SlideShare una empresa de Scribd logo
1 de 127
Descargar para leer sin conexión
F A C U L D A D E C Á S P E R L Í B E R O
Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas, Radialismo,
Especialização e Mestrado em Comunicação
Marcela Aparecida de Marcos
SARAVIRTUAR
Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line
São Paulo
2012
MARCELA APARECIDA DE MARCOS
SARAVIRTUAR
Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line
Monografia apresentada à Faculdade Cásper Líbero
como pré-requisito para obtenção de Certificado de
Conclusão de Curso de graduação em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr.
São Paulo
2012
MARCOS, Marcela Aparecida de.
126 páginas.
Saravirtuar: Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line / Marcela
Aparecida de Marcos – São Paulo, 2012.
Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr.
Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo)
Faculdade Cásper Líbero
1. Umbanda. 2. Rede. 3. Novas Tecnologias de Comunicação.
MARCELA APARECIDA DE MARCOS
SARAVIRTUAR
Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line
Monografia apresentada à Faculdade Cásper Líbero
como pré-requisito para obtenção de Certificado de
Conclusão de Curso de graduação em Jornalismo.
Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr.
5 de dezembro de 2012
Data da Aprovação
Profª. Drª. Daniela Osvald Ramos
Faculdade Cásper Líbero
Profª. Drª Sandra Lucia Goulart
Faculdade Cásper Líbero
Dulcilei da Conceição Lima
Ao povo de Umbanda, que em sua luta diária no exercício da fé me reafirma, a cada
amanhecer, o significado da palavra amor.
AGRADECIMENTOS
Agradeço a meu orientador Liráucio Girardi Júnior, primeiro por me atentar para a
importância da realização dessa pesquisa; depois pela paciência e dedicação com
que me ajudou a desenvolvê-la.
À Faculdade Cásper Líbero e ao Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP),
especialmente à professora Maria Goreti Juvêncio Sobrinho, pela oportunidade da
iniciação científica, que me permitiu começar a pesquisar o tema que viria nortear
também este Trabalho de Conclusão de Curso.
Às professoras da Cásper Sandra Lucia Goulart, de Antropologia, por me ensinar a
me comportar diante de uma cultura; e Daniela Osvald Ramos, de Novas
Tecnologias, pela inspiração acadêmica e pelo incentivo à pesquisa em Novas
Tecnologias na Faculdade Cásper Líbero.
Ao Babalorixá Marco Antonio dos Santos e seus filhos do Gruel pela disposição
constante em me ajudar, em todos os sentidos; e pela oportunidade de pisar pela
primeira vez no solo sagrado, três anos antes dessa pesquisa.
A Isabelle Vázquez, Giovanna Sacche Salles, Vinícius Carini e Flávio Barolli,
estagiários e amigos da NextLeader Soluções Digitais, aos quais ensinei mas, muito
mais, aprendi sobre o “mundo digital”.
Aos queridos amigos do Estadão, especialmente Murilo Rettozi por me permitir
discutir a Umbanda a partir de sua experiência, observá-la e senti-la em sua
intensidade; e Iara Silva, que me acompanhou nessas discussões, observações e
sensações com o mesmo interesse contínuo.
A Andréa Destefani pelas contribuições textuais que, direta ou indiretamente, foram
essenciais para este trabalho.
A minha família; meus pais Marco Dorival de Marcos e minha mãe Vera Lucia Bueno
pela companhia durante algumas idas a campo, meu irmão Caio Vinícius de Marcos
pela opinião crítica, minha madrinha Janny Aparecida de Marcos por me entregar à
Umbanda em um momento nebuloso de minha vida e minha tia Maria Helena de
Marcos Neves por me entregar em todos os momentos, estando eu pronta ou não
para essa entrega.
À Mãe Conceição Florindo (responsável pelo CEIE – Centro de Estudos Iniciáticos
Evolução) que conheci através de uma rede social e que por isso mesmo sintetiza o
que exponho nesse trabalho.
A Maria Aparecida Linares por me auxiliar enviando reportagens condizentes com a
proposta da pesquisa e, principalmente, por intermediar o contato com Pai Ronaldo
Linares, que difundiu a Umbanda de várias formas e, portanto, contribuiu para
chegarmos até aqui.
Faço um agradecimento especial a Betho Lima, que propiciou meu primeiro contato
com análises de redes sociais e incentivou meus estudos a respeito, sempre
disposto a me ensinar cada vez mais e a criticar de maneira construtiva o que eu
produzia. Sua experiência foi determinante para aprimorar meu olhar sobre a
comunicação em rede.
“... Se o povo te impressionar demais
É porque são de lá os teus ancestrais
Pode crer no axé dos teus ancestrais
Pode crer no axé dos teus ancestrais...”
(Rosinha de Valença e Martinho da Vila – Semba dos Ancestrais)
“A internet é o tecido de nossas vidas”
(Manuel Castells – A Galáxia da Internet)
RESUMO
Palavras-chave: Rede, Umbanda, Comunicação, ciberespaço, blogosfera,
encantamento, magia, sincretismo.
Estamos interligados de várias maneiras. Muito antes do advento da internet, as
pessoas já se “conectavam”, socialmente, por meio de uma rede de sinais, códigos,
linguagens e, principalmente, interesses em comum. A ideia mais simples de rede
pode ser um emaranhado de pequenas interligações. Quando uma rede que se
forma no espaço físico, off-line passa a se constituir também on-line, esse fenômeno
merece atenção sob diversos aspectos. Muito mais se todo esse processo envolver
um tema que permite ligações entre vários “mundos”, além do físico, como é o caso
da religião. Neste Trabalho de Conclusão de Curso proponho estudar a maneira pela
qual as mudanças tecnológicas e a formação de novos ambientes comunicacionais
são apropriadas por uma rede de práticas sociais, rituais, religiosas vinculadas à
Umbanda. Procuro entender como essas conexões, ao mesmo tempo físicas,
espirituais e virtuais são analisadas sob a perspectiva da Rede das redes, a Internet,
e como podem alterar de modo quantitativo e qualitativo as possibilidades dessa
conectividade.
ABSTRACT
Keywords: Umbanda, Communication, New Communication Technologies, social
networks, cyberspace, blogosphere, syncretism.
We are interconnected in so many ways. Long before the advent of the internet,
people already did "connect" socially through a network of signs, codes, languages,
and especially common interests. The simpler idea of network may be a small tangle
of interconnections. When a network that forms in the physical space, offline, is also
to be online, this phenomenon deserves attention in several respects. Much more if
this whole process involves a theme that allows connections between various
"worlds" beyond the physical, as in the case of religion. In this Work Completion of
Course I purpose to study the way in which technological changes and the creation
of new communication environments are suitable for a network of social practices,
rituals, religious linked to Umbanda. I seek to understand how these connections,
while physical, spiritual and virtual are analyzed from the perspective of the Network
of networks, the Internet, and how they can change quantitatively and qualitatively
the possibilities of connectivity.
SUMÁRIO
SUMÁRIO..................................................................................................................11
INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12
1. A UMBANDA.........................................................................................................15
1.1 Surgimento da Umbanda: conceituação, termo e religião................................17
1.2 Umbanda em termos........................................................................................25
1.3 Gruel – Grupo Umbanda é Luz .......................................................................29
1.3.1 Mediunidade e a figura do dirigente.........................................................29
1.3.2 “Umbandas” e o referencial teórico..........................................................33
1.3.3 As giras no Gruel .....................................................................................35
1.3.4 Os trabalhos e a ideia de rede.................................................................45
2. DO RITUAL AO VIRTUAL.....................................................................................52
2.1 “Programa do Seu Tranca”: um estudo de caso..................................................52
2.1.1 Ausência e presença de elementos do ritual ...........................................55
2.1.2 A interatividade e a quebra de barreiras ..................................................59
2.2 A “Rede das redes” e o ciberespaço................................................................67
2.2.1 As redes sociais e os vínculos on-line e off-line.......................................69
2.2.2 Uma nova esfera pública .........................................................................74
2.3 Capital na Umbanda: dentro e fora das redes .................................................80
3. INTERESSE PELA UMBANDA NA REDE ............................................................85
3.1. A Umbanda e a modernidade líquida..............................................................85
3.2 A Umbanda e o reencantamento do mundo ....................................................91
4. MANIFESTAÇÕES IDENTIFICADAS COM A UMBANDA: REVISÃO DE
CONCEITOS.............................................................................................................95
4.1 Propósito de Exu na Umbanda ........................................................................96
4.2 Reais contribuições virtuais: formação de redes de amizade e
compartilhamento de conteúdo............................................................................105
4.3 O reencantamento do mundo nos terreiros virtuais .......................................111
CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................116
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................118
12
INTRODUÇÃO
Tendo em vista meu interesse pela pesquisa acadêmica, no final de 2010,
estava às voltas com o meu primeiro projeto de iniciação científica junto ao Centro
Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) da Faculdade Cásper Líbero. Foi quando o
professor Liráucio Girardi Jr., orientador dessa monografia e da pesquisa inicial,
atentou para o fato de que as diversas possibilidades de estudo das redes poderia
ser integrado a outro objeto que atraía muito a minha atenção naquele momento: a
Umbanda.
Meu interesse pela religião de Umbanda se deu de maneira crescente desde a
infância, ganhando até este momento certa projeção por razões que não cabem
serem desenvolvidas aqui, mas que me levaram a querer me aproximar de um
mundo que eu, inicialmente, considerava mágico - com seus rituais, suas muitas
origens, sua cosmogonia... Enfim, o universo sincrético no qual uma religião nascida
em solo brasileiro estava inserida.
Essa tentativa de aproximação se deu inicialmente on-line, quando eu me
conectava, em um sentido mais amplo, a pessoas que eu não conhecia
pessoalmente, mas que integravam minha rede social (virtual). Passei a observar
as várias ligações que se formavam entre os nós constituintes dessa rede – minha e
de tantas outras pessoas, já inseridas ou não no contexto religioso da Umbanda.
Passei também a acompanhar blogs cujo conteúdo era produzido por umbandistas
(sendo eles tanto os donos dos blogs como seus seguidores) e a segui-los no
Twitter e em outras redes sociais. Passei, finalmente, a observar sua linguagem, a
maneira como descreviam os rituais que eu pouco conhecia pessoalmente – já que
não basta frequentar um terreiro, por exemplo, para conhecer e saber descrever
cada detalhe daquilo acontece dentro de uma gira ou “sessão” religiosa de
Umbanda.
Dessa forma, quis conhecer melhor esses dois ambientes comunicacionais e o
modo pelo qual poderiam estabelecer múltiplas interconexões. A atenção deveria
estar voltada tanto para as práticas presenciais vistas no(s) terreiro(s), quanto para a
13
relação que as pessoas que os frequentavam eram capazes de estabelecer de
variadas formas no mundo virtual.
A monografia de iniciação científica (Saravirtuar: A Contribuição das Redes
Sociais para a Umbanda) foi a etapa fundamental da realização desta monografia de
conclusão de curso de graduação. A partir dessa experiência consegui, de certa
forma, “iniciar” minha entrada nesses dois mundos relacionados à Umbanda: o
virtual e o físico-espiritual.
Quando falo em iniciação, em um primeiro momento, não estou aludindo ao
sentido ritualístico do termo, mas ao modo pelo qual procurei dar meus primeiros
passos no universo de crenças, signos, práticas, discursos etc. que caracterizam
essa religião.
Para desenvolver a monografia de graduação, tive como ponto de partida essa
pesquisa anterior, mas além de me aprofundar nas principais questões tratadas
naquele projeto, acrescentei a ela observações de campo em um terreiro específico,
o Gruel (Grupo Umbanda é Luz). Essa monografia, portanto, manteve algumas
análises já iniciadas na iniciação científica, mas procurou aprofundá-las, atualizá-las
e expandi-las.
A constatação da existência de diversos tipos de redes virtuais em torno da
Umbanda tornou-se fundamental para o presente trabalho. Muitas das referências
sobre Umbanda foram encontradas na própria internet, seja nos textos postados em
blogs e sites (escritos por umbandistas que compartilhavam experiências vividas nos
terreiros); seja nas páginas sobre Umbanda no Facebook ou nos vídeos de giras no
YouTube etc.
Porém, antes de se falar da religião umbandista na internet e assim verificar
como foram capazes de atrair comentários de umbandistas e não umbandistas
interessados no assunto procurei mostrar a formação off-line dessa rede religiosa,
principalmente durante as sessões realizadas nos terreiros.
A monografia foi dividida em quatro principais capítulos. No primeiro, “A
Umbanda”, procurei fazer um panorama geral sobre a religião, desde suas várias
14
origens (passando também pelas origens do vocábulo Umbanda) como sua
fundação no Brasil em 1908. Neste capítulo também falo sobre termos que hoje
ainda se confundem com o ritual umbandista, como a ideia do “baixo espiritismo”, a
Quimbanda em oposição à Umbanda, “macumba” e “esquerda”. É nele também que
estão as observações de campo do terreiro Gruel.
No segundo capítulo, “Do Real ao Virtual”, o grande exemplo que me permitiu
relacionar a transposição dos rituais da Umbanda entre os espaços off-line e on-line
foi a análise de um programa (“Programa do Seu Tranca”) promovido por uma web-
rádio (“Toques de Aruanda”), transmitido ao vivo pela internet. Nele, a entidade
(Exu) Tranca Rua das Almas, conhecida entre umbandistas e não umbandistas
incorpora em uma médium para responder a dúvidas dos internautas. Neste capítulo
exploro alguns conceitos básicos referentes ao estudo da cibercultura e do
ciberespaço.
No terceiro capítulo, “Interesse pela Umbanda na Rede”, investigo os possíveis
motivos pelos quais a Umbanda tem gerado tanto interesse em um mundo moderno
ou pós-moderno que se desloca entre uma modernidade líquida e um
“reencantamento” do mundo.
No quarto e último capítulo, trabalho com a noção de terreiro virtual para falar de
manifestações identificadas com a Umbanda na rede e, por meio delas, revisar
conceitos anteriormente trabalhados. O que considero “identificável” com a
Umbanda, nesse caso, não se trata, necessariamente, dos aspectos ritualísticos
presentes nos terreiros, mas a certas imagens ou práticas que são associadas, de
alguma forma, a essa prática religiosa. Um exemplo disso é o ato de acender velas,
importante tanto para a Umbanda quanto para a Igreja Católica; uma ação que
experimenta também diversos tipos de “tradução” virtual, ou virtualmente possível.
15
1. A UMBANDA
Refletiu a luz divina
Com todo seu esplendor
É do reino de Oxalá
Onde há paz e amor
Luz que refletiu na terra
Luz que refletiu no mar
Luz que veio de Aruanda
Para tudo iluminar
A Umbanda é paz e amor
É um mundo cheio de luz
É a força que nos dá vida
E à grandeza nos conduz
Avante, filhos de fé
Como a nossa lei não há
Levando ao mundo inteiro
A bandeira de Oxalá
Os versos acima são entoados por umbandistas como o hino que sintetiza a
religião que escolheram seguir. A Umbanda é, seguindo os versos, “luz divina”, que
“é do reino de Oxalá”, que “refletiu na terra”, que “refletiu no mar”, que “veio de
Aruanda para tudo iluminar”, que é “paz e amor”, “mundo cheio de luz”, “força que
nos dá vida e à grandeza nos conduz”, que tem uma “lei” e uma “bandeira”.
Mas, afinal, o que é a Umbanda? O que a difere de tantas outras religiões e o
que a torna, de fato, uma religião? Como surgiu a religião sobre a qual ainda há
tanta confusão, entre adeptos e não adeptos?
16
Antes de abordar a discussão sobre Umbanda em rede, ideia norteadora
deste trabalho, é importante contextualizar a origem dessa religião capaz de causar
uma profunda atração em alguns e tamanha aversão em outros.
17
1.1 Surgimento da Umbanda: conceituação, termo e religião
O ano de 1908 é reconhecido como o ano no qual a religião teria sido
fundada, no Rio de Janeiro, por uma entidade (Caboclo) incorporada no médium
Zélio Fernandino de Moraes. Embora ainda se entenda a Umbanda como integrante
uma classificação que abrange outras manifestações religiosas, como “afro-
brasileiras”, Zélio de Moraes, considerado o anunciador da Umbanda, nessa
anunciação – durante a incorporação que descreverei adiante – caracteriza a
Umbanda como uma religião fundada em solo brasileiro. O termo “afro”, por sua vez,
relaciona-se com algumas de suas matrizes:
Salientamos que ela [a Umbanda] tem na sua base de formação os
cultos afros, os cultos nativos, a doutrina espírita kardecista, a
religião católica e um pouco da religião oriental (Budismo e
Hinduísmo) e também da magia. (SARACENI, 2001, p.12)
Ainda que haja muita confusão entre Umbanda e Espiritismo, estamos diante
de duas coisas diferentes, que suscitam confusão entre os próprios umbandistas.
Isso porque
embora o umbandista possa se identificar como espírita, o ritual da
religião de Umbanda não pode ser definido como ritual espírita, pois
Allan Kardec, com clareza, afirma em sua codificação que Espiritismo
não é religião, não tem ritual e não aceita a prática de magia. Kardec
é cientista e pesquisador, um homem do mundo moderno-positivista,
para quem a magia representava algo atrasado com relação à
religião, e esta atrasada com relação à ciência. (CUMINO, 2011,
p.42)
Allan Kardec é o pseudônimo do professor e escritor francês Hippolyte Léon
Denizard Rivail. É comum ouvirmos e lermos o termo kardecistas para designar os
seguidores da doutrina postulada por Kardec. E em que consiste, então, essa
doutrina? Seus princípios, de acordo com aquele que os formulou, são:
sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas
relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida
futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por
Espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns - recebidos
e coordenados. (KARDEC, 1957).
18
Uma das obras mais importantes de Kardec é O Livro dos Espíritos1
. Na introdução
o autor situa as primeiras referências à comunicação com espíritos da seguinte
forma:
