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“de sua importância histórica e relevante papel
didático que o referido prédio tem para as
gerações de jovens brasileiros, que ignoram as
atrocidades ali cometidas, o tombamento garantirá
a preservação desse importante documento físico
de nossa História recente.”
Este pedido de tombamento foi assinado por
diversas outras entidades, que merecem aqui expressa menção. São
elas: Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana
(CONDEPE), Grupo Tortura Nunca Mais-SP, Fórum dos ex-Presos e
Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, Comissão de Familiares
de Presos Mortos e Desaparecidos Políticos e Núcleo de Preservação de
Memória Política.
De acordo com Deborah Neves:
Em setembro de 2010, foram elaborados os
pareceres técnicos que, preliminarmente,
apontaram para a importância histórica do local, a
despeito de sua qualidade arquitetônica. O intuito
era reconhecer aquele como um lugar de memória,
e que por isso deveria ser reconhecido. Em
outubro de 2010, o processo foi encaminhado ao
Conselheiro Jon Andoni Maitrejean, que o
devolveu apenas em maio de 2011 sem relatoria.
Encaminhado em novembro de 2011 à
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Conselheira Cristina Meneguello, professora de
História da Unicamp, a mesma o devolveu com
relato favorável à abertura de Estudo de
Tombamento – fase em que o imóvel fica
previamente protegido –, cuja indicação foi
acatada por unanimidade pelo Condephaat em
14/05/201292
.
Foram realizados estudos iniciais a respeito do
espaço, nos anos de 2010 e 2011; em 25 de setembro de 2012, foi
realizada vistoria no imóvel.
A partir de então foi realizado amplo estudo
bibliográfico e fotográfico,93
de modo a se conseguir reconstituir a
edificação do espaço. Em seu artigo “DOI-CODI II Exército: a experiência
de preservação de um patrimônio sensível”, Deborah Neves aponta
primorosas imagens que demonstram a construção do imóvel e que
merecem ser reproduzidas aqui, já que demonstram que o espaço foi
ampliado e reforçado justamente no período da repressão ditatorial,
o que reforça sua vocação de espaço de memória.
92 Disponível em:
https://www.academia.edu/38159067/DOI_CODI_A_Experiencia_de_preservacao_de_um_patrimonio
_sensivel_pdf. Acesso no dia 26 jan. 2021
93 Foram utilizados mapeamentos aéreos das décadas de 1930, 1950 e aerofotografias de 1958, 1962,
1968, 1973 e 1977.
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Conforme esclarece a culta e talentosa
historiadora, algumas conclusões são possíveis a partir das imagens
aéreas: até 1958, nada havia construído na área. Em 1962, já existe o
prédio da Delegacia e um anexo; e entre 1962 e 1968, apenas uma
pequena construção latitudinal foi realizada, à esquerda do prédio anexo;
observa-se também o prolongamento do estacionamento para sudeste do
terreno.
Nas imagens a seguir, de 1973 e 1977
respectivamente, é possível constatar a ocupação plena do terreno.
Percebe-se o crescimento de construções entre 1968 e 1973, quando
outros dois edifícios e uma garagem foram construídos, ocupando a face
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do terreno voltada para a Rua Tomás Carvalhal. Coincide com o período
em que o DOI-CODI foi implantado e com a ampliação de prédios
para o serviço. Na imagem aérea de 1973, nota-se a colocação de um
portão entre o prédio da delegacia e seu vizinho, instalado por conta
da fuga de um preso do DOI-CODI, segundo relatos de ex-presos.94
Indispensável mencionar também que durante
esse estudo, ex-presos políticos visitaram o espaço e, mesmo com as
desestruturações mencionadas acima, ainda conseguiram trazer diversas
memórias e sentimentos, o que reforçava a importância do tomabamento.
Importa reforçar a ideia, portanto, de que o espaço não foi tombado
por suas características arquitetônicas. Os prédios não possuem
uma beleza singular ou uma arquitetura excepcional. Todavia, o que
se passou dentro do espaço deve ser preservado, pelas memórias e
lembranças que ele evoca.
94 Disponível em:
https://www.academia.edu/38159067/DOI_CODI_A_Experiencia_de_preservacao_de_um_patrimonio
_sensivel_pdf. Acesso no dia 26 jan. 2021
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Como explica Deborah Neves, que acompanhou a
visita dos ex-presos políticos:
O momento das visitas foi bastante intenso, já que
a maioria nunca havia retornado ao local, e todos
se emocionaram. As reações foram diversas:
houve aqueles que se calaram diante das
lembranças, outros que falaram sem parar, outros
falaram pouco, alguns não se lembraram de nada.
Mas todos contribuíram com a reconstituição do
espaço de maneira inegável. As figuras 11 e 12
apresentam parte dos grupos que fizeram as
visitas em dois dias distintos, e o sentimento ali era
o de estar contribuindo para a história e a memória
do país, além de certa reparação moral em
retornar ao local em condições muito diversas
daquelas em que estiveram pela primeira vez.
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Por fim, após todos os estudos,o espaço onde
operou o DOI-CODI II Exército foi tombado, conforme Resolução nº 25,
de 12 de maio de 2014, da Secretaria de Estado de Cultura. Os termos
do tombamento são os seguintes:
Art. 1º. Fica tombado como bem cultural de
interesse histórico o aqui designado Conjunto das
instalações da OBAN (Operação Bandeirante) e
do DOI-CODI – II Exército (Destacamento de
Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna), situados à Rua
Tutóia, 921 (também com acesso pela Rua Tomás
de Carvalhal, 1030), formado por suas edificações
e remanescentes.
Alguns considerandos, constituintes dos motivos
do tombamento, merecem ser apontados, uma vez que sintetizam de
modo bastante coeso a importância do espaço que um dia abrigou o DOI-
CODI:
“(...)
• Que os edifícios que abrigaram o DOI-CODI constituem
lugar de memória da repressão e da resistência à
Ditadura Civil- Militar no Brasil entre 1964-1985;
• Que os edifícios representam a institucionalização do
terrorismo de Estado;
• Que representam testemunho material da história
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política recente;
• Que se trata de local simbólico de violação dos Direitos
Humanos e privação de liberdade durante o período da
Ditadura Civil-Militar;
• Que os edifícios e espaços ali remanescentes são o
suporte físico à memória da repressão e da resistência;
(...)”
Em síntese, isso quer dizer que já houve, por parte
do Estado de São Paulo, reconhecimento oficial de que os edifícios objeto
desta ação “representam a institucionalização do terrorismo de
Estado”. E que, por esse motivo, devem ser preservados como local de
memória.
O tombamento, de acordo com o parágrafo único
do art. 1º da Resolução-SC 25/2014, incluiu os seguintes itens:
1) Perímetro:circunscrito ao lote 036.045.0175-1 (Setor/
Quadra/Lote/Dac) do Cadastro de Imposto Predial
Territorial Urbano da Prefeitura de São Paulo.
2) Prédios do Setor de Inteligência do DOI-CODI:
situados no setor centro-norte do Conjunto ao fundo da
Delegacia, hoje utilizados como depósito e almoxarifado
pelo DECAP.
a) Um com três pavimentos (à esquerda – II-a no
mapa), antigo local de interrogatório, tortura e
detenção. Destacam-se a fachada e a configuração
espacial interna dada pela subdivisão de salas.
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b) Um com dois pavimentos (à direita – II-b no mapa),
construído para abrigar funções complementares
ao DOI-CODI. Destaca-se a fachada voltada para o
pátio.
3) Prédio do 36º Distrito Policial, com acesso pela Rua
Tutóia, 921: destaca-se o espaço interno do pavimento
térreo no trecho norte do edifício, onde ficavam
instaladas as celas da carceragem em torno de um pátio,
hoje substituídos respectivamente por salas do DECAP
e pelo jardim de inverno.
4) Pátio no setor central do conjunto: na cota baixa do
terreno, com acesso pela Rua Tutóia, 921, ladeado
pelos edifícios destacados nos itens 1 e 3, onde ocorria
o desembarque de detidos. Destaca-se a configuração
espacial não-edificada dada por aqueles elementos;
5) Prédio de Alojamento: situado no setor leste do
conjunto, na cota superior do terreno, hoje com acesso
pela Rua Tomás Carvalhal. Destaca-se sua fachada
voltada para o pátio.
6) Guaritas: situadas à Rua Tomás Carvalhal. Destacam-
se somente as aberturas laterais voltadas para a referida
via, que serviam para vigilância a partir das guaritas
(“torres de vigilância”).
Os mapas relativos a esse tombamento podem ser
observados no documento anexo, que aqui é transcrito para melhor
visualização e esclarecimento dos fatos:
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Enfim, Senhoras e Senhores Magistradas e
Magistrados, o Ministério Público Estadual busca a condenação
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judicial do Estado para que esse imóvel público, cuja história guarda
a memória de um tempo que não pode ser esquecido exatamente
para que se garanta que não se repetirá. E esta é a obrigação do
Estado: assim como o mantivera, durante anos, como espaço de
tortura e homicídios, que o transforme e o mantenha agora como
espaço de memória e reflexão para as novas gerações; como penhor
de fortalecimento da democracia e do Estado de Direito.
Exatamente para que não se esqueça e para
que nunca mais aconteça!
Há pleno fundamento legal para a pretensão aqui
deduzida.
4. DO DIREITO.
4.1 Delimitações do conceito de Justiça de Transição.
Como já mencionado, a presente ação tem por
fundamento básico a justiça de transição, mais especificamente no que
se refere ao direito à verdade e preservação da memória histórica.
A presente ação tem por objetivo concretizar
justamente o direito à verdade e a preservação da memória, como
medidas de não repetição. O estabelecimento de um espaço de memória
onde funcionou o DOI-CODI II do Exército (São Paulo) é medida de
extrema importância para a defesa e consolidação do Estado de Direito.
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A Justiça de Transição é conceituada, grosso
modo, como o conjunto de iniciativas, mecanismos (judiciais e não
judiciais) e estratégias para superar o legado de violência e garantir a
consolidação do regime democrático, numa transição que se manifesta,
basicamente, por meio das seguintes providências:
a) atribuição de responsabilidades;
b) garantia efetiva do direito à memória e à verdade;
c) reparação em favor das vítimas;
d) e fortalecimento das instituições com valores
democráticos de modo a se garantir a não repetição das
situações de violência.
Nos dizeres de Jorge Chediek, representante
residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento
(PNUD) e coordenador residente do Sistema ONU Brasil:
“...justiça de transição é o conjunto de mecanismos
usados para tratar o legado histórico da violência
dos regimes autoritários. Em seus elementos
centrais estão a verdade e a memória, através do
conhecimento dos fatos e do resgate da história.
Se o Desenvolvimento Humano só existe de fato
quando abrange também o reconhecimento dos
direitos das pessoas, podemos dizer que temos a
obrigação moral de apoiar a criação de
mecanismos e processos que promovam a justiça
e a reconciliação. No Brasil, tanto a Comissão de
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Anistia quanto a Comissão da Verdade
configuram-se como ferramentas vitais para o
processo histórico de resgate e reparação,
capazes de garantir procedimentos mais
transparentes e eficazes.”95
Na definição das Nações Unidas, numa tradução
livre, pode-se dizer que a justiça transicional é o conjunto completo de
processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma
sociedade para superar o legado de uma larga escala de abusos contra
os direitos humanos no passado, a fim de assegurar a responsabilização,
a administração da justiça e a reconciliação, tratando-se de medidas
judiciais e não-judiciais96
.
No mesmo sentido, Kai Ambos, invocando o
Report Secretary General Transitional Justice, ensina que:
“a justiça de transição compreende o âmbito
integral de processos e mecanismos associados
aos intentos de uma sociedade de afrontar um
legado de abusos em grande escala no passado,
para assegurar responsabilidade, promover justiça
e obter reconciliação.”97
95 CHEDIEK, Jorge. “Justiça de Transição. Manual para a América Latina”. ONU. Brasil e Nova Iorque,
p. 16. Disponível em:
http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/manual_justica_transicao_america_latina.pdf
96 Guidance Note of The Secretary-General. United Nations Approach to Transitional Justice.
97 AMBOS, Kai. Anistia. “Justiça e Impunidade: reflexões sobre a Justiça de Transição no Brasil”. 1ª ed.
Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 27.
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De modo mais sucinto, Ruti Teitel aponta que
justiça de transição pode ser:
“definida como uma concepção de justiça
associada a períodos de mudança política,
caracterizada por respostas legais para confrontar
os abusos dos regimes repressivos anteriores.”98
Pode-se dizer, portanto, que sempre que houver o
rompimento de um regime autoritário ou marcadamente não democrático
é necessária a adoção das medidas de justiça de transição para que a
sociedade, por suas instituições, se adapte à nova realidade democrática.
E, mais que isto, tais postulados transicionais
devem perdurar num tempo tanto necessário quanto suficiente para
garantir a consolidação das instituições democráticas.
No caso brasileiro, a criação de um espaço de
memória em um antigo centro de tortura, além de auxiliar na efetivação
do direito à verdade e à memória, tem um caráter claramente pedagógico.
Busca-se, com isso, reafirmar o repúdio às violações de direitos humanos
que lá aconteceram (desaparecimentos, torturas, execuções e prisões
arbitrárias) e tentar ensinar às gerações vindouras que isso é errado
(apesar de parecer óbvio) e que não deve acontecer novamente.
98 TEITEL, Ruti. Transitional Justice Genealogy, apud QUINALHA, Renan. “Justiça de Transição:
contornos do conceito”, 1ª ed. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2013, p. 134.
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Vale dizer: a constituição de um espaço de
memória num antigo centro de tortura presta-se a inculcar nas
mentes o desvalor da tortura, o que se mostra indispensável na
realidade brasileira.
A Justiça de Transição não é um momento fugaz
ou um conjunto de medidas de pronta e rápida adoção. É um processo
que se protrai no tempo e que varia de acordo com as injunções políticas,
sociais e culturais da sociedade que esteja em processo de
transformação. Ou seja, a manutenção de um espaço de memória, de
modo permanente, tem por intuito mostrar para as futuras gerações o que
foi feito de modo bastante equivocado.
Lembra Renan Honório Quinalha que:
“...ao contrário do que comumente se supõe, as
transições não são momentos pontuais, mas
processos que se arrastam no tempo e encadeiam
diversos acontecimentos diferentes e, muitas
vezes, até contraditórios entre si. São fenômenos
complexos, que conjugam questões de diversas
ordens postas pelas mudanças políticas quando
desencadeadas.”99
Tal processo depende fortemente das tensões
entre as forças políticas remanescentes do regime anterior e as novas
99 QUINALHA, Renan. “Justiça de Transição: contornos do conceito”. 1ª ed. São Paulo: Editora Outras
Expressões, 2013.
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forças emergentes da fase de renovação política. As primeiras tendem a
obstar medidas que atinjam seus interesses e que possam resultar em
responsabilizações pessoais de antigos violadores de direitos humanos.
As segundas tentam avançar na agenda da justiça quanto às hipóteses
do passado e, ao mesmo tempo, consolidar as novas instituições
democráticas.
No ordenamento jurídico brasileiro, a Justiça
Transicional ingressa pela via do princípio democrático, expresso no
caput do artigo 1º da Constituição Federal, ao apontar que a “República
Federativa do Brasil (...) constitui-se num Estado Democrático de Direito
e tem como fundamentos”, dentre outros, a cidadania e a dignidade da
pessoa humana (incisos II e III).
Lembra Uadi Lammêgo Bulos que:
“...o Estado Democrático de Direito surge em
oposição ao Estado de Polícia – aquele autoritário,
que apregoa o repúdio às liberdades públicas, no
sentido mais vasto e completo que esta expressão
possa ensejar. Ao utilizar a terminologia ‘Estado
Democrático de Direito’, a Constituição
reconheceu a República Federativa do Brasil como
uma ordenação estatal justa, mantenedora dos
direitos individuais e metaindividuais, garantindo
os direitos adquiridos, a independência e a
imparcialidade dos juízes e tribunais, a
responsabilidade dos governantes para com os
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governados, a prevalência do princípio
representativo, segundo o qual todo poder emana
do povo e, em nome dele, é exercido, por meio de
representantes eleitos através do voto.”100
E mais adiante, o mesmo autor evoca os mestres
portugueses Canotilho e Vital Moreira para arrematar:
“O Estado de direito é democrático e só sendo-o é
que é Estado de direito; o Estado democrático é
Estado de direito e só sendo-o é que é
democrático.”101
Pois bem. O teor, o alcance e a relevância dos
princípios e balizas da Justiça de Transição dialogam diretamente com a
qualidade de democrático do Estado de Direito. Não se pode cogitar que
um Estado se consolide como democrático e, portanto, de direito, na
significativa frase dos professores portugueses, sem que as instituições
do anterior regime autoritário sejam desmontadas e substituídas por
instituições que garantam a igualdade de todos e o primado da justiça.
E mais: que garantam, no âmbito da inafastável
aplicabilidade da justiça, o pleno exercício da cidadania e a inabalável
proteção da dignidade das pessoas que são vítimas (diretamente ou seus
familiares) do arbítrio e da violência praticados pelo Estado.
100 BULOS, Uadi Lammêgo. “Constituição Federal Anotada”. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005,
p.79.
101 Idem.
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Por isso lembra Marlon Weichert, citando De
Greiff, que:
“...é indubitável o nexo causal existente entre as
políticas de justiça de transição e o conteúdo
material do princípio democrático.”102
Assim, o que se busca nesta ação judicial, ao se
invocar os princípios e conceitos da Justiça Transicional, é a observância
e o respeito ao fundamento maior do Estado brasileiro, isto é, o princípio
democrático que marca o Estado de Direito e eleva a cidadania e a
dignidade da pessoa humana à condição de fundamentos da República.
A demonstrar a condição de alicerce de toda a ordem jurídico-
constitucional, não por outro motivo, tais princípios estão consagrados no
primeiro artigo da Constituição Federal.
Se houvesse ainda alguma dúvida sobre a
necessidade de se imbricar a existência da democracia à observância das
medidas da justiça transicional, essas se desfizeram quando aquele triste
período da recente história brasileira foi sobeja e detalhadamente
apreciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na célebre
sentença em que o Brasil foi condenado, exarada no denominado Caso
Gomes Lund.
102 WEICHERT, Marlon. “Justiça Transicional”. 1ª ed. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 19.
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Ali se apontou que, a despeito do fim do regime
autoritário e da redemocratização marcada pelo advento da
Constituição Federal de 1988, que consagrou inúmeras liberdades,
direitos fundamentais e direitos sociais, não foi aplicada de modo
eficiente a necessária Justiça de Transição.
Com efeito, a omissão do Estado brasileiro na
efetivação da necessária transição para o regime democrático ficou
reconhecida internacionalmente no mencionado julgamento do caso
Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) pela Corte Interamericana
de Direitos Humanos.
Além disso, no Brasil, até 2009, nunca havia sido
tomada nenhuma medida para recuperar a história recente das graves
violações de direitos humanos no Brasil, buscando concretizar o direito à
verdade e à memória. Com base nestas considerações sobre a justiça de
transição, passa-se a se discorrer especificamente sobre a o direito à
verdade e à memória, indispensáveis para a consolidação democrática
no Brasil.
4.2) Direito à verdade e à memória.
Em 2009 foi aprovado, pelo Decreto nº 7037/2009,
o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Um de seus eixos
orientadores (Eixo Orientador VI) era o “Direito à Memória e à Verdade”.
Esse eixo orientador continha 03 diretrizes:
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a) Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade
como Direito Humano da cidadania e dever do Estado;
b) Diretriz 24: Preservação da memória histórica e
construção pública da verdade; e
c) Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com
promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo
a democracia.
E justamente após esse período e mercê da
decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos,foi tomada uma
das mais importantes iniciativas para resgatar a história recente das
violações de direitos humanos no Brasil, a criação da Comissão Nacional
da Verdade, pelaLei nº 12.528/2011.
No entanto, o direito à verdade e à memória se
encontram muito longe de serem efetivados no Brasil. A organização não
governamental Human Rights Watch tem apontado que o Brasil não tem
confrotado seu passado de modo reiterado. Os relatórios de 2021, 2020,
2019, 2018, 2017, 2016 e 2015 indicam que o Brasil ainda não enfrentou
de modo adequado as violações de direitos praticadas pelo regime
ditatorial103
.
Enfrentar o passado, estudar os
acontecimentos vividos e recuperar a memória são, portanto,
problemas atuais.
103 Disponível em: https://www.hrw.org/. Acesso no dia 21 de janeiro de 2021.
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Conforme muito precisamente explicado pelo
anexo do PNDH-3:
“A história que não é transmitida de geração a
geração torna-se esquecida e silenciada. O
silêncio e o esquecimento das barbáries geram
graves lacunas na experiência coletiva de
construção da identidade nacional. Resgatando a
memória e a verdade, o País adquire consciência
superior sobre sua própria identidade, a
democracia se fortalece. As tentações totalitárias
são neutralizadas e crescem as possibilidades de
erradicação definitiva de alguns resquícios
daquele período sombrio, como a tortura, por
exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro.”
