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maria do rosário gamito
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2.000 exemplares, Abrantes 2004, em curso
inserto em A Legião dos Invisíveis, Abrantes, 2004,
LITEXA EDITORA
edição patrocinada por FEPPHA, Rossio ao Sul do Tejo,
Abrantes.
2.000 exemplares
elmano d’argus

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IX
- É impossível, Damião. Tu também viste?
O Aníbal parara embasbacado no meio do caminho, com a atenção paralisada, o
olhar fixo no renque de salgueiros que bordejava o caminho, junto da velha ponte romana.
- Ora, Aníbal... Eu sou cego.
- Não sei bem ainda se és. Mas por isso mesmo te pergunto. Se és cego não podes ter
miragens, nem ilusões visuais.
- Raios, Aníbal! Se sou cego, só posso ter miragens, ou ilusões visuais. Tu, como és
doudo, tens ilusões em todos os sentidos. Mas também não sei bem ainda se és doudo. Mas, diz-me,
o que é que viste, que tanto te assustou?
- Nada me assustou. Assustei-me comigo próprio, por ter visto. Lembras-te daquele
pássaro azul, pintalgado com estrelas doiradas semeadas pelo peito, as asas e a cauda raiadas das
sete cores do arco-íris, que só vimos uma vez, enrolado nos entrelaços de um silvedo, entre amoras
e romãs, sob a mira de um arqueiro, tudo enovelado nas hastes de um a capitular, numa folha de
pergaminho de um cartapácio qualquer? Recordas-te de te ter dito para falares baixo e não te
agitares, porque me parecia que poderia espantar-se e fugir? Recordas-te de teres agitado a folha,
para que ele despertasse e pudesse escapulir-se ao tiro do arqueiro?
Pois está mesmo ali, a olhar para nós, poisado num galho daquele salgueiro.
Era uma manhã ensolarada de Outono adiantado, as árvores quase nuas, uma brisa
ténue rolando as folhas pelo chão. Durante toda a noite chuviscara. O Sol despontava, polvilhando
de cintilações miríades de gotículas de água que escorriam pelas ramagens de árvores e arbustos,
pelas fragas e penedias e parecia ainda que andavam perdidas e em rebuliço pelos ares, sopradas
pela aragem. Quase um caleidoscópio. Toda a paisagem parecia refractada explodindo em cores
que, logo que se insinuavam, se desvaneciam ou transmutavam. Uma espontânea e indisciplinada
alquimia.
- Ora, Aníbal, a luz do Sol, refractada pelas gotículas, pode produzir efeitos mágicos.
Vê lá bem, que ainda te aparece por aí algum mafarrico, ou o próprio arcanjo brandindo a sua
espada flamejante. Vamos descansar.
- Pois é pena, se assim foi, como dizes. Gostei muito daquele pássaro.
Sentámo-nos tranquilamente sobre as guardas da ponte, a ouvir marulhar as águas
do ribeiro. O Aníbal levantou do chão um pequeno e bem afeiçoado seixo rolado e despediu-o
despreocupadamente, com uma expressão de contrariedade, em direcção à copa de um salgueiro.
Ambos ouvimos com toda a nitidez um breve bater de asas, senti pela deslocação quase
imperceptível do ar um pássaro elevar-se, voltear e picar de novo para se imobilizar na copa de
outra árvore. O Aníbal tocou-me com o cotovelo e imobilizou-se expectante. Segredou-me:
- E agora, não viste?
- É algum gavião, ou um mocho, que tu quase alvejaste.
- Os mochos e os gaviões são pardos ou negros. Ou cor de burro quando foge. Este
era azul, todo sarapintado de estrelas doiradas. E a cauda era um arco-íris.
- Bem, para dizer a verdade, também foi assim que o vi, ou pressenti. Possivelmente,
era o nosso pássaro. Tenho a certeza de que ainda o haveremos de ver muitas vezes, pelo
caminho.
O doudo passou o resto da manhã a alvejar as copas dos salgueiros à calhoada, na
esperança de voltar a levantar o passarouco. Nunca mais o vimos.
Um dia, como quem não quer a coisa, sem nomearmos sequer o episódio, voltámos a
folhear tranquilamente o alfarrábio. Quando atingimos a página desejada, olhámos distraídos,
reprimindo a ansiedade. Ficámos longamente prisioneiros da imagem, mudos e boquiabertos. O
pássaro não estava lá. Do galho onde poisara, pingava uma gota de sangue, reflectindo
brevemente a luz de um Sol imaginário. O arqueiro despedira a sua flecha, imobilizada agora na
carreira, uma polegada à frente do lugar onde faltava a ave.
Ainda hoje não sei se o doudo a lá pôs quando me descreveu o ornato pela primeira
vez, ou se a erradicou agora. É bem possível, até, que o livro jamais tenha existido. Nem o Aníbal.