O primeiro fato observado foi o da movimentação de objetos
diversos. Designaremos vulgarmente pelo nome de mesas
girantes ou dança das mesas. Este fenômeno, que parece ter sido
notado primeiramente na América, ou melhor, que se repetiu nesse
país, porquanto a História prova que ele remonta à mais alta
antigüidade, se produziu rodeado de circunstâncias estranhas, tais
como ruídos insólitos, pancadas sem nenhuma causa ostensiva. Em
seguida, propagou-se rapidamente pela Europa e pelas partes do
mundo. A princípio quase que só encontrou incredulidade, porém, ao
cabo de pouco tempo, a multiplicidade das experiências não mais
permitiu lhe pusessem em dúvida a realidade. (KARDEC, 1957,
grifos do autor)
A partir do fenômeno das mesas girantes descrito por Kardec, podemos entender
outra denominação que ainda é muito comum: mesa branca. Não raro encontramos
o termo empregado como sinônimo da comunicação de médiuns com espíritos de
desencarnados (pessoas que já morreram) ao redor de uma mesa.
Kardec fala em “espíritos superiores” como os responsáveis por “ensinar” os
princípios da doutrina espírita. A ideia de superioridade e seu oposto, a inferioridade
dos espíritos está presente nas primeiras pesquisas de antropólogos e sociólogos
anteriores à própria afirmação da Umbanda como religião. Trata-se da denominação
de “baixo espiritismo”, que se propaga junto a outras oposições semânticas como
“verdadeiro” e “falso” espiritismo.
A partir de que bases e assumindo que formas uma distinção entre
"falso" e "verdadeiro" pôde ser formulada pelos espíritas da
Federação Espírita Brasileira? Antes de tudo, é preciso lembrar que
uma distinção dessa natureza pode ser depreendida de algumas
colocações do próprio Allan Kardec (1978), tido como o principal
codificador da doutrina espírita. O Livro dos Médiuns dedica um
capítulo inteiro a formas espúrias em que se envolve o "espiritismo",
divididas em dois grandes grupos: as "fraudes" e as "charlatanices",
as primeiras relacionadas aos enganadores e as outras aos que
exploram pecuniariamente o exercício da "mediunidade". Como se
percebe, os espíritas eram os primeiros a reconhecer que em torno
1
KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1
a
ed. francesa. 1
a
ed, bilíngüe,
trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.
19
da "mediunidade", efetiva ou simulada, desenvolviam-se
apropriações irregulares e reprováveis. (GIUMBELLI, 2003, on-line,
grifos do autor)
Práticas mediúnicas identificáveis com cultos de matriz africana não
demoraram a ser relegadas à categoria do “baixo espiritismo” e à outra
denominação equivocada, a “macumba”.
Magnani traz duas importantes referências à macumba, baseado em Roger
Bastide e Arthur Ramos, dois antropólogos que se dedicaram ao estudo dos cultos
africanos:
No Rio de Janeiro, até o término da primeira década do século XIX,
conservou-se a diferenciação por nações: as de origem sudanesa,
principalmente nagôs, possuíam seus candomblés; as bantos, a
cabula. As religiões dos bantos eram mais permeáveis à influência
de outros cultos: dos candomblés nagôs, a cabula banto assimila a
estrutura do culto e alguns orixás; em contato com outras crenças e
ritos adota os caboclos catimbozeiros, práticas mágicas européias e
muçulmanas, os santos católicos e, finalmente, sofre o influxo do
espiritismo, que fora introduzido no Brasil por volta da segunda
metade do século XIX. Está surgindo a macumba, descrita por
Arthur Ramos como o ‘sincretismo jeje, nagô, muçulmano, banto,
caboclo, espírita e católico’ e que para Bastide era, a princípio, a
introdução de certos orixás e ritos das nações iorubás na cabula
das nações bantos. ‘Bastará que a esses dois elementos se juntem
os espíritos dos caboclos, os santos do catolicismo, enfim, os
desencarnados do espiritismo, para que a macumba, tal qual existe
hoje em dia, nasça realmente’. (MAGNANI, 1991, p. 21, grifos meus).
A macumba, no período descrito (segunda metade do século XIX) era uma
designação empregada para abranger uma série de cultos sincréticos que foram
relacionados à feitiçaria. Práticas que hoje fazem parte do cosmo religioso do
Candomblé, por exemplo, também eram entendidas como “macumba”, talvez por
serem demasiado estranhas à cultura católica dominante. Mas basta recorrermos a
expressões populares que ainda são ditas para sugerir que pouca coisa tenha
mudado quando se emprega a palavra “macumba”. Isso porque, ainda hoje, o
vocábulo é relacionado a outros, como despacho e oferenda, e carrega um forte
apelo negativo (basta lembrar a expressão popular “chuta que é macumba!”).
Os cultos de matriz africana, inicialmente restritos a negros escravizados e,
portanto, proibidos pela Igreja Católica tiveram, em razão dessa resistência, de se
20
disfarçar, fato que gerou correspondências entre os Orixás e os santos católicos;
correspondência, essa, que até hoje permanecem, a exemplo da identificação de
São Jorge com o Orixá Ogum e até mesmo com o Orixá Oxóssi. Ou, ainda, a
imagem católica de Jesus Cristo em alguns Congás de terreiros, em representação
a Oxalá. Nessa mistura de elementos ritualísticos africanos com elementos cristãos
e também de rituais indígenas é que a Umbanda estava surgindo.
Renato Ortiz fala da Umbanda como o “embranquecimento” de algumas
práticas do Candomblé, deixando para este último a preservação da herança
africana, enquanto na Umbanda os cultos aos Orixás são misturados a outros cultos.
Segundo o autor, “a Umbanda aparece como uma solução original; ela vem
tecer o liame da continuidade entre as práticas mágicas populares à dominância
negra e a ideologia espírita. Sua originalidade consiste em reinterpretar os valores
tradicionais, segundo o novo código fornecido pela sociedade urbana e industrial. O
que caracteriza a religião é o fato de ela ser o produto das transformações
socioeconômicas que ocorrem em determinado momento da história brasileira”
(ORTIZ, 1991, p. 48).
Ele insiste na contextualização social do surgimento da Umbanda, que “nasce
justamente no momento em que a sociedade de classes se consolida”. Um traço
marcante para Ortiz é a forte presença da classe média na formação da religião
umbandista, decisiva para tornar a Umbanda “o resultado de um movimento dialético
de embranquecimento e empretecimento”. Assim, para o autor,
como todo sistema simbólico, a Umbanda tende a legitimar a
objetivação dos elementos de ordem sagrada que se encaixam
dentro da lógica do seu universo religioso. Esse esforço de
legitimação, de explicação do mundo, é necessário, pois não se deve
esquecer que a religião umbandista é um novo valor que emerge no
seio da sociedade brasileira. Isso faz com que a religião se aproprie
dos valores dominantes da sociedade global como elementos
legitimadores, num sentido que muitas vezes se assemelha àquilo
que os antropólogos chamaram de ‘fundação do mundo’ quando
estudaram os mitos das sociedades primitivas. O processo
legitimador situa-se assim dentro de uma perspectiva histórica; ele
determina o momento em que a religião busca um status, em
conformidade com o conjunto de valores da sociedade brasileira.
Encontramo-nos portanto diante de um processo de integração, mas
de uma integração legitimada pela sociedade; daí a recusa e o horror
das práticas negras e dos preconceitos de classe. A análise do
discurso umbandista mostra como se desenvolve o trabalho
da intelligentzia religiosa na busca de um status que corresponda aos
21
valores dominantes da sociedade global. Ela ensina ainda de que
forma estes valores dominantes agem como elementos e legitimação
de uma religião emergente. (ORTIZ, 1991, p. 163, grifos do autor).
Já Roger Bastide enxerga na Umbanda “a única forma possível de adaptação
religiosa da comunidade negra à urbanização e à industrialização”. (1971, p. 302).
Se dentro do cosmo religioso da Umbanda há várias origens, por vezes
imprecisas essa imprecisão também se dá na medida em que teóricos tentam
buscar a origem da palavra “Umbanda”.
No documento referente ao Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de
Umbanda2
, publicado em 1942, Diamantino Coelho Fernandes apresentou a tese O
Espiritismo de Umbanda na Evolução dos Povos, expondo uma origem sânscrita
para a palavra:
O vocábulo UMBANDA é oriundo do sânscrito, a mais antiga e polida
de todas as línguas da terra, a raiz mestra, por assim dizer, das
demais línguas existentes no mundo. Sua etimologia provém de
AUM-BANDHÃ, (om-bandá) em sânscrito, ou seja, o limite no
ilimitado. O prefixo AUM tem uma alta significação metafísica, sendo
considerado palavra sagrada por todos os mestres orientalistas, pois
que representa o emblema da Trindade na Unidade, pronunciado ao
iniciar-se qualquer ação de ordem espiritual, empresta à mesma a
significação de o ser em nome de Deus. [...] BANDHÃ, (Banda)
significa movimento constante ou força centrípeta emanante do
Criador, a envolver e atrair a criatura para a perfectibilidade. Uma
outra interpretação igualmente hindu, nos descreve BANDHÃ
(Banda) como significando um lado do conhecimento, ou um dos
templos iniciáticos do espírito humano.
O escritor umbandista Alexandre Cumino, autor do livro História da Umbanda,
traz um levantamento teórico de outras origens do vocábulo, como a origem da
língua Quimbundo (de dialetos Bantos falados em Angola, Congo, Guiné e outros)
sugerida por Cavalcanti Bandera; origem tupi mencionada em entrevistas feitas por
João de Freitas; origem sânscrita também sustentada por Ramatis, dentre muitas
outras origens (CUMINO, 2011, p. 91-103).
2
Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, Rio de Janeiro, 19 a 26 de outubro
de 1941./Jornal do Commercio, RJ, 1942.
22
Há também a herança oriental, que fica clara nas palavras de Baptista de
Oliveira na introdução do mesmo documento referente ao Primeiro Congresso de
Umbanda:
Umbanda veio da África, não há dúvida, mas da África Oriental, ou
seja do Egito, da terra milenária dos Faraós, do Vale dos Reis e das
Cidades sepultadas na areia do deserto ou na lama do Nilo.
(PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DO ESPIRITISMO DE
UMBANDA, 1942).
Mas se é difícil precisar de onde exatamente “veio” a Umbanda, não é tão
difícil falar de sua fundação, ou seja, do estabelecimento da Umbanda como religião,
que partiu de uma incumbência que teria recebido o médium brasileiro Zélio
Fernandino de Moraes.
Nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 1891, ele teria sido
acometido por uma paralisia inexplicável, incompreendida pelos médicos e por
padres. Fatos estranhos começaram a acontecer quando ele tinha dezessete anos.
“Ora ele assumia a estranha postura de um velho, falando coisas aparentemente
desconexas, como se fosse outra pessoa e que havia vivido em outra época, e em
outras ocasiões, sua forma física lembrava um felino lépido e desembaraçado que
parecia conhecer todos os segredos da natureza, os animais e as plantas”.3
Zélio de Moraes foi submetido a três exorcismos, realizados por um tio dele,
que era padre (já que a família acreditava estar diante de uma possessão
demoníaca), mas não surtiram efeito. As manifestações prosseguiram até que Zélio
foi encaminhado à recém-fundada Federação Kardecista de Niterói.
A Federação era presidida pelo Sr. José de Souza, médium clarividente
(detentor da capacidade de “ver” espíritos), que começou um diálogo com o espírito
que se manifestava no corpo do jovem assim que o viu.
O espírito, então, contou ao médium que tinha sido padre em uma de suas
encarnações, mas foi acusado de bruxaria e sacrificado na fogueira da Inquisição
por ter previsto um terremoto que destruiu a capital portuguesa de Lisboa em 1755.
Mas em sua última existência física, segundo ele, Deus lhe havia concedido “o
3
Texto de Ronaldo Antônio Linares, presidente da Federação Umbandista do Grande ABC, publicado
no Jornal U&C, nº 92, em dezembro de 1995; referente a uma entrevista de Linares com o Caboclo
das Sete Encruzilhadas, incorporado em Zélio de Moraes.
23
privilégio de nascer como um caboclo brasileiro” (entenda-se por caboclo uma
entidade fundamental na Umbanda, representante dos espíritos de indígenas).
Ele se identificou com o nome de Caboclo das Sete Encruzilhadas, e justificou
a escolha de seu nome dizendo que para ele não existiriam “caminhos fechados”. O
Caboclo afirmou ainda ter uma importante missão: “trazer a Umbanda, uma religião
que harmonizará as famílias e há de perdurar até o final dos séculos”.4
A Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade foi a primeira a ser fundada, no
dia seguinte à primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Outras
sete tendas foram criadas entre 1918 e 1935 e, mais tarde, outras dezenas de
tendas foram criadas com o intuito de disseminar a Umbanda em todo o Brasil.
As práticas identificadas com a feitiçaria, que já existiam antes da fundação
da Umbanda por Zélio de Moraes, também foram mencionadas pela fala do Caboclo
das Sete Encruzilhadas, como podemos ver no texto publicado em 26 de agosto de
2008 na página na internet da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade5
:
No dia seguinte, na rua Floriano Peixoto, 30, na casa de Zélio de
Moraes em São Gonçalo, próximo das vinte horas, estavam
presentes membros da federação espírita, parentes, amigos, vizinhos
e uma multidão de desconhecidos e curiosos, para verificar os
acontecimentos.
Pontualmente às vinte horas, o Caboclo das Sete Encruzilhadas
incorporou e iniciou o novo culto, proferindo as seguintes palavras:
- Aqui inicia um novo culto, em que os espíritos de pretos velhos
africanos, que haviam sido escravos e que desencarnados não
encontram campo de ação nos remanescentes das seitas negras, já
deturpadas e dirigidas quase que exclusivamente para os trabalhos
de feitiçaria e os índios nativos da nossa terra, poderão trabalhar em
benefícios dos seus irmãos encarnados, qualquer que seja a cor,
raça, credo ou posição social.
Perguntaram, os presentes qual seria o nome do novo culto.
- O novo culto se chamará Umbanda.
Ainda perguntam:
- O que quer dizer Umbanda?
O espírito responde:
- A manifestação do espírito para a caridade.
4
Trechos extraídos do texto publicado no site da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade,
disponível em http://www.tendaespiritanspiedade.com.br/>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
5
Site da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Disponível em:
http://www.tendaespiritanspiedade.com.br/index.php?option=com_content&view=article&id=
62&Itemid=161>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
24
Ainda lhe perguntaram qual seria a base de seu novo culto e ele
respondeu:
- A prática da caridade, no sentido do amor fraterno, será a
característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de
Jesus, e Cristo como mestre supremo.
Após estabelecer as normas que seriam utilizadas no culto e com
sessões diárias das 20 às 22 horas, determinou que os participantes
devessem estar vestidos de branco e o atendimento seria gratuito.
Ainda falou como se chamaria o novo grupo:
- O grupo irá se chamar Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade,
pois, assim como Maria acolhe em seus braços o filho, a Tenda
acolherá aos que a ela recorrerem nas horas de aflição.
Ainda respondeu perguntas de sacerdotes que ali se encontravam
em latim e alemão. O Caboclo foi atender um paralítico e um cego,
dizendo:
- Avistem todos: Se tem fé levanta, que quando chegardes a mim
estarás curado.
Assim iniciou as primeiras curas na nova religião. Após trabalhar
fazendo previsões, passes e doutrinas, informou que deviera se
retirar, pois outra entidade precisava se manifestar.
Após a “subida” do Caboclo, incorporou uma entidade que parecia
um senhor velho, saindo da mesa se dirigiu a um canto da sala onde
permaneceu agachado. Sendo questionado do porquê não se sentar
na mesa respondeu:
- Nego num senta não meu sinhô, nego fica aqui mesmo. Isso é
coisa de sinhô branco e nego deve arrespeitá.
Após insistência ainda completou:
- Num carece preocupa não. Nego fica no toco que é lugar di nego.
E assim continuou dizendo outras coisas, mostrando a simplicidade,
humildade e mansidão daquele que, trazendo o estereótipo do preto-
velho, identificou-se como Pai Antônio. Logo cativou a todos com seu
jeito. Perguntaram-lhe se ele aceitaria algum agrado, ao que
respondeu:
- Minha cachimba, nego qué o pito que deixou no toco. Manda
mureque busca.
Todos ficaram perplexos, pois sem saber, estavam presenciando a
solicitação do primeiro elemento a ser utilizado como material de
trabalho dentro da Umbanda. Na semana seguinte, sobraram
cachimbos, visto que todos os que presenciaram as palavras de Pai
Antônio trouxeram o elemento por ele solicitado, escolhendo ele o
mais simples de todos. Assim, o cachimbo foi instituído na linha de
pretos - velhos.
No dia seguinte, formou-se verdadeira romaria em frente à casa da
família Moraes. Cegos, paralíticos e médiuns, que eram tidos como
loucos, foram curados. (2008, on-line, grifos meus)
25
1.2 Umbanda em termos
Os umbandistas têm como princípio norteador de suas práticas a caridade,
como pudemos ver nas palavras do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Os terreiros de
Umbanda recebem pessoas de todas as classes sociais para exercer a caridade,
que se dá por várias formas, seja pela comunicação com as entidades incorporadas
nos médiuns; por passes dirigidos por tais entidades; e até mesmo por trabalhos ou
descarregos, como veremos em um capítulo posterior. As entidades na Umbanda,
segundo Magnani,
são espíritos de mortos que descem do astral onde habitam para o
planeta Terra – considerado lugar de expiação – onde, através da
ajuda dos mortais, ascendem em seu processo evolutivo em busca
da perfeição. (MAGNANI, 1991, p. 30)
Se os termos “macumba” e “baixo espiritismo” já eram explorados antes
mesmo da instituição da Umbanda como religião, depois de sua formação
esbarramos em outro termo: Quimbanda. Considerada uma ramificação da
Umbanda para alguns autores e o oposto da religião umbandista para outros, o fato
é que a Quimbanda também carrega elementos da magia.
São sempre os escritores umbandistas que falam da Quimbanda em
termos de unidade que se opõe à Umbanda. Retendo-se essa idéia
de ‘sistematização num conjunto coerente’, pode-se analisar a
oposição Umbanda/Quimbanda numa perspectiva durkheimiana que
opõe a religião à magia. Muito embora esta distinção seja difícil de
ser estabelecida, pode-se dizer que a magia tende para um agregado
de ritos pouco sistematizados dentro de uma totalidade, tendo por
principal característica a eficácia; neste sentido as práticas mágicas
são multiplicadas ao infinito. (ORTIZ, 1991, p. 145, grifo do autor).
Agrupou-se à Quimbanda entidades consideradas também como “de
esquerda”, a exemplo de Exus e sua equivalência feminina, as Pombas Giras (as
entidades consideradas “de direita” são Caboclos, Pretos Velhos, etc.). Sobre a
Quimbanda, a visão antropológica de Roger Bastide a considerou “uma forma de
espiritismo às avessas”:
26
O macumbeiro tornou-se sinônimo de feiticeiro, e de feiticeiro temível
ou malvado. Umbanda, em vez de mostrar que a macumba é uma
religião, aceita como um dado real essa concepção popular errônea,
