Este documento conta a história de Damião e Aníbal, que avistaram um pássaro colorido e raro. Mais tarde, Aníbal julga ter visto o mesmo pássaro em uma árvore. O encontro com o pássaro e a natureza encantada descrita levantam questões sobre o que é real e o que é ilusão.
2. ficha técnica
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título
fotografia
copyright
composição e design
versão videográfica
2ª edição bibliográfica
1ª edição bibliográfica
elmano d’argus
tinturas
maria do rosário gamito
maria do rosário gamito
maria do rosário gamito / mcn
mcn em microssoft office powerpoint
2.000 exemplares, Abrantes 2004, em curso
inserto em A Legião dos Invisíveis, Abrantes, 2004,
LITEXA EDITORA
edição patrocinada por FEPPHA, Rossio ao Sul do Tejo,
Abrantes.
2.000 exemplares
6. - É impossível, Damião. Tu também viste?
O Aníbal parara embasbacado no meio do caminho, com a atenção paralisada, o
olhar fixo no renque de salgueiros que bordejava o caminho, junto da velha ponte romana.
- Ora, Aníbal... Eu sou cego.
- Não sei bem ainda se és. Mas por isso mesmo te pergunto. Se és cego não podes ter
miragens, nem ilusões visuais.
- Raios, Aníbal! Se sou cego, só posso ter miragens, ou ilusões visuais. Tu, como és
doudo, tens ilusões em todos os sentidos. Mas também não sei bem ainda se és doudo. Mas, diz-me,
o que é que viste, que tanto te assustou?
- Nada me assustou. Assustei-me comigo próprio, por ter visto. Lembras-te daquele
pássaro azul, pintalgado com estrelas doiradas semeadas pelo peito, as asas e a cauda raiadas das
sete cores do arco-íris, que só vimos uma vez, enrolado nos entrelaços de um silvedo, entre amoras
e romãs, sob a mira de um arqueiro, tudo enovelado nas hastes de um a capitular, numa folha de
pergaminho de um cartapácio qualquer? Recordas-te de te ter dito para falares baixo e não te
agitares, porque me parecia que poderia espantar-se e fugir? Recordas-te de teres agitado a folha,
para que ele despertasse e pudesse escapulir-se ao tiro do arqueiro?
Pois está mesmo ali, a olhar para nós, poisado num galho daquele salgueiro.
Era uma manhã ensolarada de Outono adiantado, as árvores quase nuas, uma brisa
ténue rolando as folhas pelo chão. Durante toda a noite chuviscara. O Sol despontava, polvilhando
7. de cintilações miríades de gotículas de água que escorriam pelas ramagens de árvores e arbustos,
pelas fragas e penedias e parecia ainda que andavam perdidas e em rebuliço pelos ares, sopradas
pela aragem. Quase um caleidoscópio. Toda a paisagem parecia refractada explodindo em cores
que, logo que se insinuavam, se desvaneciam ou transmutavam. Uma espontânea e indisciplinada
alquimia.
- Ora, Aníbal, a luz do Sol, refractada pelas gotículas, pode produzir efeitos mágicos.
Vê lá bem, que ainda te aparece por aí algum mafarrico, ou o próprio arcanjo brandindo a sua
espada flamejante. Vamos descansar.
- Pois é pena, se assim foi, como dizes. Gostei muito daquele pássaro.
Sentámo-nos tranquilamente sobre as guardas da ponte, a ouvir marulhar as águas
do ribeiro. O Aníbal levantou do chão um pequeno e bem afeiçoado seixo rolado e despediu-o
despreocupadamente, com uma expressão de contrariedade, em direcção à copa de um salgueiro.
Ambos ouvimos com toda a nitidez um breve bater de asas, senti pela deslocação quase
imperceptível do ar um pássaro elevar-se, voltear e picar de novo para se imobilizar na copa de
outra árvore. O Aníbal tocou-me com o cotovelo e imobilizou-se expectante. Segredou-me:
- E agora, não viste?
- É algum gavião, ou um mocho, que tu quase alvejaste.
- Os mochos e os gaviões são pardos ou negros. Ou cor de burro quando foge. Este
era azul, todo sarapintado de estrelas doiradas. E a cauda era um arco-íris.
8. - Bem, para dizer a verdade, também foi assim que o vi, ou pressenti. Possivelmente,
era o nosso pássaro. Tenho a certeza de que ainda o haveremos de ver muitas vezes, pelo
caminho.
O doudo passou o resto da manhã a alvejar as copas dos salgueiros à calhoada, na
esperança de voltar a levantar o passarouco. Nunca mais o vimos.
Um dia, como quem não quer a coisa, sem nomearmos sequer o episódio, voltámos a
folhear tranquilamente o alfarrábio. Quando atingimos a página desejada, olhámos distraídos,
reprimindo a ansiedade. Ficámos longamente prisioneiros da imagem, mudos e boquiabertos. O
pássaro não estava lá. Do galho onde poisara, pingava uma gota de sangue, reflectindo
brevemente a luz de um Sol imaginário. O arqueiro despedira a sua flecha, imobilizada agora na
carreira, uma polegada à frente do lugar onde faltava a ave.
Ainda hoje não sei se o doudo a lá pôs quando me descreveu o ornato pela primeira
vez, ou se a erradicou agora. É bem possível, até, que o livro jamais tenha existido. Nem o Aníbal.
Nem eu.
Pois não há quem diga que as cores não existem, senão nos nossos sentidos? Na
alma, diria eu.