeu-se de entre os braços de Fantina Lozier. —Dê-lhes de comer — disse. Mais tarde, como em sonho, viu sua mãe, que, com os olhos cheios de lágrimas, lhe acariciava as faces. —Filha, quanta inquietação você nos causou! Pulquéria, consumida como uma vela, com sua acne inflamada pelas lágrimas, aproximou-se também, assim como seu pai e seu avô... Parecia a Angélica muito divertido aquele desfile de fantoches. Bebera um canecão de vinho quente e estava completamente embriagada, imersa num doce torpor. A seu redor as pessoas trocavam comentários sobre as peripécias da trágica noite: a invasão do povoado, as primeiras casas incendiadas, como haviam lançado o síndico pela janela do primeiro andar, que ele estava tão orgulhoso de haver construído havia pouco. Aqueles hereges haviam ainda invadido a pequena igreja, roubado os vasos sagrados e amarrado o cura com a criada sobre o próprio altar! Gente possessa do Demônio! Senão, como teriam podido inventar semelhantes coisas? Diante de Angélica uma velha acalentava nos braços sua neta, linda adolescente que tinha o rosto inchado de tanto chorar. A avó abanava a cabeça e repetia sem cessar, num misto de surpresa e horror: —O que fizeram com ela! O que fizeram com ela! É incrível!... Não falavam senão de mulheres violentadas, de homens espancados, de vacas e cabras roubadas. O sacristão havia segurado seu burro pelo rabo, enquanto os bandoleiros o puxavam pelas orelhas.' E quem gritava mais alto era o pobre animal! Mas muitos haviam conseguido fugir. Uns para os bosques, outros para os pântanos, a maior parte para o castelo. Havia lugar bastante para acolher o gado custosamente posto a salvo. Infelizmente, sua fuga tinha atraído na mesma direção alguns salteado-res e, apesar do mosquete do Sr. de Sancé, as coisas teriam podido acabar mal se ao velho Guilherme não houvesse ocorrido logo uma idéia genial. Puxando as correntes enferrujadas da ponte levadiça, tinha conseguido levantá-la. Como lobos cruéis mas medrosos, os bandidos tinham retrocedido diante do pobre fosso de água podre. Deu-se então um estranho espetáculo. Viu-se o velho Guilherme junto à poterna, dizendo impropérios em seu idioma, agitar o punho para as sombras onde desapareciam vultos andrajosos. De repente, um dos fugitivos parou e se pôs a retrucar. Houve entre eles um áspero diálogo, no meio da noite avermelhada pelo incêndio, naquela língua tudesca que fazia tremer. Ninguém soube ao certo o que Guilherme e seu compatriota disseram. O certo é que os bandidos não voltaram e ao amanhecer se haviam distanciado da aldeia. Todos consideravam Guilherme um herói, todos repousavam à sua sombra militar. O incidente demonstrava, em todo caso, que o bando, embora parecesse composto de mendigos camponeses ou de miseráveis das cidades, também tinha soldados vindos do norte, dispersados em virtude do tratado de paz de Vestfália. Havia de tudo naqueles exércitos que os príncipes recrutavam para pôr a serviço do rei: va-lões, italianos, flamengos, lorenses, espanhóis, alemães, todo um mundo que os pacíficos habitantes do Poitou não podiam sequer ; imaginar. Alguns chegaram a afirmar que entre os bandidos havia até um polaco, um daqueles selvagens que o Condottiere João de | Werth levara 11
  • 12. em outra época para a Picardia, a fim de degolar crian- . ças de peito. Tinham-no visto. De rosto amarelo, usava um gorro de pele e possuía, sem dúvida, grande virilidade, porque, ao ter- ! minar a jornada, todas as mulheres afirmavam ter sido suas vítimas. Reedificaram-se as casas incendiadas da aldeola, o que não foi grande tarefa. Barro misturado com palha e caniços formavam paredes bastante sólidas. Recolheram as messes que não foram saqueadas e a colheita foi boa, o que consolou a muitos. Só duas mocinhas, uma delas Francina, não puderam recuperar-se das violências sofridas. Tiveram grande febre e morreram. Dizia-se que de Niort haviam enviado alguns soldados à procura do bando, que parecia estar isolado e sem a menor disciplina. Assim, a incursão dos bandidos pelas terras dos barões de Sancé não alterou grandemente a vida rotineira do castelo. Ouviu-se o avô resmungar mais amiúde, recordando as infelicidades que havia trazido consigo a morte do bom Rei Henrique IV e a insubordinação dos protestantes. —Essas pessoas encarnam o espírito de destruição de um reino. Uma vez censurei o Sr. de Richelieu por mostrar-se tão duro, mas vejo que não o foi quanto devia. Angélica e Gontran, que naquele dia eram os únicos ouvintes da profissão de fé de seu avô, olharam-se com ar conivente. O honesto ancião estava completamente fora da realidade! Todos os netos adoravam o velho barão, mas raramente aceitavam suas idéias caducas. O menino, que já ia completar doze anos, atreveu-se a observar: —Esses bandoleiros, vovô, não eram huguenotes. Eram católicos, mas desertores de exércitos famintos, e estrangeiros a quem não haviam pago o soldo, conforme dizem, e também aldeões dos campos de batalha. —Então, não precisavam vir até aqui. Além disso, você não conseguirá convencer-me de que os protestantes não os ajudam. No meu tempo, o exército pagava mal às tropas, não nego, mas pagava pontualmente. Creia no que eu digo: toda esta desordem tem inspiração estrangeira, talvez inglesa ou holandesa. Entendem-se e agrupam-se, tanto mais que o Edito de Nantes foi demasiado in-dulgente para com eles, deixando-lhes não só o direito de professar o seu credo, mas ainda a igualdade de direitos cívicos... —Vovô — perguntou subitamente Angélica —, que direito é esse que deixaram aos protestantes? —Você é muito jovem para compreender, filhinha — disse o velho barão, e acrescentou: — Os direitos cívicos representam algo que não se pode tirar a ninguém sem que se perca a honra. —Então, não é dinheiro — disse a menina. O velho gentil-homem felicitou-a: —Muito bem, Angélica. Na verdade, você compreende as coisas bem demais para a sua idade. Mas parecia a Angélica que o assunto exigia mais explicações. —De maneira que, embora os bandidos nos saqueiem completamente e nos deixem nus, deixam-nos, contudo, nossos direitos cívicos? —Exatamente, minha filha — respondeu seu irmão. Mas havia ironia em sua voz, e Angélica perguntou a si mesma se ele não estaria troçando. Gontran era um rapaz de quem nunca se sabia o que pensar. Falava pouco e vivia muito só. Como não podia ter preceptor nem ir ao colégio, devia contentar-se, para seus estudos, com os rudi-mentos intelectuais que lhe ministravam o mestre-escola e o cura da aldeia. Freqüentemente se retirava para sua água-furtada a fim de triturar cochinilhas ou amassar argilas de cores diferentes para com elas executar estranhas composições, a que dava o nome de "quadros" ou "pinturas". Embora muito descuidado com a sua pessoa, como todas as crianças de Sancé, costumava reprovar Angélica por viver feito uma selvagem e não saber honrar a sua linhagem. —Você não é tão tola como parece — disse-lhe nesse dia, à guisa de cumprimento. CAPÍTULO III Os arrecadadores de impostos — A volta dos irmãos estudantes 12