O documento do Governo Brasileiro fora
elaborado, à época, de modo democrático, tendo nascido de amplas
discussões com variados segmentos da sociedade brasileira,
organizados em conferências locais, regionais, setoriais, estaduais e
nacional. Amplo trabalho de organização, compilação e sistematização
das informações, reclamações e reivindicações foi realizado pelas
agências governamentais da época, resultado num texto fortemente
revelador do anseio da população brasileira e, por isso, fortemente
legítimo.
No capítulo sobre memória e verdade, traz
considerações de grande alcance conceitual, que importa muito sejam
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lembradas e transcritas nesta petição inicial.
O trabalho de reconstituir a memória exige revisitar
o passado e compartilhar experiências de dor,
violência e mortes. Somente depois de lembrá-las
e fazer seu luto, será possível superar o trauma
histórico e seguir adiante. A vivência do
sofrimento e das perdas não pode ser reduzida
a conflito privado e subjetivo, uma vez que se
inscreveu num contexto social, e não
individual.
A compreensão do passado por intermédio da
narrativa da herança histórica e pelo
reconhecimento oficial dos acontecimentos
possibilita aos cidadãos construírem os
valores que indicarão sua atuação no presente.
O acesso a todos os arquivos e documentos
produzidos durante o regime militar é fundamental
no âmbito das políticas de proteção dos Direitos
Humanos.
Desde os anos 1990, a persistência de familiares
de mortos e desaparecidos vem obtendo vitórias
significativas nessa luta, com abertura de
importantes arquivos estaduais sobre a repressão
política do regime ditatorial. Em dezembro de
1995, coroando difícil e delicado processo de
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discussão entre esses familiares, o Ministério da
Justiça e o Poder Legislativo Federal, foi aprovada
a Lei nº 9.140/1995, que reconheceu a
responsabilidade do Estado brasileiro pela morte
de opositores ao regime de 1964.
Essa Lei instituiu Comissão Especial com poderes
para deferir pedidos de indenização das famílias
de uma lista inicial de 136 pessoas e julgar outros
casos apresentados para seu exame. No art. 4º,
inciso II, a Lei conferiu à Comissão Especial
também a incumbência de envidar esforços para a
localização dos corpos de pessoas desaparecidas
no caso de existência de indícios quanto ao local
em que possam estar depositados.
Em 24 de agosto de 2001, foi criada, pela Medida
Provisória nº 2151-3, a Comissão de Anistia do
Ministério da Justiça. Esse marco legal foi
reeditado pela Medida Provisória nº 65, de 28 de
agosto de 2002 e finalmente convertido na Lei nº
10.559, de 13 de novembro de 2002. Essa norma
regulamentou o Art. 8º do Ato das Disposições
Constitucionais Transitórias (ADCT) da
Constituição de 1988, que previa a concessão de
anistia aos que foram perseguidos em decorrência
de sua oposição política. Em dezembro de 2005, o
Governo Federal determinou que os três arquivos
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da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)1
fossem entregues ao Arquivo Nacional,
subordinado à Casa Civil, onde passaram a ser
organizados e digitalizados.
Em agosto de 2007, em ato coordenado pelo
Presidente da República, foi lançado, pela
Secretaria Especial dos Direitos Humanos da
Presidência da República (SEDH/PR) e pela
Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos
Políticos (CEMDP), o livro-relatório “Direito à
Memória e à Verdade”, registrando os 11 anos de
trabalho daquela Comissão e resumindo a história
das vítimas da ditadura no Brasil.
A trajetória de estudantes, profissionais liberais,
trabalhadores e camponeses que se engajaram no
combate ao regime militar aparece como
documento oficial do Estado brasileiro. O
Ministério da Educação e a Secretaria Especial
dos Direitos Humanos formularam parceria para
criar portal que incluirá o livrorelatório, ampliado
com abordagem que apresenta o ambiente
político, econômico, social e principalmente os
aspectos culturais do período. Serão distribuídas
milhares de cópias desse material em mídia digital
para estudantes de todo o País.
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Em julho de 2008, o Ministério da Justiça e a
Comissão de Anistia promoveram audiência
pública sobre “Limites e Possibilidades para a
Responsabilização Jurídica dos Agentes
Violadores de Direitos Humanos durante o Estado
de Exceção no Brasil”, que discutiu a interpretação
da Lei de Anistia de 1979 no que se refere à
controvérsia jurídica e política envolvendo a
prescrição ou imprescritibilidade dos crimes de
tortura.
A Comissão de Anistia já realizou 700 sessões de
julgamento e promoveu, desde 2008, 30
caravanas, possibilitando a participação da
sociedade nas discussões, e contribuindo para a
divulgação do tema no país. Até 1º de novembro
de 2009, já haviam sido apreciados pos essa
Comissão mais de 52 mil pedidos de concessão
de anistia, dos quais quase 35 mil foram deferidos
e cerca de 17 mil, indeferidos. Outros 12 mil
pedidos aguardavam julgamento, sendo possível,
ainda, a apresentação de novas solicitações. Em
julho de 2009, em Belo Horizonte, o Ministro de
Estado da Justiça realizou audiência pública de
apresentação do projeto Memorial da Anistia
Política do Brasil, envolvendo a remodelação e
construção de um novo edifício junto ao antigo
“Coleginho” da Universidade Federal de Minas
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Gerais (UFMG), onde estará disponível para
pesquisas todo o acervo da Comissão de Anistia.
No âmbito da sociedade civil, foram levadas ao
Poder Judiciário importantes ações que
provocaram debate sobre a interpretação das leis
e apuração de responsabilidades. Em 1982, um
grupo de familiares entrou com ação na Justiça
Federal para a abertura de arquivos e localização
dos restos mortais dos mortos e desaparecidos
políticos no episódio conhecido como “Guerrilha
do Araguaia”. Em 2003 foi proferida sentença
condenando a União, que recorreu e,
posteriormente, criou Comissão Interministerial
pelo Decreto nº 4.850, de 2 de outubro de 2003,
com a finalidade de obter informações que
levassem à localização dos restos mortais de
participantes da “Guerrilha do Araguaia”. Os
trabalhos da Comissão Interministerial
encerraram-se em março de 2007, com a
divulgação de seu relatório final.
Em agosto de 1995, o Centro de Estudos para a
Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human
Rights Watch/América (HRWA), em nome de um
grupo de familiares, apresentaram petição à
Comissão Interamericana de Direitos Humanos
(CIDH), denunciando o desaparecimento de
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integrantes da “Guerrilha do Araguaia”. Em 31 de
outubro de 2008, a CIDH expediu o Relatório de
Mérito nº 91/08, onde fez recomendações ao
Estado brasileiro. Em 26 de março de 2009, a
CIDH submeteu o caso à Corte Interamericana de
Direitos Humanos, requerendo declaração de
responsabilidade do Estado brasileiro sobre
violações de Direitos Humanos ocorridas durante
as operações de repressão àquele movimento.
Em 2005 e 2008, duas famílias iniciaram, na
Justiça Civil, ações declaratórias para o
reconhecimento das torturas sofridas por seus
membros, indicando o responsável pelas sevícias.
Ainda em 2008, o Ministério Público Federal em
São Paulo propôs Ação Civil Pública contra dois
oficiais do exército acusados de determinarem
prisão ilegal, tortura, homicídio e desaparecimento
forçado de dezenas de cidadãos.
Tramita também, no âmbito do Supremo Tribunal
Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito
Fundamental (ADPF), proposta pelo Conselho
Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que
solicita à mais alta corte brasileira posicionamento
formal para saber se, em 1979, houve ou não
anistia dos agentes públicos responsáveis pela
prática de tortura, homicídio, desaparecimento
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forçado, abuso de autoridade, lesões corporais e
estupro contra opositores políticos, considerando,
sobretudo, os compromissos internacionais
assumidos pelo Brasil e a insuscetibilidade de
graça ou anistia do crime de tortura.
Em abril de 2009, o Ministério da Defesa, no
contexto da decisão transitada em julgado da
referida ação judicial de 1982, criou Grupo de
Trabalho para realizar buscas de restos mortais na
região do Araguaia, sendo que, por ordem
expressa do Presidente da República, foi instituído
Comitê Interinstitucional de Supervisão, com
representação dos familiares de mortos e
desaparecidos políticos, para o acompanhamento
e orientação dos trabalhos. Após três meses de
buscas intensas, sem que tenham sido
encontrados restos mortais, os trabalhos foram
temporariamente suspensos devido às chuvas na
região, prevendo-se sua retomada ao final do
primeiro trimestre de 2010.
Em maio de 2009, o Presidente da República
coordenou o ato de lançamento do projeto
Memórias Reveladas, sob responsabilidade da
Casa Civil, que interliga digitalmente o acervo
recolhido ao Arquivo Nacional após dezembro de
2005, com vários outros arquivos federais sobre a
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repressão política e com arquivos estaduais de 15
unidades da federação, superando 5 milhões de
páginas de documentos
(www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br)
Cabe, agora, completar esse processo mediante
recolhimento ao Arquivo Nacional de todo e
qualquer documento indevidamente retido ou
ocultado, nos termos da Portaria Interministerial
assinada na mesma data daquele lançamento.
Cabe também sensibilizar o Legislativo pela
aprovação do Projeto de Lei nº 5.228/2009,
assinado pelo Presidente da República, que
introduz avanços democratizantes nas normas
reguladoras do direito de acesso à informação.
Importância superior nesse resgate da história
nacional está no imperativo de localizar os restos
mortais de pelo menos 140 brasileiros e brasileiras
que foram mortos pelo aparelho de repressão do
regime ditatorial. A partir de junho de 2009, a
Secretaria de Comunicação Social da Presidência
da República (Secom/PR) planejou, concebeu e
veiculou abrangente campanha publicitária de
televisão, internet, rádio, jornais e revistas de todo
o Brasil buscando sensibilizar os cidadãos sobre
essa questão. As mensagens solicitavam que
informações sobre a localização de restos mortais
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ou sobre qualquer documento e arquivos
envolvendo assuntos da repressão política entre
1964 e 1985, sejam encaminhados ao Memórias
Reveladas. Seu propósito é assegurar às famílias
o exercício do direito sagrado de prantear seus
entes queridos e promover os ritos funerais, sem
os quais desaparece a certeza da morte e se
perpetua angústia que equivale a nova forma de
tortura.
As violações sistemáticas dos Direitos Humanos
pelo Estado durante o regime ditatorial são
desconhecidas pela maioria da população, em
especial pelos jovens. A radiografia dos atingidos
pela repressão política ainda está longe de ser
concluída, mas calcula-se que pelo menos 50 mil
pessoas foram presas somente nos primeiros
meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram
submetidos a torturas e cerca de quatrocentos
cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos.
Ocorreram milhares de prisões políticas não
registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de
mandatos políticos, uma cifra incalculável de
exílios e refugiados políticos.
As ações programáticas deste eixo orientador têm
como finalidade assegurar o processamento
democrático e republicano de todo esse período
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da história brasileira, para que se viabilize o
desejável sentimento de reconciliação nacional. E
para se construir consenso amplo no sentido de
que as violações sistemáticas de Direitos
Humanos registradas entre 1964 e 1985, bem
como no período do Estado Novo, não voltem a
ocorrer em nosso País, nunca mais.
A transcrição desse texto, algo extenso e já
datado de mais de dez anos, permite aos julgadores e às julgadoras
desta demanda situarem-na numa longa e difícil história de luta por
memória e justiça. A trasformação do mais nefando centro de
torturas e assassinatos da repressão brasileira em memorial,
portanto, é mais um capítulo – e dos mais relevantes – num contínuo
esforço de milhares de brasileiros e brasileiras que há décadas lutam
pela consolidação do Estado de Direito e dos postulados da
democracia como garantias de não repetição daquele Estado
totalitário e criminoso.
Por isso o documento conclui o capítulo com
direterizes específicas sobre o tema:
Diretriz 24:
Preservação da memória histórica e a construção pública
da verdade.
Objetivo Estratégico I:
Incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e
de construção pública da verdade sobre períodos
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autoritários.
Ações programáticas:
a) Disponibilizar linhas de financiamento para a criação de
centros de memória sobre a repressão política, em todos os
estados, com projetos de valorização da história cultural e
de socialização do conhecimento por diversos meios de
difusão.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República; Ministério da Justiça;
Ministério da Cultura; Ministério da Educação;
b) Criar comissão específica, em conjunto com
departamentos de História e centros de pesquisa, para
reconstituir a história da repressão ilegal relacionada ao
Estado Novo (1937-1945). Essa comissão deverá publicar
relatório contendo os documentos que fundamentaram essa
repressão, a descrição do funcionamento da justiça de
exceção, os responsáveis diretos no governo ditatorial,
registros das violações bem como dos autores e das
vítimas.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República; Ministério da Educação;
Ministério da Justiça; Ministério da Cultura
c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à
repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados
corpos e restos mortais de perseguidos políticos.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República; Casa Civil da Presidência da
República; Ministério da Justiça; Secretaria de Relações
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Institucionais da Presidência da República
Recomendação: Recomenda-se que estados, Distrito
Federal e municípios participem do processo,fazendo o
mesmo em suas esferas administrativas.
d) Criar e manter museus, memoriais e centros de
documentação sobre a resistência à ditadura.
Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos
da Presidência da República; Ministério da Justiça;
Ministério da Cultura; Secretaria de Relações Institucionais
da Presidência da República
5.3) Necessidade de transformação do DOI-CODI em espaço de
memória: tombamento, direito à cultura, princípio da eficiência,
princípio da moralidade e função social da propriedade.
Desde o início da trajetória humana sobre a Terra
cultiva-se o hábito de se conservar locais marcantes, representativos de
memórias ou ideias simbólicas. Os menires e cromeleques testemunham
essa antiga tentativa de registrar, a partir de certa composição de pedras,
um local importante, que se destaca dos demais ha história daquele povo.
A conservação orgânica e sistemática de locais
marcantes, contudo, surge no século XVII e se aprimora com a Revolução
Francesa, que adota a ereção de monumentos como signos simbólicos
de memória e homenagem.
Na mesma época, começam a se sistematizar os
museus, a partir de coleções pariticulares de objetos variados, aos quais
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se confere um caráter educativo ou didático, inédito até então na história
humana. O movimento refletia a importância da educação pública, gratuita
e laica trazida pela Revolução Francesa e o propósito de disseminar o
conhecimento como forma de assegurar o primado da razão.
A ideia avança e ganha especial relevo no Pós-
Guerra, sobretudo com a transformação do campo de extermínio nazista
de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em museu-memorial. A manutenção
das instalações do modo original e a abertura para visitação pública
tornaram aquele espaço num intenso instrumento de preservação da
memória da crueldade humana e dos crimes em massa ali cometidos.
Consolida-se a ideia de que os vestígios dos erros
e dos crimes históricos devem ser mantidos e exibidos como exemplos
do que não se deve fazer; ferramentas pedagógicas voltadas à educação
das gerações futuras, voltadas à não repetição daqueles mesmos erros e
crimes.
Encreve a historiadora Deborah Neves, num
ensinamento muito apropriado para o tema desta demanda judicial:
“Tratava-se de uma nova concepção que
privilegiava os lugares de memória que evocavam
acontecimentos históricos marcados por
violências praticadas contra a humanidade, ao
invés de criar imaginários sociais compostos por
mitos, símbolos, sinais abstratos...Em outras
palavras, trata-se da conversão de um espaço
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físico ou geográfico em um local carregado de
significados particulares, carregado de sentidos e
sentimentos para aqueles que vivenciaram um
acontecimento; lugares significativos para uma
coletividade com valor político que se expressa em
rituais coletivos de comemoração.104
”
Este novo modo de se compreender a história e,
em consequência, os lugares de memória com seus signficados
simbólicos e políticos resultou na edição da “Recomendação de Paris”,
pela UNESCO, em 1972, que ampliou o conceito de patrimônio histórico
para incluir não apenas os edifícios ou monumentos de notório valor
artístico ou arquitetônico, mas quaisquer lugares de interesse, assim
definidos:
“Obras do homem, ou obras conjugadas do
homem e da natureza, e as zonas, incluindo os
locais de interesse arqueológico, com um valor
universal excepcional do ponto de vista histórico,
estético, etmológico ou antropológico”.105
Tal concepção parte da premissa que a
preservação do patrimônio nasce da necessidade que as pessoas de um
dado povo têm de criar vínculos que as convirjam para uma noção de
pertencimento e idendidade, a exemplo do que ocorre com a língua, com
a expressão do sentimento religioso, com as manifestações artísticas,
104 Ob. cit., p. 94
105 Recomendação de Paris, UNESCO, 1972.
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dentre outros elementos culturais e antropológicos. Compartilhar uma
história comum – e vivê-la e senti-la e visualizá-la – em espaços de
conteúdo simbólico é um ponderável elemento de identidade de um povo.
Neste sentido, é preciso destacar que tais espaços
simbólicos não se limitam a expressões artísticas ou arqueológicas do
belo; tampouco se limitam ao registro de épocas ou etapas históricas. A
concepção de memória histórica que emerge dos escombros da Segunda
Guerra Mundial releva espaços de sofrimento e dor simbólicos, como
genuínas manifestações de resistência ao arbítrio e à violência de Estado.
Não havia nada de belo naqueles vestígios, mas, sim, muito de emoção
compartilhada e de consciência coletiva.
Um dos mais importantes historiadores da arte nos
dias atuais, o filósofo francês Goerges Didi-Huberman, escrevendo sobre
o sítio de memória de Birkenau, na Polônia, com enorme sensibilidade e
relevância, anota:
“Logo, nunca poderemos dizer: não há nada para
ver, não há mais nada para ver. Para saber
desconfiar do que vemos, devemos saber mais,
ver, apesar de tudo. Apesar da destruição, da
supressão de todas as coisas. Convém saber olhar
como um arqueólogo. E através de um olhar desse
tipo – de uma interrogação desse tipo – que vemos
que as coisas começam a nos olhar a partir de
seus espaços soterrados e tempos esboroados.
Caminhar hoje por Birkenau é deambular por uma
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paisagem tranquila e discretamente orientada –
balizada por inscrições, explicações,
documentada, em suma – pelos historiadores
desse ‘lugar de memória’. Como a história
aterradora da qual esse lugar foi teatro é uma
história passada, gostaríamos de acreditar naquilo
que vemos em primeiro lugar, ou seja, que a morte
foi embora, que os mortos não estão mais aqui.
Mas é justamente o contrário que pouco a pouco
descobrimos. A destruição dos seres não significa
que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui,
decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na
seiva das bétulas, aqui neste pequeno lago onde
repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo,
água adormecida que exige de nosso olhar um
sobressalto perpétuo. (...) Aqui, temos de
compreender que caminhamos no maior cemitério
do mundo, um cemitério cujos ‘monumentos’ não
passam dos restos dos aparelhos concebidos
precisamente para o assassinadto de cada um
separadamente e de todos juntos.”106
Os nossos mortos, os nossos desaparecidos e
os nossos torturados estão nas paredes, no piso e nas escadas
daqueles prédios; as dores e os sofrimentos ainda subsistem no
pátio e nos corredores; os gritos ainda ecoam nas salas e
106 Georges Didi-Huberman. “Cascas”, Editora 34, 1ª edição, São Paulo, 2017, p. 61/62.
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reverberam pelas janelas; os sonhos de liberdade ainda refletem
naquele espaço. A memória da história política brasileira recente
emerge daquelas instalações físicas como uma convocação para
que a façamos vir à tona: num gesto de respeito e reconhecimento
por quem se sacrificou na luta pela justiça e pela democracia; numa
convicção de quem não deseja que aquela história se repita; ou
desejaque aquela história não tenha que se repetir107
.
Por isso, é fácil concluir que muito mais que as
características formais, o que importa no complexo do antigo DOI-CODI
é a sua dimensão de espaço coletivo de sofrimento em decorrência da
ação política ilegal e criminosa do Estado num dado momento histórico.
Marcelo Godoy observa, quanto ao DOI-CODI, um
modo de atuação que não pode subsistir numa sociedade democrática:
“...o objetivo principal da Investigação e, por
extensão, do DOI: descobrir e destruir o inimigo,
em vez de reunir provas para punir legalmente
delitos praticados. A tática policial estava a serviço
de uma estratégia militar. O padrão de
comportamento dos agentes nos tiroteios não era
de quem age em legítima defesa, mas a do militar
em guerra, a quem é permitido matar em
emboscada, atirar pelas costas, enfim, condutas
107“Não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos. E nós temos muitos” (Amelinha
Teles). In “Memórias Resistentes – Memórias Residentes – Lugares de Memória da Ditadura Civil-
Militar no Município de São Paulo”, 1ª edição, São Paulo, 2017, p. 76.
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que poderiam levar um policial à prisão”108
.
Não há, naqueles feios prédios, qualquer valor
arquitetônico ou artístico que justificasse o tombamento ou sua utilização
como equipamento cultural. Seu valor decorre do ensinamento que suas
paredes guardam e que precisam chegar às futuras gerações, de que a
ordem política estabelecida não pode permitir que o Estado se torne um
assassino de seus cidadãos e de suas cidadãs.
Fora este valor simbólico de memória que
fundamentara a decisão administrativa de tombamento do imóvel.
