O documento discute as interfaces entre o lixo, o trabalho, a saúde e o meio ambiente. Apresenta dados sobre o número de pessoas que trabalham em aterros sanitários e coletam materiais recicláveis, expondo-se a riscos à saúde. Também descreve os impactos ambientais causados pelo lixo, como a poluição do ar, solo e água, e os problemas de saúde enfrentados por trabalhadores da área.
Interfaces do lixo comInterfaces do lixo com o trabalho o trabalho, a saúde e o ambiente
1. Interfaces do lixo com o trabalho, a saúde e o
ambiente − artigo de revisão
*SANTOS, G. O.1
1
Professor do Departamento de Química e Meio Ambiente do Instituto Federal do Ceará (IFCE) – Campus Fortaleza
Av. Treze de Maio, 2.081 – Benfica
CEP 60040-531 – Fortaleza – CE
*e-mail: gemmelle@ifce.edu.br
Entrada: 27/5/2009
Aceite: 5/10/2009
Resumo: O artigo discute sobre a interface que o lixo possui com o trabalho, a saúde (dos garis e dos catadores) e
o ambiente, sem esquecer os impactos ampliados que o lixo representa para as pessoas de modo geral, especialmente
as não atendidas por sistemas de saneamento. Com base na revisão de literatura foi possível elaborar considerações
que fazem parte de um estudo finalizado do Departamento de Saúde Comunitária da Universidade Federal
do Ceará (UFC). A sistematização realizada neste trabalho representa o reconhecimento da importância das
contribuições intelectuais de outros autores para uma pesquisa que versa a respeito do trabalho e da saúde dos
sujeitos que fazem a coleta domiciliar de lixo em Fortaleza (garis) e dos que segregam recicláveis em uma usina
e em uma associação (catadores). Foram analisados artigos publicados em periódicos e congressos (nacionais e
internacionais), livros e folhetos (impressos e eletrônicos). Além disso, esta investigação traz reflexões sobre algumas
forças motrizes responsáveis pela geração de lixo e degradação ambiental ao tratar da temática do consumo e da
lógica de desenvolvimento adotada pela maioria dos países.
Palavras-chave: lixo; trabalho; saúde; ambiente.
Abstract: The article offers a discussion on the interface that the garbage has with work, health (sweepers and
scavengers) and the environment, without forgetting the expanded impacts that trash represent for people in
general, especially those not served by sanitation systems. From an extensive review of literature it was possible
elaborate considerations within the large area of research which is part of a survey completed in the Department
of Community Health, Federal University of Ceara. The systematization made here is the recognition of the
importance of intellectual creations of other authors for a search that is about work, health of the subjects
that make the collection of household garbage in Fortaleza/CE (garis) and those who are in the segregation of
recyclable and a plant in an association (catadores). Articles published in journals and conferences (national and
international), readings of books and booklets (print and electronic) were analyzed. Besides, this article also brings
some reflections on the driving forces responsible for the generation of waste and environmental degradation to
discuss the issues of consumption and the logic of development adopted by most countries.
Keywords: garbage; labor; health; environment.
INTRODUÇÃO se agrava cada vez mais com o crescimento
desordenado das cidades, a utilização predatória
Os resíduos sólidos, comumente chamados da natureza, a manutenção de hábitos insanos de
de lixo, contêm uma parcela de cada material consumo e as mudanças de costumes sociais.
que chega do interior de residências, empresas, O fato é que, neste início de século, há grandes
estabelecimentos, entre outros, e um amplo contradições: nunca houve tanto alimento e tanta
espectro de organismos patogênicos, além de fome, tanta informação e inércia intelectual,
numerosos elementos tóxicos que igualmente tanto dinheiro e tanta pobreza e ausência de
representam risco para a saúde humana e as serviços fundamentais às necessidades básicas
condições ambientais. dos seres humanos. Portanto, a ideia de minimizar
Nesse sentido, a “era do desperdício” da desigualdades via crescimento econômico e
atualidade demonstra que o lixo se tornou um produção de supérfluos – fortemente defendida por
grande problema ambiental e de saúde pública, alguns economistas que acreditam que o “bolo
assumindo uma magnitude alarmante e que deve crescer para depois ser repartido” – apresenta-
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se como falsa, mas permanece como uma verdade que conta com representantes em quase todos
absoluta e uma “promessa tecnológica”. os estados brasileiros, também considera que o
Nutrem essas contradições as lógicas número de pessoas que trabalham atualmente em
desenvolvimentistas anunciadas por governos do lixões é maior do que o apurado pela Pesquisa
mundo todo, ao tentarem levar suas populações à Nacional de Saneamento Básico do IBGE (Valle
crença de progresso para alcançar os ditos países Mota, 2005).