  • 13. Após algum tempo, o velho nobre dirigiu a atenção para o pátio, de onde chegavam interpelações e gritos misturados com ca-carejos de galinhas assustadas. Depois ouviu-se o ruído de um galope e, afinal, exclamações mais violentas, nas quais se reconheciam os acentos de Guilherme. Era uma bela tarde de outono, e os demais moradores do castelo deviam estar ausentes. —Não tenham medo, meus filhos — dizia o avô. — Estão afugentando algum mendigo. Mas já Angélica havia descido a escada aos pulos e gritava: —Estão atacando Guilherme, querem maltratá-lo! Coxeando, o barão foi buscar um sabre enferrujado, e Gontran voltou armado de um chicote, dos que se utilizam para bater nos cães. Chegaram até a porta e viram o velho servidor empunhando a lança e Angélica a seu lado. O adversário não estava muito longe. Achava-se fora de seu alcance, do outro lado da ponte levadiça, mas ainda o defrontava. Era um moço de aspecto famulento e parecia furioso. Procurava, ao mesmo tempo, retomar o porte afetado e oficial. Gontran baixou o chicote e puxou seu avô para o interior da casa, cochichando: —E o cobrador de impostos. Já o afugentaram várias vezes... O funcionário hostilizado continuava a retroceder lentamente, mas sem dar as costas, e adquiria novo ânimo ante a hesitação dos reforços. Parou a distância respeitosa e, tirando do bolso um rolo de papel bastante amassado pela rixa, pôs-se a desenrolá-lo carinhosamente, suspirando. Depois, fazendo contorções, começou a ler a intimação segundo a qual o Barão de Sancé devia pagar sem demora a quantia de oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros, correspondente a impostos de meeiros atrasados, dízimos das rendas do senhor e imposto real, taxas pela cobertura de éguas, "direitos de pó" pelos rebanhos que transitaram pela estrada real e multa pelo atraso nos pagamentos. O velho nobre ficou vermelho de cólera. —Por acaso você pensa, patife, que um gentil-homem vai pagar só por ouvir esse aranzel do fisco, como se fosse um vilão qualquer? — gritou, exaltado. —O senhor sabe de sobra que o seu filho pagou até agora regularmente os tributos anuais — disse o homem, curvando a espinha. — Voltarei, pois, quando ele estiver aqui. Mas eu o previno: se amanhã, à mesma hora, pela quarta vez, não estiver aqui e não pagar, mando-lhe uma citação, e seu castelo e seus móveis serão vendidos por dívidas ao Tesouro Real. —Fora daqui, lacaio dos usurários do Estado! —Senhor barão, advirto-o de que sou um servidor juramentado da lei e que posso ser designado agente executivo. —Para a execução é preciso um julgamento — fulminou o velho fidalgo. —Os senhores terão o julgamento facilmente, acredite, se não pagarem... —Como quer que paguemos se não temos com quê? — exclamou Gontran, vendo que o barão se perturbava. — Já que o senhor é oficial de justiça, venha certificar-se de que os saqueadores nos levaram um garanhão, duas jumentas e quatro vacas, e que a maior parte do que reclama como dívida procede dos impostos dos meeiros de meu pai. Desejou até pagar por eles, pois esses pobres camponeses não podiam fazê-lo, mas ele mesmo nada deve. Além disso, por terem sido atacados pelos bandidos, nossos aldeòes sofreram ainda mais que nós, e não é hoje, precisamente depois deste saque, que meu pai está em situação de pagar essas contas... Aquela linguagem razoável apaziguou o agente do fisco muito mais que as injúrias do velho cavaleiro. Lançando olhares prudentes para o lado em que se encontrava Guilherme, aproximou-se um pouco e, em tom mais brando e quase compassivo, embora firme, explicou que ele não podia senão receber e transmitir as ordens da intendência fiscal. A seu ver, o único meio capaz de retardar o embargo seria o barão dirigir um pedido ao intendente geral do fisco, por intermédio do intendente provincial de Poitiers. —Aqui entre nós — acrescentou o oficial de justiça, provocando com isso uma careta de repugnância no velho senhor —, entre nós, digo ao senhor que nem mesmo meus chefes imediatos, como o procurador e o inspetor de arrecadações, serão capazes de lhes dar derrogação ou dispensa. No entanto, como são da nobreza, certamente conhecem as pessoas importantes. Então, devem agir dessa maneira, é um conselho de amigo. —Não serei eu que me orgulharei de citá-lo como amigo! — observou em tom acerbo o Barão de Ridoué. —Digo-lhe isto para que o senhor repita ao seu filho. A miséria é geral, podem crer. Pensam que me 13
  • 14. diverte andar por aí causando a todos a impressão de um fantasma e levando bordoada como se fosse um cão sarnento? Bem, boa tarde a todos vocês, e esqueçamos o incidente. Enfiou na cabeça o chapéu, e foi-se a capengar, observando com pena que a manga de seu dólmã se tinha rasgado na briga. Em sentido oposto, afastou-se, também claudicando, o velho barão. Acompanharam-no Gontran e Angélica, ambos silenciosos. O velho Guilherme, praguejando contra inimigos imaginários, devolveu sua antiga lança ao depósito de relíquias históricas. De volta ao salão, o avô pôs-se a andar de um lado para outro, e durante muito tempo seus netos não ousaram falar. Mas, na penumbra do anoitecer, ergueu-se a voz da menina. —Diz-me, vovô, se os bandidos nos deixaram os direitos cívicos, esse bom homem agourento não os levou agora? —Vai para junto de tua mãe! — disse o ancião com voz trêmula. Tornou a sentar-se em sua grande e velha poltrona estofada e não mais falou. Depois de fazer uma reverência, os netos se retiraram. Quando Armando de Sancé soube da recepção que tinham feito ao arrecadador de impostos, suspirou e cocou demoradamente a grisalha mosca que usava, à maneira de Luís XIII. Angélica amava com afeição um tanto protetora aquele pai bondoso e tranqüilo, cujas dificuldades cotidianas lhe haviam cavado rugas profundas na fronte queimada pelo sol. Para criar sua numerosa prole, aquele filho de fidalgo pobre tivera de renunciar a todos os prazeres da sua condição social. Raramente viajava e até deixara de caçar, ao contrário dos fidalgotes vizinhos, não mais ricos do que ele, que se consolavam de sua miséria empregando boa parte da vida a perseguir lebres e javalis. Armando de Sancé dedicava todo o seu tempo ao trato de suas minguadas culturas. Não se vestia muito melhor que seus camponeses e, tanto quanto eles, exalava forte odor de estéreo e de cavalos. Amava seus filhos, que o distraíam, e orgulhava-se deles. Representavam sua melhor razão de viver. Para ele, o mais importante no mundo eram seus filhos. Depois, os seus muares. Durante algum tempo o gentil-homem sonhara estabelecer pequena criação dessas bestas de carga, menos delicadas que os cavalos e mais resistentes que os asnos. Mas agora os bandidos haviam levado seu melhor garanhão e duas jumentas. Era um desastre, e ele quase se dispunha a vender os muares restantes e um pedaço de terra que reservava para aquele fim. No dia seguinte_ao da visita do agente fiscal, o Barão Armando aparou cuidadosamente uma pena de ganso e acomodou-se ante a escrivaninha a fim de redigir uma súplica ao rei, para que o isentasse dos impostos anuais. Expunha naquela carta sua pobreza de gentil-homem. Primeiro, desculpava-se de não poder apresentar senão nove filhos vivos, mas outros nasceriam, sem