Já se disse e já se transcreveu acima, mas é
preciso repetir: dentre os considerandos e motivos do ato administrativo
de tombamento, Resolução SC-25, de 12 de maio de 2014, da Secretaria
de Estado de Cultura, anotou-se que:
• Que os edifícios que abrigaram o DOI-CODI constituem
lugar de memória da repressão e da resistência à
Ditadura Civil- Militar no Brasil entre 1964-1985;
• Que os edifícios representam a institucionalização do
terrorismo de Estado;
• Que representam testemunho material da história
política recente;
• Que se trata de local simbólico de violação dos Direitos
Humanos e privação de liberdade durante o período da
108 Marcelo Godoy, ob. cit.
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Ditadura Civil-Militar;
• Que os edifícios e espaços ali remanescentes são o
suporte físico à memória da repressão e da resistência;
(...)”
Por tais motivos, e exclusivamente por eles, é
que o imóvel fora tombado:
Art. 1º. Fica tombado como bem cultural de
interesse histórico o aqui designado Conjunto das
instalações da OBAN (Operação Bandeirante) e
do DOI-CODI – II Exército (Destacamento de
Operações de Informações – Centro de
Operações de Defesa Interna), situados à Rua
Tutóia, 921 (também com acesso pela Rua Tomás
de Carvalhal, 1030), formado por suas edificações
e remanescentes.
Como se observou acima, já houve, por parte do
Estado de São Paulo, reconhecimento oficial de que os edifícios objeto
desta ação “representam a institucionalização do terrorismo de
Estado”. E que, por esse motivo, e somente por esse motivo,devem
ser preservados como local de memória.
Vê-se, portanto, que o tombamento tivera como
sentido único o conteúdo simbólico de memória dos atos de repressão
política da ditadura militar havidas naquele imóvel. Sendo assim, o Estado
tem o dever jurídico de dar concretude ao ato administrativo de
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tombamento e transformar o imóvel em espaço de memória, com o
alcance educativo e de consolidação democrática que tal espaço encerra.
Isso porque o tombamento é ato que, para efeitos de fruição, não se
encerra em si mesmo. Faz-se necessário que haja políticas públicas de
valorização e reconhecimento do espaço, para que seus valores sejam
usufruídos de forma plena pelo coletivo. E tais edifícios, sem uso e vazios,
deixam de cumprir com sua vocação natural.
Leciona, uma vez mais, Deborah Neves:
“...a preservação por meio do tombamento não se
encerra em si, mas está ligada ao tipo de
ocupação que os imóveis recebem. Vale salientar
que a mera preservação do ponto de vista do
material se mostra insuficiente para a produção do
impacto social positivo que se pretende com tal. O
tombamento é um passo, embora importantíssimo,
para a construção de consciência e reflexão sobre
os mais diversos valores, incluindo os
democráticos, na sociedade brasileira. Portanto, o
Estado (...) pode e deve encabeçar gestos e criar
símbolos que outorguem sentido social à
reparação de danos causado por regimes
autoritários. Nos casos específicos deste tipo de
preservação, trata-se de uma medida de
reparação simbólica que demonstra a legitimidade
da mobilização de parte da sociedade interessada
na preservação de direitos humanos bem como
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contribuir para a discussão pública de temas
relacionados às mais recentes ditaduras no Cone
Sul”.109
E prossegue a culta historiadora, em lição muita
oportuna para a discussão travada neste ponto da petição inicial:
“...o reconhecimento oficial por parte do Estado é
uma das formas mais eficazes de transformar
aquela memória, até então restrita a esse grupo,
importante para todos. Afinal, com o tombamento
– no Brasil, mas de forma similar em outros países
– reconhece-se um local como portador de
‘referências à identidade, à ação e à memória dos
diferentes grupos formadores da sociedade’110
. Ou
seja, ao se tombar um lugar, a importância deixa a
esfera privada para se tornar referência coletiva –
ou ao menos indicado como tal pelo Estado.”
E conclui a doutora em história pela Universidade
Estadual de Campinas e técnica da Secretaria Estadual de Cultura:
“Além da reparação simbólica produzida pelo
ato, o tombamento de locais ligados a uma
memória traumática torna público os efeitos de
109 Ob. cit., p. 167/168
110 Alusão a textos da Constituição Estadual de São Paulo (art. 260) e da Constituição Federal (art.
216).
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ditaduras, e pode ser instrumento relevante na
defesa dos direitos humanos e dos valores
democráticos.”111
Nesta perspectiva, é indispensável concluir que o
dever do Estado em efetivar o centro de memória nas antigas instalações
do DOI-CODI decorre do ato administrativo de tombamento, pelos
motivos que fundamentaram tal ato.
Vale lembrar que o ato de tombamento, por si só,
não acarreta o dever jurídico do Estado de conferir dada finalidade ao
imóvel tombado. Como exemplo, um imóvel residencial privado que seja
tombado pelo seu relevante valor arquitetônico, certamente continuará
sendo usado como moradia pelo seu proprietário particular, que sofrerá
apenas as restrições alusivas às modificações arquitetônicas.
Do mesmo modo, por exemplo, um imóvel público
que seja tombado pelo seu relevante valor histórico, certamente poderá
continuar a abrigar a repartição pública que o ocupa, sem qualquer
obrigação, só por isso, de modificar sua utilização.
No caso do DOI-CODI, no entanto, a situação é
totalmente diversa: o tombamento só ocorreu por conta do valor
simbólico derivado de sua anterior utilização, pelo Estado totalitário,
como centro de torturas e de desaparecimentos forçados. Deste
modo, não será eficiente o Estado se o mantiver como uma mera
111 Ob. cit., p. 168.
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repartição policial!
Além disso, a melhor forma de preservar este bem
tombado é a sua utilização como instrumento da política cultural. A
Constituição do Estado de São Paulo traz fundamentação suficiente para
este uso.
Conforme se observa no art. 237 da Constituição
Estadual:
A educação, ministrada com base nos princípios
estabelecidos no artigo 205 e seguintes da
Constituição Federal e inspirada nos princípios de
liberdade e solidariedade humana, tem por fim:
I - a compreensão dos direitos e deveres da
pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família
e dos demais grupos que compõem a comunidade;
II - o respeito à dignidade e às liberdades
fundamentais da pessoa humana;
(...)
VI - a preservação, difusão e expansão do
patrimônio cultural;
Da mesma maneira, o Estado de São Paulo tem a
obrigação de garantir o pleno exercício de direitos culturais:
Artigo 259 - O Estado garantirá a todos o pleno
exercício dos direitos culturais e o acesso às
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fontes da cultura, e apoiará e incentivará a
valorização e a difusão de suas manifestações.
(...)
Artigo 262 - O Poder Público incentivará a livre
manifestação cultural mediante:
V - planejamento e gestão do conjunto das ações,
garantida a participação de representantes da
comunidade;
E não se pode negar que a não utilização do DOI-
CODI, já tombado, como espaço de memória, fere o direito à cultura
assegurado pela Constituição Estadual.
Tanto assim o é, que está em curso, no âmbito
da própria Secretaria de Cultura e Economia Criativa, por meio da
UPPH, a adoção de mecanismos que garantam a adequada utilização
e fruição do bem cultural, bastando que se viabilize a implantação
das medidas, que tem sido debatidas exaustivamente no Grupo de
Trabalho.
Assim, o Estado só cumprirá a finalidade do ato e
se desincumbirá com eficiência de sua obrigação se transformar o local
num equipamento cultural destinado a enaltecer aquele passado que
fundamentara o ato administrativo de tombamento, fazendo-o espaço
educativo voltado à não-repetição daquela situação histórica.
Daí se poder dizer, pois, que a obrigação legal
de que se cuida nesta ação decorre do princípio adminstrativo da
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eficiência, derivado dos motivos e da motivação do ato jurídico-
administrativo. E por reflexa, também do princípio administrativo da
moralidade.
Além disso, vale repetir: não transformar o DOI-
CODI em um espaço cultural viola frontalmente a Constituição
Estadual.
O patrimônio público deve estar destinado ao uso
no sentido de sua finalidade, isto é, a destinação de um bem público é
teleológica.
Todo bem público deve ser administrado de modo
a atender ao interesse público; e fazer com que dado e determinado bem
propicie a máxima vantagem à população é expressão da eficiência que
se exige de um administrador público.
Assim, um imóvel tombado por importância
histórica por ter sido espaço de graves violações de direitos humanos (e
não por seu valor arquitetônico ou artístico), não pode servir como espaço
para uma repartição policial e deve, sim, estar a serviço da educação em
direitos humanos, como instrumento para evitar a repetição do que lá
acontecera.
Estes foram os motivos que inspiraram tanto o
pedido quanto o ato administrativo de tombamento; e do respectivo
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processo administrativo, eles constam expressamente como as
motivações do mesmo ato112
.
O tombamento é um ato administrativo de
motivação vinculada ou obrigatória. Ora, se o tombamento do imóvel se
deu por aqueles motivos, e só por eles, é curial que a Administração
Pública – e, em especial, a pessoa jurídica de Direito Público que seja a
titular de seu domínio – cumpra a finalidade que decorre daqueles
motivos, sob pena de violação dos princípios da eficiência e da
moralidade.
De fato, isso tem a ver com o princípio da eficiência
(art. 37, CF), a partir do qual se
“exige que a atividade administrativa seja exercida
com presteza, perfeição e rendimento
funcional.”113
Manter um vívido espaço de memória de violações
habituais de direitos humanos e de prática habitual de violência do Estado
como uma repartição policial não revela, por parte do governo paulista,
presteza e perfeição; e não oferece rendimento funcional. Ao contrário,
revela escárnio e deboche para com as vítimas e seus familiares.
112 Sobre a distinção conceitual entre motivo e motivação do ato administrativo, vale a lição de Celso
Antonio Bandeira de Melo, in “Grandes Temas de Direito Administrativo”, Editora Malheiros, 1ª edição,
São Paulo, 2009, p. 72.
113 Hely Lopes Meireles. “Direito Administrativo Brasileiro”, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo,
Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. Editora Malheiros, 35ª edição, São Paulo, 2009,
p. 98.
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Um imóvel público que tem essencialmente
uma finalidade não pode estar a serviço de outra, porque o resultado
para o público destinatário será ineficiente. A situação atual naquele
imóvel, portanto, é de clara violação ao princípio da eficiência.
Neste sentido, não seria descabido, também, falar-
se em violação ao princípio da moralidade, igualmente previsto no artigo
37 da Constituição Federal.
“Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo
autor [Hauriou] que o agente administrativo, como
ser humano dotado da capacidade de atuar, deve,
necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o
honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá
desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim,
não terá que decidir somente entre o legal e o
ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o
inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas
também entre o honesto e o desonesto. Por
considerações de Direito e de Moral, o ato
administrativo não terá que obedecer somente à lei
jurídica, mas também à lei ética da própria
instituição, porque nem tudo que é legal é honesto,
conforme já proclamavam os romanos: ‘non omne
quod licet honestum est’. A moral comum, remata
Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta
externa; a ‘moral administrativa’ é imposta ao
agente público para sua conduta interna,
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segundo as exigências da instituição a que
serve e a finalidade de sua ação: o bem
comum.”114
O espaço que está sendo atualmente ocupado
também pela Delegacia de Polícia foi, segundo consta, o maior
centro de tortura do país. Não se mostra razoável que um espaço de
relevância histórica tão grande seja utilizado como almoxarifado. Ou
mesmo seja abandonado, sem possibilidade de visitação
pedagógica e reconstrução da memória coletiva.
Além dessas considerações, o dever decorre
também de norma internacional lato sensu.
A Comissão Interamericana de Direitos Humanos
editou o documento denominado “Princípios sobre Políticas Públicas de
Memória nas Américas”, por meio da Resolução nº 3/2019.
Dentre os seus considerandos, o documento
lembra a vinculação dos Estados Membros da OEA às suas
recomendações, anotando que:
“Os Estados Membros da Organização dos
Estados Americanos (OEA) estão obrigados a
dispor de mecanismos efetios e integrais para
garantir o direito à verdade tanto das vítimas de
graves violações de direitos humanos como da
114 Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 90.
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sociedade em seu conjunto; (...) e o
estabelecimento de mecanismos que evitem a
repetição de graves violações de direitos humanos
ocorridas”115
O importante documento leva em conta, ainda em
seus fundamentos, que:
“As violações a direitos humanos no presente
guardam continuidade com as graves violações
aos direitos humanos do passado; a tendência
observada do regresso do envolvimento das
Forças Armadas em matéria de segurança e
cidadania; e a necessidade urgente de sensibilizar
as novas gerações acerca da importância de
defender a democracia representativa com todas
suas garantias e assegurar o respeito pelo Estado
de Direito e pelos Direitos Humanos”116
E com base em tais fundamentos e objetivos, a
Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda aos Estados
115
Resolução nº 3/2019 da CIDH, Tradução livre para “los Estados Miembros de la Organización de los
Estados Americanos (OEA) están obligados a disponer mecanismos efectivos e integrales para
garantizar el derecho a la verdad tanto de las víctimas de graves violaciones de derechos humanos
como de la sociedad en su conjunto; (…) y el establecimiento de mecanismos que eviten la repetición
de las graves violaciones a los derechos humanos ocurridas.”
116 Resolução nº 3/2019 da CIDH, Tradução livre para: “las violaciones a los derechos humanos del
presente que guardan continuidad con las graves violaciones a los derechos humanos del pasado; la
tendencia observada del regreso del involucramiento de las fuerzas armadas en materia de seguridad
ciudadana; y la necesidad urgente de sensibilizar a las nuevas generaciones acerca de la importancia
de defender la democracia representativa con todas sus garantías y de asegurar el respeto por el
Estado de derecho y los derechos humanos.”
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Membros da OEA, aderentes ao Sistema Interamericano de Proteção de
Direitos Humanos – dentre os quais o Estado brasileiro – que, dentre os
princípios relativos a iniciativas de memória de caráter educativo, cultural
ou de outra natureza, está:
“Instauração de monumentos, sinalizações em
espaços público, memoriais e museus em
reconhecimento das vítimas, e remoção ou
correção contextualizada de monumentos,
memoriais, museus, escuso, insígnias que louvem
a memória de perpetradores”117
Ademais, o documento abre uma sessão
específica sobre os sítios de memória, destacando-se, dentre os vários
princípios previstos, que:
“As medidas de garantia física dos lugares de
memória devem contemplar os padrões
internacionais vigentes em matéria de construção
ou recuperação e preservação arqueológica,
arquitetônica e forense”.118
Além desse documento internacional, épreciso
117 Resolução nº 3/2019 da CIDH, Princípio IX, “e”. Tradução livre para: “Instauración de monumentos,
señalizaciones en espacios públicos, memoriales y museos en reconocimiento de las víctimas, y quita
o enmienda contextualizada de monumentos, memoriales, museos, escudos, insignias y placas que
alaben la memoria de perpetradores”
118 Idem, Princípio XII. Tradução livre para: “Las medidas de aseguramiento físico de los sitios de
memoria deben contemplar los estándares internacionales vigentes en materia construcción o
recuperación y preservación arqueológica, arquitectónica y forense”
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lembrar ainda que a obrigação do Estado brasileiro (Estado, aqui, num
sentido amplo; a obrigação, neste caso, é do Estado-Membro paulista,
titular do domínio do imóvel) em dar ao complexo predial o cuidado de
“espaço de memória” decorre também de sua condição de signatário do
documento “Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre
sítios de memória”, elaborado em setembro de 2012 e aprovado em 30
de novembro de 2012, na IV Reunião Extraordinária de Altas Autoridades
em Direitos Humanos e Chancelarias do MERCOSUL e Estados
Associados (RAADH), tendo sido ratificado na XLIV Cúpula de Chefes e
Chefas de Estado do MERCOSUL e Estados Associados, realizada em
Brasília (DF), em 6 e 7 de dezembro de 2012.119
O documento cria uma política pública comum aos
países do Mercosul em relação ao tratamento que deve ser dado aos
espaços considerados “lugares de memória”, a fim de fomentar uma maior
cooperação para preservar o direito à verdade e à memória, assim como
levar a cabo uma iniciativa sobre memória e preservação de sítios
históricos em que ocorreram ações repressivas e detenções clandestinas
como testemunha do ocorrido no passado da região.
O texto do organismo regional é abrangente e
minucioso, trazendo dentre os princípios gerais (item 1):
1. Para efeito destes princípios são considerados lugares de
memória todos aqueles lugares onde se cometeram
graves violações aos direitos humanos, ou aonde se
119 O amplo e rico documento pode ser acessado por aqui: https://www.ippdh.mercosur.int/wp-
content/uploads/2014/11/Sitios_de_memoria_FINAL_PR_INTERACTIVO.pdf
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resistiram ou se enfrentaram essas violações, ou que por
algum motivo as vítimas, seus familiares ou as
comunidades os associam com tais acontecimentos, e
que são utilizados para recuperar, repensar, e transmitir
o conhecimento sobre processos traumáticos, e/ou para
homenagear e reparar as vítimas.
2. Os Estados onde se cometeram graves violações aos
direitos humanos devem implantar políticas públicas
sobre lugares de memória. As mesmas devem garantir a
criação, preservação, funcionamento, gestão e
sustentabilidade desses lugares. Em particular, deve-se
procurar sua criação em locais onde ainda não existem.
Quanto aos princípios sobre a preservação de
lugares onde se cometeram graves violações aos direitos humanos (item
2), preconiza:
12. As medidas de preservação física que se adotem para
preservar os lugares onde se cometeram graves
violações aos direitos humanos devem incluir tanto
tarefas de conservação como de manutenção.
13. As medidas de asseguração física que se adotem para
preservar os lugares onde se cometeram graves
violações aos direitos humanos devem considerar as
recomendações dos profissionais ou especialistas
correspondentes a cada caso, incluindo, entre outros,
antropólogos, arqueólogos, arquitetos, historiadores,
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museologistas, conservadores/restauradores,
arquivistas e/ou advogados.
No que tange aos princípios sobre a identificação,
sinalização e determinação do conteúdo dos lugares de memória (item 3),
o documento prevê:
22. As políticas públicas sobre lugares de memória devem
garantir às vítimas, seus familiares, às comunidades
locais, aos organismos de direitos humanos, e à
sociedade em geral a participação mais ampla possível
na definição dos formatos e conteúdos de tais lugares.
Já no que concerne aos princípios sobre a
estrutura institucional dos lugares de memória (item 4), o documento
afirma que:
25. Os Estados têm a obrigação de adotar um contexto
jurídico preciso e adequado para a criação,
preservação, funcionamento e gestão dos lugares de
memória.
26. A estrutura institucional dos lugares de memória deve
garantir sua sustentabilidade institucional e
orçamentária. Sua regulamentação por lei pode
contribuir para seu fortalecimento institucional.
27. A estrutura institucional dos lugares de memória deve
contemplar a formação de equipes de trabalho idôneas
que permitam atingir os objetivos propostos para cada
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lugar.
28. A estrutura institucional dos lugares de memória deve
incluir mecanismos de transparência, monitoramento e
avaliação que permitam a prestação de contas e o
controle por parte da sociedade, incluindo a execução
orçamentária.
29. A estrutura institucional dos lugares de memória deve
contemplar a participação mais ampla possível das
vítimas e de seus familiares, e as comunidades locais.
Cuidam-se, ambos os textos, de documentos
internacionais classificados pela doutrina sobre Direito Internacional dos
Direitos Humanos, como soft law.
O fato de assim ser classificada, contudo, não
desobriga o Estado de acatá-los, já que o conjunto de normas produzidas
pelos sistemas internacionais de proteção de direitos – sejam as
provenientes das Nações Unidas, sejam as resultantes de organismos
internacionais multilaterais ou regionais – inserem-se num contexto de
paz global e respeito internacional aos direitos do homem, como
expressão maior do sentimento de humanismo que emerge da Segunda
Guerra Mundial.
Discorrendo sobre documento de soft law
produzido pelas Nações Unidas, Valério de Oliveira Mazzuoli observa:
A natureza de ‘soft law’ da diretriz das Nações
Unidas não autoriza os Estados e as empresas a
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desrespeitar os Princípios Orientadores ou deixar
de segui-los, uma vez que emanam ‘in concreto’
do labor da ONU no combate às violações de
direitos humanos e na promoção cada vez mais
significativa desse direitos”.120
Assim há de se considerar esse importante
documento do Mercosul quanto à necessidade de que seja observado
pela ora ré, adotando suas diretrizes na gestão de sua política de lugares
de memória em geral e no que toca ao centro de memória que há de ser
construído no antigo DOI-CODI em particular.
Por fim, em razão de tudo que foi alegado, chega-
se à natural conclusão de que a não construção de um espaço de
memória no local violaria a função social da propriedade, prevista na
Constituição Federal, artigo 5º, XXII.
Ao se dizer que “a propriedade atenderá a sua
função social”, a Constituição Federal obriga que uma propriedade,
publica ou privada, atenda interesses da coletividade. A função social
impõe limites ao direito de propriedade para garantir que o exercício deste
direito não seja prejudicial ao bem coletivo.
E não se pode considerar que o abandono de um
prédio público, já tombado, tão significativo à história nacional, seja dar
destinação social adequada.
120 Mazzuoli. Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos, Editora Método, 5ª edição, São Paulo,
2018, p. 545.