centrais, por meio de aumento da capacidade de Segundo Ferreira e Anjos (2001), os catadores,
crescer sem fim. No entanto os bens naturais são ao remexerem os resíduos vazados à procura de
finitos, e tudo o que existe nas sociedades urbanas materiais que possam ser comercializados ou servir
representa uma natureza no formato de bens e de alimento, estão expostos a todos os tipos de
mercadorias; mas isso parece pouco claro para a contaminação presentes nos resíduos.
grande maioria dos habitantes deste planeta. É sobre tal cenário que trata este artigo,
Leff (2001, p. 28) afirma que “precipitamo- que traz uma discussão sobre a interface que o
nos para o futuro sem uma perspectiva clara”. lixo possui com o trabalho, a saúde (dos garis e
Contraditoriamente, há o incentivo à busca por catadores) e o ambiente, sem esquecer os impactos
uma vida repleta de bens não duráveis, como se a ampliados que o lixo representa para as pessoas de
Terra (matriz única que sustenta todas as formas modo geral. O objetivo foi, com base na revisão
de vida, inclusive a humana) suportasse tão insano de literatura, situar nossas elaborações dentro
ritmo de exploração. da grande área da qual fez parte uma pesquisa
Para Lastres et al. (1998, p. 1), “a emergência de realizada no Departamento de Saúde Comunitária
um novo paradigma tecnológico e a globalização da Universidade Federal do Ceará (UFC).
financeira são os traços mais marcantes da
economia mundial nos últimos 15 anos, contudo,
a expectativa de que a entrada maciça do capital METODOLOGIA
estrangeiro pudesse acelerar a difusão das novas
tecnologias e a integração das economias locais O presente trabalho representa uma
com um mercado global frustrou-se e a crise social investigação que foi pensada, do ponto de vista
tornou-se mais aguda”, especialmente no Brasil. da sua natureza, como pesquisa básica, porque
Assim, “a grave crise social existente no se objetivou gerar conhecimentos novos e úteis
país tem levado um número cada vez maior de para o avanço da ciência, envolvendo interesses
pessoas a buscar a sua sobrevivência por meio da universais. Assim, tratou-se do problema da maneira
catação de materiais recicláveis existentes no lixo menos quantificável possível, considerando a
domiciliar” (Ibam, 2001, p. 127). Estima-se que dinâmica entre o “mundo do lixo”, o trabalho,
mais de 200 mil catadores no Brasil e mais de a saúde (dos garis e catadores) e o ambiente.
45 mil crianças trabalhem nos resíduos, conforme O propósito principal aproximou-se de uma
dados do Unicef1. De forma complementar, pesquisa exploratória (quando esta proporciona
informações do Ibam (2001) indicam ainda que maior familiaridade com o problema com vistas
em 68% dos municípios brasileiros há catadores a torná-lo explícito e faz uso de levantamento
nas ruas, em 66% há catadores nos aterros e em bibliográfico). Entretanto não foram elaboradas
36% crianças catam “lixo” nos aterros. hipóteses ou entrevistas, muitas vezes essenciais
Tais números, ainda que sejam oficiais, são nesse tipo de estudo. Utilizou-se também a
considerados subestimados pelo Fórum Nacional pesquisa explicativa, quando foram identificados
Lixo e Cidadania, uma instância organizada os fatores que determinam a ocorrência dos
de discussão que reúne organizações não- problemas ambientais e de saúde dos garis e
governamentais, instituições religiosas, órgãos catadores decorrentes do “lidar com o lixo” ou
governamentais e instituições de ensino e pesquisa que contribuem para tal.
que atuam nas áreas relacionadas à gestão dos A investigação bibliográfica representou o
resíduos sólidos e também na área social. O procedimento técnico mais empregado, pois
Movimento Nacional dos Catadores, órgão criado foram analisados materiais já publicados como
por catadores e catadoras do Brasil em 1999 livros, dissertações, artigos de periódicos e
1
Disponível em www.unicef.org/brazil/pt/.
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3. Interfaces do lixo com o trabalho, a saúde e o ambiente – artigo de revisão
material disponibilizado na internet. Ao resgatar cobertura dos resíduos, o que propicia a poluição
tais referências, algumas reflexões foram tecidas do solo, ar e água, bem como a proliferação de
sobre exemplos de forças motrizes que geram lixo vetores de doenças”.
e degradação ambiental. Além dos problemas mencionados, Sisinno
Por meio da revisão de literatura, o (2002, p. 13) destaca “a contaminação da biota,
conhecimento produzido em pesquisas prévias poluição visual e sonora, desvalorização imobiliária,
foi reportado e avaliado destacando conceitos, descaracterização paisagística e desequilíbrio
procedimentos, resultados, discussões e conclusões ecológico”.