a Quimbanda, identificada com a macumba, se torna uma forma de
espiritismo às avessas, uma magia negra que trabalha com os
selvagens desencarnados, as almas penadas e os esqueletos. Sob a
presidência das duas mais temíveis divindades negras, Exu, deus
das encruzilhadas perdidas, e Omulu, deus das varíolas (BASTIDE,
1971, p. 447).
Mencionar a concepção de Quimbanda analisada por Roger Bastide, no
entanto, não é suficiente quando se aborda a controversa figura de Exu, por
exemplo. Isso porque, ao mesmo tempo em que Exu torna-se sinônimo de entidade
“temível”, conforme cita Bastide, Exu tem importância crucial no ritual umbandista,
como mostrarei adiante.
Uma ressalva necessária quando se fala em Exu é lembrar que também se
fala em Exu como sendo um Orixá no Candomblé, enquanto na Umbanda Exu é um
guardião. A entidade-Exu na Umbanda, segundo uma visão partilhada por muitos
umbandistas, está “em evolução” (ou “ascensão”). Apesar disso, Exu aparece como
guardião de mistérios, capaz de “praticar o bem” assim como as entidades que se
considera de direita.
Embora exista no candomblé uma tênue separação entre bem e mal,
pode-se afirmar que ela se refere exclusivamente aos ritos, não se
aplicando porém ao cosmo religioso propriamente dito. Já na
Umbanda, o universo sagrado se transforma, tornando-se os orixás
guardiões das legiões e falanges espirituais, mensageiros da luz.
(ORTIZ, 1991, p. 131)
As “legiões” e “falanges” espirituais mencionadas por Ortiz advêm de um
agrupamento, uma classificação que reúne uma série de entidades que se
manifestam na Umbanda, cada uma chefiada ou “comandada” por uma entidade ou
um Orixá específico.
Nesse agrupamento encontra-se a polêmica denominação das chamadas
sete linhas de Umbanda. Polêmica, pois, assim como a origem do vocábulo
“Umbanda”, muitos autores que se propuseram a estudar a religião umbandista
trouxeram sua própria visão sobre o que e quais seriam essas “sete linhas”. Leal de
Souza, o primeiro autor umbandista, escreve em 1933 o livro Espiritismo, Magia e as
27
Sete Linhas de Umbanda, ou seja, já na primeira obra sobre Umbanda encontramos
uma referência clara a essas sete linhas, que inspirariam vários outros autores em
obras posteriores.
Uma dessas referências foi explorada por Ronaldo Linares, presidente da
Federação Umbandista do Grande ABC (mantenedora do Santuário Nacional da
Umbanda)6
:
1. “A primeira linha é caracterizada pela cor amarelo ouro bem
clarinho e que seria a cor da Tenda de Santa Bárbara. O Orixá
correspondente é INHAÇÃ…”.
2. “A segunda linha é caracterizada pela cor rosa, correspondente a
tenda Cosme e Damião… O Orixá correspondente é IBEJI…”.
3. “A terceira linha é caracterizada pela cor azul. Com vários Santos
Católicos sincretizados com ela, a saber: Nossa Senhora da Glória,
Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Navegantes e
Nossa Senhora da Guia. O Orixá que corresponde é IEMANJÁ…”.
4. “A quarta linha é caracterizada pela cor verde, representando a
Tenda São Sebastião… O Orixá correspondente é OXOSSE…”.
5. “A quinta linha é caracterizada pela cor vermelho, representando a
Tenda São Jorge. O orixá correspondente é OGUM.”
6. “A sexta linha é caracterizada pela cor marrom, representando a
Tenda São Gerônimo. Seu Orixá correspondente é XANGÔ…”.
7. “A sétima linha é caracterizada pela cor violeta ou roxo,
corresponde a Tenda de San’Ana… O Orixá correspondente é
NANÃ…”
8. “Finalmente temos a cor negra, corresponde a Tenda de São
Lázaro. É a ausência da cor e da luz da vida. Zélio de Moraes explica
que as cores branco e preto não fazem parte das sete linhas, pois o
branco que é a presença da luz, existe em todas elas e o negro, que
é justamente a ausência da luz, está justamente na ausência delas…
O Santo Católico São Lázaro é sincretizado com o Orixá ABALUAÊ
ou OMULU… Este Orixá é conhecido ainda pelos nomes de
XAPANÃ, ATOTÕ, e BABALÚ.”
6
Extraídas por Alexandre Cumino do livro Iniciação à Umbanda, de Diamantino Fernandes Trindade.
28
9. “O Orixá maior da Umbanda é OXALÁ… o Chefe para o qual
convergem todas as linhas, assim perfeitamente identificado na
invocação com Jesus Cristo.”7
Torno a dizer que se trata de uma visão em torno da divisão teórica da
Umbanda em sete linhas principais. É comum lermos que, para cada uma dessas
sete linhas existam agrupamentos de seus Exus e suas Pombas Giras
correspondentes. No entanto, não me cabe neste trabalho explorar essa
classificação teórica complexa. Interessa-me mais mostrar como se dá o contato
com essas entidades no ritual umbandista prático, a fim de, posteriormente, discutir
a comunicação com tais entidades na internet e a maneira como umbandistas e não
umbandistas falam a seu respeito nas redes sociais, por exemplo.
A escolha de um terreiro de Umbanda no qual eu pudesse observar
atentamente o ritual foi determinante para os resultados dessa pesquisa, antes,
ainda, de abordar a ideia de “como se fala” ou “como se pratica” Umbanda na rede.
7
Disponível em http://raizculturablog.wordpress.com/2008/03/28/sete-linhas-de-umbanda-parte-i-por-
alexandre-cumino/>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
29
1.3 Gruel – Grupo Umbanda é Luz
O objetivo deste subcapítulo é apresentar as principais características que
envolvem uma gira de Umbanda, a partir das observações etnográficas no GRUEL
(Grupo Umbanda é Luz) 8
, localizado na Avenida das Cerejeiras, número 429, no
bairro de Vila Maria. Acompanhei as sessões de março a setembro de 2012, com a
frequência de dois sábados por mês.
1.3.1 Mediunidade e a figura do dirigente
A mediunidade é uma questão central para adeptos de religiões que lidam
com o espiritual, seja pelo contato com os espíritos de mortos, ou com Orixás. Meu
objetivo aqui, ao mencionar a ideia da mediunidade, é entendê-la no contexto da
prática da Umbanda nos terreiros para, mais tarde, contextualizá-la na prática da
Umbanda na rede.
No entanto, pude perceber que a concepção de “mediunidade” pode variar
entre os médiuns. Isso porque há umbandistas que acreditam, por exemplo, que
aqueles que, dentro do terreiro, exercem a função de cambones (que atuam como
ajudantes dos médiuns) o fazem porque “não têm mediunidade”, isto é, não dispõem
da faculdade necessária para a “incorporação”; enquanto outros, como os
integrantes da corrente do Grupo Umbanda é Luz, creem que todos eles sejam
médiuns, não apenas aqueles que incorporam os Orixás e as entidades.
Uma dificuldade encontrada no decorrer da pesquisa foi a de definir com
maior clareza a noção de “mediunidade”. Como explicar algo tão complexo, no
contexto acadêmico? Como diferenciar as várias visões sobre o que é ser médium e
encontrar nelas um elemento comum? Procurei recorrer a uma visão mais recorrente
sobre a mediunidade encontrada tanto em livros como em conversas com colegas
8
Disponível em <http://gruel.com.br/>
30
kardecistas, umbandistas ou mesmo durante a pesquisa de campo sobre a qual
falarei melhor no decorrer deste capítulo9
.
Embora este trabalho esteja necessariamente inserido no contexto
acadêmico, não se pode desprezar, ao menos para fundamentar essa afirmação em
torno da mediunidade, a obra do médium Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier,
já que os dizeres de seus livros, muitos deles ditados por um espírito desencarnado
são endossados por aqueles que lidam com questões espirituais. Sobre a
mediunidade ser inerente ao ser humano, menciono este trecho do livro Nos
Domínios da Mediunidade, ditado pelo espírito André Luiz:
Todos somos instrumento das forças com as quais entramos em
sintonia. Todos somos médiuns, dentro do campo mental que nos é
próprio, associando-nos às energias edificantes, se o nosso
pensamento flui na direção da vida superior, ou às forças
perturbadoras e deprimentes. (XAVIER, 1955, on-line)
Nas palavras do espírito, ditadas a Chico Xavier “todos somos instrumento
das forças com as quais entramos em sintonia”, o que não quer dizer que
precisamos incorporar (no sentido etimológico, de “dar corpo a”) tais “energias” (as
“edificantes” ou as “perturbadoras”) para senti-las, percebê-las. Diante disso, o que
se pode observar é que ser médium não significa, necessariamente, emprestar o
corpo a espíritos.
Todo ser humano, independentemente de suas crenças, teria a capacidade
de perceber sinais do mundo espiritual. Tais sinais se dão de várias formas (sonhos,
clarividência, psicografia, etc.) e em vários graus: em algumas pessoas os sinais são
mais intensos; em outras, menos, quase imperceptíveis.
Considera-se também que existam vários tipos de médiuns. Dentro de um
terreiro, por exemplo, pode haver os médiuns responsáveis por incorporar, de fato,
os chamados guias (Orixás e entidades) para a consulta ou para os passes,
emprestando seus corpos físicos para a comunicação com o espiritual. Mas há
também médiuns responsáveis por orientar os consulentes, agindo como
“tradutores” das práticas rituais que, muitas vezes, para o assistido que não está
31
muito habituado a elas (como um consulente que visita o espaço pela primeira vez),
necessita de alguém que as explique. Esse último médium pode não incorporar, mas
tem a capacidade de entrar em contato com seus guias intuitivamente, sem
necessariamente emprestar-lhes seu corpo.
A mediunidade, como já foi dito, relaciona-se a um conjunto de práticas muito
amplo. A forma de contato entre o plano físico e o espiritual pode variar do
kardecismo para a Umbanda – como mencionou Alexandre Cumino ao dizer que
não se deve entender o ritual umbandista como sendo um ritual espírita, que
carregaria outros elementos em sua constituição - ou para o Candomblé
(principalmente pela natureza dos espíritos que se manifestam nas diferentes
religiões), mas a partir de então, feitas as breves considerações sobre a
mediunidade, interessa-me focar, agora sim, no Grupo Umbanda é Luz, dentro do
qual incorporar guias não é uma condição para o trabalho mediúnico nas giras,
como se denominam os rituais da Umbanda.
O título que dei a esse subcapítulo, Mediunidade e a figura do dirigente coloca
em discussão, ainda que breve duas questões importantes para uma pretensa
pesquisa que tenha a Umbanda em seu tema. São elas a mediunidade, da qual já
falei, e a figura do dirigente do terreiro, ou seja, o pai de santo (Babalorixá) ou mãe
de santo (Iyalorixá)10
.
O papel do dirigente é central não só para este capítulo, mas talvez para esta
pesquisa inteira, já que torna a Umbanda peculiar, como bem notou Birman ao dizer
que
no plano da organização social a religião umbandista pode ser
considerada um agregado de pequenas unidades que não um
conjunto unitário. Não há, como na Igreja Católica, um centro bem
estabelecido que hierarquiza e vincula todos os agentes religiosos.
Aqui, ao contrário, o que domina é a dispersão. Cada pai-de-santo é
senhor do seu terreiro, não havendo nenhuma autoridade superior
por ele reconhecida. Há, portanto, uma multiplicidade de terreiros
autônomos, embora estejam unidos na mesma crença. (BIRMAN,
1985, citada por CUMINO, 2011, p. 298)
10
Babalorixá e Iyalorixá são sinônimos de pai e mãe de santo em Iorubá, sendo Baba = pai – Ori =
cabeça – Ixá = guardião, assim como Iyalorixá é a denominação da mãe de santo (Yá = mãe).
32
Não que isso signifique que não haja hierarquia dentro de um terreiro. Há
terreiros que classificam seus integrantes hierarquicamente ainda que a
superioridade do dirigente se mantenha (denominações como pai pequeno e mãe
pequena são exemplos disso; sendo eles os “substitutos” dos pais e mães de santo
quando estes se ausentarem, dentre outras funções que lhes cabem). Birman
constata que não haja uma organização central para Umbanda tal como o Vaticano
para a Igreja Católica.
O que existe são as federações de Umbanda; porém, estar ligado a uma
determinada federação (como a Federação Umbandista do Grande ABC, a
Federação Brasileira de Umbanda ou a Federação de Umbanda do Brasil) não é
condição determinante aos trabalhos em um terreiro. A própria existência de mais de
uma federação já deixa isso claro.
Voltando ao Grupo Umbanda é Luz, os médiuns da corrente enxergam no pai
de santo não só o desempenho do papel do líder, ou do dono do espaço do terreiro,
mas também as qualidades necessárias para exercer tal papel, pois é o pai de santo
o responsável por criar os fundamentos do terreiro a partir da interpretação de sua
raiz
33
1.3.2 “Umbandas” e o referencial teórico
O Gruel é uma “escola iniciática da raiz Congo”. Nas palavras do Babalorixá,
Marco Antonio dos Santos, “todo terreiro de Umbanda é uma Escola iniciática, pois
se organiza a partir de um referencial teórico que justifica suas práticas, esse
referencial teórico é chamado de raiz” 11
.
O conceito de raiz na Umbanda justifica a escolha de apenas um terreiro para
fundamentar a parte etnográfica deste trabalho. É na raiz umbandista, ou seja, é
nesse referencial teórico mencionado pelo Babalorixá que se encontram as
diferenças e semelhanças entre os rituais de Umbanda. O dirigente de um terreiro é
o responsável por respeitar determinada raiz, por colocar em prática o que aprendeu
na religião com aqueles que o iniciaram no culto e ter a capacidade de sustentar tais
práticas, a fim de ensiná-las a seus filhos. Cada raiz de Umbanda tem suas
peculiaridades, seu conjunto de práticas que seus adeptos deverão sustentar.
O Gruel segue a raiz Congo, isto é, o referencial teórico Congo, implantado
pela entidade conhecida como Pai Congo, incorporada no médium José Sanches
Haro na década de 197012
. Cada detalhe da gira, dos elementos do Congá à
maneira como os banhos devem ser preparados pelos médiuns deve estar de
acordo com tal referencial teórico.
A primeira característica que me chamou a atenção no ritual do Gruel foi a
incorporação de Orixás. Isso porque, em minhas pesquisas teóricas sobre
Umbanda, encontrei diferenciações ritualísticas entre Umbanda e Candomblé
exatamente nesse ponto, na ideia de que no Candomblé os Orixás “baixam”, mas na
Umbanda, não.
Tal diferenciação, porém, carece de embasamento, já que no Gruel, por
exemplo, os médiuns incorporam Orixás (ainda que estes venham não para
consultas, mas para os chamados “trabalhos” como descreverei adiante).
11
Disponível em <http://gruel.com.br/wp-content/uploads/2011/10/A-raiz-Congo-e-a-Escola-
Inici%C3%A1tica.pdf>
12
Idem à nota anterior.
34
A escolha deste terreiro para minhas observações de campo tem como
objetivo mostrar um exemplo de um ritual particular (entenda-se “particular” não
como fechado, mas como próprio, ou específico) de Umbanda. Por razões
metodológicas, visitar terreiros, além do Gruel, que seguissem referenciais teóricos
distintos me tornaria responsável por diferenciá-los a todo o momento. Mas a religião
de Umbanda bebe em tantas fontes (católica, africana, indígena, espírita...), tem
tantos elementos que diferenciam um terreiro do outro, que talvez fosse melhor falar
em “Umbandas”, como se esse plural contivesse as várias raízes de uma mesma
religião.
35
1.3.3 As giras no Gruel
A incorporação dos guias, bem como as giras como um todo acontece
necessariamente dentro do terreiro. Terreiro é como são denominados os pequenos
grupos que congregam em torno de uma mãe ou pai de santo (PRANDI, 2003, on-
line), mas não apenas isso: é o terreiro o espaço adequado para o ritual. Não se
incorporam guias espirituais em casa, na rua ou em qualquer outro lugar que não
seja o terreiro (discutirei melhor essa questão no capítulo a seguir quando
mencionar um estudo de caso de um programa de web-rádio).
No Gruel as giras acontecem duas vezes por semana: às quartas-feiras, às
19h30, e aos sábados às 17h. A distribuição de senhas é indispensável para que o
assistido possa se consultar com uma entidade através do médium. A senha é
composta por um número (impresso) e um nome, que indica a equipe à qual o
médium pertence. Cada equipe tem um número determinado de senhas, que são
distribuídas cerca de duas horas antes do início das sessões.
As consultas são gratuitas, individuais e requerem uma senha. Porém, no
terreiro também são realizados os passes, que não necessitam de senha; para
tomar passe os consulentes devem formar uma fila na entrada do terreiro. A
entidade que dá passes, entretanto, não conversa com o consulente (essa
comunicação se dará nas consultas).
O terreiro funciona na parte de baixo da casa do Babalorixá. Os consulentes
aguardam em filas pelo início dos trabalhos, até que um dos médiuns os chame
(pela senha para consulta; ou autorizando a entrada seguindo a sequência da fila, se
para o passe). Na fotografia abaixo, reproduzida do site do Gruel, pode-se observar
a fila para o passe na entrada do terreiro e um dos médiuns carregando uma
prancheta utilizada para organizar as consultas.
36
Além das consultas e dos passes, no Gruel também são realizadas outras
atividades, como descarrego, energização e transporte. Por uma opção
metodológica, conduzi minha observação para alguns detalhes do ritual que me
ajudassem a compreender as possibilidades de transposição desses mesmos
detalhes para a Web.
Por essa razão, explicar em que consiste cada ritual particular neste terreiro
foi um enorme desafio por requerer uma experiência antropológica maior do que
aquela que geralmente é oferecida ao jornalista em termos de pesquisa de campo.
Ao tentar descrever um ritual de Umbanda, percebi que o exercício da descrição a
partir da observação torna-se muito mais amplo, já que descrever o que vejo é
diferente de saber exatamente a razão e eficácia de cada ritual que compõe uma
gira, como o ritual de defumação, Ipadê, etc., bem como saber a maneira correta de
manipular cada detalhe de acordo com os ensinamentos da raiz.
Achei prudente fazer essa ponderação, pois, antes de analisar detalhes que
se referem direta ou indiretamente ao ritual de Umbanda na internet, falar da religião
37
de Umbanda “genericamente” me parece arriscado. Certas peculiaridades dos rituais
que compõem uma gira pertencem, muitas vezes, a uma herança passada de pai
para filho (de santo, no caso) e a exposição virtual pode esvaziar toda uma tradição.
Podemos encontrar bons exemplos dessa questão nos jogos divinatórios
originalmente africanos, como é o caso do Opele-Ifá, que são de conhecimento
exclusivo dos Babalawôs, sacerdotes conhecedores dos mistérios que cercam essa
prática. Eles são os responsáveis por preservar o segredo e transmitir seus
conhecimentos apenas aos iniciados. No entanto, é comum vermos anúncios na
internet de consultas divinatórias “on-line”, como é o caso dos sites que oferecem
consultas “grátis” dos búzios13
. (Há também os cursos virtuais que oferecem
apostilas dessas artes divinatórias14
; entretanto, estas devem ser compradas por
quem estiver interessado).
A internet pode funcionar, ainda, como um canal para solicitar consultas por
e-mail, por telefone ou até “marcar uma consulta presencial diretamente no terreiro”,
como o site de Mãe Preta Iyalorixá15
. O interessado em uma breve consulta não
presencial deve preencher os campos obrigatórios com seus dados (sexo, idade,
data de nascimento, cidade e estado) e quase que imediatamente recebe, por e-
mail, seu “Orixá de proteção”. A diferença desse exemplo de Mãe Preta, no que diz