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Assim, não seria exagero afirmar que, dentro da
perspectiva do direito constitucinoal, o espaço onde funcionou o DOI-
CODI só pode cumprir sua verdadeira função social ao ser transformado
em um espaço cultural de memória.
E os exemplos de utilização da propriedade dentro
de sua funcionalidade social são fartos, como se observa nos próximos
tópicos.
5.4) Exemplos de lugares de memória na América Latina.
A segunda metade do século XX, na América
Latina, foi marcada por ditaduras militares em vários países, instituídas a
partir de golpes de Estado praticados no contexto da Guerra Fria.
Notadamente no Cone Sul, além do Brasil, também Argentina, Uruguai,
Chile e Paraguai viveram ditaduras igualmente sangrentas e homicidas,
fundadas em políticas de repressão baseadas em violência de Estado.
Cada nação encontrou seu caminho para a
superação do regime de exceção e para a reconstrução democrática. Em
todos, entrentanto, houve um traço comum: a adoção de políticas de
memória e verdade que envolveram espaços de memória.
Com efeito, em toda a América Latina há lugares
de memória que foram protegidos. Em Buenos Aires, na Argentina, a
Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) é uma referência de
local de memória, onde funcionou entre 1976 e 1983, um centro
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clandestino de detenção e de prática sistemática de tortura121
. Em 2004
foi instalado um espaço de promoção da memória política, chamado
“Espacio Memoria y Derechos Humanos”122
.
Esse espaço de memória aproveitou um local em
que houve, de fato, violações de direitos humanos. No espaço da antiga
Escola Superior de Mecânica da Armada eram praticadas sessões de
tortura e também se tem notícia de execuções extrajudiciais. O informe
“Nunca Más”, que fui publicado pela “Comisión Nacional sobre la
Desaparición de Personas (CONADEP)” apontou que:
A ESMA não era apenas um centro clandestino de
detenção, onde aconteciam torturas, mas
funcionava como centro operacional de uma
complexa organização que, inclusive,
possivelmente pretendia ocultar o extermínio das
vítimas dos crimes cometidos. Assim, funcionou
como um grande centro que se projetou e
organizou uma extensa variedade de atividades
delituosas clandestinas. Embora praticadas por
um grupo especial, não se tratava de atividades
independentes da estrutura hierárquica, mas que
dependia do comando da armada123
.
121 Pela ESMA, passaram cerca de 5000 pessoas, mas apenas uns 200 sobreviveram, segundo
Deborah Regina Leal Neves – A Persistência do Passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São
Paulo e Buenos Aires. Editora Alameda, 1ª edição, São Paulo, 2018, p. 45.
122 Disponível em: https://www.espaciomemoria.ar/lugar/. Acesso em 28 de abr. 2020.
123 Tradução livre do seguinte texto: “La ESMA no sólo era un centro clandestino de detención donde
se aplicaban tormentos, sino que funcionaba como el eje operativo de una compleja organización que,
incluso, posiblemente pretendió ocultar con el exterminio de sus víctimas los delitos que cometía. Es
así que operó como un gran centro que se proyectó y organizó una extensa variedad de actividades
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Observa-se, portanto, que este espaço de
memória apresenta inúmeras relações com o antigo DOI-CODI, motivo
pelo qual merece ser mencionado na presente demanda e quiçá utilizado
como paradigma. Como se mencionou no item “3.4) O Caso Vladimir
Herzog”, no DOI-CODI eram praticadas execuções num contexto de
clandestinade e, por isso, na medida do possível, tentava-seapresentar
uma ideia de “normalidade”, sugerindo-se um suicídio, quando, na
verdade, aconteceu um homicídio, financiado e executado pelo Estado
brasileiro.
Do mesmo modo se dava com os vários
homicídios (execuções extrajudiciais) retratados como mortes em
confronto com policiais, versões criadas fraudulentamente por meio de
encenações, sempre no propósito de empulhar a opinião pública com a
ideia de que se tratava de regular e normal atividade policial de combate
à criminalidade.
Ainda na Argentina, foi criado, em 1998, o “Parque
de la memoria”124
, em Buenos Aires, nas margens do Rio da Prata, onde
há um monumento em homenagem às vítimas de terrorismo de Estado.
Esse espaço de memória, por outro lado, não indica necessariamente o
local onde aconteceram graves violações de direitos humanos, mas faz
delictivas clandestinas. Aunque fueron ejecutadas por un grupo especial, no se trataba de actividades
independientes de la estructura jerárquica sino que dependían de los mandos naturales de la Armada”.
Disponível em: http://www.derechoshumanos.net/lesahumanidad/informes/argentina/informe-de-la-
CONADEP-Nunca-mas-Indice.htm#C1. Acesso em 28 abr. 2020
124 Disponível em: https://www.facebook.com/ParquedelaMemoria/. Acesso em 28 de abril. 2020. O
sítio eletrônico oficial faz encaminhamento à página oficial do parque, que se encontra no facebook.
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homenagem às vítimas125
.
Também no interior da Argentina, alguns imóveis
utilizados pela ditadura para a repressão política se converteram em
importantes memoriais, a exemplo do “Museu da Mémória”, em Córdoba,
instalado onde funcionava o Departamento de Inteligência da ditadura,
conhecido como D2. Seu grande diferencial é um extenso varal, numa
ruela pública de pedestres, Calle San Jeronimo, com fotografias de
mortos e desaparecidos nele dependuradas.
No Chile, que também passou por uma ditadura
militar no período compreendido entre 1973 e 1990,igualmente há
espaços de memória dedicados às vítimas de terrorismo de estado. Entre
eles, dois merecem destaque: “Londres 38” e “Museo de la Memoria y los
Derechos Humanos”.
O “Londres 38” foi um espaço utilizado pela
Direção de Inteligência Nacional como lugar de detenção e tortura de
opositores da ditadura militar de Augusto Pinochet. O recinto se encontra
no centro da cidade de Santiago, mais especificamente na Rua Londres,
nº 38, proximidades da sede da Universidade do Chile.
Desativado com o término da ditadura em 1973,
somente em 2005 foi declarado “monumento nacional” e, após, iniciaram-
125 Embora não se possa dizer que este ponto do Rio da Prata seja um “local de memória”, existe uma
referência, mesmo que indireta, aos “voos da morte”, em que opositores do regime militar argentino
eram lançados, ainda vivos, ao rio:
http://www.dhnet.org.br/direitos/mercosul/a_pdf/nunca_mas_argentino.pdf
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se os trabalhos necessários para abri-lo à visitação126
.
Este espaço de memória também se mostra como
um exemplo a ser seguido nesta demanda, já que se trata do
aproveitamento de um espaço de violações de direitos humanos que foi
transformado em um espaço de memória e verdade, assim como a ESMA.
Por fim, cumpre mencionar ainda no Chile, a
existência do “Museo de la Memoria y los Derechos Humanos”, em Quinta
Normal. Este museu não foi espaço de violações de direitos humanos,
mas traz a memória destas violações no Chile e também em diversos
outros países da América Latina, inclusive o Brasil127
. Foi construído já
em tempos democráticos exatamente para servir à finalidade de memorial
daqueles tempos de horror.
Em Montevidéu, Uruguai, há o “Museu da Memória
de Montevidéu”, em cujo acervo há documentos, imagens, fotografias e
outros itens relacionados ao terrorismo de Estado praticado pela ditadura
que lá vigorou de 1973 a 1985.128
Percebe-se, portanto, que há, ao menos no Cone
Sul, tentativas de se trazer à memória nacional a verdade dos fatos sobre
as ditaduras militares da segunda metade do século vinte, com base nas
126 Disponível em: http://www.londres38.cl/1937/w3-propertyvalue-35250.html. Acesso em 28 abr. 2020
127 Disponível em: http://ww3.museodelamemoria.cl/. Acesso em 28 abr. 2020
128 Disponível em https://mume.montevideo.gub.uy/museo/centro-cultural-museo-de-la-memoria.
Acesso em 28 abr. 2020
Consta da página eletrônica: El MUME es una institución de la Intendencia de Montevideo dedicada a
la construcción de la memoria sobre el terrorismo de Estado y la lucha del pueblo uruguayo contra
la dictadura, de modo de aportar conocimiento a las nuevas generaciones sobre la historia reciente de
nuestro país y fortalecer los elementos constitutivos de la identidad nacional.
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narrativas oficiais e historiográficas, sem revisionismo,de modo a se
consolidar as respectivas democracias.
Como já mencionado no tópico acima, a realização
da justiça de transição nada mais é do que a concretização do Estado
Democrático de Direito. É, no mínimo, uma conquista civilizatória. Isso
porque, ao mesmo tempo em que se demonstra o que aconteceu, faz-se
um juízo de valor negativo disso, repudiando-o, para que não se repita. E
neste ponto não cabe revisionismo histórico. Não se pode aceitar,
independentemente de qualquer orientação política ou ideológica, que o
Estado seja criminoso e pratique, de modo sistemático, os crimes de
tortura e de desaparecimentos forçados.
5.5) Espaços de memória em São Paulo.
Em relação à consolidação e respeito aos espaços
de memória, o Brasil está significativamente atrás dos outros países do
Cone Sul acima mencionados.
No Estado de São Paulo, de acordo com a
Comissão Nacional da Verdade, mais especificamente o estudo “Lugares
de Memória, Arqueologia da Repressão e da Resistência e Locais de
Tortura” (doc. Anexo - Relatório - Tomo I - Parte IV - Lugares da Memória,
Arqueologia da Repressão e da Resistênciae Locais de Tortura),
destacam-se os seguintes aparatos de repressão:
• Departamento Estadual de Ordem Política eSocial
(Deops/SP);
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• Sede da Operação Bandeirante, que deu origem ao
Destacamento de Operações de Informações e do
Centro de Operações de Defesa Interna (OBAN – DOI-
Codi), localizado à rua Tutoia, onde funciona atéhoje o
36º Distrito Policial;
• Prédio da Auditoria Militar;
• Presídio Tiradentes, do qual, hoje, resta apenas seu
pórtico de entrada, localizado na Avenida Tiradentes
esquina com a Praça Coronel Fernando Prestes,
tombado pelo Condephaat e reconhecido como lugar de
memória;
• Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru);
• Complexo Penitenciário do Estado de São Paulo
(Presídio do Hipódromo).
Os espaços de maior relevância no aparato
repressivo do Estado de São Paulo foram o Departamento Estadual de
Ordem Política e Social (Deops/SP) e a Sede da Operação Bandeirante,
que deu origem ao Destacamento de Operações de Informações e do
Centro de Operações de Defesa Interna (OBAN – DOI-Codi).
Isto porque neles é que foram pensadas e
executadas as prisões, torturas, execuções extrajudiciais e
desaparecimentos forçados. As demais instituições só atuaram em
consequência do que se fez naqueles dois centros do pensamento
repressivo: na Auditoria Militar, dava-se ar de legalidade às prisões
arbitrárias, num manejo do Direito para legitimar a repressão; e nos
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presídios, cumpriam pena os que sobreviviam às torturas.
Esta consideração não pretende tirar o valor de
espaço de memória da Auditoria Militar Federal e dos presídios, mas tão
somente enaltecer, no contexto desta demanda cujo objeto é o antigo
DOI-CODI, a relevância dos dois centros de planejamento e execução da
repressão política em São Paulo.
Vale lembrar que o antigo prédio do DOPS, no
Largo General Osório, abriga o Memorial da Resistência129
, instituição
ligada ao Governo Estadual e dedicada à preservação das memórias da
resistência e repressão políticas do Brasil no período republicano, isto é,
de 1889 à atualidade. Por terem sido deterioradas durante o procedimento
de reforma e restauração, as celas foram reconstituídas sem o caráter de
originalidade.
Já o prédio da antiga Auditoria Militar Federal,
localizado na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, abrigará o Memorial da
Luta por Justiça, registrando a memória de trabalhadores e advogados na
luta pela redemocratização brasileira. A formação do memorial está sob
responsabilidade da seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil
e do Núcleo de Preservação da Memória Política.
O Presídio Tiradentes foi demolido para
construção da Estação Tiradentes do Metrô, remanescendo apenas o
portal original da construção colonial.
129 Disponível em http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/default.aspx. Acesso em 18 de
fev. 2021
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Também a Casa de Detenção de São Paulo, o
presídio do Carandiru, foi demolida depois do Massacre de 1992, dando
lugar ao Parque da Juventude.
O presídio do Hipódromo, localizado na rua do
mesmo nome no Brás (que a despeito de ter recebido presos políticos
durante a ditadura militar, foi presídio comum na maior parte de sua
história), foi desativado e o imóvel, atualmente sob posse da Fundação
Casa, acha-se em péssimas condições de conservação, e parcialmente
vazio.
Cabe, então, neste ponto, aprofundar-se a
discussão especificamente sobre a política de memória que vem sendo
executada em relação ao espaço do DOI-CODI, apontando o caminho
que é necessário seguir – sendo este o ponto nevrálgico desta demanda,
já que o poder público estadual, apesar de ser obrigado a concretizar esse
direito, se abstém de fazê-lo: tombado o imóvel por força de seu valor
histórico e memorialístico, é preciso convertê-lo em espaço de memória
histórica a serviço de toda a população paulista e brasileira.
A este respeito, a Declaração de Quebec sobre a
preservação do spiritu loci, assumido em Québec, Canadá, em 4 de
outubro de 2008 pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios
(Icomos), reconheceu que um lugar é composto por suas características
tangíveis e intangíveis, que constituem conjuntamente o spiritu loci.
Nesse sentido, a carta aponta que:
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“O espírito do lugar é definido como os elementos
tangíveis (edifícios, sítios, paisagens, rotas,
objetos) e intangíveis (memórias, narrativas,
documentos escritos, rituais, festivais,
conhecimento tradicional, valores, texturas, cores,
odores, etc.) isto é, os elementos físicos e
espirituais que dão sentido, emoção e mistério ao
lugar. REPENSANDO O ESPÍRITO DO LUGAR
(...) 2. Considerando que o espírito do lugar é
complexo e multiforme, exigimos que os governos
e outros interessados convoquem a perícia de
equipes de pesquisa multidisciplinar e
especialistas com tradição para melhor
compreender, preservar e transmitir este espírito
do lugar.
E, dentro da interpretação desta declaração, o
espírito do lugar deve ser transmitido:
8. Reconhecendo que o espírito do lugar é
essencialmente transmitido por pessoas e que a
transmissão é parte importante de sua
conservação, declaramos que é por meio de
comunicação interativa e participação das
comunidades envolvidas que o espírito do lugar é
preservado e realçado da melhor forma possível.
A comunicação é, de fato, a melhor ferramenta
para manter vivo o espírito do lugar.
(...)
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10. Reconhecendo que a transmissão
intergeracões e transcultural desempenha um
papel importante na disseminação sustentada e na
preservação do espírito do lugar, recomendamos
a associação e o envolvimento das gerações mais
novas, bem como de grupos culturais diferentes
associados ao lugar, na tomada de decisões
políticas e gestão do espírito do lugar.130
Este é justamenteo o objetivo da presente
demanda judicial.
5.6) DOI-CODI como espaço de memória – impossibilidade de
manutenção da 36ª Delegacia de Polícia.
Conforme se observa no texto introdutório sobre
locais de memória na Comissão Estadual da Verdade, as políticas do
patrimônio histórico e cultural de interesse da justiça de transição devem
garantir o registro dos mais diversos tipos de memória. Devem garantir,
também, a integridade física dos locais em que se almeja proteger, bem
como assegurar que o uso dos bens imóveis identificados esteja
associado ao direito à memória, à verdade e à justiça131
.
130 ICOMOS. Declaração de Quebec sobre o spiritu loci (2008). Disponível em
http://www.international.icomos.org/quebec2008/quebec_declaration/pdf/GA16_Quebec_Declaration_
Final_PT.pdf. Acesso em 05 de maio de 2021.
131 Disponível em:
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da-
memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago.
2020
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A primeira medida para se garantir a criação de um
espaço de memória no local do antigo do DOI-CODI foi seu tombamento.
Esse procedimento está descrito no documento
“Lugares da memória, arqueologia da repressão e da resistência e locais
de tortura”132
. Conforme se observa neste esclarecedor texto, em 29 de
novembro de 2012, na Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva”
realizou-se uma audiência pública sobre o assunto.133
Já a Comissão
Nacional da Verdade e a Comissão “Vladimir Herzog”, do Município de
São Paulo, também atuaram nestaquestão e, em 27 denovembro de
2013, fizeram solicitação perante os Secretários Estaduais de Cultura e
de Segurança Pública134
.O tombamento foi aprovado pelo Conselho de
Defesa doPatrimônio Histórico, Artístico e Turístico (Condephaat) do
Estado de São Pauloem 27 de janeiro de 2014.
No entanto, conforme mencionado acima,
inclusive com fotografia do espaço, lá ainda funciona a 36ª Delegacia de
Polícia de São Paulo. Trata-se de um total contrassenso, como muito bem
esclareceu o presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens
Paiva: “Não é admissível uma delegacia de polícia funcionar num prédio
queabrigou o DOI-Codi. É como se uma usina de gás alemã funcionasse
até hoje em um campo de concentração”135
132 Idem. Anota-se que este documento também se encontra anexo.
133 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HSKFmEu7kCw. Acesso em 12 ago.
2020.
134 Disponível em:
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da-
memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago.
2020
135 Disponível em:
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Página 168 de 195
Conforme ainda menciona o documento
“Lugaresdamemória, arqueologiada repressão e da resistência e locais
de tortura”, a incompatibilidade da Delegacia de Polícia funcionar no
espaço do DOI-CODI foi exposta pela historiadora Cristina Meneguello,
que elaborou excelente parecer no processo de tombamento do espaço.
Segundo a historiadora:
Sabemos, como afirmou a UNESCO em 2002 ao
incluir o campo de concentração e extermínio de
Auschwitz-Birkenau na sua Lista Mundial, que o
patrimônio não é apenas um relicário de
testemunhos estéticos da atividade humana.
Dentro das proporções que lhes cabem, tanto no
caso da ESMA, do DOPS ou do museu chileno,
assim como em tantos outros memoriais
destinados a lembrar a barbárie, impera a
necessidade de revisitar o passado, devolver
dignidade às vítimas e às suas famílias, e, por
meio de ações educativas, estimular a reflexão
para que fatos como estes não mais se repitam.
Se ao DOI-CODI caberá a função de Memorial, e
se para este fim o edifício deverá ser inscrito como
patrimônio estadual, apenas um estudo de
tombamento circunstanciado poderá responder.
http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da-
memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago.
2020
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Se tombado, como se lidará com as alterações das
funções atuais do edifício? O edifício será
“restaurado” para chegar à aparência que possuía
na época de seu uso para a repressão e a
violência? Seu uso como Memorial será
semelhante ao já existente DOPS? Todas estas
questões, de suma importância, lidam com uma
ferida ainda aberta na história nacional. Meu
parecer é favorável à abertura do estudo de
tombamento136
.
A Comissão Estadual da Verdade fez diversas
recomendações acerca da utilização dos espaços de memória em São
Paulo. Dentre elas, merecem destaque, porque pertinentes a esta ação
civil pública, as seguintes:
1) Que sejam reconhecidos e identificados como Lugares
da Memória os locais, públicos ou privados, apontados
nas narrativas das vítimas e familiares ou nos Relatórios
produzidos pelas Comissões da Verdade, utilizados pelo
aparelho repressivo do Estado ditatorial para torturas e
outras graves violações, ressaltando a importância
desses locais como elementos fundamentais para
compreensão do período de repressão, seus atores,
seus apoiadores e financiadores e, até mesmo, para
descobrir o paradeiro de desaparecidos políticos;
136 Procedimento do tombamento se encontra como documento anexo.
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2) Que o Estado se aproprie dos locais citados nesse
relatório e que assuma imediatamente a partir da
publicação deste relatório sua obrigação em preservar
os prédios e espaços que foram utilizados para
repressão, com uso dos instrumentos protetivos dos
bens culturais, como Registro, Tombamento,
Inventários, Vigilância e Desapropriação e outros
mecanismos aptos à preservação da memória histórica
e à revelação da verdade;
3) Que seja criado um fundo destinado à manutenção
destes lugares, com a colaboração da Fiesp, como
medida de justiça restaurativa em resposta à ação da
Federação de Indústrias na conspiração do golpe de
1964 e no financiamento da repressão política e dos
crimes de lesa-humanidade perpetrados pelo Estado
brasileiro;
7) Que os órgãos de cultura e de educação do Estado, em
suas diversas instâncias, promovam ações e estratégias
de difusão e de educação utilizando os locais de
interesse em suas práticas; bem como promover linhas
de fomento para essas ações;
14)Que seja promovida uma discussão pública, dos
órgãos estaduais de cultura e educação em conjunto
com a Secretaria de Segurança Pública para a
definição do uso do prédio do DOI-CODI, em até
doze (12) meses a partir da publicação deste
relatório.