diversas acerca das temáticas averiguadas. Assim, Assim, os problemas ambientais advindos do
a sistematização de informações e dados realizada lixo são todos aqueles que podem causar prejuízos
representou o reconhecimento da importância ao meio físico (ar, água e solo), ao biológico (fauna
das criações intelectuais de outros autores para e flora) e ao antrópico (homem e suas relações
uma pesquisa (em construção) que versa sobre o históricas, culturais, econômicas, políticas etc.).
trabalho, a saúde dos sujeitos que fazem a coleta Quanto ao meio físico, os agravos derivam
domiciliar de lixo em Fortaleza (CE) (chamados principalmente do lixo exposto a céu aberto, em
de garis) e a saúde dos que fazem a segregação que os processos de decomposição do material
de resíduos em uma usina e em uma associação orgânico se encontram acelerados e gases (como
(conhecidos como catadores). o dióxido de carbono e metano – vilões do
Por intermédio de uma busca pela internet, aquecimento global e efeito estufa) acabam sendo
foram levantados manuscritos produzidos no lançados na atmosfera sem nenhum tratamento.
Brasil e internacionalmente, considerando as No caso de áreas de despejo onde haja, mesmo
bases de dados pertencentes às universidades que precariamente, algum tipo de espalhamento,
e aos sistemas indexados (SciELO, Bireme, compactação e cobertura dos resíduos, as poeiras
BVS, Lilacs, entre outros). Realizou-se também suspensas vindas dos próprios resíduos e produzidas
pesquisa nas bibliotecas da UFC, da Universidade durante as etapas de operação também contribuirão
Estadual do Ceará (UECE), do Centro Federal para a poluição do ar no local (Sisinno, 2002).
de Educação Tecnológica do Ceará (Cefet/CE), Fora os aspectos citados, determinados
da Superintendência Estadual do Meio Ambiente componentes do lixo, como papéis e sacolas,
(Semace) e da Secretaria da Infraestrutura podem gerar poluição atmosférica ao serem
(Seinfra). carregados pelo ar em movimento (ventos)
e/ou sofrerem queima clandestina, lançando na
atmosfera materiais particulados, óxido de enxofre
LIXO E AMBIENTE e nitrogênio, o que altera a qualidade do ar.
Nessa perspectiva, Acurio et al. (1997) lembram
O crescimento urbano desordenado tem sido que
apontado como um dos grandes vilões da questão
ambiental, por ter íntima relação com a geração a poluição do ar, provocada pelo lixo, representa
de lixo e esta com a deterioração das condições ainda um outro problema: o fato de tal poluição
do ambiente e da qualidade de vida humana. atingir populações próximas ou distantes dos locais
de disposição dos resíduos. Nos estudos de casos,
De acordo com Mota (2003, p. 285), “a maioria as maiores queixas das populações vizinhas a estas
das cidades brasileiras ainda utiliza a forma de dar áreas referem-se a distúrbios respiratórios, não
destino aos resíduos sólidos através de depósitos a só pela poeira suspensa, mas também pelo cheiro
céu aberto”. Alves et al. (2006, p. 2) asseveram que desagradável e efeito irritante de algumas substâncias
“tal alternativa, conhecida por lixão, se caracteriza voláteis, que causam cefaléia e náuseas.
pela simples descarga dos resíduos sólidos sobre o
solo sem medidas de proteção ao meio ambiente Os danos ao solo apresentam intensidades
ou à saúde pública”. diferentes que dependem do tipo de solo, de lixo
Ainda nesse sentido, Castilhos Júnior et al. e da existência ou não de técnicas de tratamento
(2003, p. 2) expõem: “O depósito de resíduos e/ou disposição (Santos, 2008). Assim, ao ser
sólidos a céu aberto ou lixão é uma forma de disposto no solo, o lixo o polui pela introdução
deposição desordenada sem compactação ou de microrganismos, pela atração de vetores, pela
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impermeabilização decorrente dos materiais na maioria dos casos, para abastecimento humano,
não biodegradáveis e pelo chorume, um líquido o que levanta a suspeita de surtos de doenças por
escuro com fortes características físico-químicas via indireta (hídrica).
e biológicas, por isso, de alto potencial poluidor
(Santos, 2007). Os resíduos sólidos contêm espécies químicas que
Mattos (2006) observou que a toxicidade podem ser carreadas pelas chuvas e entrar em contato
do chorume – medida por meio de variáveis com os cursos d’água superficiais e subterrâneos
através de escoamento superficial e infiltração.