respeito ao esgotamento de uma tradição antiga que se quer preservada e
transmitida apenas àqueles que pertencem ao culto é que ela não explica como se
consulta o oráculo: essa tarefa cabe a ela enquanto Iyalorixá. Essa prática
representa um “risco”, porque, via internet, como é possível saber se ela, de fato,
manipulou os búzios? Se ela, de fato, o fez no território sagrado do terreiro? Ou
ainda, se ela detém o conhecimento necessário para fazê-lo?
Mencionar tais exemplos não significa necessariamente coloca-los à prova, o
que ficará mais claro no capítulo seguinte, no qual abordarei um estudo de caso de
13
Disponível em <http://horoscopovirtual.uol.com.br/jogo-de-buzios.asp> (acessado em 23 de outubro
de 2012); consulta virtual gratuita do “jogo de búzios” para a qual basta que mentalizemos perguntas
e cliquemos com o mouse sobre as conchas, que teremos imediatamente a “resposta” do oráculo.
14
Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=fTjwUkCQ8Qg>. Acessado em 23 de outubro de
2012.
15
Disponível em <http://www.maepreta.com/ficha.php>. Acessado em 23 de outubro de 2012.
38
consulta on-line com uma entidade de Umbanda. Minha intenção ao descrevê-los é
mostrar que o advento da internet traz possibilidades de comunicação que vão além
do presencial, quando pensamos na ideia de se comunicar com o espiritual on-line
(seja essa comunicação eficaz ou não, o que vai depender da fé e do conhecimento
de quem estiver do outro lado do computador, iPad, celular, etc.).
Contudo, uma vez que observei as práticas rituais off-line e alguns modos por
meio dos quais essas práticas foram transpostas para o “mundo virtual”, não poderia
deixar de abordar também os problemas dessa transposição (ou tradução),
principalmente no que diz respeito à preservação de tradições. Neste caso:
As relações que se constroem na Web propõem uma possibilidade
de angariar os saberes desta cultura [africana], desde que
legitimados por um saber letrado. Não obstante, essa cultura revela-
se apenas naquilo que se pode vivenciar no seio da
comunidade. (...) Hoje essa manifestação religiosa encontra-se no
âmbito da territorialidade e da temporalidade ocidental capitalista.
Decerto que a inserção das religiões afro-brasileiras na Internet
refletem um longo processo de plasticidade, adaptação e
transigência no ambiente da metrópole contemporânea. (SANTOS,
2001, on-line, grifo meu)
As atividades que pude observar no Gruel estando de fora da corrente foram
essenciais para esse trabalho, mas o conhecimento de determinadas práticas ali
realizadas cabe aos médiuns da corrente, que as vivenciam, sendo que algumas
dessas práticas – como a consulta oracular – são exclusivas do Babalorixá.
Procurarei descrever algumas das práticas que pude observar no Gruel enquanto
pesquisadora, que vão desde o comportamento dos médiuns até o desempenho dos
trabalhos que realizam.
Ainda do lado de fora do terreiro, na entrada, vemos um espaço reservado
aos guardiões que, como mencionado anteriormente, são os Exus e as Pombas
Giras. Todos os médiuns, ao chegar ao terreiro, devem, antes de adentrar o espaço
sagrado, fazer uma saudação frente a este espaço, conhecido por umbandistas
como “tronqueira” ou “casa de força”.
39
Antes de a gira começar, o Babalorixá conduz um procedimento durante o
qual os médiuns permanecem ajoelhados, de frente para o Congá, entoando uma
cantiga em Iorubá16
para saudar os ancestrais. Segundo Marco Antonio dos Santos,
a cantiga traz a seguinte mensagem: “cuidado com o chão onde pisa, pois ele
carrega as cinzas de seus ancestrais”. Saudar a ancestralidade, dentro deste ritual
inicial, significa para o médium do Gruel, saudar tanto seus ascendentes espirituais,
ou seja, os espíritos ancestrais que o guiam, como também ascendentes carnais,
sua família.
Da ideia de respeitar “o chão onde pisa” pude compreender outro ato de
respeito dos médiuns da corrente do Gruel quando, após saudarem o espaço dos
guardiões na entrada do terreiro, ajoelham-se rapidamente e encostam os dedos
das mãos no chão, “cumprimentando” o solo. Esse contato físico com o solo sagrado
é apenas um dos muitos atos simbólicos presentes nos rituais de Umbanda que, na
internet, evidentemente, vão se perder.
16
Conhecido como Ipadê, prática comum ao Candomblé de origem Ketu.
40
Após o ritual descrito acima, os médiuns começam a entoar o que na
literatura umbandista se convencionou chamar de ponto cantado (cantigas
geralmente acompanhadas pelo toque de atabaque, instrumento musical sagrado,
cuja entoação “atrai” os guias nelas homenageados). O primeiro deles é um ponto
de defumação, cantado não apenas no Gruel, como em muitos outros terreiros de
Umbanda:
Corre a gira pai Ogum
Filho quer se defumar
Umbanda tem fundamento
É preciso preparar
Com incenso e benjoim
Alecrim e alfazema
Defumar filhos de fé
Com as ervas da Jurema
As ervas às quais o ponto faz menção são os elementos que compõem outro
ritual imprescindível às giras, que é a defumação. Nesses dois versos (“Umbanda
tem fundamento/ é preciso preparar”) uma afirmação importantíssima sobre a
Umbanda de que me valho para colocar em discussão as pretensas práticas
ritualísticas na Web: a Umbanda tem fundamento (ditado pela “raiz”) e é preciso
preparar – sacralizar - o espaço, o médium e tudo o que vai compor uma gira. Isso
tudo se perde quando se tenta tornar virtual uma gira, como procurarei demonstrar.
Voltando à descrição, enquanto entoam os pontos de defumação, defumam-
se os médiuns, um a um. As ervas aromáticas utilizadas e a maneira como o
processo de defumação ocorre no Gruel devem respeitar a raiz Congo17
, porém, de
17
Disponível em “Defumação: Ritual Explicativo da Raiz Congo”: <http://gruel.com.br/wp-
content/uploads/2011/10/Defuma%C3%A7%C3%A3o-ritual-explicativo-da-raiz-Congo.pdf>. Acessado
em 12 de setembro de 2012.
41
maneira objetiva, poderíamos entender a defumação como um ato de purificação do
médium a fim de prepara-lo para o contato sagrado que virá na sequência.
A ideia da formação de uma corrente, sendo essa corrente o conjunto dos
médiuns integrantes do terreiro, começa a ganhar força na abertura das giras. Todos
os médiuns cantam e dançam juntos, numa harmonia coletiva capaz de despertar
notado interesse em pessoas que passam pela avenida naquele momento.
A fumaça característica da queima das ervas tem a função de dissipar
energias ruins, sacralizando o ambiente. Na fotografia abaixo, um dos médiuns do
Gruel defuma o terreiro no início de uma gira.
42
Na sequência são entoados outros pontos, mais específicos das entidades que ali
vão “trabalhar”, além de os médiuns saudarem Orixás e entidades com gestos e
saudações específicas de cada um desses guias. O Babalorixá diz, por
exemplo:_Saravá Iansã! Ao que os médiuns respondem com sua saudação
correspondente, Epahei! e seu gesto, com o braço direito erguido e a mão se
movimentando como os ventos (sendo Iansã Orixá dos ventos e tempestades).
43
É preciso salientar uma característica das giras do Gruel muito comum em
outros terreiros de Umbanda: a organização das sessões de acordo com as
entidades que vão trabalhar naquele dia.
Há as giras de Caboclo, nas quais os médiuns vão incorporar
majoritariamente essas entidades, identificadas com índios, para as consultas; há as
giras de Preto Velho nas quais são os Pretos Velhos (comumente associados a
espíritos de negros que teriam sido escravizados) que ali incorporam. Se em um
sábado a gira foi de Caboclo, por exemplo, no próximo será de Preto Velho e assim
sucessivamente.
Na sequência de pontos cantados isso fica mais claro: após os pontos de
defumação, se a gira é de Caboclo, pode-se perceber que os médiuns cantam
pontos geralmente dedicados a Oxóssi (Orixá que “comanda” os Caboclos na
Umbanda). Já na abertura das giras de Exu – que também ocorrem no Gruel –
podemos ouvir pontos dedicados ao “povo da rua” (uma referência aos guardiões
Exu e Pomba Gira).
O Babalorixá então organiza uma espécie de círculo com médiuns de mãos
dadas e eis que, durante o toque dos atabaques com os pontos específicos, um a
um nessa corrente vai de fato “incorporando”. Numa gira de Caboclo, por exemplo, a
incorporação é imediatamente percebida pelos brados das entidades, próprios de
indígenas, assim como numa gira de Exu as gargalhadas são marcantes.
O uso de um elemento, durante as giras, pelo Babalorixá, chamou-me a
atenção, pois não o tinha notado em outros terreiros nos quais estive (não ainda
como pesquisadora): o adjá18
. Trata-se de uma espécie de sineta de metal que, de
acordo com o que ele me explicou, serve para unir, no espaço do terreiro, dois
outros ambientes simbólicos fundamentais na tradição Iorubá: o Orum (plano
espiritual) e o Ayê (plano físico), análogos ao ambiente do céu (onde habitam Deus
e anjos na visão cristã) e da terra (onde nós, seres humanos, vivemos).
Quando o Babalorixá manipula o adjá – produzindo o som característico de
um sino - os médiuns concentram-se para a incorporação. O som do adjá, por sua
18
Termo de origem Iorubá.
44
vez, faz com que os seres do Orum (os guias espirituais) entrem em sintonia com os
do Ayê (médiuns).
Assim que os médiuns de incorporação de fato incorporam e vão assumindo
seus lugares dentro do espaço físico do terreiro (o Babalorixá geralmente se coloca
ao centro e ao fundo, próximo ao Congá), os médiuns responsáveis pela
organização das consultas vão chamando os consulentes pelas senhas, ou
permitindo, na sequência da fila já formada do lado de fora, a entrada um por vez.
Os médiuns de consulta são sempre acompanhados por um cambone que,
como já foi dito de forma breve, atua como assistente do médium enquanto este
estiver incorporado, sendo responsável, no caso do Gruel, por anotar o que
acontece durante as consultas e entregar às entidades os elementos por elas
solicitados (como flores, garrafas d’água, velas, perfumes entre outros, que serão
manipulados de acordo com a necessidade da consulta; alguns entregues ao
consulente depois).
A atividade de um cambone não só é essencial para o médium que estiver se
iniciando dentro da corrente, para que este aprenda como se comportar durante as
giras, como também é fundamental para que uma consulta ocorra dentro do Gruel,
onde cada médium de consulta tem um caderno no qual são anotados pelo
cambone o nome de cada consulente, a data de cada consulta, as perguntas feitas
pelo consulente e as respostas dadas pela entidade, a data do retorno (caso seja
necessário o assistido pode retornar, com consulta pré-agendada) e o tipo de
atividade que a entidade solicita (a exemplo dos chamados trabalhos com Orixás e
outros guias, dos quais falarei a seguir).
45
1.3.4 Os trabalhos e a ideia de rede
No campo espiritual, a palavra trabalho pode ter muitos significados. O termo
geralmente é utilizado, assim como outros dos quais já falei, como sinônimo de
feitiçaria, quando se fala, por exemplo, em trabalhos de magia negra.
Porém, além de a concepção de magia causar muita confusão quando
aproximada, teórica ou praticamente, da Umbanda (assunto que pretendo discutir
mais à frente), no Grupo Umbanda é Luz entende-se por trabalho uma ação
espiritual praticada por um médium incorporado (com entidades ou Orixás) para
equilibrar energeticamente o consulente. De modo sucinto, é como se a entidade ou
Orixá, através de um médium, pudesse emitir sua energia sagrada ao consulente,
reequilibrando-o de acordo com suas necessidades específicas. Diferentemente da
consulta, no trabalho as entidades não conversam com o consulente, apenas “agem”
sobre ele.
O tipo de trabalho a ser realizado é determinado durante a consulta. Um
exemplo é quando o consulente relata estar com baixa autoestima. A entidade,
então, pode solicitar um trabalho de Oxum, Orixá do amor, da beleza e também da
autoafirmação, para devolver-lhe o amor próprio. Oxum incorpora em outro médium
(não o mesmo da consulta, já que existem, na corrente, os médiuns próprios para a
realização dos trabalhos) transmitindo um pouco de seus predicados (de beleza,
autoestima, etc.) ao assistido.
Essa incorporação é percebida por meio de gestos característicos do Orixá
feminino Oxum: as mãos do médium movimentam-se lentamente, como as águas
dos rios (morada de Oxum nas lendas africanas); às vezes movimentando
lentamente os quadris e cantando, com um timbre frequentemente agudo, tudo isso
de maneira muito suave. É comum um cambone cantar pontos em homenagem a
Oxum durante a realização do trabalho, aconselhando que o consulente mantenha
os olhos fechados e pensamentos positivos.
46
Os trabalhos são realizados majoritariamente nas giras de sábado. Um
detalhe importante dessas giras são as aulas ministradas pelo Babalorixá (que é
também professor) todo sábado, uma hora antes do início das sessões, ou seja, às
16h. A cada sábado, um tema é abordado pelo Babalorixá, que se utiliza de recursos
eletrônicos como apresentação de slides, ou mesmo de desenhos de próprio punho
em uma lousa dentro do terreiro.
As aulas são abertas. Embora alguns dos temas sejam pertinentes aos
médiuns da corrente e versem sobre as atividades e o comportamento dos mesmos
47
dentro do terreiro, os visitantes também podem acompanhá-las, uma vez que o
Babalorixá aborda também, durante tais aulas, questões ligadas ao cotidiano de
todos nós (fala sobre relacionamentos afetivos, questões financeiras, felicidade,
prosperidade, liberdade, humildade... enfim, questões de interesse pessoal e não
apenas mediúnico).
O espaço físico onde as aulas ocorrem aos sábados é o mesmo onde o ritual
acontecerá uma hora depois. Essa delimitação do espaço é essencial, já que o
simples fato de estar “dentro” do terreiro não é suficiente para incorporar entidades.
Isso porque, no momento da aula, os médiuns estão desincorporados, ali se
tornando alunos, fazendo anotações em seus cadernos como se estivessem em
uma sala de aula; o dirigente do terreiro, ainda que detenha o conhecimento
necessário para ocupar esse papel na hierarquia do lugar, também está
desincorporado porque naquele momento assume o papel de professor, embora
suas experiências como pai de santo – e também como filho de santo, quando
menciona o terreiro ao qual pertencia antes de ter o seu – o auxiliem a lecionar.
A importância das aulas, conforme me explicou o Babalorixá durante minhas
visitas ao terreiro é fundamental para a preservação da raiz Congo, já que ele tem a
missão de transmitir o conhecimento adquirido com seu pai de santo a seus filhos
(os médiuns da corrente do Gruel), que deverão fazer o mesmo com os novos
integrantes da corrente e assim por diante. A ideia de rede, essencial nesta
pesquisa, começa a ser delineada.
As giras de quarta-feira não raro se estendem até depois da meia-noite. Já
aos sábados, as sessões terminam por volta das 21h. Durante as sessões, há
sempre uma mensagem predominante, uma energia percebida pelo Babalorixá ou
mesmo manifesta pelas próprias entidades durante as giras, algo como o que se
pôde aprender com as atividades realizadas naquele dia. Em uma das giras de
sábado cujo encerramento tive a oportunidade de observar, o Babalorixá transmitiu
aos médiuns uma mensagem da Pomba Gira Maria Padilha. Em outra gira, também
de sábado, a mensagem predominante foi relacionada à cura, à necessidade do ser
humano de se libertar de certos traumas que o aprisionam. Conforme me explicou
um dos médiuns antes do final da sessão, nesta gira especificamente foi possível
48
“sentir a energia de Obaluaiê”, Orixá ligado às doenças e, portanto, responsável
também pela cura.
Ao final da sessão, quando todos os consulentes já foram atendidos, os
médiuns desincorporam e formam mais uma vez uma corrente, de mãos dadas em
círculo, e fazem uma oração em agradecimento por terem realizado mais um
trabalho juntos. Do início ao fim da sessão, não é difícil perceber que se vai
formando, naquele espaço sagrado, uma rede – seja ela espiritual composta por
todas as entidades que ali trabalham; seja ela social integrada pelos consulentes
que, do lado de fora, aguardam sua vez.
Uma gira no Gruel não existe só com o pai de santo. Além dele, estão
presentes os demais médiuns (de incorporação e cambones que os auxiliam, por
exemplo) e os próprios consulentes. Todos têm certa importância para a realização
das sessões. A ideia de que a Umbanda “não existe sozinha”, de que um médium só
ou uma entidade só não seja suficiente para que o ritual aconteça está presente até
mesmo na própria manifestação das entidades.
Cada entidade que se manifesta na Umbanda tem um nome e um
“sobrenome”, que indica a qual “família” essa entidade pertence. Para que isso fique
mais claro, tomemos como exemplo dois nomes de diferentes Pretos Velhos: Pai
Joaquim de Angola e Pai Joaquim de Aruanda. Embora os nomes sejam iguais
(“Joaquim”), os “sobrenomes” marcam sua vinculação a um grupo (um é “de
Angola”, outro “de Aruanda”). Pode-se dizer que eles se agrupam no plano espiritual
antes de incorporarem de fato (no plano físico, portanto). Não existe uma entidade
que não esteja “agrupada”, ou seja, que não pertença a uma determinada “família”
espiritual.
Essa noção de “grupo” é o que talvez aproxime o ritual de Umbanda (falando,
agora, da Umbanda de maneira geral, não apenas da raiz Congo) de uma das
hipóteses em torno do significado da palavra Umbanda, como sendo a junção da
palavra oriental UM (que significa Deus) com BANDA (que quer dizer agrupamento,
legião). (PINTO, 1971, p. 197, citado por CUMINO, 2011, p. 101-102)
49
Corrêa Lages menciona uma “rede social formada pelos médiuns,
comunidade, cambones e por espíritos de antepassados” (2011, on-line). Ela fala,
ainda, da formação de outra rede, a rede familiar:
Na Umbanda, uma ampla rede de parentesco é encenada,
estabelecendo novas relações de filiação, que são assentadas
em afetos e cuidados com os seus filhos. Pretos-velhos e Pretas-
velhas se tornam pais e avós, sendo chamados de Pai Joaquim de
Angola, Pai Benedito de Aruanda, Pai João do Congo, Mãe Joaquina
de Aruanda (...)
A autoconfiança proporcionada pela relação amorosa é a base
indispensável para a participação autônoma na vida pública e ponte
para a rede que vai sendo costurada rumo ao reconhecimento inter-
subjetivo e auto-realização dos sujeitos. A reconstituição da família e
dos laços paternais no terreiro promovem sentimentos de
pertencimento a um grupo social que duramente desrespeitado pelas
humilhações e agressões físicas da escravidão, continuam
compartilhando semelhantes formas de opressão e sofrimento em
suas vidas cotidianas, uma vez que continuam sendo afetados pela
inequidade em saúde, o desemprego, a falta de acesso aos serviços
públicos, o menor acesso à educação, à justiça. (2011, on-line, grifo
meu)
A discussão que proponho neste trabalho de conclusão de curso é entender
como se apresenta a idéia de “rede” na Umbanda e quais são as possíveis relações
dessas redes físico-espirituais com as redes virtuais.
Durante o período em que frequentei o Gruel para anotar dados que seriam
descritos aqui, tentei entender como conceitos subjetivos como o amor, a felicidade,
a liberdade, a caridade etc., são aplicados ao ritual de Umbanda.
A prática da caridade existe quando não se cobra pelas consultas, passes ou