Segunda parte
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Segunda parte

  • 1. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 101 de 195 “de sua importância histórica e relevante papel didático que o referido prédio tem para as gerações de jovens brasileiros, que ignoram as atrocidades ali cometidas, o tombamento garantirá a preservação desse importante documento físico de nossa História recente.” Este pedido de tombamento foi assinado por diversas outras entidades, que merecem aqui expressa menção. São elas: Conselho Estadual de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana (CONDEPE), Grupo Tortura Nunca Mais-SP, Fórum dos ex-Presos e Perseguidos Políticos do Estado de São Paulo, Comissão de Familiares de Presos Mortos e Desaparecidos Políticos e Núcleo de Preservação de Memória Política. De acordo com Deborah Neves: Em setembro de 2010, foram elaborados os pareceres técnicos que, preliminarmente, apontaram para a importância histórica do local, a despeito de sua qualidade arquitetônica. O intuito era reconhecer aquele como um lugar de memória, e que por isso deveria ser reconhecido. Em outubro de 2010, o processo foi encaminhado ao Conselheiro Jon Andoni Maitrejean, que o devolveu apenas em maio de 2011 sem relatoria. Encaminhado em novembro de 2011 à
  • 2. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 102 de 195 Conselheira Cristina Meneguello, professora de História da Unicamp, a mesma o devolveu com relato favorável à abertura de Estudo de Tombamento – fase em que o imóvel fica previamente protegido –, cuja indicação foi acatada por unanimidade pelo Condephaat em 14/05/201292 . Foram realizados estudos iniciais a respeito do espaço, nos anos de 2010 e 2011; em 25 de setembro de 2012, foi realizada vistoria no imóvel. A partir de então foi realizado amplo estudo bibliográfico e fotográfico,93 de modo a se conseguir reconstituir a edificação do espaço. Em seu artigo “DOI-CODI II Exército: a experiência de preservação de um patrimônio sensível”, Deborah Neves aponta primorosas imagens que demonstram a construção do imóvel e que merecem ser reproduzidas aqui, já que demonstram que o espaço foi ampliado e reforçado justamente no período da repressão ditatorial, o que reforça sua vocação de espaço de memória. 92 Disponível em: https://www.academia.edu/38159067/DOI_CODI_A_Experiencia_de_preservacao_de_um_patrimonio _sensivel_pdf. Acesso no dia 26 jan. 2021 93 Foram utilizados mapeamentos aéreos das décadas de 1930, 1950 e aerofotografias de 1958, 1962, 1968, 1973 e 1977.
  • 3. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 103 de 195 Conforme esclarece a culta e talentosa historiadora, algumas conclusões são possíveis a partir das imagens aéreas: até 1958, nada havia construído na área. Em 1962, já existe o prédio da Delegacia e um anexo; e entre 1962 e 1968, apenas uma pequena construção latitudinal foi realizada, à esquerda do prédio anexo; observa-se também o prolongamento do estacionamento para sudeste do terreno. Nas imagens a seguir, de 1973 e 1977 respectivamente, é possível constatar a ocupação plena do terreno. Percebe-se o crescimento de construções entre 1968 e 1973, quando outros dois edifícios e uma garagem foram construídos, ocupando a face
  • 4. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 104 de 195 do terreno voltada para a Rua Tomás Carvalhal. Coincide com o período em que o DOI-CODI foi implantado e com a ampliação de prédios para o serviço. Na imagem aérea de 1973, nota-se a colocação de um portão entre o prédio da delegacia e seu vizinho, instalado por conta da fuga de um preso do DOI-CODI, segundo relatos de ex-presos.94 Indispensável mencionar também que durante esse estudo, ex-presos políticos visitaram o espaço e, mesmo com as desestruturações mencionadas acima, ainda conseguiram trazer diversas memórias e sentimentos, o que reforçava a importância do tomabamento. Importa reforçar a ideia, portanto, de que o espaço não foi tombado por suas características arquitetônicas. Os prédios não possuem uma beleza singular ou uma arquitetura excepcional. Todavia, o que se passou dentro do espaço deve ser preservado, pelas memórias e lembranças que ele evoca. 94 Disponível em: https://www.academia.edu/38159067/DOI_CODI_A_Experiencia_de_preservacao_de_um_patrimonio _sensivel_pdf. Acesso no dia 26 jan. 2021
  • 5. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 105 de 195 Como explica Deborah Neves, que acompanhou a visita dos ex-presos políticos: O momento das visitas foi bastante intenso, já que a maioria nunca havia retornado ao local, e todos se emocionaram. As reações foram diversas: houve aqueles que se calaram diante das lembranças, outros que falaram sem parar, outros falaram pouco, alguns não se lembraram de nada. Mas todos contribuíram com a reconstituição do espaço de maneira inegável. As figuras 11 e 12 apresentam parte dos grupos que fizeram as visitas em dois dias distintos, e o sentimento ali era o de estar contribuindo para a história e a memória do país, além de certa reparação moral em retornar ao local em condições muito diversas daquelas em que estiveram pela primeira vez.
  • 6. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 106 de 195 Por fim, após todos os estudos,o espaço onde operou o DOI-CODI II Exército foi tombado, conforme Resolução nº 25, de 12 de maio de 2014, da Secretaria de Estado de Cultura. Os termos do tombamento são os seguintes: Art. 1º. Fica tombado como bem cultural de interesse histórico o aqui designado Conjunto das instalações da OBAN (Operação Bandeirante) e do DOI-CODI – II Exército (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), situados à Rua Tutóia, 921 (também com acesso pela Rua Tomás de Carvalhal, 1030), formado por suas edificações e remanescentes. Alguns considerandos, constituintes dos motivos do tombamento, merecem ser apontados, uma vez que sintetizam de modo bastante coeso a importância do espaço que um dia abrigou o DOI- CODI: “(...) • Que os edifícios que abrigaram o DOI-CODI constituem lugar de memória da repressão e da resistência à Ditadura Civil- Militar no Brasil entre 1964-1985; • Que os edifícios representam a institucionalização do terrorismo de Estado; • Que representam testemunho material da história
  • 7. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 107 de 195 política recente; • Que se trata de local simbólico de violação dos Direitos Humanos e privação de liberdade durante o período da Ditadura Civil-Militar; • Que os edifícios e espaços ali remanescentes são o suporte físico à memória da repressão e da resistência; (...)” Em síntese, isso quer dizer que já houve, por parte do Estado de São Paulo, reconhecimento oficial de que os edifícios objeto desta ação “representam a institucionalização do terrorismo de Estado”. E que, por esse motivo, devem ser preservados como local de memória. O tombamento, de acordo com o parágrafo único do art. 1º da Resolução-SC 25/2014, incluiu os seguintes itens: 1) Perímetro:circunscrito ao lote 036.045.0175-1 (Setor/ Quadra/Lote/Dac) do Cadastro de Imposto Predial Territorial Urbano da Prefeitura de São Paulo. 2) Prédios do Setor de Inteligência do DOI-CODI: situados no setor centro-norte do Conjunto ao fundo da Delegacia, hoje utilizados como depósito e almoxarifado pelo DECAP. a) Um com três pavimentos (à esquerda – II-a no mapa), antigo local de interrogatório, tortura e detenção. Destacam-se a fachada e a configuração espacial interna dada pela subdivisão de salas.
  • 8. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 108 de 195 b) Um com dois pavimentos (à direita – II-b no mapa), construído para abrigar funções complementares ao DOI-CODI. Destaca-se a fachada voltada para o pátio. 3) Prédio do 36º Distrito Policial, com acesso pela Rua Tutóia, 921: destaca-se o espaço interno do pavimento térreo no trecho norte do edifício, onde ficavam instaladas as celas da carceragem em torno de um pátio, hoje substituídos respectivamente por salas do DECAP e pelo jardim de inverno. 4) Pátio no setor central do conjunto: na cota baixa do terreno, com acesso pela Rua Tutóia, 921, ladeado pelos edifícios destacados nos itens 1 e 3, onde ocorria o desembarque de detidos. Destaca-se a configuração espacial não-edificada dada por aqueles elementos; 5) Prédio de Alojamento: situado no setor leste do conjunto, na cota superior do terreno, hoje com acesso pela Rua Tomás Carvalhal. Destaca-se sua fachada voltada para o pátio. 6) Guaritas: situadas à Rua Tomás Carvalhal. Destacam- se somente as aberturas laterais voltadas para a referida via, que serviam para vigilância a partir das guaritas (“torres de vigilância”). Os mapas relativos a esse tombamento podem ser observados no documento anexo, que aqui é transcrito para melhor visualização e esclarecimento dos fatos:
  • 9. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 109 de 195 Enfim, Senhoras e Senhores Magistradas e Magistrados, o Ministério Público Estadual busca a condenação
  • 10. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 110 de 195 judicial do Estado para que esse imóvel público, cuja história guarda a memória de um tempo que não pode ser esquecido exatamente para que se garanta que não se repetirá. E esta é a obrigação do Estado: assim como o mantivera, durante anos, como espaço de tortura e homicídios, que o transforme e o mantenha agora como espaço de memória e reflexão para as novas gerações; como penhor de fortalecimento da democracia e do Estado de Direito. Exatamente para que não se esqueça e para que nunca mais aconteça! Há pleno fundamento legal para a pretensão aqui deduzida. 4. DO DIREITO. 4.1 Delimitações do conceito de Justiça de Transição. Como já mencionado, a presente ação tem por fundamento básico a justiça de transição, mais especificamente no que se refere ao direito à verdade e preservação da memória histórica. A presente ação tem por objetivo concretizar justamente o direito à verdade e a preservação da memória, como medidas de não repetição. O estabelecimento de um espaço de memória onde funcionou o DOI-CODI II do Exército (São Paulo) é medida de extrema importância para a defesa e consolidação do Estado de Direito.
  • 11. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 111 de 195 A Justiça de Transição é conceituada, grosso modo, como o conjunto de iniciativas, mecanismos (judiciais e não judiciais) e estratégias para superar o legado de violência e garantir a consolidação do regime democrático, numa transição que se manifesta, basicamente, por meio das seguintes providências: a) atribuição de responsabilidades; b) garantia efetiva do direito à memória e à verdade; c) reparação em favor das vítimas; d) e fortalecimento das instituições com valores democráticos de modo a se garantir a não repetição das situações de violência. Nos dizeres de Jorge Chediek, representante residente do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD) e coordenador residente do Sistema ONU Brasil: “...justiça de transição é o conjunto de mecanismos usados para tratar o legado histórico da violência dos regimes autoritários. Em seus elementos centrais estão a verdade e a memória, através do conhecimento dos fatos e do resgate da história. Se o Desenvolvimento Humano só existe de fato quando abrange também o reconhecimento dos direitos das pessoas, podemos dizer que temos a obrigação moral de apoiar a criação de mecanismos e processos que promovam a justiça e a reconciliação. No Brasil, tanto a Comissão de
  • 12. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 112 de 195 Anistia quanto a Comissão da Verdade configuram-se como ferramentas vitais para o processo histórico de resgate e reparação, capazes de garantir procedimentos mais transparentes e eficazes.”95 Na definição das Nações Unidas, numa tradução livre, pode-se dizer que a justiça transicional é o conjunto completo de processos e mecanismos relacionados com os esforços de uma sociedade para superar o legado de uma larga escala de abusos contra os direitos humanos no passado, a fim de assegurar a responsabilização, a administração da justiça e a reconciliação, tratando-se de medidas judiciais e não-judiciais96 . No mesmo sentido, Kai Ambos, invocando o Report Secretary General Transitional Justice, ensina que: “a justiça de transição compreende o âmbito integral de processos e mecanismos associados aos intentos de uma sociedade de afrontar um legado de abusos em grande escala no passado, para assegurar responsabilidade, promover justiça e obter reconciliação.”97 95 CHEDIEK, Jorge. “Justiça de Transição. Manual para a América Latina”. ONU. Brasil e Nova Iorque, p. 16. Disponível em: http://www.dhnet.org.br/verdade/resistencia/a_pdf/manual_justica_transicao_america_latina.pdf 96 Guidance Note of The Secretary-General. United Nations Approach to Transitional Justice. 97 AMBOS, Kai. Anistia. “Justiça e Impunidade: reflexões sobre a Justiça de Transição no Brasil”. 1ª ed. Belo Horizonte: Editora Fórum, 2010, p. 27.
  • 13. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 113 de 195 De modo mais sucinto, Ruti Teitel aponta que justiça de transição pode ser: “definida como uma concepção de justiça associada a períodos de mudança política, caracterizada por respostas legais para confrontar os abusos dos regimes repressivos anteriores.”98 Pode-se dizer, portanto, que sempre que houver o rompimento de um regime autoritário ou marcadamente não democrático é necessária a adoção das medidas de justiça de transição para que a sociedade, por suas instituições, se adapte à nova realidade democrática. E, mais que isto, tais postulados transicionais devem perdurar num tempo tanto necessário quanto suficiente para garantir a consolidação das instituições democráticas. No caso brasileiro, a criação de um espaço de memória em um antigo centro de tortura, além de auxiliar na efetivação do direito à verdade e à memória, tem um caráter claramente pedagógico. Busca-se, com isso, reafirmar o repúdio às violações de direitos humanos que lá aconteceram (desaparecimentos, torturas, execuções e prisões arbitrárias) e tentar ensinar às gerações vindouras que isso é errado (apesar de parecer óbvio) e que não deve acontecer novamente. 98 TEITEL, Ruti. Transitional Justice Genealogy, apud QUINALHA, Renan. “Justiça de Transição: contornos do conceito”, 1ª ed. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2013, p. 134.
  • 14. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 114 de 195 Vale dizer: a constituição de um espaço de memória num antigo centro de tortura presta-se a inculcar nas mentes o desvalor da tortura, o que se mostra indispensável na realidade brasileira. A Justiça de Transição não é um momento fugaz ou um conjunto de medidas de pronta e rápida adoção. É um processo que se protrai no tempo e que varia de acordo com as injunções políticas, sociais e culturais da sociedade que esteja em processo de transformação. Ou seja, a manutenção de um espaço de memória, de modo permanente, tem por intuito mostrar para as futuras gerações o que foi feito de modo bastante equivocado. Lembra Renan Honório Quinalha que: “...ao contrário do que comumente se supõe, as transições não são momentos pontuais, mas processos que se arrastam no tempo e encadeiam diversos acontecimentos diferentes e, muitas vezes, até contraditórios entre si. São fenômenos complexos, que conjugam questões de diversas ordens postas pelas mudanças políticas quando desencadeadas.”99 Tal processo depende fortemente das tensões entre as forças políticas remanescentes do regime anterior e as novas 99 QUINALHA, Renan. “Justiça de Transição: contornos do conceito”. 1ª ed. São Paulo: Editora Outras Expressões, 2013.
  • 15. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 115 de 195 forças emergentes da fase de renovação política. As primeiras tendem a obstar medidas que atinjam seus interesses e que possam resultar em responsabilizações pessoais de antigos violadores de direitos humanos. As segundas tentam avançar na agenda da justiça quanto às hipóteses do passado e, ao mesmo tempo, consolidar as novas instituições democráticas. No ordenamento jurídico brasileiro, a Justiça Transicional ingressa pela via do princípio democrático, expresso no caput do artigo 1º da Constituição Federal, ao apontar que a “República Federativa do Brasil (...) constitui-se num Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos”, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana (incisos II e III). Lembra Uadi Lammêgo Bulos que: “...o Estado Democrático de Direito surge em oposição ao Estado de Polícia – aquele autoritário, que apregoa o repúdio às liberdades públicas, no sentido mais vasto e completo que esta expressão possa ensejar. Ao utilizar a terminologia ‘Estado Democrático de Direito’, a Constituição reconheceu a República Federativa do Brasil como uma ordenação estatal justa, mantenedora dos direitos individuais e metaindividuais, garantindo os direitos adquiridos, a independência e a imparcialidade dos juízes e tribunais, a responsabilidade dos governantes para com os
  • 16. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 116 de 195 governados, a prevalência do princípio representativo, segundo o qual todo poder emana do povo e, em nome dele, é exercido, por meio de representantes eleitos através do voto.”100 E mais adiante, o mesmo autor evoca os mestres portugueses Canotilho e Vital Moreira para arrematar: “O Estado de direito é democrático e só sendo-o é que é Estado de direito; o Estado democrático é Estado de direito e só sendo-o é que é democrático.”101 Pois bem. O teor, o alcance e a relevância dos princípios e balizas da Justiça de Transição dialogam diretamente com a qualidade de democrático do Estado de Direito. Não se pode cogitar que um Estado se consolide como democrático e, portanto, de direito, na significativa frase dos professores portugueses, sem que as instituições do anterior regime autoritário sejam desmontadas e substituídas por instituições que garantam a igualdade de todos e o primado da justiça. E mais: que garantam, no âmbito da inafastável aplicabilidade da justiça, o pleno exercício da cidadania e a inabalável proteção da dignidade das pessoas que são vítimas (diretamente ou seus familiares) do arbítrio e da violência praticados pelo Estado. 100 BULOS, Uadi Lammêgo. “Constituição Federal Anotada”. 6ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2005, p.79. 101 Idem.
  • 17. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 117 de 195 Por isso lembra Marlon Weichert, citando De Greiff, que: “...é indubitável o nexo causal existente entre as políticas de justiça de transição e o conteúdo material do princípio democrático.”102 Assim, o que se busca nesta ação judicial, ao se invocar os princípios e conceitos da Justiça Transicional, é a observância e o respeito ao fundamento maior do Estado brasileiro, isto é, o princípio democrático que marca o Estado de Direito e eleva a cidadania e a dignidade da pessoa humana à condição de fundamentos da República. A demonstrar a condição de alicerce de toda a ordem jurídico- constitucional, não por outro motivo, tais princípios estão consagrados no primeiro artigo da Constituição Federal. Se houvesse ainda alguma dúvida sobre a necessidade de se imbricar a existência da democracia à observância das medidas da justiça transicional, essas se desfizeram quando aquele triste período da recente história brasileira foi sobeja e detalhadamente apreciado pela Corte Interamericana de Direitos Humanos na célebre sentença em que o Brasil foi condenado, exarada no denominado Caso Gomes Lund. 102 WEICHERT, Marlon. “Justiça Transicional”. 1ª ed. São Paulo: Estúdio Editores, 2015, p. 19.
  • 18. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 118 de 195 Ali se apontou que, a despeito do fim do regime autoritário e da redemocratização marcada pelo advento da Constituição Federal de 1988, que consagrou inúmeras liberdades, direitos fundamentais e direitos sociais, não foi aplicada de modo eficiente a necessária Justiça de Transição. Com efeito, a omissão do Estado brasileiro na efetivação da necessária transição para o regime democrático ficou reconhecida internacionalmente no mencionado julgamento do caso Gomes Lund e outros (Guerrilha do Araguaia) pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Além disso, no Brasil, até 2009, nunca havia sido tomada nenhuma medida para recuperar a história recente das graves violações de direitos humanos no Brasil, buscando concretizar o direito à verdade e à memória. Com base nestas considerações sobre a justiça de transição, passa-se a se discorrer especificamente sobre a o direito à verdade e à memória, indispensáveis para a consolidação democrática no Brasil. 4.2) Direito à verdade e à memória. Em 2009 foi aprovado, pelo Decreto nº 7037/2009, o Programa Nacional de Direitos Humanos - PNDH-3. Um de seus eixos orientadores (Eixo Orientador VI) era o “Direito à Memória e à Verdade”. Esse eixo orientador continha 03 diretrizes:
  • 19. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 119 de 195 a) Diretriz 23: Reconhecimento da memória e da verdade como Direito Humano da cidadania e dever do Estado; b) Diretriz 24: Preservação da memória histórica e construção pública da verdade; e c) Diretriz 25: Modernização da legislação relacionada com promoção do direito à memória e à verdade, fortalecendo a democracia. E justamente após esse período e mercê da decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos,foi tomada uma das mais importantes iniciativas para resgatar a história recente das violações de direitos humanos no Brasil, a criação da Comissão Nacional da Verdade, pelaLei nº 12.528/2011. No entanto, o direito à verdade e à memória se encontram muito longe de serem efetivados no Brasil. A organização não governamental Human Rights Watch tem apontado que o Brasil não tem confrotado seu passado de modo reiterado. Os relatórios de 2021, 2020, 2019, 2018, 2017, 2016 e 2015 indicam que o Brasil ainda não enfrentou de modo adequado as violações de direitos praticadas pelo regime ditatorial103 . Enfrentar o passado, estudar os acontecimentos vividos e recuperar a memória são, portanto, problemas atuais. 103 Disponível em: https://www.hrw.org/. Acesso no dia 21 de janeiro de 2021.