microbiológicas, físico-químicas e de metais pesados Dessa forma, poderá haver o comprometimento do
– implica degradação ambiental da sub-bacia do uso dessas fontes e da biota aquática, com risco
Igarapé Batista (Rio Branco, Acre), pois foram de ocorrer intoxicações em um grande número de
encontradas concentrações elevadas de metais pessoas (Sisinno, 2002, p. 33).
pesados (mercúrio, cromo, manganês e zinco) em
pontos de amostragens do aterro controlado, como Notou-se na literatura aumento da preocupação
também altas concentrações de coliformes totais com o monitoramento da qualidade das águas
e termotolerantes. subterrâneas existentes em áreas de disposição de
As áreas nas quais se despejam resíduos, lixo, por causa do risco de contaminação dessa
mesmo depois de desativadas, terão seu uso futuro importante fonte de abastecimento de água para
comprometido em virtude de consequências da a população.
disposição imprópria de toneladas de resíduos Enquanto a contaminação de um manancial
durante anos. Nesse sentido, Chaney (1983) de superfície geralmente constitui um problema
apud Sisinno (2002) afirma que espécies químicas visível, facilmente identificável por mudança da cor
encontradas nos resíduos (como metais pesados da água, presença de espuma, odor e aparecimento
e hidrocarbonetos policíclicos aromáticos) de organismos aquáticos mortos, a poluição dos
poderão ser retidas pelos solos e assimiladas pelos aquíferos é invisível e pode transformar-se em um
vegetais, não sendo recomendado, portanto, o seu problema crônico, na medida em que só venha a
consumo. ser identificado por meio de seus efeitos na saúde
pública (Rebouças, 1992).
Muitas destas substâncias podem ser corrosivas para Os agravos decorrentes do lixo e relacionados
alguns materiais de construção, sendo um risco ao meio biótico (fauna e flora) são mais
para edificações erguidas na área. Além disso, o gás representativos quando se observa a poluição
acumulado nestas áreas pode provocar explosões,
incêndios e instabilidade do terreno, constituindo- dos ambientes naturais das cidades. O “verde”
se em um problema para a urbanização futura de de remanescentes áreas do meio urbano, por
áreas de despejo desativadas (Emberton e Parker, exemplo, contrasta com a multiplicidade de cores
1987 apud Sisinno, 2002). dos mais diversos tipos de resíduos depositados
(papel, papelão, PET, metais, vidros, alumínios,
No tocante à água, os problemas provenientes cerâmicas, trapos, plásticos, borrachas etc.). Já do
do lixo estão relacionados com a poluição dos ponto de vista da fauna, percebe-se que o lixo pode
recursos hídricos tanto superficiais quanto prender aves, répteis e felinos e levá-los à morte
subterrâneos. Sobre esse aspecto, destacam-se o por sufocamento, emaranhamento e/ou ingestão
trabalho desenvolvido por Oliveira (1997), que conjunta de alimentos existentes no lixo.
tratou da poluição das águas do rio Cocó em Por fim, o lixo provoca prejuízos ao meio
Fortaleza (CE) pelo Lixão do Jangurussu instalado antrópico (homem e suas relações históricas,
em suas margens, e o de Porto et al. (2004), que culturais, econômicas e políticas) ao transmitir
mencionaram a contaminação das águas da baía doenças diretamente ou por vetores abrigados;
de Guanabara pelos resíduos sólidos dispostos no causar acidentes (terrestres, marítimos e aéreos);
aterro de Jardim Gramacho. Isso mostra que tal adentrar nas residências em virtude de inundações;
questão é singular em algumas cidades do país. exalar odores ao se degradar ou ao ser queimado;
O grande problema de saúde pública decorrente ser ingerido pelas comunidades de catadores e
da poluição e/ou contaminação dos recursos limitar a aquisição de recursos para o município
hídricos pelo lixo consiste no fato de que um em decorrência do descaso com o tema. A
elevado número de cidades brasileiras os utiliza, presença de resíduos sólidos municipais nas áreas
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5. Interfaces do lixo com o trabalho, a saúde e o ambiente – artigo de revisão
urbanas é muito significativa e gera entraves de para as aeronaves que circulam nas proximidades
ordem estética, de saúde pública, pelo acesso a de áreas de despejo de lixo.
vetores e animais domésticos. Além disso, obstrui Ozonoff et al. (1987) apud Sisinno (2002)
rios, canais e redes de drenagem urbana, causando demonstraram que moradores residentes nas
inundações e potencializando epidemias de dengue proximidades de várias áreas de disposição de
e de leptospirose (Ferreira e Anjos, 2001). resíduos perigosos apresentavam mais incidência de
Alguns danos provocados pelo lixo acumulado sintomas respiratórios (respiração ofegante, tosse,
no meio ambiente foram relatados em entrevistas resfriados persistentes etc.), problemas cardíacos e
concedidas a Rêgo et al. (2002), num estudo que casos de anemia, em comparação com um grupo
buscou conhecer os efeitos do lixo sobre a saúde controle, situado mais afastado desses locais.