dúvida, porque "tanto ele como sua mulher ainda eram jovens e os tinham de boa vontade". Acrescentou que sustentava um pai inválido, sem pensão, que tinha alcançado o posto de coronel sob Luís XIII. Que ele próprio tinha sido capitão e indicado para posto mais elevado, mas tivera de abandonar o serviço do rei porque seu soldo de oficial de artilharia, mil e setecentas libras por ano, "não lhe proporcionava meios para manter-se no serviço". Também salientou que sustentava duas irmãs idosas, as quais "não puderam encontrar marido nem entrar para um convento por falta de dote, e não podiam senão consumir-se em tarefas humildes"; que tinha quatro criados, entre eles um velho militar sem pensão, necessário ao seu serviço. Os dois filhos mais velhos estavam no colégio e custava-lhe quinhentas libras somente a sua educação. Também era mister enviar para o convento uma das filhas, mas exigiam trezentas libras. Terminava dizendo que pagava havia anos os impostos de seus meeiros para conservá-los na terra, e que por isso tudo se encontrava em débito para com o fisco, que lhe reclamava oitocentas e setenta e cinco libras, dezenove soldos e onze dinheiros só para aquele ano. Seu rendimento total alcançava apenas quatro mil libras por ano, tendo de alimentar dezenove pessoas e conservar sua posição de gentil-homem, num momento em que, por cúmulo da infelicidade, os bandidos tinham saqueado e incendiado suas terras, matando alguns de seus meeiros e deixando os sobreviventes na maior penúria. Pedia,-para concluir, confiante na bondade real, perdão para os impostos reclamados e uma ajuda ou adiantamento de pelo menos mil libras, e solicitava "como graça do rei" que, se fosse preparada alguma expedição à América ou às índias, empregasse como alferes seu "cavaleiro", seu 14
  • 15. primogênito, que estudava lógica com os agostinianos, aos quais, acrescentava, devia um ano de pensão. Aceitaria, por sua parte, qualquer cargo compatível com sua condição de nobre, para poder manter sua gente, porque suas terras, ainda que as vendesse, não lhe permitiriam... Após secar com areia tão extensa missiva, que lhe tinha custado algumas horas de trabalho, Armando de Sancé escreveu ainda umas palavras dirigidas a seu protetor e primo, o Sr. Marquês du Plessis de Bellière, a quem incumbia de encaminhar sua petição ao próprio rei ou à rainha-mãe, acrescentando recomendações capazes de a fazer aceitar favoravelmente. Terminava com esta gentileza: "Desejo, senhor, tornar a vê-lo brevemente e achar ocasião, nesta província, de vos ser útil; seja oferecendo-lhe belas mulas de carga, seja ofertando-lhe frutas, castanhas, queijos e boiões de coalhada para a sua mesa". Algumas semanas depois, o pobre Barão Armando de Sancé acrescentaria novo dissabor à sua extensa lista. Uma noite, em que se anunciavam as primeiras geadas, ouviu-se o galope de um cavalo na estrada, e logo depois na ponte levadiça, que tinha recuperado seus adornos de perus. Latiram os cães no pátio. Angélica, que tia Pulquéria conseguira reter em seu quarto, para obrigá-la a fazer um trabalho de agulha, precipitou-se para a janela. Avistou um cavalo do qual se apeavam dois ginetes altos e magros, vestidos de negro, enquanto uma mula carregada de malas aparecia na trilha, conduzida por um pequeno camponês. — Titia! Hortênsia! — gritou. — Venham ver. Acho que são nossos irmãos Josselino e Raimundo. As duas meninas e a velha demoiselle desceram apressadamente e chegaram ao salão no momento em que os estudantes saudavam o avô e a tia Joana. Acudiram os domésticos de todos os lados. Alguns foram buscar o barão no campo e a baronesa na horta. Os adolescentes respondiam secamente às ruidosas boas-vindas. Tinham quinze e dezesseis anos, mas freqüentemente os supunham gêmeos, porque tinham a mesma estatura e eram muito parecidos. Possuíam ambos a mesma tez mate, os olhos pardos e os cabelos negros e rígidos, que lhes caíam sobre o colarinho branco, amarrotado é sujo do uniforme. Somente se distinguiam pela expressão. Nas feições de Josselino havia mais franqueza; nas de Raimundo, mais reserva. Enquanto respondiam por monossílabos às perguntas do avô, a ama, felicíssima, estendia sobre a mesa uma bela toalha e trazia terrinas de patê, pão, manteiga e uma panelada das primeiras castanhas. Brilharam os olhos dos adolescentes. Sem mais espera, sentaram-se à mesa e comeram com tal sofreguidão e incivilidade que encheram Angélica de espanto. Notou esta, contudo, que eles estavam magros e pálidos e suas roupas de sarja preta, puídas nos joelhos e nos cotovelos. Baixavam os olhos quando falavam. Nenhum deles parecia reconhecê-la e, contudo, ela recordava que antigamente havia ajudado Josselino a desaninhar passarinhos, como agora Dionísio a ajudava. Raimundo trazia pendurado ao cinto um chifre oco. Ela perguntou-lhe o que era. —É para a tinta — respondeu com arrogância. —Eu joguei fora o meu — disse Josselino. O pai e a mãe chegaram empunhando tochas. O barão, não obstante sua alegria, estava um tanto inquieto. —Por que motivo estão aqui, meus rapazes? No verão não vieram. Não é curioso que lhes dêem férias no início do inverno? —Não viemos no verão porque não tínhamos um níquel para alugar um cavalo, nem mesmo para tomar a diligência que vai de Poitiers a Niort — explicou Raimundo. —E se agora estamos aqui — continuou Josselino —, não é porque estejamos mais ricos...— ...mas porque os padres nos puseram no olho da rua — concluiu Raimundo. Houve um silêncio contrafeito. —Por São Dionísio! — exclamou o avô. — Que falha cometeram, senhores, para lhes fazerem tão grande afronta? —Nenhuma. E que já faz dois anos que os agostinianos deixaram de receber a nossa pensão. Deram- 15
  • 16. nos a entender que outros estudantes, cujos pais eram mais generosos, precisavam dos nos- sos lugares... O Barão Armando pôs-se a caminhar de um lado para outro, o que era indício de grande agitação interior. —Mas isso não é possível. Se não fizeram nada de mau, os padres não podem pô-los na rua sem mais nem menos. Vocês são gentis-homens! E os padres sabem disso! Josselino, o mais velho, tomou um ar malicioso. —É verdade, eles o sabem de sobra, e posso repetir-lhes as palavras que o administrador nos deu como provisão de viagem. Disse que os nobres eram os piores pagadores, e que, se não tinham dinheiro, podiam dispensar o latim e as ciências. O velho barão ergueu altivamente o busto. —Custa-me crer que diga a verdade. Lembre-se de que a Igreja e a nobreza formam um todo e que os estudantes representam a futura flor do Estado. Os bons padres o sabem melhor que ninguém! Foi Raimundo, o segundo, que estava destinado ao sacerdócio, quem replicou, sem tirar os olhos do chão: —Os padres ensinaram-nos que Deus teria os seus eleitos, e talvez não nos tenha julgado dignos... —Feche o seu armazém de bobagens, Raimundo! — interveio o irmão. — Asseguro-lhe que não é o momento de o abrir. Se quer ser monge mendicante, vá. Mas eu sou o primogênito e estou de acordo com o nosso avô: a Igreja deve-nos consideração, a nós, os nobres! Agora, se prefere os filhos dos burgueses e negociantes, bom proveito