  • 20. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 120 de 195 Conforme muito precisamente explicado pelo anexo do PNDH-3: “A história que não é transmitida de geração a geração torna-se esquecida e silenciada. O silêncio e o esquecimento das barbáries geram graves lacunas na experiência coletiva de construção da identidade nacional. Resgatando a memória e a verdade, o País adquire consciência superior sobre sua própria identidade, a democracia se fortalece. As tentações totalitárias são neutralizadas e crescem as possibilidades de erradicação definitiva de alguns resquícios daquele período sombrio, como a tortura, por exemplo, ainda persistente no cotidiano brasileiro.” O documento do Governo Brasileiro fora elaborado, à época, de modo democrático, tendo nascido de amplas discussões com variados segmentos da sociedade brasileira, organizados em conferências locais, regionais, setoriais, estaduais e nacional. Amplo trabalho de organização, compilação e sistematização das informações, reclamações e reivindicações foi realizado pelas agências governamentais da época, resultado num texto fortemente revelador do anseio da população brasileira e, por isso, fortemente legítimo. No capítulo sobre memória e verdade, traz considerações de grande alcance conceitual, que importa muito sejam
  • 21. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 121 de 195 lembradas e transcritas nesta petição inicial. O trabalho de reconstituir a memória exige revisitar o passado e compartilhar experiências de dor, violência e mortes. Somente depois de lembrá-las e fazer seu luto, será possível superar o trauma histórico e seguir adiante. A vivência do sofrimento e das perdas não pode ser reduzida a conflito privado e subjetivo, uma vez que se inscreveu num contexto social, e não individual. A compreensão do passado por intermédio da narrativa da herança histórica e pelo reconhecimento oficial dos acontecimentos possibilita aos cidadãos construírem os valores que indicarão sua atuação no presente. O acesso a todos os arquivos e documentos produzidos durante o regime militar é fundamental no âmbito das políticas de proteção dos Direitos Humanos. Desde os anos 1990, a persistência de familiares de mortos e desaparecidos vem obtendo vitórias significativas nessa luta, com abertura de importantes arquivos estaduais sobre a repressão política do regime ditatorial. Em dezembro de 1995, coroando difícil e delicado processo de
  • 22. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 122 de 195 discussão entre esses familiares, o Ministério da Justiça e o Poder Legislativo Federal, foi aprovada a Lei nº 9.140/1995, que reconheceu a responsabilidade do Estado brasileiro pela morte de opositores ao regime de 1964. Essa Lei instituiu Comissão Especial com poderes para deferir pedidos de indenização das famílias de uma lista inicial de 136 pessoas e julgar outros casos apresentados para seu exame. No art. 4º, inciso II, a Lei conferiu à Comissão Especial também a incumbência de envidar esforços para a localização dos corpos de pessoas desaparecidas no caso de existência de indícios quanto ao local em que possam estar depositados. Em 24 de agosto de 2001, foi criada, pela Medida Provisória nº 2151-3, a Comissão de Anistia do Ministério da Justiça. Esse marco legal foi reeditado pela Medida Provisória nº 65, de 28 de agosto de 2002 e finalmente convertido na Lei nº 10.559, de 13 de novembro de 2002. Essa norma regulamentou o Art. 8º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias (ADCT) da Constituição de 1988, que previa a concessão de anistia aos que foram perseguidos em decorrência de sua oposição política. Em dezembro de 2005, o Governo Federal determinou que os três arquivos
  • 23. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 123 de 195 da Agência Brasileira de Inteligência (ABIN)1 fossem entregues ao Arquivo Nacional, subordinado à Casa Civil, onde passaram a ser organizados e digitalizados. Em agosto de 2007, em ato coordenado pelo Presidente da República, foi lançado, pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República (SEDH/PR) e pela Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos (CEMDP), o livro-relatório “Direito à Memória e à Verdade”, registrando os 11 anos de trabalho daquela Comissão e resumindo a história das vítimas da ditadura no Brasil. A trajetória de estudantes, profissionais liberais, trabalhadores e camponeses que se engajaram no combate ao regime militar aparece como documento oficial do Estado brasileiro. O Ministério da Educação e a Secretaria Especial dos Direitos Humanos formularam parceria para criar portal que incluirá o livrorelatório, ampliado com abordagem que apresenta o ambiente político, econômico, social e principalmente os aspectos culturais do período. Serão distribuídas milhares de cópias desse material em mídia digital para estudantes de todo o País.
  • 24. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 124 de 195 Em julho de 2008, o Ministério da Justiça e a Comissão de Anistia promoveram audiência pública sobre “Limites e Possibilidades para a Responsabilização Jurídica dos Agentes Violadores de Direitos Humanos durante o Estado de Exceção no Brasil”, que discutiu a interpretação da Lei de Anistia de 1979 no que se refere à controvérsia jurídica e política envolvendo a prescrição ou imprescritibilidade dos crimes de tortura. A Comissão de Anistia já realizou 700 sessões de julgamento e promoveu, desde 2008, 30 caravanas, possibilitando a participação da sociedade nas discussões, e contribuindo para a divulgação do tema no país. Até 1º de novembro de 2009, já haviam sido apreciados pos essa Comissão mais de 52 mil pedidos de concessão de anistia, dos quais quase 35 mil foram deferidos e cerca de 17 mil, indeferidos. Outros 12 mil pedidos aguardavam julgamento, sendo possível, ainda, a apresentação de novas solicitações. Em julho de 2009, em Belo Horizonte, o Ministro de Estado da Justiça realizou audiência pública de apresentação do projeto Memorial da Anistia Política do Brasil, envolvendo a remodelação e construção de um novo edifício junto ao antigo “Coleginho” da Universidade Federal de Minas
  • 25. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 125 de 195 Gerais (UFMG), onde estará disponível para pesquisas todo o acervo da Comissão de Anistia. No âmbito da sociedade civil, foram levadas ao Poder Judiciário importantes ações que provocaram debate sobre a interpretação das leis e apuração de responsabilidades. Em 1982, um grupo de familiares entrou com ação na Justiça Federal para a abertura de arquivos e localização dos restos mortais dos mortos e desaparecidos políticos no episódio conhecido como “Guerrilha do Araguaia”. Em 2003 foi proferida sentença condenando a União, que recorreu e, posteriormente, criou Comissão Interministerial pelo Decreto nº 4.850, de 2 de outubro de 2003, com a finalidade de obter informações que levassem à localização dos restos mortais de participantes da “Guerrilha do Araguaia”. Os trabalhos da Comissão Interministerial encerraram-se em março de 2007, com a divulgação de seu relatório final. Em agosto de 1995, o Centro de Estudos para a Justiça e o Direito Internacional (CEJIL) e a Human Rights Watch/América (HRWA), em nome de um grupo de familiares, apresentaram petição à Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH), denunciando o desaparecimento de
  • 26. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 126 de 195 integrantes da “Guerrilha do Araguaia”. Em 31 de outubro de 2008, a CIDH expediu o Relatório de Mérito nº 91/08, onde fez recomendações ao Estado brasileiro. Em 26 de março de 2009, a CIDH submeteu o caso à Corte Interamericana de Direitos Humanos, requerendo declaração de responsabilidade do Estado brasileiro sobre violações de Direitos Humanos ocorridas durante as operações de repressão àquele movimento. Em 2005 e 2008, duas famílias iniciaram, na Justiça Civil, ações declaratórias para o reconhecimento das torturas sofridas por seus membros, indicando o responsável pelas sevícias. Ainda em 2008, o Ministério Público Federal em São Paulo propôs Ação Civil Pública contra dois oficiais do exército acusados de determinarem prisão ilegal, tortura, homicídio e desaparecimento forçado de dezenas de cidadãos. Tramita também, no âmbito do Supremo Tribunal Federal, Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF), proposta pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil, que solicita à mais alta corte brasileira posicionamento formal para saber se, em 1979, houve ou não anistia dos agentes públicos responsáveis pela prática de tortura, homicídio, desaparecimento
  • 27. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 127 de 195 forçado, abuso de autoridade, lesões corporais e estupro contra opositores políticos, considerando, sobretudo, os compromissos internacionais assumidos pelo Brasil e a insuscetibilidade de graça ou anistia do crime de tortura. Em abril de 2009, o Ministério da Defesa, no contexto da decisão transitada em julgado da referida ação judicial de 1982, criou Grupo de Trabalho para realizar buscas de restos mortais na região do Araguaia, sendo que, por ordem expressa do Presidente da República, foi instituído Comitê Interinstitucional de Supervisão, com representação dos familiares de mortos e desaparecidos políticos, para o acompanhamento e orientação dos trabalhos. Após três meses de buscas intensas, sem que tenham sido encontrados restos mortais, os trabalhos foram temporariamente suspensos devido às chuvas na região, prevendo-se sua retomada ao final do primeiro trimestre de 2010. Em maio de 2009, o Presidente da República coordenou o ato de lançamento do projeto Memórias Reveladas, sob responsabilidade da Casa Civil, que interliga digitalmente o acervo recolhido ao Arquivo Nacional após dezembro de 2005, com vários outros arquivos federais sobre a
  • 28. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 128 de 195 repressão política e com arquivos estaduais de 15 unidades da federação, superando 5 milhões de páginas de documentos (www.memoriasreveladas.arquivonacional.gov.br) Cabe, agora, completar esse processo mediante recolhimento ao Arquivo Nacional de todo e qualquer documento indevidamente retido ou ocultado, nos termos da Portaria Interministerial assinada na mesma data daquele lançamento. Cabe também sensibilizar o Legislativo pela aprovação do Projeto de Lei nº 5.228/2009, assinado pelo Presidente da República, que introduz avanços democratizantes nas normas reguladoras do direito de acesso à informação. Importância superior nesse resgate da história nacional está no imperativo de localizar os restos mortais de pelo menos 140 brasileiros e brasileiras que foram mortos pelo aparelho de repressão do regime ditatorial. A partir de junho de 2009, a Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República (Secom/PR) planejou, concebeu e veiculou abrangente campanha publicitária de televisão, internet, rádio, jornais e revistas de todo o Brasil buscando sensibilizar os cidadãos sobre essa questão. As mensagens solicitavam que informações sobre a localização de restos mortais
  • 29. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 129 de 195 ou sobre qualquer documento e arquivos envolvendo assuntos da repressão política entre 1964 e 1985, sejam encaminhados ao Memórias Reveladas. Seu propósito é assegurar às famílias o exercício do direito sagrado de prantear seus entes queridos e promover os ritos funerais, sem os quais desaparece a certeza da morte e se perpetua angústia que equivale a nova forma de tortura. As violações sistemáticas dos Direitos Humanos pelo Estado durante o regime ditatorial são desconhecidas pela maioria da população, em especial pelos jovens. A radiografia dos atingidos pela repressão política ainda está longe de ser concluída, mas calcula-se que pelo menos 50 mil pessoas foram presas somente nos primeiros meses de 1964; cerca de 20 mil brasileiros foram submetidos a torturas e cerca de quatrocentos cidadãos foram mortos ou estão desaparecidos. Ocorreram milhares de prisões políticas não registradas, 130 banimentos, 4.862 cassações de mandatos políticos, uma cifra incalculável de exílios e refugiados políticos. As ações programáticas deste eixo orientador têm como finalidade assegurar o processamento democrático e republicano de todo esse período
  • 30. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 130 de 195 da história brasileira, para que se viabilize o desejável sentimento de reconciliação nacional. E para se construir consenso amplo no sentido de que as violações sistemáticas de Direitos Humanos registradas entre 1964 e 1985, bem como no período do Estado Novo, não voltem a ocorrer em nosso País, nunca mais. A transcrição desse texto, algo extenso e já datado de mais de dez anos, permite aos julgadores e às julgadoras desta demanda situarem-na numa longa e difícil história de luta por memória e justiça. A trasformação do mais nefando centro de torturas e assassinatos da repressão brasileira em memorial, portanto, é mais um capítulo – e dos mais relevantes – num contínuo esforço de milhares de brasileiros e brasileiras que há décadas lutam pela consolidação do Estado de Direito e dos postulados da democracia como garantias de não repetição daquele Estado totalitário e criminoso. Por isso o documento conclui o capítulo com direterizes específicas sobre o tema: Diretriz 24: Preservação da memória histórica e a construção pública da verdade. Objetivo Estratégico I: Incentivar iniciativas de preservação da memória histórica e de construção pública da verdade sobre períodos
  • 31. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 131 de 195 autoritários. Ações programáticas: a) Disponibilizar linhas de financiamento para a criação de centros de memória sobre a repressão política, em todos os estados, com projetos de valorização da história cultural e de socialização do conhecimento por diversos meios de difusão. Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça; Ministério da Cultura; Ministério da Educação; b) Criar comissão específica, em conjunto com departamentos de História e centros de pesquisa, para reconstituir a história da repressão ilegal relacionada ao Estado Novo (1937-1945). Essa comissão deverá publicar relatório contendo os documentos que fundamentaram essa repressão, a descrição do funcionamento da justiça de exceção, os responsáveis diretos no governo ditatorial, registros das violações bem como dos autores e das vítimas. Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Educação; Ministério da Justiça; Ministério da Cultura c) Identificar e sinalizar locais públicos que serviram à repressão ditatorial, bem como locais onde foram ocultados corpos e restos mortais de perseguidos políticos. Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Casa Civil da Presidência da República; Ministério da Justiça; Secretaria de Relações
  • 32. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 132 de 195 Institucionais da Presidência da República Recomendação: Recomenda-se que estados, Distrito Federal e municípios participem do processo,fazendo o mesmo em suas esferas administrativas. d) Criar e manter museus, memoriais e centros de documentação sobre a resistência à ditadura. Responsáveis: Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República; Ministério da Justiça; Ministério da Cultura; Secretaria de Relações Institucionais da Presidência da República 5.3) Necessidade de transformação do DOI-CODI em espaço de memória: tombamento, direito à cultura, princípio da eficiência, princípio da moralidade e função social da propriedade. Desde o início da trajetória humana sobre a Terra cultiva-se o hábito de se conservar locais marcantes, representativos de memórias ou ideias simbólicas. Os menires e cromeleques testemunham essa antiga tentativa de registrar, a partir de certa composição de pedras, um local importante, que se destaca dos demais ha história daquele povo. A conservação orgânica e sistemática de locais marcantes, contudo, surge no século XVII e se aprimora com a Revolução Francesa, que adota a ereção de monumentos como signos simbólicos de memória e homenagem. Na mesma época, começam a se sistematizar os museus, a partir de coleções pariticulares de objetos variados, aos quais
  • 33. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 133 de 195 se confere um caráter educativo ou didático, inédito até então na história humana. O movimento refletia a importância da educação pública, gratuita e laica trazida pela Revolução Francesa e o propósito de disseminar o conhecimento como forma de assegurar o primado da razão. A ideia avança e ganha especial relevo no Pós- Guerra, sobretudo com a transformação do campo de extermínio nazista de Auschwitz-Birkenau, na Polônia, em museu-memorial. A manutenção das instalações do modo original e a abertura para visitação pública tornaram aquele espaço num intenso instrumento de preservação da memória da crueldade humana e dos crimes em massa ali cometidos. Consolida-se a ideia de que os vestígios dos erros e dos crimes históricos devem ser mantidos e exibidos como exemplos do que não se deve fazer; ferramentas pedagógicas voltadas à educação das gerações futuras, voltadas à não repetição daqueles mesmos erros e crimes. Encreve a historiadora Deborah Neves, num ensinamento muito apropriado para o tema desta demanda judicial: “Tratava-se de uma nova concepção que privilegiava os lugares de memória que evocavam acontecimentos históricos marcados por violências praticadas contra a humanidade, ao invés de criar imaginários sociais compostos por mitos, símbolos, sinais abstratos...Em outras palavras, trata-se da conversão de um espaço
  • 34. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 134 de 195 físico ou geográfico em um local carregado de significados particulares, carregado de sentidos e sentimentos para aqueles que vivenciaram um acontecimento; lugares significativos para uma coletividade com valor político que se expressa em rituais coletivos de comemoração.104 ” Este novo modo de se compreender a história e, em consequência, os lugares de memória com seus signficados simbólicos e políticos resultou na edição da “Recomendação de Paris”, pela UNESCO, em 1972, que ampliou o conceito de patrimônio histórico para incluir não apenas os edifícios ou monumentos de notório valor artístico ou arquitetônico, mas quaisquer lugares de interesse, assim definidos: “Obras do homem, ou obras conjugadas do homem e da natureza, e as zonas, incluindo os locais de interesse arqueológico, com um valor universal excepcional do ponto de vista histórico, estético, etmológico ou antropológico”.105 Tal concepção parte da premissa que a preservação do patrimônio nasce da necessidade que as pessoas de um dado povo têm de criar vínculos que as convirjam para uma noção de pertencimento e idendidade, a exemplo do que ocorre com a língua, com a expressão do sentimento religioso, com as manifestações artísticas, 104 Ob. cit., p. 94 105 Recomendação de Paris, UNESCO, 1972.
  • 35. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 135 de 195 dentre outros elementos culturais e antropológicos. Compartilhar uma história comum – e vivê-la e senti-la e visualizá-la – em espaços de conteúdo simbólico é um ponderável elemento de identidade de um povo. Neste sentido, é preciso destacar que tais espaços simbólicos não se limitam a expressões artísticas ou arqueológicas do belo; tampouco se limitam ao registro de épocas ou etapas históricas. A concepção de memória histórica que emerge dos escombros da Segunda Guerra Mundial releva espaços de sofrimento e dor simbólicos, como genuínas manifestações de resistência ao arbítrio e à violência de Estado. Não havia nada de belo naqueles vestígios, mas, sim, muito de emoção compartilhada e de consciência coletiva. Um dos mais importantes historiadores da arte nos dias atuais, o filósofo francês Goerges Didi-Huberman, escrevendo sobre o sítio de memória de Birkenau, na Polônia, com enorme sensibilidade e relevância, anota: “Logo, nunca poderemos dizer: não há nada para ver, não há mais nada para ver. Para saber desconfiar do que vemos, devemos saber mais, ver, apesar de tudo. Apesar da destruição, da supressão de todas as coisas. Convém saber olhar como um arqueólogo. E através de um olhar desse tipo – de uma interrogação desse tipo – que vemos que as coisas começam a nos olhar a partir de seus espaços soterrados e tempos esboroados. Caminhar hoje por Birkenau é deambular por uma
  • 36. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 136 de 195 paisagem tranquila e discretamente orientada – balizada por inscrições, explicações, documentada, em suma – pelos historiadores desse ‘lugar de memória’. Como a história aterradora da qual esse lugar foi teatro é uma história passada, gostaríamos de acreditar naquilo que vemos em primeiro lugar, ou seja, que a morte foi embora, que os mortos não estão mais aqui. Mas é justamente o contrário que pouco a pouco descobrimos. A destruição dos seres não significa que eles foram para outro lugar. Eles estão aqui, decerto: aqui, nas flores dos campos, aqui, na seiva das bétulas, aqui neste pequeno lago onde repousam as cinzas de milhares de mortos. Logo, água adormecida que exige de nosso olhar um sobressalto perpétuo. (...) Aqui, temos de compreender que caminhamos no maior cemitério do mundo, um cemitério cujos ‘monumentos’ não passam dos restos dos aparelhos concebidos precisamente para o assassinadto de cada um separadamente e de todos juntos.”106 Os nossos mortos, os nossos desaparecidos e os nossos torturados estão nas paredes, no piso e nas escadas daqueles prédios; as dores e os sofrimentos ainda subsistem no pátio e nos corredores; os gritos ainda ecoam nas salas e 106 Georges Didi-Huberman. “Cascas”, Editora 34, 1ª edição, São Paulo, 2017, p. 61/62.
  • 37. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 137 de 195 reverberam pelas janelas; os sonhos de liberdade ainda refletem naquele espaço. A memória da história política brasileira recente emerge daquelas instalações físicas como uma convocação para que a façamos vir à tona: num gesto de respeito e reconhecimento por quem se sacrificou na luta pela justiça e pela democracia; numa convicção de quem não deseja que aquela história se repita; ou desejaque aquela história não tenha que se repetir107 . Por isso, é fácil concluir que muito mais que as características formais, o que importa no complexo do antigo DOI-CODI é a sua dimensão de espaço coletivo de sofrimento em decorrência da ação política ilegal e criminosa do Estado num dado momento histórico. Marcelo Godoy observa, quanto ao DOI-CODI, um modo de atuação que não pode subsistir numa sociedade democrática: “...o objetivo principal da Investigação e, por extensão, do DOI: descobrir e destruir o inimigo, em vez de reunir provas para punir legalmente delitos praticados. A tática policial estava a serviço de uma estratégia militar. O padrão de comportamento dos agentes nos tiroteios não era de quem age em legítima defesa, mas a do militar em guerra, a quem é permitido matar em emboscada, atirar pelas costas, enfim, condutas 107“Não se consolida uma democracia com cadáveres insepultos. E nós temos muitos” (Amelinha Teles). In “Memórias Resistentes – Memórias Residentes – Lugares de Memória da Ditadura Civil- Militar no Município de São Paulo”, 1ª edição, São Paulo, 2017, p. 76.
  • 38. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 138 de 195 que poderiam levar um policial à prisão”108 . Não há, naqueles feios prédios, qualquer valor arquitetônico ou artístico que justificasse o tombamento ou sua utilização como equipamento cultural. Seu valor decorre do ensinamento que suas paredes guardam e que precisam chegar às futuras gerações, de que a ordem política estabelecida não pode permitir que o Estado se torne um assassino de seus cidadãos e de suas cidadãs. Fora este valor simbólico de memória que fundamentara a decisão administrativa de tombamento do imóvel. Já se disse e já se transcreveu acima, mas é preciso repetir: dentre os considerandos e motivos do ato administrativo de tombamento, Resolução SC-25, de 12 de maio de 2014, da Secretaria de Estado de Cultura, anotou-se que: • Que os edifícios que abrigaram o DOI-CODI constituem lugar de memória da repressão e da resistência à Ditadura Civil- Militar no Brasil entre 1964-1985; • Que os edifícios representam a institucionalização do terrorismo de Estado; • Que representam testemunho material da história política recente; • Que se trata de local simbólico de violação dos Direitos Humanos e privação de liberdade durante o período da 108 Marcelo Godoy, ob. cit.