humana, tomando como ponto de partida as Conforme Dall’Agnol e Fernandes (2007), as
definições de lixo dadas pelos sujeitos envolvidos no morbidades mais frequentes advindas do contato
processo de catação de recicláveis. De acordo com direto ou indireto com o lixo são as doenças
os autores, os entrevistados listaram contaminação diarreicas relacionadas à lavagem das mãos e
da água de consumo, deslizamento de encostas, aquelas transmitidas por vetores biológicos e
alagamentos, enchentes, poluição atmosférica e mecânicos.
degradação do solo. Os relatos apontam que o Acurio et al. (1997) apontaram sete principais
somatório dos problemas de drenagem, acúmulo de problemas de saúde associados às substâncias
lixo, elevado índice pluviométrico e topografia da presentes nos locais de disposição de resíduos
cidade expõe as populações que residem em áreas perigosos: anomalias imunológicas, câncer, danos
de encostas e baixadas às mais variadas situações ao aparelho reprodutor e defeitos de nascença,
de deslizamento de terra e enchentes, provocando, doenças respiratórias e pulmonares, deficiências
por vezes, vítimas fatais nessas localidades. hepáticas, problemas neurológicos e também renais.
Ainda segundo os autores, o que mais preocupam
as comunidades afetadas pela disposição de resíduos
TRABALHO COM O LIXO E A perigosos são o câncer, os efeitos neurológicos e
SAÚDE os defeitos de nascença.
Sobre a relação lixo-homem, diversos trabalhos
Os problemas de saúde associados ao lixo vêm sendo publicados com as mais diferentes
ou mesmo às vias de contato lixo-homem abordagens. Marques (1999) e Firmeza (2005)
potencializam-se quando se leva em conta a analisaram resíduos sólidos considerando a
população residente nas proximidades de lixões dimensão da reciclagem; Carneiro Filho (2001)
ou aterros sanitários, considerando que muitas e Soares (2004) conceberam o mesmo assunto
pessoas moram em habitações precárias e têm sua sob o foco da destinação final e da gestão e
saúde debilitada por deficiências sanitárias, sociais do gerenciamento; Vieira (2004), Santos (2007)
e ambientais. e Santos et al. (2008) trataram da questão dos
Os vetores encontrados nas áreas de disposição resíduos sólidos levando em conta a educação
de resíduos urbanos são animais que encontram ambiental; Ensinas (2003) e Alves et al. (2006)
no lixo alimento e abrigo, ou seja, condições abordaram resíduos sólidos com foco na geração
favoráveis para a sua proliferação. Muitos desses de energia.
animais são vetores responsáveis pela transmissão Outros estudos realizados no Brasil têm
de inúmeras doenças ao homem, tais como febre apontado para uma possível associação entre
tifoide, salmoneloses e disenterias, transmitidas manejo inadequado de resíduos sólidos urbanos
por moscas e baratas; filariose, malária, dengue e aumento de eventos mórbidos em crianças,
e febre amarela, provocadas por mosquitos; raiva, notadamente diarreia e parasitoses intestinais
peste bubônica, leptospirose e certas verminoses, (Catapreta e Heller, 1999; Moraes, 2007). Isso
ocasionadas por roedores (Rouquayrol, 1986). mostra que os processos de produção, disposição
Os urubus que são atraídos pela matéria e coleta de resíduos que ocorrem no interior das
orgânica em decomposição encontrada no lixo comunidades não estão dissociados de questões
podem albergar o agente da toxoplasmose (Leite estruturais mais gerais ou aparentemente longe de
et al., 1990), constituindo igualmente um risco afetarem a saúde dos trabalhadores.
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6. Revista Saúde e Ambiente / Health and Environment Journal, v. 10, n. 2, dez. 09
Ferreira (2002, p. 4) ressaltou que os “objetos Ainda segundo Porto (2007, p. 27),
perfurocortantes são responsáveis por graves
acidentes na coleta de lixo e estão incluídos entre os trabalhadores cada vez mais aprendem e se
os materiais que causam repulsa e medo entre os capacitam para o desenvolvimento de suas atividades
trabalhadores, pelo risco de contaminação”. Para o e, com isso, tendem a aceitar certas situações como
autor, “os riscos de acidentes com perfurocortantes parte do jogo. Porém, os responsáveis técnicos pela
segurança denominam essas situações como “falta
ampliaram-se com a padronização obrigatória do de consciência” ou “ato inseguro” dos trabalhadores,
uso dos sacos plásticos para acondicionamento do desprezando o contexto de fundo e rapidamente
lixo domiciliar”. Seus entrevistados – trabalhadores passando a figura do trabalhador de vítima para
da coleta domiciliar de lixo do Rio de Janeiro – culpado.