lhe façam. Terá escolhido sua perdição e afundará! Os dois barões protestaram a uma voz: —Josselino, você não tem o direito de blasfemar dessa maneira! —Não estou blasfemando. Limito-me a consignar o que vejo. Na aula de lógica, da qual eu era o mais jovem e o segundo entre trinta alunos, há exatamente vinte e cinco filhos de burgueses e funcionários que pagam pontualmente, e cinco gentis-homens dos quais somente dois não se atrasam... Armando de Sancé procurou consolar-se: —Há, então, mais dois filhos de nobres que mandaram embora com vocês? —Nem tanto assim. Os outros pais que não pagam são pessoas altamente colocadas e os agostinianos têm medo deles. —Proíbo-lhe de falar assim dos seus educadores — disse o Barão Armando, enquanto seu velho pai resmungava como para si mesmo: —Felizmente o rei morreu e não pode tomar conhecimento de semelhantes coisas! —Sim, felizmente, vovô — disse Josselino em tom de mofa. — E foi até um bravo monge que assassinou Henrique IV. —Cale-se, Josselino! — disse prontamente Angélica. — As palavras não são o seu forte e você parece um sapo quando fala. Além disso, quem morreu assassinado por um monge não foi Henrique IV, mas Henrique III. O adolescente olhou com surpresa para a menina de cabelos ane-lados, que o apostrofava calmamente. —Ah, falou a rã, a princesa dos brejos! "Marquesa dos Anjos"... E pensar, maninha, que até me esqueci de cumprimentá-la! —Por que me chama de rã? —Porque me chamou de sapo. Além disso, você não continua gostando de desaparecer entre a erva e os caniços dos pântanos? Ou acaso se tornou formalista e orgulhosa como Hortênsia? —Creio que não — disse Angélica modestamente. Sua intervenção acalmara um pouco o ambiente. Os dois irmãos tinham acabado de comer e a ama estava tirando a mesa. Mesmo assim, a atmosfera continuava carregada. Confusamen-te, cada qual procurava uma solução para esse novo golpe da adversidade. Em meio ao silêncio, ouviu-se berrar o caçula. A mãe, as tias e até Gontran valeram-se do pretexto para "ir ver". Mas Angélica ficou entre os dois barões e seus irmãos recém-vindos da cidade em tão triste situação. 16
  • 17. Indagava a si mesma se desta vez iam perder a honra. Tinha grande desejo de perguntá-lo, mas não se atrevia. Seus irmãos inspiravam-lhe algo que se parecia vagamente com uma piedade des- denhosa. O velho Lützen, que estava ausente no momento em que chegaram os dois jovens, voltou trazendo mais tochas em homenagem aos viajantes. Derramou um pouco de cera ao beijar canhestramente o mais velho. O segundo evitou com algum desdém a rude carícia de boas-vindas. Mas, sem se perturbar, o velho soldado não vacilou em proclamar seu ponto de vista: —Já era tempo de voltarem ao lar. Em primeiro lugar, de que lhes serve remoer o latim e quase não saber escrever sua própria língua? Quando Fantina me disse que os jovens senhores voltavam definitivamente, disse logo para comigo que o Sr. Josselino podia afinal ir para o mar... —Sargento Lützen, será necessário recordar-lhe a antiga disciplina? — interrompeu bruscamente o velho barão. Guilherme não insistiu e manteve-se calado. Angélica ficou surpreendida com o tom arrogante e alterado de seu avô. Este virou-se para o primogênito: —Espero, Josselino, que você tenha esquecido seus planos de criança de se tornar navegante. —Por que haveria de esquecê-los, vovô? Ao contrário, parece-me que agora é que não há outra solução para mim. —Enquanto eu viver, você não será marinheiro. Qualquer coisa, mas não isso! — E o ancião bateu com a bengala nas lajes rachadas do piso. Josselino parecia aterrado pela brusca teimosia de seu avô a respeito de um projeto que acariciava no fundo do coração e que-o havia ajudado a tolerar sem grande ressentimento a expulsão de que fora vítima. "Acabaram-se os padres-nossos e as recitações de latim", havia pensado. "Agora já sou um homem e embarcarei em um navio do rei." Armando de Sancé procurou intervir. —Meu pai — disse —, por que essa intransigência? Talvez fosse uma solução tão boa quanto qualquer outra. Digo-lhe, aliás, que, na súplica por mim endereçada ao rei há pouco, pedi-lhe, entre outras coisas, que facilitasse o embarque eventual de meu primo gênito em um corsário ou navio de guerra. Mas o velho barão agitava-se com raiva. Nunca Angélica o vira tão encolerizado, nem sequer no dia da discussão com o arrecadador de impostos. —Não gosto das pessoas que sentem os pés arderem no chão de seus avós. Para além dos mares nunca encontram montes nem maravilhas, mas selvagens inteiramente nus, com os braços tatua-dos. O primogênito de um nobre deve servir nos exércitos do rei. Isso é tudo. —Com muito prazer servirei ao rei, mas no mar — retrucou o moço. —Josselino tem dezesseis anos. Já é tempo, afinal, de que escolha seu destino — disse seu pai, com alguma hesitação. Uma expressão de dor anuviou a face encarquilhada que a curta barba branca emoldurava. O velho ergueu a mão. —É verdade que outros, na família, escolheram seu destino. Causar-me-á uma decepção você também, meu filho? — acrescentou, em tom de grande tristeza. —Longe de mim a idéia de trazer-lhe à memória recordações dolorosas, meu pai — escusou-se o Barão Armando. — Eu nunca pensei em exilar-me e não encontro palavras para exprimir o meu apego às nossas terras do Poitou. Mas lembro-me de quão dura e precária era a minha situação no exército. Ainda sendo nobre, não se consegue chegar aos postos superiores sem dinheiro. Estava crivado de dívidas e, às vezes, para manter-me, tive de vender tudo o que possuía: o cavalo, a tenda, as armas; cheguei a alugar meu próprio criado. Recorda-se o senhor de todas as boas terras I que teve de transformar em dinheiro para manter-me no serviço? I Angélica seguia a conversação com muito interesse. Jamais vira I marinheiros, mas era de uma região aonde chegam, pelos vales do I Sèvre e da Vendée, os grandes chamados do oceano. Na costa de I La Rochelle a Nantes, pelos Sables d'01onne, sabia haver barcos I de pescadores que partiam para terras longínquas, onde encontra-1 vam homens vermelhos como o fogo ou listrados como filhotes I de javali. Contava-se até que um marinheiro bretão, para o lado I de Saint-Malo, havia desembarcado na França selvagens em cujal cabeça cresciam penas como as dos pássaros. 17