  • 39. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 139 de 195 Ditadura Civil-Militar; • Que os edifícios e espaços ali remanescentes são o suporte físico à memória da repressão e da resistência; (...)” Por tais motivos, e exclusivamente por eles, é que o imóvel fora tombado: Art. 1º. Fica tombado como bem cultural de interesse histórico o aqui designado Conjunto das instalações da OBAN (Operação Bandeirante) e do DOI-CODI – II Exército (Destacamento de Operações de Informações – Centro de Operações de Defesa Interna), situados à Rua Tutóia, 921 (também com acesso pela Rua Tomás de Carvalhal, 1030), formado por suas edificações e remanescentes. Como se observou acima, já houve, por parte do Estado de São Paulo, reconhecimento oficial de que os edifícios objeto desta ação “representam a institucionalização do terrorismo de Estado”. E que, por esse motivo, e somente por esse motivo,devem ser preservados como local de memória. Vê-se, portanto, que o tombamento tivera como sentido único o conteúdo simbólico de memória dos atos de repressão política da ditadura militar havidas naquele imóvel. Sendo assim, o Estado tem o dever jurídico de dar concretude ao ato administrativo de
  • 40. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 140 de 195 tombamento e transformar o imóvel em espaço de memória, com o alcance educativo e de consolidação democrática que tal espaço encerra. Isso porque o tombamento é ato que, para efeitos de fruição, não se encerra em si mesmo. Faz-se necessário que haja políticas públicas de valorização e reconhecimento do espaço, para que seus valores sejam usufruídos de forma plena pelo coletivo. E tais edifícios, sem uso e vazios, deixam de cumprir com sua vocação natural. Leciona, uma vez mais, Deborah Neves: “...a preservação por meio do tombamento não se encerra em si, mas está ligada ao tipo de ocupação que os imóveis recebem. Vale salientar que a mera preservação do ponto de vista do material se mostra insuficiente para a produção do impacto social positivo que se pretende com tal. O tombamento é um passo, embora importantíssimo, para a construção de consciência e reflexão sobre os mais diversos valores, incluindo os democráticos, na sociedade brasileira. Portanto, o Estado (...) pode e deve encabeçar gestos e criar símbolos que outorguem sentido social à reparação de danos causado por regimes autoritários. Nos casos específicos deste tipo de preservação, trata-se de uma medida de reparação simbólica que demonstra a legitimidade da mobilização de parte da sociedade interessada na preservação de direitos humanos bem como
  • 41. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 141 de 195 contribuir para a discussão pública de temas relacionados às mais recentes ditaduras no Cone Sul”.109 E prossegue a culta historiadora, em lição muita oportuna para a discussão travada neste ponto da petição inicial: “...o reconhecimento oficial por parte do Estado é uma das formas mais eficazes de transformar aquela memória, até então restrita a esse grupo, importante para todos. Afinal, com o tombamento – no Brasil, mas de forma similar em outros países – reconhece-se um local como portador de ‘referências à identidade, à ação e à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade’110 . Ou seja, ao se tombar um lugar, a importância deixa a esfera privada para se tornar referência coletiva – ou ao menos indicado como tal pelo Estado.” E conclui a doutora em história pela Universidade Estadual de Campinas e técnica da Secretaria Estadual de Cultura: “Além da reparação simbólica produzida pelo ato, o tombamento de locais ligados a uma memória traumática torna público os efeitos de 109 Ob. cit., p. 167/168 110 Alusão a textos da Constituição Estadual de São Paulo (art. 260) e da Constituição Federal (art. 216).
  • 42. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 142 de 195 ditaduras, e pode ser instrumento relevante na defesa dos direitos humanos e dos valores democráticos.”111 Nesta perspectiva, é indispensável concluir que o dever do Estado em efetivar o centro de memória nas antigas instalações do DOI-CODI decorre do ato administrativo de tombamento, pelos motivos que fundamentaram tal ato. Vale lembrar que o ato de tombamento, por si só, não acarreta o dever jurídico do Estado de conferir dada finalidade ao imóvel tombado. Como exemplo, um imóvel residencial privado que seja tombado pelo seu relevante valor arquitetônico, certamente continuará sendo usado como moradia pelo seu proprietário particular, que sofrerá apenas as restrições alusivas às modificações arquitetônicas. Do mesmo modo, por exemplo, um imóvel público que seja tombado pelo seu relevante valor histórico, certamente poderá continuar a abrigar a repartição pública que o ocupa, sem qualquer obrigação, só por isso, de modificar sua utilização. No caso do DOI-CODI, no entanto, a situação é totalmente diversa: o tombamento só ocorreu por conta do valor simbólico derivado de sua anterior utilização, pelo Estado totalitário, como centro de torturas e de desaparecimentos forçados. Deste modo, não será eficiente o Estado se o mantiver como uma mera 111 Ob. cit., p. 168.
  • 43. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 143 de 195 repartição policial! Além disso, a melhor forma de preservar este bem tombado é a sua utilização como instrumento da política cultural. A Constituição do Estado de São Paulo traz fundamentação suficiente para este uso. Conforme se observa no art. 237 da Constituição Estadual: A educação, ministrada com base nos princípios estabelecidos no artigo 205 e seguintes da Constituição Federal e inspirada nos princípios de liberdade e solidariedade humana, tem por fim: I - a compreensão dos direitos e deveres da pessoa humana, do cidadão, do Estado, da família e dos demais grupos que compõem a comunidade; II - o respeito à dignidade e às liberdades fundamentais da pessoa humana; (...) VI - a preservação, difusão e expansão do patrimônio cultural; Da mesma maneira, o Estado de São Paulo tem a obrigação de garantir o pleno exercício de direitos culturais: Artigo 259 - O Estado garantirá a todos o pleno exercício dos direitos culturais e o acesso às
  • 44. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 144 de 195 fontes da cultura, e apoiará e incentivará a valorização e a difusão de suas manifestações. (...) Artigo 262 - O Poder Público incentivará a livre manifestação cultural mediante: V - planejamento e gestão do conjunto das ações, garantida a participação de representantes da comunidade; E não se pode negar que a não utilização do DOI- CODI, já tombado, como espaço de memória, fere o direito à cultura assegurado pela Constituição Estadual. Tanto assim o é, que está em curso, no âmbito da própria Secretaria de Cultura e Economia Criativa, por meio da UPPH, a adoção de mecanismos que garantam a adequada utilização e fruição do bem cultural, bastando que se viabilize a implantação das medidas, que tem sido debatidas exaustivamente no Grupo de Trabalho. Assim, o Estado só cumprirá a finalidade do ato e se desincumbirá com eficiência de sua obrigação se transformar o local num equipamento cultural destinado a enaltecer aquele passado que fundamentara o ato administrativo de tombamento, fazendo-o espaço educativo voltado à não-repetição daquela situação histórica. Daí se poder dizer, pois, que a obrigação legal de que se cuida nesta ação decorre do princípio adminstrativo da
  • 45. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 145 de 195 eficiência, derivado dos motivos e da motivação do ato jurídico- administrativo. E por reflexa, também do princípio administrativo da moralidade. Além disso, vale repetir: não transformar o DOI- CODI em um espaço cultural viola frontalmente a Constituição Estadual. O patrimônio público deve estar destinado ao uso no sentido de sua finalidade, isto é, a destinação de um bem público é teleológica. Todo bem público deve ser administrado de modo a atender ao interesse público; e fazer com que dado e determinado bem propicie a máxima vantagem à população é expressão da eficiência que se exige de um administrador público. Assim, um imóvel tombado por importância histórica por ter sido espaço de graves violações de direitos humanos (e não por seu valor arquitetônico ou artístico), não pode servir como espaço para uma repartição policial e deve, sim, estar a serviço da educação em direitos humanos, como instrumento para evitar a repetição do que lá acontecera. Estes foram os motivos que inspiraram tanto o pedido quanto o ato administrativo de tombamento; e do respectivo
  • 46. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 146 de 195 processo administrativo, eles constam expressamente como as motivações do mesmo ato112 . O tombamento é um ato administrativo de motivação vinculada ou obrigatória. Ora, se o tombamento do imóvel se deu por aqueles motivos, e só por eles, é curial que a Administração Pública – e, em especial, a pessoa jurídica de Direito Público que seja a titular de seu domínio – cumpra a finalidade que decorre daqueles motivos, sob pena de violação dos princípios da eficiência e da moralidade. De fato, isso tem a ver com o princípio da eficiência (art. 37, CF), a partir do qual se “exige que a atividade administrativa seja exercida com presteza, perfeição e rendimento funcional.”113 Manter um vívido espaço de memória de violações habituais de direitos humanos e de prática habitual de violência do Estado como uma repartição policial não revela, por parte do governo paulista, presteza e perfeição; e não oferece rendimento funcional. Ao contrário, revela escárnio e deboche para com as vítimas e seus familiares. 112 Sobre a distinção conceitual entre motivo e motivação do ato administrativo, vale a lição de Celso Antonio Bandeira de Melo, in “Grandes Temas de Direito Administrativo”, Editora Malheiros, 1ª edição, São Paulo, 2009, p. 72. 113 Hely Lopes Meireles. “Direito Administrativo Brasileiro”, atualizada por Eurico de Andrade Azevedo, Délcio Balestero Aleixo e José Emmanuel Burle Filho. Editora Malheiros, 35ª edição, São Paulo, 2009, p. 98.
  • 47. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 147 de 195 Um imóvel público que tem essencialmente uma finalidade não pode estar a serviço de outra, porque o resultado para o público destinatário será ineficiente. A situação atual naquele imóvel, portanto, é de clara violação ao princípio da eficiência. Neste sentido, não seria descabido, também, falar- se em violação ao princípio da moralidade, igualmente previsto no artigo 37 da Constituição Federal. “Desenvolvendo sua doutrina, explica o mesmo autor [Hauriou] que o agente administrativo, como ser humano dotado da capacidade de atuar, deve, necessariamente, distinguir o Bem do Mal, o honesto do desonesto. E, ao atuar, não poderá desprezar o elemento ético de sua conduta. Assim, não terá que decidir somente entre o legal e o ilegal, o justo e o injusto, o conveniente e o inconveniente, o oportuno e o inoportuno, mas também entre o honesto e o desonesto. Por considerações de Direito e de Moral, o ato administrativo não terá que obedecer somente à lei jurídica, mas também à lei ética da própria instituição, porque nem tudo que é legal é honesto, conforme já proclamavam os romanos: ‘non omne quod licet honestum est’. A moral comum, remata Hauriou, é imposta ao homem para sua conduta externa; a ‘moral administrativa’ é imposta ao agente público para sua conduta interna,
  • 48. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 148 de 195 segundo as exigências da instituição a que serve e a finalidade de sua ação: o bem comum.”114 O espaço que está sendo atualmente ocupado também pela Delegacia de Polícia foi, segundo consta, o maior centro de tortura do país. Não se mostra razoável que um espaço de relevância histórica tão grande seja utilizado como almoxarifado. Ou mesmo seja abandonado, sem possibilidade de visitação pedagógica e reconstrução da memória coletiva. Além dessas considerações, o dever decorre também de norma internacional lato sensu. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos editou o documento denominado “Princípios sobre Políticas Públicas de Memória nas Américas”, por meio da Resolução nº 3/2019. Dentre os seus considerandos, o documento lembra a vinculação dos Estados Membros da OEA às suas recomendações, anotando que: “Os Estados Membros da Organização dos Estados Americanos (OEA) estão obrigados a dispor de mecanismos efetios e integrais para garantir o direito à verdade tanto das vítimas de graves violações de direitos humanos como da 114 Hely Lopes Meirelles, ob. cit., p. 90.
  • 49. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 149 de 195 sociedade em seu conjunto; (...) e o estabelecimento de mecanismos que evitem a repetição de graves violações de direitos humanos ocorridas”115 O importante documento leva em conta, ainda em seus fundamentos, que: “As violações a direitos humanos no presente guardam continuidade com as graves violações aos direitos humanos do passado; a tendência observada do regresso do envolvimento das Forças Armadas em matéria de segurança e cidadania; e a necessidade urgente de sensibilizar as novas gerações acerca da importância de defender a democracia representativa com todas suas garantias e assegurar o respeito pelo Estado de Direito e pelos Direitos Humanos”116 E com base em tais fundamentos e objetivos, a Comissão Interamericana de Direitos Humanos recomenda aos Estados 115 Resolução nº 3/2019 da CIDH, Tradução livre para “los Estados Miembros de la Organización de los Estados Americanos (OEA) están obligados a disponer mecanismos efectivos e integrales para garantizar el derecho a la verdad tanto de las víctimas de graves violaciones de derechos humanos como de la sociedad en su conjunto; (…) y el establecimiento de mecanismos que eviten la repetición de las graves violaciones a los derechos humanos ocurridas.” 116 Resolução nº 3/2019 da CIDH, Tradução livre para: “las violaciones a los derechos humanos del presente que guardan continuidad con las graves violaciones a los derechos humanos del pasado; la tendencia observada del regreso del involucramiento de las fuerzas armadas en materia de seguridad ciudadana; y la necesidad urgente de sensibilizar a las nuevas generaciones acerca de la importancia de defender la democracia representativa con todas sus garantías y de asegurar el respeto por el Estado de derecho y los derechos humanos.”
  • 50. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 150 de 195 Membros da OEA, aderentes ao Sistema Interamericano de Proteção de Direitos Humanos – dentre os quais o Estado brasileiro – que, dentre os princípios relativos a iniciativas de memória de caráter educativo, cultural ou de outra natureza, está: “Instauração de monumentos, sinalizações em espaços público, memoriais e museus em reconhecimento das vítimas, e remoção ou correção contextualizada de monumentos, memoriais, museus, escuso, insígnias que louvem a memória de perpetradores”117 Ademais, o documento abre uma sessão específica sobre os sítios de memória, destacando-se, dentre os vários princípios previstos, que: “As medidas de garantia física dos lugares de memória devem contemplar os padrões internacionais vigentes em matéria de construção ou recuperação e preservação arqueológica, arquitetônica e forense”.118 Além desse documento internacional, épreciso 117 Resolução nº 3/2019 da CIDH, Princípio IX, “e”. Tradução livre para: “Instauración de monumentos, señalizaciones en espacios públicos, memoriales y museos en reconocimiento de las víctimas, y quita o enmienda contextualizada de monumentos, memoriales, museos, escudos, insignias y placas que alaben la memoria de perpetradores” 118 Idem, Princípio XII. Tradução livre para: “Las medidas de aseguramiento físico de los sitios de memoria deben contemplar los estándares internacionales vigentes en materia construcción o recuperación y preservación arqueológica, arquitectónica y forense”
  • 51. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 151 de 195 lembrar ainda que a obrigação do Estado brasileiro (Estado, aqui, num sentido amplo; a obrigação, neste caso, é do Estado-Membro paulista, titular do domínio do imóvel) em dar ao complexo predial o cuidado de “espaço de memória” decorre também de sua condição de signatário do documento “Princípios fundamentais para as políticas públicas sobre sítios de memória”, elaborado em setembro de 2012 e aprovado em 30 de novembro de 2012, na IV Reunião Extraordinária de Altas Autoridades em Direitos Humanos e Chancelarias do MERCOSUL e Estados Associados (RAADH), tendo sido ratificado na XLIV Cúpula de Chefes e Chefas de Estado do MERCOSUL e Estados Associados, realizada em Brasília (DF), em 6 e 7 de dezembro de 2012.119 O documento cria uma política pública comum aos países do Mercosul em relação ao tratamento que deve ser dado aos espaços considerados “lugares de memória”, a fim de fomentar uma maior cooperação para preservar o direito à verdade e à memória, assim como levar a cabo uma iniciativa sobre memória e preservação de sítios históricos em que ocorreram ações repressivas e detenções clandestinas como testemunha do ocorrido no passado da região. O texto do organismo regional é abrangente e minucioso, trazendo dentre os princípios gerais (item 1): 1. Para efeito destes princípios são considerados lugares de memória todos aqueles lugares onde se cometeram graves violações aos direitos humanos, ou aonde se 119 O amplo e rico documento pode ser acessado por aqui: https://www.ippdh.mercosur.int/wp- content/uploads/2014/11/Sitios_de_memoria_FINAL_PR_INTERACTIVO.pdf
  • 52. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 152 de 195 resistiram ou se enfrentaram essas violações, ou que por algum motivo as vítimas, seus familiares ou as comunidades os associam com tais acontecimentos, e que são utilizados para recuperar, repensar, e transmitir o conhecimento sobre processos traumáticos, e/ou para homenagear e reparar as vítimas. 2. Os Estados onde se cometeram graves violações aos direitos humanos devem implantar políticas públicas sobre lugares de memória. As mesmas devem garantir a criação, preservação, funcionamento, gestão e sustentabilidade desses lugares. Em particular, deve-se procurar sua criação em locais onde ainda não existem. Quanto aos princípios sobre a preservação de lugares onde se cometeram graves violações aos direitos humanos (item 2), preconiza: 12. As medidas de preservação física que se adotem para preservar os lugares onde se cometeram graves violações aos direitos humanos devem incluir tanto tarefas de conservação como de manutenção. 13. As medidas de asseguração física que se adotem para preservar os lugares onde se cometeram graves violações aos direitos humanos devem considerar as recomendações dos profissionais ou especialistas correspondentes a cada caso, incluindo, entre outros, antropólogos, arqueólogos, arquitetos, historiadores,
  • 53. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 153 de 195 museologistas, conservadores/restauradores, arquivistas e/ou advogados. No que tange aos princípios sobre a identificação, sinalização e determinação do conteúdo dos lugares de memória (item 3), o documento prevê: 22. As políticas públicas sobre lugares de memória devem garantir às vítimas, seus familiares, às comunidades locais, aos organismos de direitos humanos, e à sociedade em geral a participação mais ampla possível na definição dos formatos e conteúdos de tais lugares. Já no que concerne aos princípios sobre a estrutura institucional dos lugares de memória (item 4), o documento afirma que: 25. Os Estados têm a obrigação de adotar um contexto jurídico preciso e adequado para a criação, preservação, funcionamento e gestão dos lugares de memória. 26. A estrutura institucional dos lugares de memória deve garantir sua sustentabilidade institucional e orçamentária. Sua regulamentação por lei pode contribuir para seu fortalecimento institucional. 27. A estrutura institucional dos lugares de memória deve contemplar a formação de equipes de trabalho idôneas que permitam atingir os objetivos propostos para cada
  • 54. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 154 de 195 lugar. 28. A estrutura institucional dos lugares de memória deve incluir mecanismos de transparência, monitoramento e avaliação que permitam a prestação de contas e o controle por parte da sociedade, incluindo a execução orçamentária. 29. A estrutura institucional dos lugares de memória deve contemplar a participação mais ampla possível das vítimas e de seus familiares, e as comunidades locais. Cuidam-se, ambos os textos, de documentos internacionais classificados pela doutrina sobre Direito Internacional dos Direitos Humanos, como soft law. O fato de assim ser classificada, contudo, não desobriga o Estado de acatá-los, já que o conjunto de normas produzidas pelos sistemas internacionais de proteção de direitos – sejam as provenientes das Nações Unidas, sejam as resultantes de organismos internacionais multilaterais ou regionais – inserem-se num contexto de paz global e respeito internacional aos direitos do homem, como expressão maior do sentimento de humanismo que emerge da Segunda Guerra Mundial. Discorrendo sobre documento de soft law produzido pelas Nações Unidas, Valério de Oliveira Mazzuoli observa: A natureza de ‘soft law’ da diretriz das Nações Unidas não autoriza os Estados e as empresas a
  • 55. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 155 de 195 desrespeitar os Princípios Orientadores ou deixar de segui-los, uma vez que emanam ‘in concreto’ do labor da ONU no combate às violações de direitos humanos e na promoção cada vez mais significativa desse direitos”.120 Assim há de se considerar esse importante documento do Mercosul quanto à necessidade de que seja observado pela ora ré, adotando suas diretrizes na gestão de sua política de lugares de memória em geral e no que toca ao centro de memória que há de ser construído no antigo DOI-CODI em particular. Por fim, em razão de tudo que foi alegado, chega- se à natural conclusão de que a não construção de um espaço de memória no local violaria a função social da propriedade, prevista na Constituição Federal, artigo 5º, XXII. Ao se dizer que “a propriedade atenderá a sua função social”, a Constituição Federal obriga que uma propriedade, publica ou privada, atenda interesses da coletividade. A função social impõe limites ao direito de propriedade para garantir que o exercício deste direito não seja prejudicial ao bem coletivo. E não se pode considerar que o abandono de um prédio público, já tombado, tão significativo à história nacional, seja dar destinação social adequada. 120 Mazzuoli. Valerio de Oliveira. Curso de Direitos Humanos, Editora Método, 5ª edição, São Paulo, 2018, p. 545.