trabalhos. A humildade existe em pequenos gestos das próprias entidades, a
exemplo de uma Cabocla (incorporada em uma médium) que, durante uma consulta
– sendo eu mesma a assistida – ajoelhou-se diante de mim, explicando que o fazia
em respeito às atitudes que tomei em determinadas situações que não vou
mencionar aqui por razões evidentes. A fraternidade existe no comportamento de
respeito entre os filhos de santo (irmãos porque filhos de um mesmo pai de santo),
etc.
50
Há inclusive uma música, Princesa Negra, de autoria da compositora
pernambucana Jeane Siqueira19
que é cantada em forma de ponto nas sessões do
Gruel. Por meio dos trechos que cito abaixo, é possível notar que a concepção de
liberdade e felicidade, na música, é adaptada à maneira como os médiuns do Gruel
entendem a Umbanda.
Bate tambor, bate atabaque
Repica agogô20
na imensidão
Hoje o decreto diz, seja livre e feliz
Minha palavra é lei (grifos meus)
Isso porque o decreto, como diz a música, de ser “livre e feliz” não só está presente
nas estrofes entoadas pelos médiuns durante as giras; é, também, orientação do pai
de santo, como é possível verificar no Código de Conduta para médiuns atuantes no
terreiro durante o ano de 2012:
Não acredite estar no terreiro apenas para praticar a caridade, você
está aqui para evoluir emocionalmente, tornar-se mais feliz e ser uma
referência para os que estão a sua volta. Só há um decreto na
Umbanda: seja livre e feliz.21
(grifos meus)
Neste mesmo documento o Babalorixá enumera algumas regras que todos os
médiuns devem seguir, como vestir branco (todos usam um avental próprio do
Gruel), cuidar da higiene pessoal, não estabelecer vínculos (de amizade, sexual, etc)
com consulentes, entre outras exigências.
Por meio da convivência no Gruel, seja antes da pesquisa, como consulente;
ou depois, no papel de pesquisadora, observando, constatei que princípios como a
caridade, a humildade, a fraternidade entre tantos outros aos quais tanto se alude
19
Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=sdAmDM079KY>. Acessado em 14 de outubro
de 2012.
20
Instrumento de múltiplos sinos, tradicional na cultura Iorubá.
21
Disponível em http://gruel.com.br/wp-content/uploads/2011/10/C%C3%B3digo-de-Conduta-para-
m%C3%A9diuns-atuantes-em-2012-nos-trabalhos-do-GRUEL-15.pdf>. Acessado em 14 de outubro
de 2012.
51
quando se fala da Umbanda, são importantes na prática. E é dessa prática (ou
tentativa de) que falarei no próximo capítulo.
52
2. DO RITUAL AO VIRTUAL
2.1 “Programa do Seu Tranca”: um estudo de caso
Quando observamos um blog que fala sobre Umbanda ou mesmo um vídeo de
uma gira no YouTube, uma série de elementos que fazem parte do ritual no espaço
físico destinado a ele não está presente, como é o caso da defumação, dos passes
outros elementos, abordados anteriormente.
Por mais que se assista a um vídeo em que a defumação é feita dentro de um
terreiro, o internauta não é capaz de sentir o cheiro das ervas, nem de entrar em
contato com a fumaça, essencial para dissipar “más energias”, ou mesmo entrar em
sintonia com seus guias como por meio do adjá, instrumento do qual falei no capítulo
anterior.
Partindo de uma dificuldade que encontrei no trabalho de descrição das
práticas on-line no que diz respeito à transposição de práticas “físico-espirituais”
para práticas “virtual-espirituais”, cheguei aos estudos relacionados à netnografia.
Esse método pode ser caracterizado do seguinte modo:
O neologismo 'netnografia' (netnography = net + etnography) foi
originalmente cunhado por um grupo de pesquisadores/as norte-
americanos/as, Bishop, Star, Neumann, Ignacio, Sandusky & Schatz,
em 1995, para descrever um desafio metodológico: preservar os
detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio
eletrônico para 'seguir os atores' (BRAGA, 2001, p. 5, citado por
AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line).
A ideia de “seguir os atores” me pareceu adequada na medida em que havia a
possibilidade de encontrar e me comunicar com umbandistas na rede e assim
perceber como eles interagem com umbandistas e não umbandistas e,
principalmente, de que maneira se utilizam das novas tecnologias para falar sobre
sua religião.
53
A partir dessa interação virtual com alguns umbandistas conheci a web-rádio
Toques de Aruanda22
, responsável pelo programa “Conversando com Seu Tranca”
(ou Programa do Seu Tranca).
Nesse momento, essa web-rádio servirá de referência para o estabelecimento
de possíveis traduções entre o mundo físico-espiritual-ritual, etnográfico – das
observações no Gruel – e o mundo virtual- espiritual, “netnográfico” - que passarei a
abordar tomando como base a análise da Umbanda representada na Web, nos
blogs e nas redes sociais como Twitter e Facebook.
O programa é transmitido, ao vivo, todas as segundas-feiras das 21h às 23h
pela web-rádio. Funciona assim: cada dia um tema específico ligado à Umbanda é
discutido pelos apresentadores, Mãe Gladys Camorim e Alan Barbieri, das 21h às
22h.
Essa primeira hora do programa (21h às 22h) é dedicada à discussão do
tema a partir, principalmente, do conhecimento teórico e prático da médium (Mãe
Gladys) sobre a religião. Os internautas podem enviar suas perguntas por e-mail
(programadoseutranca@hotmail.com) ou via MSN, através do mesmo endereço. A
figura abaixo (um printscreen salvo no momento em que um dos programas estava
sendo transmitido) mostra a figura icônica da possibilidade de interação do espiritual,
sagrado (sintetizado na figura do Exu Tranca Rua das Almas, entidade popular na
Umbanda e que dá nome ao programa) com o virtual, por meio do MSN.
22
<http://www.radiotoquesdearuanda.com.br>; acessado em 10 de junho de 2012.
54
Observem as características do desenho utilizado para representar este Exu: um
homem moreno, de bigode e cavanhaque, trajando uma roupa preta (possivelmente
uma capa), com uma espécie de cartola preta apoiada sobre a perna. Uma rápida
pesquisa no Google Imagens basta para encontrarmos várias representações
parecidas relacionadas ao guardião Tranca Rua das Almas23
, chamado de “Seu
Tranca” pelos responsáveis pelo programa em questão.
Outra característica curiosa é a “disponibilidade” da entidade. Ao lado do
nome, vemos entre parêntesis que “Seu Tranca” está disponível. Mesmo a cor,
verde, em torno da figura dentro do quadrado, no canto esquerdo da caixa de
conversação é bem representativa para quem, alguma vez, já se utilizou do MSN
Messenger: “verde” indica que a pessoa (no caso, a entidade) está on-line.
É nessa caixa de conversação que o internauta digita sua pergunta. Durante a
transmissão do programa é comum até mesmo ouvir um som característico do MSN,
indicando o recebimento de uma nova mensagem.
Ao escutar todo um episódio24
pelo YouTube (todos vão para o canal da web-
rádio no YouTube após a transmissão ao vivo) pude perceber a predominância de
dúvidas de internautas umbandistas, ainda iniciantes na religião. Dúvidas, em sua
maioria, sobre o fato de frequentar um terreiro há algum tempo e “ainda não ter
incorporado”.
Na segunda hora do programa, portanto das 22h às 23h, a médium incorpora
o Exu Tranca Rua das Almas para que a entidade, que pode ser reconhecida pelo
timbre de sua voz e o modo como fala possa responder às perguntas enviadas por
e-mail ou pelo MSN. Ou seja, a partir de um rápido intervalo que antecede a
incorporação (a segunda hora do programa, portanto), quem responde às dúvidas
dos internautas é a entidade incorporada, e não mais a médium Gladys Camorim.
23
Disponível em
https://www.google.com.br/search?hl=ptBR&tok=QC3HOyS6OLkKc85U5jrhIg&cp=16&gs_id=23&xhr=
t&q=exu+tranca+rua+das+alma&bav=on.2,or.r_gc.r_pw.r_cp.r_qf.&bpcl=3527702&biw=1024&bih=65
3&um=1&ie=UTF8&tbm=isch&source=og&sa=N&tab=wi&ei=4m17UL6eDu_H0AGFuoBY>. Acessado
em 14 de outubro de 2012.
24
Disponível em “Programa Conversando com Seu Tranca: Hábitos das Entidades”,
http://www.youtube.com/watch?v=Fi6oTHx2cFk>. Acessado em 10 de junho de 2012.
55
2.1.1 Ausência e presença de elementos do ritual
Durante a comunicação da entidade com os participantes do programa, é
possível notar alguns aspectos comuns a uma incorporação, como a alteração na
voz. Percebe-se que se trata da mesma médium que apresentou o programa desde
o início, mas seu modo de falar se altera quase que completamente, assemelhando-
se à voz de um homem (embora ainda seja possível identificar o timbre de voz da
própria médium).
Outros participantes da transmissão do programa se encarregam de ler as
perguntas enviadas ao referido Exu, tratando-o por “Seu Tranca” a todo o instante.
Os apresentadores, no entanto, insistem em que as perguntas enviadas digam
respeito à religião de Umbanda, sendo questões menos pessoais e mais
abrangentes. Qualquer um pode participar enviando dúvidas ou comentários,
independentemente de sua religião, o que sugere uma democratização tanto da
religião umbandista, representada naquele momento pelos responsáveis pelo
programa, como da própria internet enquanto ambiente propiciador desse contato
“aberto” promovido pela rede (discorrerei melhor sobre essa ideia de “democracia
virtual” característica mais à frente).
Outra característica comum à incorporação – essa predominantemente
notada na incorporação de Exus e Pombas Giras – são as gargalhadas emitidas por
“Seu Tranca” durante a transmissão do programa. Em um dos episódios, quando
uma internauta que se diz médium questiona se é normal o fato de seu apetite
sexual aumentar após desincorporar sua Pomba Gira, “Seu Tranca” solta uma
gargalhada debochada25
.
Outra característica indicativa de incorporação é quando a entidade
incorporada em Gladys Camorim afirma não saber falar algumas palavras que ela,
seu cavalo (termo que, assim como aparelho geralmente empregado por
kardecistas, é sinônimo de médium de incorporação), saberia dizer. É como se, ali,
25
Aos 1:35:20 do áudio disponível em
http://www.youtube.com/watch?v=Fi6oTHx2cFk&feature=related>. Acessado em 21 de outubro de
2012.
56
enquanto o corpo da médium está ocupado pelo espírito da entidade, ela, Mãe
Gladys, se ausentasse da comunicação, embora ainda detivesse controle sobre a
incorporação.
Por todas essas características, o programa Conversando com Seu Tranca é
pertinente para discutir o conceito de terreiro virtual a ser explorado neste trabalho.
No entanto, também é capaz de incitar uma discussão muito mais ampla sobre a
transposição dos elementos rituais em torno da incorporação na Umbanda para o
espaço virtual, isto é, do off-line para o on-line. Nesse caso, cabem alguns alertas
sobre o trabalho netnográfico:
A netnografia, como transposição virtual das formas de pesquisa face
a face e similares, apresenta vantagens explícitas tais como
consumir menos tempo, ser menos dispendiosa e menos subjetiva,
além de menos invasiva já que pode se comportar como uma janela
ao olhar do pesquisador sobre comportamentos naturais de uma
comunidade durante seu funcionamento, fora de um espaço
fabricado para pesquisa, sem que este interfira diretamente no
processo como participante fisicamente presente (KONIZETS, 2002,
citado por AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line). Por outro
lado, ela perde em termos de gestual e de contato presencial off-
line que podem revelar nuances obnubiladas pelo texto escrito,
emoticons, etc. (...) O pesquisador deve permanecer consciente
de que está observando um recorte comunicacional das
atividades de uma comunidade on-line, e não a comunidade em
si, composta por outros desdobramentos comportamentais além
da comunicação (gestual, apropriações físicas, etc.), sendo esse
um dos principais diferenciais entre o processo etnográfico off-line e
on-line. (AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line).
Tomando como principal exemplo, neste momento, o programa mencionado fica
claro que alguns elementos do espaço off-line da Umbanda são insubstituíveis on-
line e poderiam dar margem a dúvidas (do tipo “como saber se a médium está
vestida de branco?”, entre outras); isso porque após a transmissão ao vivo, apenas
o áudio do programa é disponibilizado.
Por outro lado, características da “vida real” parecem influenciar a
programação da web-rádio. No canal do YouTube encontram-se alguns episódios
cujos temas estão ligados a datas importantes na Umbanda, como os datas
comemorativas dos Orixás. Comemora-se o Dia de Ogum (sincretizado com a
imagem católica de São Jorge) em 23 de abril. O episódio do Programa do Seu
57
Tranca de 23 de abril de 2012 tem como tema, em homenagem à data, “Orixá
Ogum” 26
.
Quando os temas dos episódios do Programa do Seu Tranca estão ligados ao
calendário do cotidiano off-line, ainda que o episódio não tenha sido disponibilizado
no YouTube na mesma data que foi ao ar (dia 23 de abril de 2012 foi uma segunda-
feira, coincidentemente), podemos aproximar essa ideia da maneira como Pierre
Lévy entende as tecnologias: “como produto de uma sociedade e de uma cultura”
(LÉVY, 1997, on-line).
No programa Conversando com Seu Tranca a ausência de alguns elementos
que antecedem as incorporações no terreiro (como descrito no capítulo referente ao
Grupo Umbanda é Luz: pontos cantados em grupo, saudação aos ambientes
sagrados, aos guias, etc.) despertou meu interesse em mencioná-lo neste trabalho.
Mas o mais curioso talvez seja o fato de essa comunicação (entre dois mundos?)
tornar-se possível de alguma forma.
Além disso, naquele momento, ao menos na maioria dos episódios que ouvi
do início ao fim, apenas Mãe Gladys Camorim está incorporada, enquanto a
incorporação na Umbanda pressupõe um conjunto, uma rede que se forma no
espaço físico do terreiro, uma corrente de médiuns, daí a ligação entre o capítulo
anterior e este.
No programa, após a primeira hora, há um intervalo (ao vivo) destinado à
incorporação de “Seu Tranca”, mas não sabemos se todo o procedimento de
abertura de uma gira acontece durante esse intervalo, de cerca de cinco minutos,
embora, a todo instante, os apresentadores deixem claro que “o programa é
transmitido ao vivo do Templo Escola Caboclo Sete Espadas”.
Só a partir dessa menção durante o programa já seria possível identificar dois
espaços: espaço físico (do Templo Escola Caboclo Sete Espadas) e virtual (da
web-rádio e sua transmissão), que parecem estar unidos no momento da
transmissão do programa. Mas é exatamente no intervalo entre a primeira e a
26
Ver http://www.youtube.com/watch?v=uutlmO08li4&feature=relmfu>. Acessado em 14 de outubro
de 2012.
58
segunda hora as práticas ritualísticas não ficam claras, já que não se sabe de que
maneira Tranca Rua das Almas de fato incorporou (se, no terreiro, cantaram os
pontos em sua homenagem; se houve a preparação prévia do espaço sagrado e do
corpo da médium, etc.)
59
2.1.2 A interatividade e a quebra de barreiras
Ao ouvir o Programa do Seu Tranca, tendo eu antes acompanhado com
frequência giras de Umbanda presencialmente é clara a sensação de que a
comunicação entre entidades e consulentes, embora possa se dar por outras vias, é
de alguma forma reduzida.
Explico o porquê: no terreiro, o espaço físico ideal da incorporação, quando
há a consulta, o consulente não tem um tempo pré-determinado para “conversar”
com a entidade, podendo tirar quaisquer dúvidas. No caso do programa promovido
pela web-rádio, além de haver a limitação com relação ao teor das perguntas (não
devem ser pessoais e necessariamente precisam estar relacionadas à Umbanda),
há outra limitação ainda maior: o tempo de duração do programa. Não que as giras
de Umbanda não tenham hora para terminar: elas têm, mas tudo vai depender das
consultas.
Essa delimitação espaço-temporal é análoga ao estudo de Calil Júnior acerca
das comunidades virtuais de Espiritismo no Orkut (entenda-se por Espiritismo o
conjunto de ideias que constituem a doutrina espírita postulada por Allan Kardec,
citada no primeiro capítulo) quando menciona a moderação nessas comunidades.
Ao colocar a lente sobre a moderação presente no mundo espírita
virtual, minha intenção é chamar a atenção para os processos de
demarcação de fronteiras, mesmo em se tratando de um espaço
aparentemente desterritorializado. (CALIL JÚNIOR, 2010, on-line,
grifo meu).
O que o autor considera como “espaço aparentemente desterritorializado” é o
ciberespaço27
. A desterritorialização para a qual ele aponta, permitida no
ciberespaço, é a quebra das fronteiras que se formam ainda no espaço físico,
quando diz que “o discurso de que na internet é possível falar e estudar o espiritismo
sem a censura e o cerceamento característico de muitos centros espíritas é
recorrente” (2010, on-line).
27
Tanto o conceito de ciberespaço como a relação que proponho entre esse conceito e as práticas
relacionadas à Umbanda na internet serão explorados em um capítulo posterior.
60
No entanto, com a moderação das comunidades - recurso comum nas redes
sociais, quando um internauta se responsabiliza por monitorar perfis e comentários
sobre o conteúdo postado – ocorre o fenômeno contrário, a re-territorialização,
entendendo novas fronteiras (a fronteira da moderação, do veto) como
demarcadoras de novos territórios reconfigurados (em uma comunidade moderada,
cria-se um perfil homogêneo que esteja de acordo com a permissividade do
moderador, embora heterogêneo já que é formado por espíritas – neste caso – de
diferentes lugares do mundo).
Seguindo este raciocínio, pode-se dizer que há uma re-territorialização
verificável também no Programa do Seu Tranca a partir da delimitação de assunto,
ou seja, do que o internauta pode ou não perguntar, e também porque as perguntas
enviadas por MSN pelos internautas passam, antes, pela seleção – ainda que “em
tempo real” – do assistente que as está lendo para a entidade, além da delimitação
do tempo de duração do programa.
Para Calil Júnior, no Espiritismo a ideia de desterritorialização já estava
presente muito antes do advento da internet, pois
a transposição das fronteiras pelos espíritas não se restringia aos
limites temporais. No bojo da reencarnação não estavam implícitos
não apenas outros tempos, mas também outros lugares. As
experiências do espírito em reencarnações anteriores abriam as
portas para o estabelecimento de relações com países e regiões que
muitos , na atual existência, não teriam ou terão oportunidade de
visitar (...) Muitos dos espíritas estabeleciam relações estreitas com
lugares nunca vistos ou visitados. Este 'espiritoscape' e as paisagens
e movimentos dele decorrentes eram facilitados a partir dos
processos de desterritorialização e de re-territorialização
engendrados na conformação do mundo espírita vitual que estaria
submetido à virtualidade espírita de compreensão do tempo e do
espaço, pela capacidade inerente ao espírito de juntar presente,
passado e futuro. (CALIL JÚNIOR, 2010, on-line).
Isso significa que, muito antes de a internet existir, os médiuns já tinham
experiências que lhes permitiam o contato com encarnações anteriores, rompendo
as barreiras do tempo e do espaço atuais, por meio dos sonhos (é comum a ideia,
segundo as crenças espíritas, de que os espíritos saem de nosso corpo quando
sonhamos).
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede
Umbanda na Rede