  • 18. Ah! se ela fosse homem, não teria pedido o conselho de seu avô!-1 Teria já partido, levando para o Novo Mundo todos os seus afl'l jinhos. No dia seguinte de manhã, Angélica, que estava no pátio, viu que um pequeno camponês entregava ao barão um papel amarrotado. —Éo Intendente Molines; pede-me que passe por sua casa. Creio que não estarei de volta para o almoço — disse o barão, mandando por acenos que o palafreneiro arreasse o cavalo. A Sra. de Sancé, que, com um chapéu de palha colocado sobre o lenço que lhe cobria a cabeça, se preparava para ir à horta, contraiu os lábios. —Não são estranhos — suspirou — os tempos em que vivemos? Tolerar que um vizinho plebeu, um intendente huguenote, se permita ingenuamente convocá-lo, a você, que é um descendente autêntico de Filipe Augusto? Pergunto-me que honestos negócios pode ter de tratar um nobre gentil-homem com o administrador de um castelo vizinho. Com certeza trata-se novamente de muares... O barão não respondeu e sua mulher afastou-se, abanando a cabeça. Angélica, durante aquela cena, entrara na cozinha, onde sabia que se encontravam seus sapatos e seu manto. Depois juntou-se ao pai, na estrebaria. —Posso acompanhá-lo, pai? — perguntou com seu mais gracioso sorriso. O barão não pôde resistir e fê-la montar atravessada na sela. Angélica era sua filha predileta. Achava-a muito bonita e às vezes sonhava que ela se casaria com um duque. CAPÍTULO IV Estranho oferecimento ao pai de Angélica Aquele dia outonal estava claro, e a floresta muito próxima, ainda não despojada de suas folhas, estendia para o céu azul suas ramagens cor de ferrugem. Ao passar em frente à grade do Castelo do Plessis-Bellière, Angélica curvou-se, procurando enxergar, no fim da aléia de castanheiros, a branca visão do encantador edifício que se refletia no jjflago como uma nuvem de sonho. Tudo estava em silêncio, e o castelo, em estilo renascentista, que os donos haviam abandonado para morar na corte, parecia dormir no mistério de seu parque e de seus jardins. As corças do bosque de Nieul, que lhe ficava próximo, pastavam nas alamedas desertas. A habitação do administrador Molines ficava meia légua além, em uma das entradas do parque. Belo pavilhão de tijolos vermelhos, coberto de ardósia azul, parecia, em sua solidez burguesa, o guardião prudente de uma construção leve, cuja graça italiana continuava assombrando os habitantes da região, acostumados aos castelos medievais. O administrador era a imagem viva de sua casa. Austero e ricaço, cônscio de seus direitos e de seu papel, era quem de fato parecia o proprietário daquele vasto domínio do Plessis, cujo dono estava perpetuamente fora. Uma ou outra vez, no outono para as caçadas ou na primavera para colher os lírios-do-vale, uma nuvem de senhores e senhoras descia sobre o Plessis, com seus co-ches, seus cavalos, seus lebréus e seus músicos. Durante alguns dias havia uma série de festas e diversões que enlouqueciam um pouco os fidalgotes da vizinhança, convidados para alvo de zombarias. Depois, toda aquela gente regressava a Paris e a mansão recaía em seu silêncio sob a égide do severo intendente. Ao ruído dos cascos do cavalo, Molines avançou pelo pátio de sua casa e inclinou-se várias vezes com uma flexibilidade que não lhe exigia esforço, pois fazia parte de suas funções. Angélica, que sabia como era duro e arrogante aquele homem, não apreciava aquela excessiva cortesia, mas o Barão Armando não disfarçava o seu contentamento. —Esta manhã tinha tempo de sobra e não achei conveniente fazê-lo esperar, Sr. Molines. —Agradeço-lhe, senhor barão. Receava que lhe tivesse parecido descortês o convite por intermédio de um criado. —Não me ofendi. Sei que o senhor evita vir a minha residência por causa de meu pai, que insiste em considerá-lo um perigoso huguenote. —O senhor barão tem o espírito muito arguto. Realmente, não queria causar desgostos ao Sr. de Ridoué, nem à senhora baronesa, que é muito devota. Prefiro, pois, falar-lhe em minha casa e espero que o senhor me dê a honra de partilhar de nossa mesa, bem como sua filhinha. —Já não sou uma criança — disse Angélica com vivacidade. — Tenho dez anos e meio, e em nossa 18
  • 19. casa vieram depois de mim Madelon, Dionísio, Maria Inês, Alberto e o bebê que acaba de nascer. —Peço à Srta. Angélica que me desculpe. Ser a mais velha exige, com efeito, juízo e maturidade de espírito. Muito feliz eu seria se minha pequena Berta freqüentasse a sua casa, porque, ai de mim! as religiosas de seu convento me afirmam que é uma cabeça de avelã, donde não sairá grande coisa. —O senhor exagera, Sr. Molines — protestou cortesmente o Barão Armando. "Desta vez sou da mesma opinião de Molines", pensou Angélica, que detestava a filha do intendente, pequena trigueira e sonsa. Em relação ao intendente, seus sentimentos eram mais indecisos. Embora o achasse desagradável, sentia por ele certa admiração, baseada sem dúvida no aspecto confortável de sua pessoa e de sua casa. As roupas do intendente, sempre escuras, eram de belo pano, e deviam ser dadas ou vendidas antes que nelas se percebesse o menor sinal de desgaste. Usava sapatos com fivela e tacão bastante alto, segundo a nova moda. Em sua casa comia-se maravilhosamente. O narizinho de Angélica estremeceu quando penetraram na primeira sala, lajeada e reluzente de limpeza, que dava para a cozinha. A Sra. Molines mergulhou em suas saias, numa reverência profunda, e em seguida voltou aos seus bolos. O intendente conduziu seus convidados a um pequeno gabinete, para onde mandou trazer água fresca e uma garrafa de vinho. —Gosto muito deste vinho — disse ele, após erguer o copo. — É produto de uma colina que esteve muito tempo inculta. Graças a cuidados especiais, pude vindimá-la no outono passado. Os vinhos do Poitou não se comparam com os do Loire, mas são excelentes. Depois de uma pequena pausa, acrescentou: —Não seria demais repetir-lhe, senhor, quanto estou feliz por haver atendido pessoalmente ao meu chamado. Para mim, isso é sinal de que o negócio em que estou pensando tem probabilidades de realizar-se. —Em suma, o senhor fez comigo uma experiência. —Rogo ao senhor barão que não me leve a mal. Não sou homem de elevada educação, pois recebi apenas uma instrução de aldeia. Mas confesso-lhe que o orgulho de alguns nobres nunca me pareceu indício de inteligência. E para tratar de negócios, por modestos que sejam, é preciso inteligência. O gentil-homem camponês recostou-se na poltrona estofada e passou a observar com curiosidade o intendente. Estava um tanto ansioso pelo que pudesse propor-lhe aquele vizinho cuja reputação não era das melhores. Era tido por muito rico. No princípio, tinha-se mostrado duro com os camponeses e com os rendeiros, mas nos últimos anos esforçava-se por ser amável até com os aldeões mais pobres. Pouco se sabia acerca das causas de tal mudança e de tão insólita bondade. Os camponeses desconfiavam, mas, como agora se mostrava tratável a respeito das contribuições que o castelo exigia em nome do rei e do marquês, olhavam-no com respeito. Os maliciosos insinuavam que ele procedia assim para encher de dívidas o seu amo sempre ausente. Quanto à marquesa e seu filho Filipe, não se interessavam pelas terras mais que o próprio marquês. —Se o que dizem é verdade, o senhor está simplesmente a ponto de tomar por sua conta todo o domínio do Plessis — disse Armando de Sancé um tanto brutalmente. —Pura calúnia, senhor barão. Não só me empenho em servir com lealdade o senhor marquês, como não vejo nenhuma vantagem em semelhante aquisição. Para acalmar seus escrúpulos, confiar Ihe-ei, embora não traia nenhum segredo, que esta propriedade já está há muito hipotecada! —Não me proponha que a compre. Não tenho meios para tanto... —Longe de mim tal pensamento, senhor barão... Um pouco de vinho? Angélica, a quem a conversa não interessava, escapou silenciosamente do gabinete e voltou para a grande sala, onde a Sra. Moli-nes se ocupava em enrolar a massa de uma enorme torta. Sorriu para a menina e estendeu-lhe uma caixa que exalava delicioso aroma. —Tome, querida, coma isto. E angélica confeitada. Tem o seu nome. Preparo-a eu mesma com o belo açúcar branco. E melhor que a dos padres da abadia, que a fazem com açúcar mascavo. Como querem que os pasteleiros de Paris apreciem esse condimento, se perdeu todo o seu sabor por ser fervido grosseiramente nos enormes caldeirões mal lavados de suas sopas e morcelas? 19