Nem eu.
Pois não há quem diga que as cores não existem, senão nos nossos sentidos? Na
alma, diria eu.
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  • 3.
  • 5. IX
  • 6. - É impossível, Damião. Tu também viste? O Aníbal parara embasbacado no meio do caminho, com a atenção paralisada, o olhar fixo no renque de salgueiros que bordejava o caminho, junto da velha ponte romana. - Ora, Aníbal... Eu sou cego. - Não sei bem ainda se és. Mas por isso mesmo te pergunto. Se és cego não podes ter miragens, nem ilusões visuais. - Raios, Aníbal! Se sou cego, só posso ter miragens, ou ilusões visuais. Tu, como és doudo, tens ilusões em todos os sentidos. Mas também não sei bem ainda se és doudo. Mas, diz-me, o que é que viste, que tanto te assustou? - Nada me assustou. Assustei-me comigo próprio, por ter visto. Lembras-te daquele pássaro azul, pintalgado com estrelas doiradas semeadas pelo peito, as asas e a cauda raiadas das sete cores do arco-íris, que só vimos uma vez, enrolado nos entrelaços de um silvedo, entre amoras e romãs, sob a mira de um arqueiro, tudo enovelado nas hastes de um a capitular, numa folha de pergaminho de um cartapácio qualquer? Recordas-te de te ter dito para falares baixo e não te agitares, porque me parecia que poderia espantar-se e fugir? Recordas-te de teres agitado a folha, para que ele despertasse e pudesse escapulir-se ao tiro do arqueiro? Pois está mesmo ali, a olhar para nós, poisado num galho daquele salgueiro. Era uma manhã ensolarada de Outono adiantado, as árvores quase nuas, uma brisa ténue rolando as folhas pelo chão. Durante toda a noite chuviscara. O Sol despontava, polvilhando
  • 7. de cintilações miríades de gotículas de água que escorriam pelas ramagens de árvores e arbustos, pelas fragas e penedias e parecia ainda que andavam perdidas e em rebuliço pelos ares, sopradas pela aragem. Quase um caleidoscópio. Toda a paisagem parecia refractada explodindo em cores que, logo que se insinuavam, se desvaneciam ou transmutavam. Uma espontânea e indisciplinada alquimia. - Ora, Aníbal, a luz do Sol, refractada pelas gotículas, pode produzir efeitos mágicos. Vê lá bem, que ainda te aparece por aí algum mafarrico, ou o próprio arcanjo brandindo a sua espada flamejante. Vamos descansar. - Pois é pena, se assim foi, como dizes. Gostei muito daquele pássaro. Sentámo-nos tranquilamente sobre as guardas da ponte, a ouvir marulhar as águas do ribeiro. O Aníbal levantou do chão um pequeno e bem afeiçoado seixo rolado e despediu-o despreocupadamente, com uma expressão de contrariedade, em direcção à copa de um salgueiro. Ambos ouvimos com toda a nitidez um breve bater de asas, senti pela deslocação quase imperceptível do ar um pássaro elevar-se, voltear e picar de novo para se imobilizar na copa de outra árvore. O Aníbal tocou-me com o cotovelo e imobilizou-se expectante. Segredou-me: - E agora, não viste? - É algum gavião, ou um mocho, que tu quase alvejaste. - Os mochos e os gaviões são pardos ou negros. Ou cor de burro quando foge. Este era azul, todo sarapintado de estrelas doiradas. E a cauda era um arco-íris.
  • 8. - Bem, para dizer a verdade, também foi assim que o vi, ou pressenti. Possivelmente, era o nosso pássaro. Tenho a certeza de que ainda o haveremos de ver muitas vezes, pelo caminho. O doudo passou o resto da manhã a alvejar as copas dos salgueiros à calhoada, na esperança de voltar a levantar o passarouco. Nunca mais o vimos. Um dia, como quem não quer a coisa, sem nomearmos sequer o episódio, voltámos a folhear tranquilamente o alfarrábio. Quando atingimos a página desejada, olhámos distraídos, reprimindo a ansiedade. Ficámos longamente prisioneiros da imagem, mudos e boquiabertos. O pássaro não estava lá. Do galho onde poisara, pingava uma gota de sangue, reflectindo brevemente a luz de um Sol imaginário. O arqueiro despedira a sua flecha, imobilizada agora na carreira, uma polegada à frente do lugar onde faltava a ave. Ainda hoje não sei se o doudo a lá pôs quando me descreveu o ornato pela primeira vez, ou se a erradicou agora. É bem possível, até, que o livro jamais tenha existido. Nem o Aníbal. Nem eu. Pois não há quem diga que as cores não existem, senão nos nossos sentidos? Na alma, diria eu.