Más contenido relacionado

Similar a Umbanda na Rede

Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare
Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare
Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare Danilo Pestana
 
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...Jean Michel Gallo Soldatelli
 
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM ATRAVÉS ...
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM  ATRAVÉS ...Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM  ATRAVÉS ...
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM ATRAVÉS ...Marcioveras
 
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com f...
Interfaces entre comunicação e religião  -   uma proposta de assessoria com f...Interfaces entre comunicação e religião  -   uma proposta de assessoria com f...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com f...isagsrp
 
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...isagsrp
 
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇO
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇOHOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇO
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇOhusouza
 
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociais
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociaisAvenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociais
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociaisAllan Jayme
 
Relação entre corpo e novas tecnologias
Relação entre corpo e novas tecnologiasRelação entre corpo e novas tecnologias
Relação entre corpo e novas tecnologiasALCIONE
 
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidade
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidadeArticulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidade
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidadeSEJUD
 
13431810 culturadigitaleescola
13431810 culturadigitaleescola13431810 culturadigitaleescola
13431810 culturadigitaleescolantebrusque
 
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...CarolinaLemos
 
Interfaces senciveis a toque
Interfaces senciveis a toqueInterfaces senciveis a toque
Interfaces senciveis a toqueRodrigo Almeida
 
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes populares
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes popularesFeminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes populares
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes popularesCassia Barbosa
 
Apresentação valma fideles
Apresentação   valma fidelesApresentação   valma fideles
Apresentação valma fidelesValma Fideles
 

Similar a Umbanda na Rede (20)

Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare
Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare
Redes sociais locativas: usos e possibilidades do Foursquare
 
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...
Internet e o Empoderamento do Indivíduo: Como as redes sociais afetam as pess...
 
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM ATRAVÉS ...
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM  ATRAVÉS ...Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM  ATRAVÉS ...
Monografia AS REDES SOCIAIS COMO INSTRUMENTO DE ENSINO-APRENDIZAGEM ATRAVÉS ...
 
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com f...
Interfaces entre comunicação e religião  -   uma proposta de assessoria com f...Interfaces entre comunicação e religião  -   uma proposta de assessoria com f...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com f...
 
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...
Interfaces entre comunicação e religião - uma proposta de assessoria com foco...
 