  • 20. Ouvindo-a com atenção, Angélica mordia com prazer os finos talos, pegajosos e verdes. Então era naquilo que se convertiam, depois de cortadas, aquelas grandes e fortes plantas do brejo, cujo aroma, no estado natural, era tão pronunciado! Olhava em redor com admiração. Os móveis rebrilhavam. A um canto havia um relógio, essa invenção que seu avô dizia ser obra do Diabo. Para vê-lo melhor e ouvir seu ruído, aproximou-se do gabinete onde estavam conversando os dois homens. Ouviu seu pai, que dizia: —Por São Dionísio, Molines, o senhor me desconcerta! Contam muitas coisas a seu respeito, mas, afinal, todo mundo está de acordo em reconhecer no senhor uma forte personalidade e um espírito penetrante. E agora, por seus lábios, fico sabendo que cultiva as mais incríveis utopias. —Em que lhe parece tão pouco razoável o que acabo de expor, senhor barão? —Veja bem. O senhor sabe que me interesso por muares e que consegui por cruzamento uma belíssima raça, e me propõe que intensifique a criação, ficando o senhor encarregado de dar escoamento ao produto. Tudo isso está muito bem. Mas não o entendo e quando pensa em um contrato de longa duração com... a Espanha. Meu amigo... estamos em guerra com a Espanha! —A guerra não durará sempre, senhor barão. —Assim o esperamos. Mas não se pode fundar um compromisso sobre uma esperança desse gênero. O intendente esboçou um sorriso que o nobre arruinado não percebeu. Este continuou com veemência: — Como quer comerciar com uma nação que está em guerra conosco? Em primeiro lugar, está proibido, e muito justamente, porque a Espanha é um país inimigo. Além disso, as fronteiras estão fechadas e as comunicações e as portagens vigiadas. Quero acreditar que fornecer muares ao inimigo não seja tão grave como fornecer-lhe armas, principalmente porque as hostilidades não se desenrolam aqui, mas em território estrangeiro. Para concluir: tenho muito poucos animais para que valha a pena comerciar com eles. Custaria muito caro e vários anos de trabalho. Meus recursos não me permitem essa experiência. Por amor-próprio não acrescentou que estava prestes a liquidar seu plantei. — O senhor barão me fará a fineza de considerar a circunstância de que já possui quatro garanhões excepcionais e que lhe seria muito mais fácil que a mim conseguir muitos outros entre os nobres das redondezas. Quanto às jumentas, podem-se encontrar centenas delas a dez ou vinte libras por cabeça. Um pequeno trabalho adicional de drenagem dos pântanos pode melhorar os pastos, por que as suas mulas de tiro são muito rústicas. Creio que com vinte mil libras poderíamos levar a sério este negócio, que começaria a dar resultados daqui a três ou quatro anos. O pobre barão parecia tomado de vertigem. — Por São Dionísio, o senhor vê as coisas com excessivo otimismo! Vinte mil libras! Acredita serem tão preciosos meus pobres muares de que todo mundo se ri abertamente? Vinte mil libras! Não será certamente o senhor quem me adiantará essa quantia. —E por que não? — disse calmamente Molines. O barão encarou-o com espanto. — Seria uma loucura da sua parte, Molines! Apresso-me em dizer-lhe que não tenho nenhum fiador. — Contentar-me-ei com um simples contrato de sociedade em partes iguais e uma hipoteca sobre a criação, mas o faríamos a título privado e secreto em Paris. — Se o senhor quer saber, receio não ter os meios necessários, e por muito tempo, para ir à capital. À primeira vista, sua proposta me parece perturbadora e arriscada, e gostaria de consultar previamente alguns amigos... —Nesse caso, senhor barão, nada feito. Porque a chave do nos so êxito está no segredo absoluto. Sem isto, nada há que fazer. —Mas não posso atirar-me, sem pedir conselhos, a um negócio que, além do mais, me parece contrário aos interesses do meu próprio país! —Que é também o meu, senhor barão... —Ninguém o diria, Molines! —Então não falemos mais nisto, senhor barão. Vejo agora que me enganei. Diante dos seus excepcionais resultados, supus que o senhor fosse o único capaz de estabelecer um grande plantei, e sob seu nome, nestas terras. O barão sentiu-se justamente lisonjeado. —Essa não é a questão... 20
  • 21. —Então, permita-me o senhor barão observar-lhe quão próxima se acha essa questão da que o preocupa, isto é, o cuidado de instalar condignamente sua numerosa família... —Mereceria uma chicotada, Molines, porque estes são assuntos que não lhe dizem respeito! —Seja como deseja, senhor barão. Entretanto, embora meus recursos sejam mais modestos do que alguns pensam, tinha cogitado de acrescentar imediatamente — a título de adiantamento sobre nosso futuro negócio, naturalmente — um empréstimo de soma igual: vinte mil libras, que lhe permitiriam dedicar-se a sua propriedade sem cuidados excessivamente fatigantes acerca de seus filhos. Sei por experiência própria que os trabalhos não caminham muito rápido quando se tem o espírito distraído pela inquietação. —E quando o fisco o aperta — disse o barão, um tanto agitado. —Para que esses empréstimos entre nós não pareçam suspeitos, penso que não teríamos nenhum interesse em divulgar nosso acordo. Insisto em que, qualquer que seja sua decisão, não repita a ninguém nossa conversa. —Entendo-o perfeitamente. Mas deve compreender que minha mulher deve ser sabedora da proposta que o senhor acaba de fazer-me. Trata-se do futuro de nossos dez filhos. —Desculpe-me o senhor barão por lhe fazer essa indiscreta pergunta, mas será a senhora baronesa capaz de silenciar? Nunca ouvi dizer que uma mulher soubesse guardar um segredo. —Minha mulher tem fama de falar pouco. Além do mais, não temos relações com ninguém. Se eu lhe pedir, não falará. Nesse momento o intendente viu a ponta do nariz de Angélica, que, apoiada na ombreira da porta, os escutava sem procurar esconder-se. O barão, voltando-se, viu-a também e franziu o sobrolho. —Venha aqui, Angélica — disse secamente. — Creio que você está começando a adquirir o mau hábito de escutar atrás das portas. Aparece sempre nos momentos inoportunos e não se percebe a sua chegada. Essas maneiras são deploráveis. Molines fixava na pequena um olhar penetrante, mas não parecia tão contrariado quanto o barão. —Os camponeses dizem que é uma fada — comentou sorrindo. Ela se aproximou sem se alterar. —Você ouviu nossa conversa? — perguntou o barão. —Ouvi, meu pai! Molines disse que Josselino poderia ir para o exército e Hortensia para o convento, se o senhor produzisse muitos muares. —Você tem uma curiosa maneira de sintetizar as coisas. Agora, escute-me. Vai prometer-me não contar esta história a ninguém. Angélica levantou para eles seus olhos verdes. —Posso prometer... Mas que é que ganho? O administrador