  • 56. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 156 de 195 Assim, não seria exagero afirmar que, dentro da perspectiva do direito constitucinoal, o espaço onde funcionou o DOI- CODI só pode cumprir sua verdadeira função social ao ser transformado em um espaço cultural de memória. E os exemplos de utilização da propriedade dentro de sua funcionalidade social são fartos, como se observa nos próximos tópicos. 5.4) Exemplos de lugares de memória na América Latina. A segunda metade do século XX, na América Latina, foi marcada por ditaduras militares em vários países, instituídas a partir de golpes de Estado praticados no contexto da Guerra Fria. Notadamente no Cone Sul, além do Brasil, também Argentina, Uruguai, Chile e Paraguai viveram ditaduras igualmente sangrentas e homicidas, fundadas em políticas de repressão baseadas em violência de Estado. Cada nação encontrou seu caminho para a superação do regime de exceção e para a reconstrução democrática. Em todos, entrentanto, houve um traço comum: a adoção de políticas de memória e verdade que envolveram espaços de memória. Com efeito, em toda a América Latina há lugares de memória que foram protegidos. Em Buenos Aires, na Argentina, a Escola Superior de Mecânica da Armada (ESMA) é uma referência de local de memória, onde funcionou entre 1976 e 1983, um centro
  • 57. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 157 de 195 clandestino de detenção e de prática sistemática de tortura121 . Em 2004 foi instalado um espaço de promoção da memória política, chamado “Espacio Memoria y Derechos Humanos”122 . Esse espaço de memória aproveitou um local em que houve, de fato, violações de direitos humanos. No espaço da antiga Escola Superior de Mecânica da Armada eram praticadas sessões de tortura e também se tem notícia de execuções extrajudiciais. O informe “Nunca Más”, que fui publicado pela “Comisión Nacional sobre la Desaparición de Personas (CONADEP)” apontou que: A ESMA não era apenas um centro clandestino de detenção, onde aconteciam torturas, mas funcionava como centro operacional de uma complexa organização que, inclusive, possivelmente pretendia ocultar o extermínio das vítimas dos crimes cometidos. Assim, funcionou como um grande centro que se projetou e organizou uma extensa variedade de atividades delituosas clandestinas. Embora praticadas por um grupo especial, não se tratava de atividades independentes da estrutura hierárquica, mas que dependia do comando da armada123 . 121 Pela ESMA, passaram cerca de 5000 pessoas, mas apenas uns 200 sobreviveram, segundo Deborah Regina Leal Neves – A Persistência do Passado: patrimônio e memoriais da ditadura em São Paulo e Buenos Aires. Editora Alameda, 1ª edição, São Paulo, 2018, p. 45. 122 Disponível em: https://www.espaciomemoria.ar/lugar/. Acesso em 28 de abr. 2020. 123 Tradução livre do seguinte texto: “La ESMA no sólo era un centro clandestino de detención donde se aplicaban tormentos, sino que funcionaba como el eje operativo de una compleja organización que, incluso, posiblemente pretendió ocultar con el exterminio de sus víctimas los delitos que cometía. Es así que operó como un gran centro que se proyectó y organizó una extensa variedad de actividades
  • 58. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 158 de 195 Observa-se, portanto, que este espaço de memória apresenta inúmeras relações com o antigo DOI-CODI, motivo pelo qual merece ser mencionado na presente demanda e quiçá utilizado como paradigma. Como se mencionou no item “3.4) O Caso Vladimir Herzog”, no DOI-CODI eram praticadas execuções num contexto de clandestinade e, por isso, na medida do possível, tentava-seapresentar uma ideia de “normalidade”, sugerindo-se um suicídio, quando, na verdade, aconteceu um homicídio, financiado e executado pelo Estado brasileiro. Do mesmo modo se dava com os vários homicídios (execuções extrajudiciais) retratados como mortes em confronto com policiais, versões criadas fraudulentamente por meio de encenações, sempre no propósito de empulhar a opinião pública com a ideia de que se tratava de regular e normal atividade policial de combate à criminalidade. Ainda na Argentina, foi criado, em 1998, o “Parque de la memoria”124 , em Buenos Aires, nas margens do Rio da Prata, onde há um monumento em homenagem às vítimas de terrorismo de Estado. Esse espaço de memória, por outro lado, não indica necessariamente o local onde aconteceram graves violações de direitos humanos, mas faz delictivas clandestinas. Aunque fueron ejecutadas por un grupo especial, no se trataba de actividades independientes de la estructura jerárquica sino que dependían de los mandos naturales de la Armada”. Disponível em: http://www.derechoshumanos.net/lesahumanidad/informes/argentina/informe-de-la- CONADEP-Nunca-mas-Indice.htm#C1. Acesso em 28 abr. 2020 124 Disponível em: https://www.facebook.com/ParquedelaMemoria/. Acesso em 28 de abril. 2020. O sítio eletrônico oficial faz encaminhamento à página oficial do parque, que se encontra no facebook.
  • 59. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 159 de 195 homenagem às vítimas125 . Também no interior da Argentina, alguns imóveis utilizados pela ditadura para a repressão política se converteram em importantes memoriais, a exemplo do “Museu da Mémória”, em Córdoba, instalado onde funcionava o Departamento de Inteligência da ditadura, conhecido como D2. Seu grande diferencial é um extenso varal, numa ruela pública de pedestres, Calle San Jeronimo, com fotografias de mortos e desaparecidos nele dependuradas. No Chile, que também passou por uma ditadura militar no período compreendido entre 1973 e 1990,igualmente há espaços de memória dedicados às vítimas de terrorismo de estado. Entre eles, dois merecem destaque: “Londres 38” e “Museo de la Memoria y los Derechos Humanos”. O “Londres 38” foi um espaço utilizado pela Direção de Inteligência Nacional como lugar de detenção e tortura de opositores da ditadura militar de Augusto Pinochet. O recinto se encontra no centro da cidade de Santiago, mais especificamente na Rua Londres, nº 38, proximidades da sede da Universidade do Chile. Desativado com o término da ditadura em 1973, somente em 2005 foi declarado “monumento nacional” e, após, iniciaram- 125 Embora não se possa dizer que este ponto do Rio da Prata seja um “local de memória”, existe uma referência, mesmo que indireta, aos “voos da morte”, em que opositores do regime militar argentino eram lançados, ainda vivos, ao rio: http://www.dhnet.org.br/direitos/mercosul/a_pdf/nunca_mas_argentino.pdf
  • 60. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 160 de 195 se os trabalhos necessários para abri-lo à visitação126 . Este espaço de memória também se mostra como um exemplo a ser seguido nesta demanda, já que se trata do aproveitamento de um espaço de violações de direitos humanos que foi transformado em um espaço de memória e verdade, assim como a ESMA. Por fim, cumpre mencionar ainda no Chile, a existência do “Museo de la Memoria y los Derechos Humanos”, em Quinta Normal. Este museu não foi espaço de violações de direitos humanos, mas traz a memória destas violações no Chile e também em diversos outros países da América Latina, inclusive o Brasil127 . Foi construído já em tempos democráticos exatamente para servir à finalidade de memorial daqueles tempos de horror. Em Montevidéu, Uruguai, há o “Museu da Memória de Montevidéu”, em cujo acervo há documentos, imagens, fotografias e outros itens relacionados ao terrorismo de Estado praticado pela ditadura que lá vigorou de 1973 a 1985.128 Percebe-se, portanto, que há, ao menos no Cone Sul, tentativas de se trazer à memória nacional a verdade dos fatos sobre as ditaduras militares da segunda metade do século vinte, com base nas 126 Disponível em: http://www.londres38.cl/1937/w3-propertyvalue-35250.html. Acesso em 28 abr. 2020 127 Disponível em: http://ww3.museodelamemoria.cl/. Acesso em 28 abr. 2020 128 Disponível em https://mume.montevideo.gub.uy/museo/centro-cultural-museo-de-la-memoria. Acesso em 28 abr. 2020 Consta da página eletrônica: El MUME es una institución de la Intendencia de Montevideo dedicada a la construcción de la memoria sobre el terrorismo de Estado y la lucha del pueblo uruguayo contra la dictadura, de modo de aportar conocimiento a las nuevas generaciones sobre la historia reciente de nuestro país y fortalecer los elementos constitutivos de la identidad nacional.
  • 61. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 161 de 195 narrativas oficiais e historiográficas, sem revisionismo,de modo a se consolidar as respectivas democracias. Como já mencionado no tópico acima, a realização da justiça de transição nada mais é do que a concretização do Estado Democrático de Direito. É, no mínimo, uma conquista civilizatória. Isso porque, ao mesmo tempo em que se demonstra o que aconteceu, faz-se um juízo de valor negativo disso, repudiando-o, para que não se repita. E neste ponto não cabe revisionismo histórico. Não se pode aceitar, independentemente de qualquer orientação política ou ideológica, que o Estado seja criminoso e pratique, de modo sistemático, os crimes de tortura e de desaparecimentos forçados. 5.5) Espaços de memória em São Paulo. Em relação à consolidação e respeito aos espaços de memória, o Brasil está significativamente atrás dos outros países do Cone Sul acima mencionados. No Estado de São Paulo, de acordo com a Comissão Nacional da Verdade, mais especificamente o estudo “Lugares de Memória, Arqueologia da Repressão e da Resistência e Locais de Tortura” (doc. Anexo - Relatório - Tomo I - Parte IV - Lugares da Memória, Arqueologia da Repressão e da Resistênciae Locais de Tortura), destacam-se os seguintes aparatos de repressão: • Departamento Estadual de Ordem Política eSocial (Deops/SP);
  • 62. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 162 de 195 • Sede da Operação Bandeirante, que deu origem ao Destacamento de Operações de Informações e do Centro de Operações de Defesa Interna (OBAN – DOI- Codi), localizado à rua Tutoia, onde funciona atéhoje o 36º Distrito Policial; • Prédio da Auditoria Militar; • Presídio Tiradentes, do qual, hoje, resta apenas seu pórtico de entrada, localizado na Avenida Tiradentes esquina com a Praça Coronel Fernando Prestes, tombado pelo Condephaat e reconhecido como lugar de memória; • Casa de Detenção de São Paulo (Carandiru); • Complexo Penitenciário do Estado de São Paulo (Presídio do Hipódromo). Os espaços de maior relevância no aparato repressivo do Estado de São Paulo foram o Departamento Estadual de Ordem Política e Social (Deops/SP) e a Sede da Operação Bandeirante, que deu origem ao Destacamento de Operações de Informações e do Centro de Operações de Defesa Interna (OBAN – DOI-Codi). Isto porque neles é que foram pensadas e executadas as prisões, torturas, execuções extrajudiciais e desaparecimentos forçados. As demais instituições só atuaram em consequência do que se fez naqueles dois centros do pensamento repressivo: na Auditoria Militar, dava-se ar de legalidade às prisões arbitrárias, num manejo do Direito para legitimar a repressão; e nos
  • 63. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 163 de 195 presídios, cumpriam pena os que sobreviviam às torturas. Esta consideração não pretende tirar o valor de espaço de memória da Auditoria Militar Federal e dos presídios, mas tão somente enaltecer, no contexto desta demanda cujo objeto é o antigo DOI-CODI, a relevância dos dois centros de planejamento e execução da repressão política em São Paulo. Vale lembrar que o antigo prédio do DOPS, no Largo General Osório, abriga o Memorial da Resistência129 , instituição ligada ao Governo Estadual e dedicada à preservação das memórias da resistência e repressão políticas do Brasil no período republicano, isto é, de 1889 à atualidade. Por terem sido deterioradas durante o procedimento de reforma e restauração, as celas foram reconstituídas sem o caráter de originalidade. Já o prédio da antiga Auditoria Militar Federal, localizado na Avenida Brigadeiro Luiz Antonio, abrigará o Memorial da Luta por Justiça, registrando a memória de trabalhadores e advogados na luta pela redemocratização brasileira. A formação do memorial está sob responsabilidade da seção São Paulo da Ordem dos Advogados do Brasil e do Núcleo de Preservação da Memória Política. O Presídio Tiradentes foi demolido para construção da Estação Tiradentes do Metrô, remanescendo apenas o portal original da construção colonial. 129 Disponível em http://www.memorialdaresistenciasp.org.br/memorial/default.aspx. Acesso em 18 de fev. 2021
  • 64. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 164 de 195 Também a Casa de Detenção de São Paulo, o presídio do Carandiru, foi demolida depois do Massacre de 1992, dando lugar ao Parque da Juventude. O presídio do Hipódromo, localizado na rua do mesmo nome no Brás (que a despeito de ter recebido presos políticos durante a ditadura militar, foi presídio comum na maior parte de sua história), foi desativado e o imóvel, atualmente sob posse da Fundação Casa, acha-se em péssimas condições de conservação, e parcialmente vazio. Cabe, então, neste ponto, aprofundar-se a discussão especificamente sobre a política de memória que vem sendo executada em relação ao espaço do DOI-CODI, apontando o caminho que é necessário seguir – sendo este o ponto nevrálgico desta demanda, já que o poder público estadual, apesar de ser obrigado a concretizar esse direito, se abstém de fazê-lo: tombado o imóvel por força de seu valor histórico e memorialístico, é preciso convertê-lo em espaço de memória histórica a serviço de toda a população paulista e brasileira. A este respeito, a Declaração de Quebec sobre a preservação do spiritu loci, assumido em Québec, Canadá, em 4 de outubro de 2008 pelo Conselho Internacional de Monumentos e Sítios (Icomos), reconheceu que um lugar é composto por suas características tangíveis e intangíveis, que constituem conjuntamente o spiritu loci. Nesse sentido, a carta aponta que:
  • 65. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 165 de 195 “O espírito do lugar é definido como os elementos tangíveis (edifícios, sítios, paisagens, rotas, objetos) e intangíveis (memórias, narrativas, documentos escritos, rituais, festivais, conhecimento tradicional, valores, texturas, cores, odores, etc.) isto é, os elementos físicos e espirituais que dão sentido, emoção e mistério ao lugar. REPENSANDO O ESPÍRITO DO LUGAR (...) 2. Considerando que o espírito do lugar é complexo e multiforme, exigimos que os governos e outros interessados convoquem a perícia de equipes de pesquisa multidisciplinar e especialistas com tradição para melhor compreender, preservar e transmitir este espírito do lugar. E, dentro da interpretação desta declaração, o espírito do lugar deve ser transmitido: 8. Reconhecendo que o espírito do lugar é essencialmente transmitido por pessoas e que a transmissão é parte importante de sua conservação, declaramos que é por meio de comunicação interativa e participação das comunidades envolvidas que o espírito do lugar é preservado e realçado da melhor forma possível. A comunicação é, de fato, a melhor ferramenta para manter vivo o espírito do lugar. (...)
  • 66. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 166 de 195 10. Reconhecendo que a transmissão intergeracões e transcultural desempenha um papel importante na disseminação sustentada e na preservação do espírito do lugar, recomendamos a associação e o envolvimento das gerações mais novas, bem como de grupos culturais diferentes associados ao lugar, na tomada de decisões políticas e gestão do espírito do lugar.130 Este é justamenteo o objetivo da presente demanda judicial. 5.6) DOI-CODI como espaço de memória – impossibilidade de manutenção da 36ª Delegacia de Polícia. Conforme se observa no texto introdutório sobre locais de memória na Comissão Estadual da Verdade, as políticas do patrimônio histórico e cultural de interesse da justiça de transição devem garantir o registro dos mais diversos tipos de memória. Devem garantir, também, a integridade física dos locais em que se almeja proteger, bem como assegurar que o uso dos bens imóveis identificados esteja associado ao direito à memória, à verdade e à justiça131 . 130 ICOMOS. Declaração de Quebec sobre o spiritu loci (2008). Disponível em http://www.international.icomos.org/quebec2008/quebec_declaration/pdf/GA16_Quebec_Declaration_ Final_PT.pdf. Acesso em 05 de maio de 2021. 131 Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da- memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago. 2020
  • 67. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 167 de 195 A primeira medida para se garantir a criação de um espaço de memória no local do antigo do DOI-CODI foi seu tombamento. Esse procedimento está descrito no documento “Lugares da memória, arqueologia da repressão e da resistência e locais de tortura”132 . Conforme se observa neste esclarecedor texto, em 29 de novembro de 2012, na Comissão Estadual da Verdade “Rubens Paiva” realizou-se uma audiência pública sobre o assunto.133 Já a Comissão Nacional da Verdade e a Comissão “Vladimir Herzog”, do Município de São Paulo, também atuaram nestaquestão e, em 27 denovembro de 2013, fizeram solicitação perante os Secretários Estaduais de Cultura e de Segurança Pública134 .O tombamento foi aprovado pelo Conselho de Defesa doPatrimônio Histórico, Artístico e Turístico (Condephaat) do Estado de São Pauloem 27 de janeiro de 2014. No entanto, conforme mencionado acima, inclusive com fotografia do espaço, lá ainda funciona a 36ª Delegacia de Polícia de São Paulo. Trata-se de um total contrassenso, como muito bem esclareceu o presidente da Comissão Estadual da Verdade Rubens Paiva: “Não é admissível uma delegacia de polícia funcionar num prédio queabrigou o DOI-Codi. É como se uma usina de gás alemã funcionasse até hoje em um campo de concentração”135 132 Idem. Anota-se que este documento também se encontra anexo. 133 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=HSKFmEu7kCw. Acesso em 12 ago. 2020. 134 Disponível em: http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da- memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago. 2020 135 Disponível em:
  • 68. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 168 de 195 Conforme ainda menciona o documento “Lugaresdamemória, arqueologiada repressão e da resistência e locais de tortura”, a incompatibilidade da Delegacia de Polícia funcionar no espaço do DOI-CODI foi exposta pela historiadora Cristina Meneguello, que elaborou excelente parecer no processo de tombamento do espaço. Segundo a historiadora: Sabemos, como afirmou a UNESCO em 2002 ao incluir o campo de concentração e extermínio de Auschwitz-Birkenau na sua Lista Mundial, que o patrimônio não é apenas um relicário de testemunhos estéticos da atividade humana. Dentro das proporções que lhes cabem, tanto no caso da ESMA, do DOPS ou do museu chileno, assim como em tantos outros memoriais destinados a lembrar a barbárie, impera a necessidade de revisitar o passado, devolver dignidade às vítimas e às suas famílias, e, por meio de ações educativas, estimular a reflexão para que fatos como estes não mais se repitam. Se ao DOI-CODI caberá a função de Memorial, e se para este fim o edifício deverá ser inscrito como patrimônio estadual, apenas um estudo de tombamento circunstanciado poderá responder. http://comissaodaverdade.al.sp.gov.br/relatorio/tomo-i/downloads/I_Tomo_Parte_4_Lugares-da- memoria-arqueologia-da-repressao-e-da-resistencia-e-locais-de-tortura.pdf. Acesso no dia 12 ago. 2020
  • 69. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 169 de 195 Se tombado, como se lidará com as alterações das funções atuais do edifício? O edifício será “restaurado” para chegar à aparência que possuía na época de seu uso para a repressão e a violência? Seu uso como Memorial será semelhante ao já existente DOPS? Todas estas questões, de suma importância, lidam com uma ferida ainda aberta na história nacional. Meu parecer é favorável à abertura do estudo de tombamento136 . A Comissão Estadual da Verdade fez diversas recomendações acerca da utilização dos espaços de memória em São Paulo. Dentre elas, merecem destaque, porque pertinentes a esta ação civil pública, as seguintes: 1) Que sejam reconhecidos e identificados como Lugares da Memória os locais, públicos ou privados, apontados nas narrativas das vítimas e familiares ou nos Relatórios produzidos pelas Comissões da Verdade, utilizados pelo aparelho repressivo do Estado ditatorial para torturas e outras graves violações, ressaltando a importância desses locais como elementos fundamentais para compreensão do período de repressão, seus atores, seus apoiadores e financiadores e, até mesmo, para descobrir o paradeiro de desaparecidos políticos; 136 Procedimento do tombamento se encontra como documento anexo.
  • 70. PROMOTORIA DE JUSTIÇA DE DIREITOS HUMANOS– Inclusão Social Rua Riachuelo, nº 115 - Sé | São Paulo/SP Página 170 de 195 2) Que o Estado se aproprie dos locais citados nesse relatório e que assuma imediatamente a partir da publicação deste relatório sua obrigação em preservar os prédios e espaços que foram utilizados para repressão, com uso dos instrumentos protetivos dos bens culturais, como Registro, Tombamento, Inventários, Vigilância e Desapropriação e outros mecanismos aptos à preservação da memória histórica e à revelação da verdade; 3) Que seja criado um fundo destinado à manutenção destes lugares, com a colaboração da Fiesp, como medida de justiça restaurativa em resposta à ação da Federação de Indústrias na conspiração do golpe de 1964 e no financiamento da repressão política e dos crimes de lesa-humanidade perpetrados pelo Estado brasileiro; 7) Que os órgãos de cultura e de educação do Estado, em suas diversas instâncias, promovam ações e estratégias de difusão e de educação utilizando os locais de interesse em suas práticas; bem como promover linhas de fomento para essas ações; 14)Que seja promovida uma discussão pública, dos órgãos estaduais de cultura e educação em conjunto com a Secretaria de Segurança Pública para a definição do uso do prédio do DOI-CODI, em até doze (12) meses a partir da publicação deste relatório.