afirmaram que “os sacos impossibilitam ver o que
está dentro”, podendo produzir graves acidentes O lixo gera odores característicos de gases,
(Ferreira, 2002). como azoto (N2), amoníaco (NH3) e sulfídrico
Assim, o “lidar com lixo” exige um regime de (H2S – odor de ovo podre), especialmente. Ferreira
proteção especial. Todavia dificuldades referentes (2002) observou que, além de o cheiro do lixo
ao acesso ou à reposição de equipamentos de incomodar relativamente os trabalhadores da
proteção individual (EPIs) são comuns na rotina coleta domiciliar no Rio de Janeiro, ele causa um
de quem exerce tal atividade. Dall’Agnol e ardor na vista, conforme anunciaram 36,4% dos
Fernandes (2007) trouxeram um fator agravante seus entrevistados.
a essa discussão ao desenvolverem um trabalho Para Ferreira e Anjos (2001), o odor emanado
sobre saúde e autocuidado entre catadores de lixo. dos resíduos pode causar mal-estar, cefaleias e
Segundo as autoras, náuseas em trabalhadores e pessoas que estejam
próximos de equipamentos de coleta ou de sistemas
a carência de equipamentos de proteção individual de manuseio, transporte e destinação final.
para todas as catadoras entrevistadas leva grande Conforme Lua (1999) apud Ferreira e Anjos
parte delas a não aderirem ao uso de luvas e, na
falta de luvas novas, as trabalhadoras retiram as que (2001), por melhor que seja o padrão técnico
encontram no lixo hospitalar, lavam e as guardam da unidade – projeto, construção e operação –,
para uso posterior. Consequentemente, a problemática a questão do mau cheiro está sempre presente
se agrava, pois a contaminação se potencializa em quando se manuseiam grandes quantidades
decorrência da fragilidade das luvas cirúrgicas, que de resíduos domiciliares, ante o processo de
se rompem facilmente durante o manuseio do lixo, decomposição da matéria orgânica, e tem sido
sendo ineficazes como equipamento de proteção
(Dall’Agnol e Fernandes, 2007, p. 6).
um dos fatores para o fechamento de usinas de
reciclagem e compostagem no Brasil.
Ainda que seja difícil estabelecer uma relação
Velloso et al. (1998) constataram que a falta de de interferência do lixo na saúde das populações
medidas preventivas (EPIs e treinamentos) aliada que residem perto de usinas de triagem do Brasil,
ao processo de trabalho de coleta de lixo domiciliar não há razões para destacar a hipótese de que o
se mostra responsável pelo maior percentual de lixo interfere de forma negativa.
acidentes (33,3%), na opinião de garis da cidade do
No estudo de Rêgo et al. (2002), o relato
Rio de Janeiro. Tal resultado reflete a importância
de uma mulher evidenciou que os seus filhos
de condições seguras de trabalho.
tinham problemas respiratórios decorrentes do
Porto (2007) assevera que apenas o uso de odor desagradável provocado pelos resíduos e
EPIs não cessa os problemas inerentes a qualquer pelas queimadas realizadas a quase 15 metros da
atividade que apresente potencial impacto à saúde sua residência. Diante dessa entrevista, os autores
dos trabalhadores. acreditam que o lixo parece ser um problema que
atinge pessoas de ambos os sexos e diferentes
Uma análise contextualizada, com apoio de faixas etárias, sobretudo as crianças.
disciplinas como a ergonomia e a ergologia, poderia
revelar que muitas vezes os EPIs são ineficientes,
Os resultados da pesquisa de Moraes (2007)
custosos, extremamente desconfortáveis em expõem, com alguma evidência, uma associação
ambientes quentes ou ainda incompatíveis com as entre o tipo de acondicionamento domiciliar
exigências de produtividade exigidas pela gerência dos resíduos sólidos, a coleta de resíduos sólidos
(Porto, 2007, p. 7). domiciliares no ambiente de domínio público e
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7. Interfaces do lixo com o trabalho, a saúde e o ambiente – artigo de revisão
a prevalência de Ascaris lumbricoides, Trichuris Somados a essas adversidades, foi comum
trichiura e ancilostomídeos em crianças de 5 a encontrar na literatura relatos sobre as pressões
14 anos de idade, mesmo quando outros fatores sofridas pelos garis em empresas responsáveis pela
socioeconômicos, culturais, demográficos e coleta urbana e as tensões durante as andanças
ambientais são considerados. nas ruas. Conforme Velloso (1995) apud Anjos e
No trabalho de Dall’Agnol e Fernandes (2007) Ferreira (2000), durante a coleta o trabalhador está
as manifestações das catadoras participantes submetido a tensões permanentes pela presença
convergiram para uma única certeza: ter saúde é constante de fluxo de outros veículos nas ruas.