sufocou o riso. —Angélica! — exclamou o pai com assombro e decepção. Molines foi quem respondeu: — Comece por provar-nos sua discrição, Srta. Angélica. Se, como espero, se realizar a nossa sociedade com o senhor barão seu pai, será necessário esperar que o negócio prospere sem dificuldade, para o que é preciso que não se divulgue nada de nossos projetos. Então, como recompensa, dar-lhe- emos um marido... Angélica fez um muxoxo, pareceu refletir, e disse: — Está bem. Prometo. Em seguida retirou-se. Na cozinha, a Sra. Molines, afastando as criadas, colocou ela mesma no forno sua torta coberta de creme e cerejas. — Sra. Molines, vamos comer logo? — perguntou Angélica. — Ainda não, querida. Se você está com muita fome, eu lhe darei uma fatia de pão com manteiga. — Não é isso, mas eu queria saber se tenho tempo para ir correndo até o Plessis. — Claro que sim. Mandarei um garoto chamá-la quando a mesa estiver posta. Angélica saiu correndo, e, numa curva da primeira aléia, tirou os sapatos e escondeu-os debaixo de uma pedra, para apanhá-los na volta. Depois, correu de novo, mais rápida que uma gazela. O bosque recendia a cogumelos e musgo, e uma chuva recente havia deixado poças aqui e acolá. Angélica transpunha-as de um salto. Estava feliz. O Sr. Molines havia-lhe prometido um marido. Não tinha certeza de ser um presente importante. Que faria com ele?... Em todo caso, se fosse tão agradável como Nicolau, seria um com- panheiro sempre disponível para ir pescar caranguejos. 21
  • 22. Viu aparecer no fim da aléia o perfil do castelo, sobressaindo em branco puro sobre o esmalte azul do céu. Certamente, o Castelo do Plessis-Bellière era uma casa de conto de fadas, pois nenhum outro se lhe assemelhava na região. Todas as moradias nobres das redondezas eram como Monteloup, cinzentas, cheias de musgos, compactas. Aqui, no século anterior, um artista italiano havia multiplicado janelas, trapeiras e pórticos. Uma ponte levadiça em miniatura atravessava os fossos cheios de nenúfares. As torrinhas dos ângulos eram apenas adornos. Todavia, as linhas do edifício eram simples. Nada existia de pesado naqueles arcos, naquelas abóbadas flexíveis, mas uma graça natural de plantas ou guirlandas. Só, em cima do pórtico principal, um escudo com uma quimera que estirava a língua flamígera recordava a decoração mais rebuscada da Idade Média. Angélica, com surpreendente destreza, subiu até o terraço e, agarrando-se aos ornamentos das janelas e balcões, chegou até o primeiro andar, onde uma biqueira lhe oferecia cômodo apoio. Colou então o rosto ao vidro da janela. Amiúde tinha vindo àquele mesmo lugar e não se cansava de impressionar-se com o mistério daquele aposento fechado, em cuja penumbra se via brilhar a prata e o marfim de tantos objetos artísticos colocados sobre móveis marchetados, as cores vivas, ruivas e azuis, dos tapetes novos, a magnificência dos quadros ao longo das paredes. No fundo havia uma alcova cujo leito estava coberto com uma colcha adamascada. As cortinas brilhavam com seus fios de ouro, que lhe davam peso, misturados em sua trama. Sobre a chaminé atraía os olhares um grande quadro que enchia Angélica de admiração. Um mundo, de que tinha apenas a presciência, havia vindo encerrar-se naquele quadro: era o mundo dos habitantes do Olimpo, com sua graça paga e livre. Ali se via um deus e uma deusa unirem-se num abraço sob o olhar de um fauno barbudo, simbolizando seus corpos magníficos, como o próprio castelo, a graça dos Campos Elísios na vizinhança da floresta selvagem. A emoção dominava Angélica até oprimi-la levemente. "Todas essas coisas", pensava, "gostaria de tocá-las, acariciá-las. Quisera que algum dia fossem minhas..." CAPITULO V Casamento na aldeia — Novo plantel de muares Em maio naquela região, os rapazes, com uma espiga verde no chapéu, e as moças, engalanadas com flores de linho, vão dançar à volta dos dólmens, essas grandes mesas de pedra que a pré-história erigiu nos campos. Ao regressarem, dispersam-se um pouco, aos pares, pelos prados e nas sombras da mata recendente a lírio-do-vale. Em junho o pai Saulier casou a filha e houve uma grande festa. Era o único arrendatário do Barão de Sancé, que, afora aquele, não empregava senão meeiros. O homem, que era também o dono da taberna da aldeia, desfrutava boa situação financeira. A pequena igreja romana foi adornada de flores e círios grossos como punhos. O próprio senhor barão conduziu a nubente ao altar. O banquete, que durou várias horas, abundava em morcelas, chouriços, salsichas e queijos. Bebeu-se vinho. Após a refeição vieram todas as mulheres casadas do povoado, como de praxe, ofertar seus presentes à noiva. Esta já estava em sua nova casa, sentada em um banco diante de uma grande mesa sobre a qual se amontoavam lençóis, baixelas, caldeirões de cobre e de estanho. Seu rosto redondo, um tanto bovino, brilhava de prazer sob uma enorme grinalda de margaridas. A Sra. de Sancé envergonhava-se de não levar senão um modesto presente: alguns pratos de bela faiança que guardava para essas ocasiões. Angélica lembrou-se de que em Sancé comia em escude-las, como os camponeses. E sentiu-se ferida por aquele ilogismo. As pessoas eram esquisitas! Podia apostar que também a recém-casada jamais utilizaria aqueles pratos; guardá-los-ia cuidadosamente em uma arca e continuaria comendo em sua escudela. E no Plessis havia tantos objetos maravilhosos que seus donos abandonavam como em uma tumba!... Angélica entristeceu-se e beijou a recém-casada sem qualquer efu-são. Entrementes, os jovens reuniam-se junto ao grande leito conjugai e soltavam piadas. —Ah! minha linda, com a cara que têm você e seu marido, certamente o chaudaut vos calhará bem ao 22
  • 23. amanhecer! — disse um deles. —Mamãe — perguntou Angélica ao sair —, que é esse chaudaut de que falam em todos os casamentos? —E um costume de camponeses, como levar presentes ou dançar — respondeu evasiva a baronesa. A explicação não satisfez a menina, que prometeu a si mesma assistir ao chaudaut. Na praça da aldeia não se tinham iniciado ainda as danças embaixo do grande olmeiro. Os homens permaneciam em redor das mesas armadas ao ar livre, sobre cavaletes. Angélica ouviu os soluços de sua irmã mais velha, que pedia para voltar ao castelo, pois se envergonhava de seu vestido simples e cerzido. —Ora essa! — exclamou Angélica. — Você complica demais a sua vida, pobre mana! Queixo-me eu do meu vestido, apesar de apertado e muito curto para mim? Só os sapatos me incomodam deveras. Mas trouxe os tamancos embrulhados e os calçarei para dançar à vontade. Estou disposta a me divertir! Hortênsia insistiu, queixando-se do calor e garantindo que se sentia mal. A Sra. de Sancé aproximou- se do marido, que estava sentado entre os figurões da terra, e avisou-o de que se retirava, mas deixava Angélica a seus cuidados. A menina ficou um momento junto de seu pai. Tinha comido muito e sentia- se sonolenta. Em torno dele estavam o cura, o síndico, o mestre-escola, que às vezes fazia o papel de chantre, o cirurgião, o barbeiro e o sinei-Êro, e alguns lavradores que possuíam charruas puxadas por bois e empregavam