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇO
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇOHOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇO
HOSTILIDADES EM REDE: FIREWALLS REAIS PARA O CIBERESPAÇO
 
unid_1.pdf
unid_1.pdfunid_1.pdf
unid_1.pdf
 
Monografia Silvana Pedagogia 2011
Monografia Silvana Pedagogia 2011Monografia Silvana Pedagogia 2011
Monografia Silvana Pedagogia 2011
 
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociais
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociaisAvenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociais
Avenida Brasil: Um fenômeno nas mídias sociais
 
Relação entre corpo e novas tecnologias
Relação entre corpo e novas tecnologiasRelação entre corpo e novas tecnologias
Relação entre corpo e novas tecnologias
 
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidade
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidadeArticulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidade
Articulação de saberes no currículo escolar. desafios da contemporaneidade
 
TCC - Patrícia Martendal
TCC - Patrícia MartendalTCC - Patrícia Martendal
TCC - Patrícia Martendal
 
Cultura digital
Cultura digitalCultura digital
Cultura digital
 
13431810 culturadigitaleescola
13431810 culturadigitaleescola13431810 culturadigitaleescola
13431810 culturadigitaleescola
 
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...
O KOSHER FONE-O IMPACTO QUE AS MÍDIAS E ESTRATÉGIAS DE MARKETING GERARAM NAS ...
 
Redessociais
RedessociaisRedessociais
Redessociais
 
Interfaces senciveis a toque
Interfaces senciveis a toqueInterfaces senciveis a toque
Interfaces senciveis a toque
 
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes populares
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes popularesFeminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes populares
Feminino velado recepção da telenovela por mãe e filhas das classes populares
 
Apresentação valma fideles
Apresentação   valma fidelesApresentação   valma fideles
Apresentação valma fideles
 
Cp063159
Cp063159Cp063159
Cp063159
 

Último

PLANEJAMENTO anual do 3ANO fundamental 1 MG.pdf
PLANEJAMENTO anual do  3ANO fundamental 1 MG.pdfPLANEJAMENTO anual do  3ANO fundamental 1 MG.pdf
PLANEJAMENTO anual do 3ANO fundamental 1 MG.pdfProfGleide
 
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptx
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptxAs Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptx
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptxAlexandreFrana33
 
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basico
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basicoPRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basico
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basicoSilvaDias3
 
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptx
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptxSlides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptx
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptxLuizHenriquedeAlmeid6
 
Dança Contemporânea na arte da dança primeira parte
Dança Contemporânea na arte da dança primeira parteDança Contemporânea na arte da dança primeira parte
Dança Contemporânea na arte da dança primeira partecoletivoddois
 
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdf
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdfPPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdf
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdfAnaGonalves804156
 
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptx
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptxÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptx
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptxDeyvidBriel
 
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGIS
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGISPrática de interpretação de imagens de satélite no QGIS
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGISVitor Vieira Vasconcelos
 
Geometria 5to Educacion Primaria EDU Ccesa007.pdf
Geometria  5to Educacion Primaria EDU  Ccesa007.pdfGeometria  5to Educacion Primaria EDU  Ccesa007.pdf
Geometria 5to Educacion Primaria EDU Ccesa007.pdfDemetrio Ccesa Rayme
 
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 anoAdelmaTorres2
 
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mental
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mentalADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mental
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mentalSilvana Silva
 
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024Sandra Pratas
 
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptxSlide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptxconcelhovdragons
 
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptxErivaldoLima15
 
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕES
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕESPRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕES
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕESpatriciasofiacunha18
 
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptx
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptxBaladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptx
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptxacaciocarmo1
 
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdf
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdfGuia completo da Previdênci a - Reforma .pdf
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdfEyshilaKelly1
 
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdf
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdfCurrículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdf
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdfIedaGoethe
 
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbv19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbyasminlarissa371
 
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecas
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecasMesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecas
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecasRicardo Diniz campos
 

Último (20)

PLANEJAMENTO anual do 3ANO fundamental 1 MG.pdf
PLANEJAMENTO anual do  3ANO fundamental 1 MG.pdfPLANEJAMENTO anual do  3ANO fundamental 1 MG.pdf
PLANEJAMENTO anual do 3ANO fundamental 1 MG.pdf
 
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptx
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptxAs Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptx
As Viagens Missionária do Apostolo Paulo.pptx
 
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basico
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basicoPRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basico
PRIMEIRO---RCP - DEA - BLS estudos - basico
 
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptx
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptxSlides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptx
Slides Lição 2, Central Gospel, A Volta Do Senhor Jesus , 1Tr24.pptx
 
Dança Contemporânea na arte da dança primeira parte
Dança Contemporânea na arte da dança primeira parteDança Contemporânea na arte da dança primeira parte
Dança Contemporânea na arte da dança primeira parte
 
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdf
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdfPPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdf
PPT _ Módulo 3_Direito Comercial_2023_2024.pdf
 
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptx
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptxÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptx
ÁREA DE FIGURAS PLANAS - DESCRITOR DE MATEMATICA D12 ENSINO MEDIO.pptx
 
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGIS
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGISPrática de interpretação de imagens de satélite no QGIS
Prática de interpretação de imagens de satélite no QGIS
 
Geometria 5to Educacion Primaria EDU Ccesa007.pdf
Geometria  5to Educacion Primaria EDU  Ccesa007.pdfGeometria  5to Educacion Primaria EDU  Ccesa007.pdf
Geometria 5to Educacion Primaria EDU Ccesa007.pdf
 
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano
637743470-Mapa-Mental-Portugue-s-1.pdf 4 ano
 
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mental
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mentalADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mental
ADJETIVO para 8 ano. Ensino funda.mental
 
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024
HORA DO CONTO4_BECRE D. CARLOS I_2023_2024
 
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptxSlide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
Slide de exemplo sobre o Sítio do Pica Pau Amarelo.pptx
 
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx
6°ano Uso de pontuação e acentuação.pptx
 
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕES
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕESPRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕES
PRÉ-MODERNISMO - GUERRA DE CANUDOS E OS SERTÕES
 
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptx
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptxBaladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptx
Baladão sobre Variação Linguistica para o spaece.pptx
 
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdf
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdfGuia completo da Previdênci a - Reforma .pdf
Guia completo da Previdênci a - Reforma .pdf
 
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdf
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdfCurrículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdf
Currículo escolar na perspectiva da educação inclusiva.pdf
 
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbv19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
v19n2s3a25.pdfgcbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbbb
 
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecas
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecasMesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecas
Mesoamérica.Astecas,inca,maias , olmecas
 