não contrair uma doença grave como câncer, Aids Nesse mesmo sentido, Velloso et al. (1997,
e tuberculose. Tais moléstias foram evocadas por p. 697) destacam que
causa de situações que vivenciaram na família ou
muito próximas de si. os trabalhadores − por realizarem suas atividades ao
Conforme Rêgo et al. (2002, p. 1.586), ar livre − ficam expostos ao calor, ao frio, à chuva
e, ainda, às variações bruscas de temperatura. Além
disso, durante o processo de trabalho, o compactador
as mulheres demonstraram no seu discurso que o de lixo é acionado frequentemente, ocasionando
lixo é um problema na medida em que, acumulado ruído que se soma aos ruídos produzidos no trânsito
no ambiente, é capaz de produzir odor desagradável, e nas ruas.
contribuir com mecanismos que provocam desastres
como enchentes e alagamentos, servir como foco
de atração de animais (gatos, cães, ratos, baratas, O ruído emitido pelo compactador foi mensurado
cobras, insetos) e provocar doenças em crianças e por Ferreira (2002) mediante instalação de um
adultos. Surgiram também nesse estudo, patologias, equipamento nas proximidades da carroceria do
sinais ou sintomas decorrentes do contato com o
lixo como: verminoses, infecção intestinal (diarréia),
caminhão (mais precisamente a 50 cm da porta
gripe, leptospirose, dengue, meningite, dor de cabeça, do veículo). O autor constatou que os ruídos ficam
dor de dente, febre, alergia e náusea. acima de 85 decibéis e que, apesar de estarem em
conformidade com os limites da NR-15, interferem
Em Dall’Agnol e Fernandes (2007) a na comunicação entre os coletores de lixo e
leptospirose também emergiu nos discursos das vêm causando incômodos (zunido no ouvido e
catadoras entrevistadas como um dos receios do dificuldade de escutar, principalmente) para 28,5%
contato com o lixo, sob o nome de “a doença dos trabalhadores entrevistados.
do rato”. Ferreira e Anjos (2001), ao discursarem Na visão de Ferreira e Anjos (2001), ruídos em
sobre as populações expostas a problemas de saúde excesso durante as operações de gerenciamento
provocados indiretamente pelo lixo, apontaram dos resíduos podem promover perda parcial ou
a dengue como preocupante, “quando chuvas permanente da audição, cefaleia, tensão nervosa,
fortes carregam os resíduos sólidos e, acumulados, estresse e hipertensão arterial. Em algumas
propiciam condições favoráveis a epidemias”. circunstâncias, a vibração de equipamentos (na
Por outro lado, os resíduos recicláveis existentes coleta, por exemplo) provoca lombalgias e dores
no lixo assumem importante lugar na vida/ no corpo.
sobrevivência dos catadores. Dos entrevistados Segundo ainda os mesmos autores, é possível
de Velloso et al. (1998), 75% afirmaram estar que o estresse seja a causa invisível de muitos
satisfeitos trabalhando com lixo. Esse sentimento acidentes de trabalho, pela redução da capacidade
é decorrente do fato de eles posicionarem o lixo de autocontrole dos trabalhadores, e de doenças
como meio de sobrevivência. ocupacionais, pela redução das defesas naturais e do
Tal perspectiva sobre o lixo também foi desgaste do organismo. Atropelamentos são muito
encontrada por Dall’Agnol e Fernandes (2007) comuns no dia-a-dia dos garis. Miglioransa et al.
em discursos de catadoras. Nas palavras das (2004) verificaram que 6,67% dos trabalhadores de
autoras: “Entendemos que as catadoras priorizam uma empresa de Porto Alegre já foram atropelados.
assegurar a sobrevivência independentemente Para Velloso et al. (1997), “uma das causas desses
das condições de vida e saúde. [...] Ter saúde, na acidentes decorre dos horários de coleta coincidirem
visão das entrevistadas, está muito vinculado à com os de tráfego intenso”.
possibilidade de poder trabalhar, indiferentemente Aos atropelamentos estão expostos tanto os
das condições que o trabalho ofereça”. trabalhadores de coleta domiciliar e de limpeza
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8. Revista Saúde e Ambiente / Health and Environment Journal, v. 10, n. 2, dez. 09
de logradouros como os trabalhadores de locais de concreta dessa situação, isto é, o identificar-se
transferência e destinação final dos resíduos, pois, com um instrumento de transporte de dejetos,
além dos riscos inerentes à atividade, contribuem implica experiência de determinadas condições
para esse tipo de acidente a sobrecarga e a desagradáveis do estado psíquico, sobretudo na
velocidade de trabalho e o pouco respeito que vida emocional dos sujeitos”.