vários manobradores, formando assim uma pequena "aristocracia de aldeia. Também fazia parte do grupo Artêmio Callot, agrimensor do burgo vizinho e nomeado provisoriamente para ajudar na drenagem do pântano próximo, o qual figurava como sábio e estrangeiro, embora fosse, na realidade, do Limousin. Finalmente, ali se encontrava também o pai da noiva, Paulo Saulier, criador de gado grosso e miúdo. Esse corpulento camponês do Poitou era o mais importante dos pequenos pecuaristas do lugar, e, embora o Barão Armando de Sancé fosse o "dono" das terras, seu rendeiro era certamente mais rico do que ele. Angélica olhava para o pai, cujo semblante se mantinha carregado, e adivinhava sem esforço o que lhe ia no íntimo. "Eis aqui", devia pensar com melancolia, "outro sinal da decadência dos nobres." Houve um rebuliço na praça, em torno do olmeiro, e apareceram dois homens, que, transportando debaixo do braço uns sacos brancos já muito inflados, subiram a uns toneis. Eram os gaitei-ros. Um tocador de flauta se juntou a eles. —Vamos dançar! — exclamou Angélica, e precipitou-se para a casa do síndico, onde havia escondido seus tamancos. Seu pai viu-a voltar pulando e batendo palmas segundo o ritmo das baladas e rondas que se começaria a dançar dali a pouco. Saltavam-lhe sobre os ombros os seus cabelos de ouro escuro. Talvez porque trajava um vestido curto e apertado demais, sentiu logo que ela se havia desenvolvido nos últimos meses. Ela, que fora sempre tão franzina, parecia ter agora doze anos. Seus ombros tinham-se alargado e seu peito punha leves saliências na sarja puí-da do vestido. O sangue jovem avermelhava-lhe as faces, e seus lábios entreabertos e úmidos sorriam, deixando aparecer os dentinhos perfeitos. Como a maior parte das moças da aldeia, tinha posto na abertura de seu corpete um grande ramo de prímulas amarelas e lilases. Os homens que ali estavam também se surpreenderam ante sua aparição cheia de louçania e frescura. —Sua filha está ficando uma bela moça — disse papai Saulier com sorriso obsequioso e lançando um olhar malicioso a seus vizinhos. O orgulho do barão tingiu-se de inquietude. "Já é muito crescida para misturar-se com esses rústicos", pensou prontamente. "A ela, mais do que a Hortênsia, é que teria de mandar para o convento..." Angélica, sem prestar atenção aos olhares de que era alvo e aos pensamentos que ia despertando, misturava-se alegremente com os rapazes e as moças que vinham de todos os lados em grupos ou aos pares. Quase esbarrou num mocinho a quem não reconheceu logo, tão ricamente vestido estava. 23
  • 24. —Valentim, meu Deus! — exclamou, empregando o patoá da terra, que falava correntemente. — Que elegante você está, meu caro! O filho do moleiro envergava uma roupa talhada certamente na cidade, de tecido cinza tão bom que as abas da sobrecasaca pareciam engomadas. Esta e o colete eram adornados com várias fileiras de botõezinhos dourados e cintilantes. Trazia fivelas de metal nos sapatos e no chapéu de feltro, e ligas de cetim azul com rose-tas. O rapaz, que aos catorze anos já tinha um físico de Hércules, parecia extremamente desajeitado na grotesca farpeia, mas seu rosto vermelho resplandecia de satisfação. Angélica, que passara vários meses sem vê-lo por causa da viagem que ele havia feito à cidade com o pai, percebeu que mal lhe chegava ao ombro e sentiu-se meio atemorizada. Para esvanecer o susto, puxou-o pela mão. —Venha dançar — disse-lhe. —Não, não! — protestou o moço. — Não quero estragar meu traje novo. Vou beber com os homens — acrescentou com suficiência, dirigindo-se para o grupo das pessoas importantes, entre as quais acabava de sentar-se seu pai. —Venha dançar! — exclamou um moço, tomando Angélica pela cintura. Era Nicolau. Seus olhos escuros como castanhas maduras brilhavam de alegria. Colocaram-se frente a frente e começaram a bater com os pés no chão, ao compasso do som agudo das gaitas e da flauta. Aquelas danças, que poderiam ter parecido pesadas e monótonas, tinham um sentido rítmico instintivo que lhes dava uma harmonia extraordinária. Apesar das gaitas e da flauta, o instrumento principal era precisamente o barulho surdo dos tamancos que golpeavam o solo em uníssono, e as figuras complicadas que os dançarinos execu-ítavam no momento preciso acrescentavam graça à perfeição do bailado campestre. Começava a anoitecer. A frescura do fim de tarde era um refrigério para as frontes suarentas. Completamente entregue à dança, Angélica sentia-se feliz, liberta de seus pensamentos. Seus pares se sucediam, e nos olhos brilhantes e risonhos daqueles moços lia algo que a excitava um pouco. A poeira subia em um leve tom pastel, colorido pelo sol poente. O flautista tinha as bochechas como duas bolas, e os olhos saltavam-lhe das órbitas à força de soprar em seu instrumento. Foi necessário suspender a dança para que se aproximassem das mesas, a fim de molharem a garganta. —Em que está pensando, meu pai? — perguntou Angélica, que foi sentar-se junto ao barão, cuja fronte não se desfranzia. Estava afogueada e esbaforida. O barão quase se sentiu ofendido ao vê-la despreocupada e feliz, quando ele se inquietava a ponto de não poder desfrutar a festa como de outras vezes. —Nos impostos! — respondeu, olhando com ar sombrio para um dos figurões que tinha à sua frente, e que outro não era senão o agente fazendário Corne, que tantas vezes fora expulso do castelo. Angélica protestou: —Não é bom pensar nisso quando todos se divertem. Pensam acaso eles, pensam nossos aldeões? No entanto, são os que mais pagam. Não é verdade, Sr. Corne? — gritou para o outro lado da mesa. — Não é certo que num dia como hoje ninguém deve pensar nas contribuições, nem mesmo o senhor? Isso fez rir estrondosamente aos circunstantes. Começaram a cantar, e o pai Saulier entoou o estribilho do Coletor Pilhante, que o Sr. Corne se dignou escutar com sorriso benevolente. Mas depressa chegaria a vez das canções menos inocentes a que dão lugar todas as bodas. E Armando de Sancé, cada vez mais inquieto pelas maneiras de sua filha, que bebia trago após trago, resolveu retirar-se. Disse a Angélica que o acompanhasse para despedir-se dos presentes e voltar com ele ao castelo. Raimundo e os mais novos, acompanhados pela ama, havia tempo tinham regressado a casa. Somente o primogênito Josselino é que não tivera pressa, entretido com uma das jovens mais bonitas do lugar. O barão absteve-se de chamá-lo à ordem. Estava satisfeito ao ver que o magro e pálido colegial recobrava, nos braços da mãe Natureza, idéias e cores mais sadias. Com a idade do rapaz havia muito que ele próprio já tinha estendido sobre o feno uma robusta pastora da povoação vizinha. Quem sabe! Talvez isso viesse prendê-lo à terra. Na certeza de que Angélica o seguia, o castelão começou a distribuir adeuses aos que ficavam. Mas sua filha tinha outros projetos. Desde algum tempo procurava um meio de assistir à cerimônia do chaudaut, quando despontasse o sol. Por isso, aproveitando um remoinho de gente, escapuliu para fora do tumulto e, com os tamancos na mão, pôs-[se a correr para o extremo da aldeia, cujas casas estavam 24