os motoristas em geral têm quanto ao limite e
às regras estabelecidas para o trânsito (Ferreira
e Anjos, 2001). É preciso ainda citar a ausência CONSIDERAÇÕES FINAIS
de uniformes adequados (roupas visíveis, sapatos
resistentes e antiderrapantes) como um fator de A intenção na escolha deste tema foi de
agravamento dos riscos de atropelamento. contribuir para que maior atenção seja dispensada
De um modo geral, as lesões nos tornozelos, à questão do lixo, da saúde dos trabalhadores
por exemplo, acometem os trabalhadores de (garis e catadores) e do ambiente. Além desse
coleta domiciliar de lixo em várias cidades alerta, há também a esperança de que, com a
brasileiras. Segundo Miglioransa et al. (2004), sistematização de tais informações, futuras ações
problemas causados em tais membros atingiram, sejam implementadas para mitigar os impactos
respectivamente, 33,3 e 50% dos funcionários sociais, ambientais e na saúde do trabalhador.
de coleta urbana de lixo das empresas A e B Pelos diversos riscos e agravos levantados é
de Porto Alegre, para se ter uma noção da fundamental que as condições de trabalho dos
frequência dessa lesão. garis e catadores sejam consideradas de forma mais
De acordo com Robassi et al. (1992), essas integrada e global. A carga de trabalho deveria
condições indicam a necessidade de avaliação ser determinada por fatores relativos ao processo
da carga de trabalho, por ser uma atividade produtivo e ao indivíduo – sexo, idade e condições
aparentemente extenuante, com repercussões de inserção na produção, nível de aprendizagem,
importantes na saúde dos trabalhadores envolvidos. condições de vida e estado de saúde.
Madruga (2002) analisou a carga de trabalho dos No caso dos catadores, o reconhecimento da
coletores de lixo domiciliar de uma empresa de própria atividade representa um primeiro passo no
coleta de lixo na grande Florianópolis. Segundo a caminho da inclusão social e alcance de diretos
autora, 69,29% dos trabalhadores afastaram-se das e cidadania. Para tanto, a organização mostra-se
suas atividades em 2002 por motivo de saúde em fundamental. Na perspectiva de Abreu (2001), “a
geral; 57,29% dos afastamentos observados foram organização dos catadores é considerada como
decorrentes de sequelas de acidentes de trabalho. uma necessidade, não apenas do ponto de vista de
Madruga verificou que 21,29% se afastaram promoção da cidadania, mas voltada também para
por motivo de entorses generalizadas (torção a ação cooperativista que valorize esses profissionais
de joelhos e tornozelos) e distensão muscular; como agentes ambientais e econômicos”.
21,75% por sequelas de acidentes com objetos Apesar de ser uma atividade que, a um só
perfurocortantes em geral; 14,25% por excesso tempo, gera emprego e renda, oferece serviços
de peso em virtude de procedimentos incorretos e reduz os gastos públicos empregados na coleta
no levantamento de lixo e 12% por exposição a de lixo, nem sempre o trabalho de catadores e
intempéries (resfriados comuns). catadoras é reconhecido pelo poder público e
Os problemas de saúde anunciados decorrem pela sociedade como importante e essencial. Ao
do fato de a coleta de lixo domiciliar exigir do contrário, em várias cidades brasileiras catadores
trabalhador esforços diferenciados ao longo do e catadoras enfrentam permanentes dificuldades
dia para andar, correr, subir/descer ladeiras e e barreiras, lutando contra o preconceito e a falta
transportar pesos (Ferreira, 1997 apud Anjos e de oportunidades (Valle Mota, 2005).
Ferreira, 2000). Como nunca na história das cidades, o lixo
Nessa mesma linha de raciocínio, Velloso et deve ser considerado no estudo da estrutura
al. (1998) afirmam que o processo de coleta de epidemiológica, uma vez que, pela sua variada
lixo domiciliar é constituído de uma tecnologia composição, pode conter agentes biológicos
precária, praticamente manual, em que o corpo patogênicos e/ou substâncias químicas capazes de
do trabalhador se transforma em instrumento de atingir o ser humano, principalmente de forma
carregar lixo. Afiançam ainda que “a vivência indireta, afetando sua saúde.
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9. Interfaces do lixo com o trabalho, a saúde e o ambiente – artigo de revisão
Assim, a abordagem de aspectos qualitativos Ensinas AV (2003). Estudo da geração de biogás
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