Umbanda na Rede

  • 1. F A C U L D A D E C Á S P E R L Í B E R O Jornalismo, Publicidade e Propaganda, Relações Públicas, Radialismo, Especialização e Mestrado em Comunicação Marcela Aparecida de Marcos SARAVIRTUAR Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line São Paulo 2012
  • 2. MARCELA APARECIDA DE MARCOS SARAVIRTUAR Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line Monografia apresentada à Faculdade Cásper Líbero como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de graduação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr. São Paulo 2012
  • 3. MARCOS, Marcela Aparecida de. 126 páginas. Saravirtuar: Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line / Marcela Aparecida de Marcos – São Paulo, 2012. Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr. Trabalho de Conclusão de Curso (Graduação em Jornalismo) Faculdade Cásper Líbero 1. Umbanda. 2. Rede. 3. Novas Tecnologias de Comunicação.
  • 4. MARCELA APARECIDA DE MARCOS SARAVIRTUAR Umbanda em Rede e Rituais On-line e Off-line Monografia apresentada à Faculdade Cásper Líbero como pré-requisito para obtenção de Certificado de Conclusão de Curso de graduação em Jornalismo. Orientador: Prof. Dr. Liráucio Girardi Jr. 5 de dezembro de 2012 Data da Aprovação Profª. Drª. Daniela Osvald Ramos Faculdade Cásper Líbero Profª. Drª Sandra Lucia Goulart Faculdade Cásper Líbero Dulcilei da Conceição Lima
  • 5. Ao povo de Umbanda, que em sua luta diária no exercício da fé me reafirma, a cada amanhecer, o significado da palavra amor.
  • 6. AGRADECIMENTOS Agradeço a meu orientador Liráucio Girardi Júnior, primeiro por me atentar para a importância da realização dessa pesquisa; depois pela paciência e dedicação com que me ajudou a desenvolvê-la. À Faculdade Cásper Líbero e ao Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP), especialmente à professora Maria Goreti Juvêncio Sobrinho, pela oportunidade da iniciação científica, que me permitiu começar a pesquisar o tema que viria nortear também este Trabalho de Conclusão de Curso. Às professoras da Cásper Sandra Lucia Goulart, de Antropologia, por me ensinar a me comportar diante de uma cultura; e Daniela Osvald Ramos, de Novas Tecnologias, pela inspiração acadêmica e pelo incentivo à pesquisa em Novas Tecnologias na Faculdade Cásper Líbero. Ao Babalorixá Marco Antonio dos Santos e seus filhos do Gruel pela disposição constante em me ajudar, em todos os sentidos; e pela oportunidade de pisar pela primeira vez no solo sagrado, três anos antes dessa pesquisa. A Isabelle Vázquez, Giovanna Sacche Salles, Vinícius Carini e Flávio Barolli, estagiários e amigos da NextLeader Soluções Digitais, aos quais ensinei mas, muito mais, aprendi sobre o “mundo digital”. Aos queridos amigos do Estadão, especialmente Murilo Rettozi por me permitir discutir a Umbanda a partir de sua experiência, observá-la e senti-la em sua intensidade; e Iara Silva, que me acompanhou nessas discussões, observações e sensações com o mesmo interesse contínuo. A Andréa Destefani pelas contribuições textuais que, direta ou indiretamente, foram essenciais para este trabalho. A minha família; meus pais Marco Dorival de Marcos e minha mãe Vera Lucia Bueno pela companhia durante algumas idas a campo, meu irmão Caio Vinícius de Marcos pela opinião crítica, minha madrinha Janny Aparecida de Marcos por me entregar à
  • 7. Umbanda em um momento nebuloso de minha vida e minha tia Maria Helena de Marcos Neves por me entregar em todos os momentos, estando eu pronta ou não para essa entrega. À Mãe Conceição Florindo (responsável pelo CEIE – Centro de Estudos Iniciáticos Evolução) que conheci através de uma rede social e que por isso mesmo sintetiza o que exponho nesse trabalho. A Maria Aparecida Linares por me auxiliar enviando reportagens condizentes com a proposta da pesquisa e, principalmente, por intermediar o contato com Pai Ronaldo Linares, que difundiu a Umbanda de várias formas e, portanto, contribuiu para chegarmos até aqui. Faço um agradecimento especial a Betho Lima, que propiciou meu primeiro contato com análises de redes sociais e incentivou meus estudos a respeito, sempre disposto a me ensinar cada vez mais e a criticar de maneira construtiva o que eu produzia. Sua experiência foi determinante para aprimorar meu olhar sobre a comunicação em rede.
  • 8. “... Se o povo te impressionar demais É porque são de lá os teus ancestrais Pode crer no axé dos teus ancestrais Pode crer no axé dos teus ancestrais...” (Rosinha de Valença e Martinho da Vila – Semba dos Ancestrais) “A internet é o tecido de nossas vidas” (Manuel Castells – A Galáxia da Internet)
  • 9. RESUMO Palavras-chave: Rede, Umbanda, Comunicação, ciberespaço, blogosfera, encantamento, magia, sincretismo. Estamos interligados de várias maneiras. Muito antes do advento da internet, as pessoas já se “conectavam”, socialmente, por meio de uma rede de sinais, códigos, linguagens e, principalmente, interesses em comum. A ideia mais simples de rede pode ser um emaranhado de pequenas interligações. Quando uma rede que se forma no espaço físico, off-line passa a se constituir também on-line, esse fenômeno merece atenção sob diversos aspectos. Muito mais se todo esse processo envolver um tema que permite ligações entre vários “mundos”, além do físico, como é o caso da religião. Neste Trabalho de Conclusão de Curso proponho estudar a maneira pela qual as mudanças tecnológicas e a formação de novos ambientes comunicacionais são apropriadas por uma rede de práticas sociais, rituais, religiosas vinculadas à Umbanda. Procuro entender como essas conexões, ao mesmo tempo físicas, espirituais e virtuais são analisadas sob a perspectiva da Rede das redes, a Internet, e como podem alterar de modo quantitativo e qualitativo as possibilidades dessa conectividade.
  • 10. ABSTRACT Keywords: Umbanda, Communication, New Communication Technologies, social networks, cyberspace, blogosphere, syncretism. We are interconnected in so many ways. Long before the advent of the internet, people already did "connect" socially through a network of signs, codes, languages, and especially common interests. The simpler idea of network may be a small tangle of interconnections. When a network that forms in the physical space, offline, is also to be online, this phenomenon deserves attention in several respects. Much more if this whole process involves a theme that allows connections between various "worlds" beyond the physical, as in the case of religion. In this Work Completion of Course I purpose to study the way in which technological changes and the creation of new communication environments are suitable for a network of social practices, rituals, religious linked to Umbanda. I seek to understand how these connections, while physical, spiritual and virtual are analyzed from the perspective of the Network of networks, the Internet, and how they can change quantitatively and qualitatively the possibilities of connectivity.
  • 11. SUMÁRIO SUMÁRIO..................................................................................................................11 INTRODUÇÃO ..........................................................................................................12 1. A UMBANDA.........................................................................................................15 1.1 Surgimento da Umbanda: conceituação, termo e religião................................17 1.2 Umbanda em termos........................................................................................25 1.3 Gruel – Grupo Umbanda é Luz .......................................................................29 1.3.1 Mediunidade e a figura do dirigente.........................................................29 1.3.2 “Umbandas” e o referencial teórico..........................................................33 1.3.3 As giras no Gruel .....................................................................................35 1.3.4 Os trabalhos e a ideia de rede.................................................................45 2. DO RITUAL AO VIRTUAL.....................................................................................52 2.1 “Programa do Seu Tranca”: um estudo de caso..................................................52 2.1.1 Ausência e presença de elementos do ritual ...........................................55 2.1.2 A interatividade e a quebra de barreiras ..................................................59 2.2 A “Rede das redes” e o ciberespaço................................................................67 2.2.1 As redes sociais e os vínculos on-line e off-line.......................................69 2.2.2 Uma nova esfera pública .........................................................................74 2.3 Capital na Umbanda: dentro e fora das redes .................................................80 3. INTERESSE PELA UMBANDA NA REDE ............................................................85 3.1. A Umbanda e a modernidade líquida..............................................................85 3.2 A Umbanda e o reencantamento do mundo ....................................................91 4. MANIFESTAÇÕES IDENTIFICADAS COM A UMBANDA: REVISÃO DE CONCEITOS.............................................................................................................95 4.1 Propósito de Exu na Umbanda ........................................................................96
  • 12. 4.2 Reais contribuições virtuais: formação de redes de amizade e compartilhamento de conteúdo............................................................................105 4.3 O reencantamento do mundo nos terreiros virtuais .......................................111 CONSIDERAÇÕES FINAIS ....................................................................................116 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS........................................................................118
  • 13. 12 INTRODUÇÃO Tendo em vista meu interesse pela pesquisa acadêmica, no final de 2010, estava às voltas com o meu primeiro projeto de iniciação científica junto ao Centro Interdisciplinar de Pesquisa (CIP) da Faculdade Cásper Líbero. Foi quando o professor Liráucio Girardi Jr., orientador dessa monografia e da pesquisa inicial, atentou para o fato de que as diversas possibilidades de estudo das redes poderia ser integrado a outro objeto que atraía muito a minha atenção naquele momento: a Umbanda. Meu interesse pela religião de Umbanda se deu de maneira crescente desde a infância, ganhando até este momento certa projeção por razões que não cabem serem desenvolvidas aqui, mas que me levaram a querer me aproximar de um mundo que eu, inicialmente, considerava mágico - com seus rituais, suas muitas origens, sua cosmogonia... Enfim, o universo sincrético no qual uma religião nascida em solo brasileiro estava inserida. Essa tentativa de aproximação se deu inicialmente on-line, quando eu me conectava, em um sentido mais amplo, a pessoas que eu não conhecia pessoalmente, mas que integravam minha rede social (virtual). Passei a observar as várias ligações que se formavam entre os nós constituintes dessa rede – minha e de tantas outras pessoas, já inseridas ou não no contexto religioso da Umbanda. Passei também a acompanhar blogs cujo conteúdo era produzido por umbandistas (sendo eles tanto os donos dos blogs como seus seguidores) e a segui-los no Twitter e em outras redes sociais. Passei, finalmente, a observar sua linguagem, a maneira como descreviam os rituais que eu pouco conhecia pessoalmente – já que não basta frequentar um terreiro, por exemplo, para conhecer e saber descrever cada detalhe daquilo acontece dentro de uma gira ou “sessão” religiosa de Umbanda. Dessa forma, quis conhecer melhor esses dois ambientes comunicacionais e o modo pelo qual poderiam estabelecer múltiplas interconexões. A atenção deveria estar voltada tanto para as práticas presenciais vistas no(s) terreiro(s), quanto para a
  • 14. 13 relação que as pessoas que os frequentavam eram capazes de estabelecer de variadas formas no mundo virtual. A monografia de iniciação científica (Saravirtuar: A Contribuição das Redes Sociais para a Umbanda) foi a etapa fundamental da realização desta monografia de conclusão de curso de graduação. A partir dessa experiência consegui, de certa forma, “iniciar” minha entrada nesses dois mundos relacionados à Umbanda: o virtual e o físico-espiritual. Quando falo em iniciação, em um primeiro momento, não estou aludindo ao sentido ritualístico do termo, mas ao modo pelo qual procurei dar meus primeiros passos no universo de crenças, signos, práticas, discursos etc. que caracterizam essa religião. Para desenvolver a monografia de graduação, tive como ponto de partida essa pesquisa anterior, mas além de me aprofundar nas principais questões tratadas naquele projeto, acrescentei a ela observações de campo em um terreiro específico, o Gruel (Grupo Umbanda é Luz). Essa monografia, portanto, manteve algumas análises já iniciadas na iniciação científica, mas procurou aprofundá-las, atualizá-las e expandi-las. A constatação da existência de diversos tipos de redes virtuais em torno da Umbanda tornou-se fundamental para o presente trabalho. Muitas das referências sobre Umbanda foram encontradas na própria internet, seja nos textos postados em blogs e sites (escritos por umbandistas que compartilhavam experiências vividas nos terreiros); seja nas páginas sobre Umbanda no Facebook ou nos vídeos de giras no YouTube etc. Porém, antes de se falar da religião umbandista na internet e assim verificar como foram capazes de atrair comentários de umbandistas e não umbandistas interessados no assunto procurei mostrar a formação off-line dessa rede religiosa, principalmente durante as sessões realizadas nos terreiros. A monografia foi dividida em quatro principais capítulos. No primeiro, “A Umbanda”, procurei fazer um panorama geral sobre a religião, desde suas várias
  • 15. 14 origens (passando também pelas origens do vocábulo Umbanda) como sua fundação no Brasil em 1908. Neste capítulo também falo sobre termos que hoje ainda se confundem com o ritual umbandista, como a ideia do “baixo espiritismo”, a Quimbanda em oposição à Umbanda, “macumba” e “esquerda”. É nele também que estão as observações de campo do terreiro Gruel. No segundo capítulo, “Do Real ao Virtual”, o grande exemplo que me permitiu relacionar a transposição dos rituais da Umbanda entre os espaços off-line e on-line foi a análise de um programa (“Programa do Seu Tranca”) promovido por uma web- rádio (“Toques de Aruanda”), transmitido ao vivo pela internet. Nele, a entidade (Exu) Tranca Rua das Almas, conhecida entre umbandistas e não umbandistas incorpora em uma médium para responder a dúvidas dos internautas. Neste capítulo exploro alguns conceitos básicos referentes ao estudo da cibercultura e do ciberespaço. No terceiro capítulo, “Interesse pela Umbanda na Rede”, investigo os possíveis motivos pelos quais a Umbanda tem gerado tanto interesse em um mundo moderno ou pós-moderno que se desloca entre uma modernidade líquida e um “reencantamento” do mundo. No quarto e último capítulo, trabalho com a noção de terreiro virtual para falar de manifestações identificadas com a Umbanda na rede e, por meio delas, revisar conceitos anteriormente trabalhados. O que considero “identificável” com a Umbanda, nesse caso, não se trata, necessariamente, dos aspectos ritualísticos presentes nos terreiros, mas a certas imagens ou práticas que são associadas, de alguma forma, a essa prática religiosa. Um exemplo disso é o ato de acender velas, importante tanto para a Umbanda quanto para a Igreja Católica; uma ação que experimenta também diversos tipos de “tradução” virtual, ou virtualmente possível.
  • 16. 15 1. A UMBANDA Refletiu a luz divina Com todo seu esplendor É do reino de Oxalá Onde há paz e amor Luz que refletiu na terra Luz que refletiu no mar Luz que veio de Aruanda Para tudo iluminar A Umbanda é paz e amor É um mundo cheio de luz É a força que nos dá vida E à grandeza nos conduz Avante, filhos de fé Como a nossa lei não há Levando ao mundo inteiro A bandeira de Oxalá Os versos acima são entoados por umbandistas como o hino que sintetiza a religião que escolheram seguir. A Umbanda é, seguindo os versos, “luz divina”, que “é do reino de Oxalá”, que “refletiu na terra”, que “refletiu no mar”, que “veio de Aruanda para tudo iluminar”, que é “paz e amor”, “mundo cheio de luz”, “força que nos dá vida e à grandeza nos conduz”, que tem uma “lei” e uma “bandeira”. Mas, afinal, o que é a Umbanda? O que a difere de tantas outras religiões e o que a torna, de fato, uma religião? Como surgiu a religião sobre a qual ainda há tanta confusão, entre adeptos e não adeptos?
  • 17. 16 Antes de abordar a discussão sobre Umbanda em rede, ideia norteadora deste trabalho, é importante contextualizar a origem dessa religião capaz de causar uma profunda atração em alguns e tamanha aversão em outros.
  • 18. 17 1.1 Surgimento da Umbanda: conceituação, termo e religião O ano de 1908 é reconhecido como o ano no qual a religião teria sido fundada, no Rio de Janeiro, por uma entidade (Caboclo) incorporada no médium Zélio Fernandino de Moraes. Embora ainda se entenda a Umbanda como integrante uma classificação que abrange outras manifestações religiosas, como “afro- brasileiras”, Zélio de Moraes, considerado o anunciador da Umbanda, nessa anunciação – durante a incorporação que descreverei adiante – caracteriza a Umbanda como uma religião fundada em solo brasileiro. O termo “afro”, por sua vez, relaciona-se com algumas de suas matrizes: Salientamos que ela [a Umbanda] tem na sua base de formação os cultos afros, os cultos nativos, a doutrina espírita kardecista, a religião católica e um pouco da religião oriental (Budismo e Hinduísmo) e também da magia. (SARACENI, 2001, p.12) Ainda que haja muita confusão entre Umbanda e Espiritismo, estamos diante de duas coisas diferentes, que suscitam confusão entre os próprios umbandistas. Isso porque embora o umbandista possa se identificar como espírita, o ritual da religião de Umbanda não pode ser definido como ritual espírita, pois Allan Kardec, com clareza, afirma em sua codificação que Espiritismo não é religião, não tem ritual e não aceita a prática de magia. Kardec é cientista e pesquisador, um homem do mundo moderno-positivista, para quem a magia representava algo atrasado com relação à religião, e esta atrasada com relação à ciência. (CUMINO, 2011, p.42) Allan Kardec é o pseudônimo do professor e escritor francês Hippolyte Léon Denizard Rivail. É comum ouvirmos e lermos o termo kardecistas para designar os seguidores da doutrina postulada por Kardec. E em que consiste, então, essa doutrina? Seus princípios, de acordo com aquele que os formulou, são: sobre a imortalidade da alma, a natureza dos Espíritos e suas relações com os homens, as leis morais, a vida presente, a vida futura e o porvir da Humanidade - segundo os ensinos dados por Espíritos superiores com o concurso de diversos médiuns - recebidos e coordenados. (KARDEC, 1957).
  • 19. 18 Uma das obras mais importantes de Kardec é O Livro dos Espíritos1 . Na introdução o autor situa as primeiras referências à comunicação com espíritos da seguinte forma: O primeiro fato observado foi o da movimentação de objetos diversos. Designaremos vulgarmente pelo nome de mesas girantes ou dança das mesas. Este fenômeno, que parece ter sido notado primeiramente na América, ou melhor, que se repetiu nesse país, porquanto a História prova que ele remonta à mais alta antigüidade, se produziu rodeado de circunstâncias estranhas, tais como ruídos insólitos, pancadas sem nenhuma causa ostensiva. Em seguida, propagou-se rapidamente pela Europa e pelas partes do mundo. A princípio quase que só encontrou incredulidade, porém, ao cabo de pouco tempo, a multiplicidade das experiências não mais permitiu lhe pusessem em dúvida a realidade. (KARDEC, 1957, grifos do autor) A partir do fenômeno das mesas girantes descrito por Kardec, podemos entender outra denominação que ainda é muito comum: mesa branca. Não raro encontramos o termo empregado como sinônimo da comunicação de médiuns com espíritos de desencarnados (pessoas que já morreram) ao redor de uma mesa. Kardec fala em “espíritos superiores” como os responsáveis por “ensinar” os princípios da doutrina espírita. A ideia de superioridade e seu oposto, a inferioridade dos espíritos está presente nas primeiras pesquisas de antropólogos e sociólogos anteriores à própria afirmação da Umbanda como religião. Trata-se da denominação de “baixo espiritismo”, que se propaga junto a outras oposições semânticas como “verdadeiro” e “falso” espiritismo. A partir de que bases e assumindo que formas uma distinção entre "falso" e "verdadeiro" pôde ser formulada pelos espíritas da Federação Espírita Brasileira? Antes de tudo, é preciso lembrar que uma distinção dessa natureza pode ser depreendida de algumas colocações do próprio Allan Kardec (1978), tido como o principal codificador da doutrina espírita. O Livro dos Médiuns dedica um capítulo inteiro a formas espúrias em que se envolve o "espiritismo", divididas em dois grandes grupos: as "fraudes" e as "charlatanices", as primeiras relacionadas aos enganadores e as outras aos que exploram pecuniariamente o exercício da "mediunidade". Como se percebe, os espíritas eram os primeiros a reconhecer que em torno 1 KARDEC, A. Le Livre des Esprits. Reprodução fotomecânica da 1 a ed. francesa. 1 a ed, bilíngüe, trad. e ed. Canuto Abreu. São Paulo, Companhia Editora Ismael, 1957.
  • 20. 19 da "mediunidade", efetiva ou simulada, desenvolviam-se apropriações irregulares e reprováveis. (GIUMBELLI, 2003, on-line, grifos do autor) Práticas mediúnicas identificáveis com cultos de matriz africana não demoraram a ser relegadas à categoria do “baixo espiritismo” e à outra denominação equivocada, a “macumba”. Magnani traz duas importantes referências à macumba, baseado em Roger Bastide e Arthur Ramos, dois antropólogos que se dedicaram ao estudo dos cultos africanos: No Rio de Janeiro, até o término da primeira década do século XIX, conservou-se a diferenciação por nações: as de origem sudanesa, principalmente nagôs, possuíam seus candomblés; as bantos, a cabula. As religiões dos bantos eram mais permeáveis à influência de outros cultos: dos candomblés nagôs, a cabula banto assimila a estrutura do culto e alguns orixás; em contato com outras crenças e ritos adota os caboclos catimbozeiros, práticas mágicas européias e muçulmanas, os santos católicos e, finalmente, sofre o influxo do espiritismo, que fora introduzido no Brasil por volta da segunda metade do século XIX. Está surgindo a macumba, descrita por Arthur Ramos como o ‘sincretismo jeje, nagô, muçulmano, banto, caboclo, espírita e católico’ e que para Bastide era, a princípio, a introdução de certos orixás e ritos das nações iorubás na cabula das nações bantos. ‘Bastará que a esses dois elementos se juntem os espíritos dos caboclos, os santos do catolicismo, enfim, os desencarnados do espiritismo, para que a macumba, tal qual existe hoje em dia, nasça realmente’. (MAGNANI, 1991, p. 21, grifos meus). A macumba, no período descrito (segunda metade do século XIX) era uma designação empregada para abranger uma série de cultos sincréticos que foram relacionados à feitiçaria. Práticas que hoje fazem parte do cosmo religioso do Candomblé, por exemplo, também eram entendidas como “macumba”, talvez por serem demasiado estranhas à cultura católica dominante. Mas basta recorrermos a expressões populares que ainda são ditas para sugerir que pouca coisa tenha mudado quando se emprega a palavra “macumba”. Isso porque, ainda hoje, o vocábulo é relacionado a outros, como despacho e oferenda, e carrega um forte apelo negativo (basta lembrar a expressão popular “chuta que é macumba!”). Os cultos de matriz africana, inicialmente restritos a negros escravizados e, portanto, proibidos pela Igreja Católica tiveram, em razão dessa resistência, de se
  • 21. 20 disfarçar, fato que gerou correspondências entre os Orixás e os santos católicos; correspondência, essa, que até hoje permanecem, a exemplo da identificação de São Jorge com o Orixá Ogum e até mesmo com o Orixá Oxóssi. Ou, ainda, a imagem católica de Jesus Cristo em alguns Congás de terreiros, em representação a Oxalá. Nessa mistura de elementos ritualísticos africanos com elementos cristãos e também de rituais indígenas é que a Umbanda estava surgindo. Renato Ortiz fala da Umbanda como o “embranquecimento” de algumas práticas do Candomblé, deixando para este último a preservação da herança africana, enquanto na Umbanda os cultos aos Orixás são misturados a outros cultos. Segundo o autor, “a Umbanda aparece como uma solução original; ela vem tecer o liame da continuidade entre as práticas mágicas populares à dominância negra e a ideologia espírita. Sua originalidade consiste em reinterpretar os valores tradicionais, segundo o novo código fornecido pela sociedade urbana e industrial. O que caracteriza a religião é o fato de ela ser o produto das transformações socioeconômicas que ocorrem em determinado momento da história brasileira” (ORTIZ, 1991, p. 48). Ele insiste na contextualização social do surgimento da Umbanda, que “nasce justamente no momento em que a sociedade de classes se consolida”. Um traço marcante para Ortiz é a forte presença da classe média na formação da religião umbandista, decisiva para tornar a Umbanda “o resultado de um movimento dialético de embranquecimento e empretecimento”. Assim, para o autor, como todo sistema simbólico, a Umbanda tende a legitimar a objetivação dos elementos de ordem sagrada que se encaixam dentro da lógica do seu universo religioso. Esse esforço de legitimação, de explicação do mundo, é necessário, pois não se deve esquecer que a religião umbandista é um novo valor que emerge no seio da sociedade brasileira. Isso faz com que a religião se aproprie dos valores dominantes da sociedade global como elementos legitimadores, num sentido que muitas vezes se assemelha àquilo que os antropólogos chamaram de ‘fundação do mundo’ quando estudaram os mitos das sociedades primitivas. O processo legitimador situa-se assim dentro de uma perspectiva histórica; ele determina o momento em que a religião busca um status, em conformidade com o conjunto de valores da sociedade brasileira. Encontramo-nos portanto diante de um processo de integração, mas de uma integração legitimada pela sociedade; daí a recusa e o horror das práticas negras e dos preconceitos de classe. A análise do discurso umbandista mostra como se desenvolve o trabalho da intelligentzia religiosa na busca de um status que corresponda aos
  • 22. 21 valores dominantes da sociedade global. Ela ensina ainda de que forma estes valores dominantes agem como elementos e legitimação de uma religião emergente. (ORTIZ, 1991, p. 163, grifos do autor). Já Roger Bastide enxerga na Umbanda “a única forma possível de adaptação religiosa da comunidade negra à urbanização e à industrialização”. (1971, p. 302). Se dentro do cosmo religioso da Umbanda há várias origens, por vezes imprecisas essa imprecisão também se dá na medida em que teóricos tentam buscar a origem da palavra “Umbanda”. No documento referente ao Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda2 , publicado em 1942, Diamantino Coelho Fernandes apresentou a tese O Espiritismo de Umbanda na Evolução dos Povos, expondo uma origem sânscrita para a palavra: O vocábulo UMBANDA é oriundo do sânscrito, a mais antiga e polida de todas as línguas da terra, a raiz mestra, por assim dizer, das demais línguas existentes no mundo. Sua etimologia provém de AUM-BANDHÃ, (om-bandá) em sânscrito, ou seja, o limite no ilimitado. O prefixo AUM tem uma alta significação metafísica, sendo considerado palavra sagrada por todos os mestres orientalistas, pois que representa o emblema da Trindade na Unidade, pronunciado ao iniciar-se qualquer ação de ordem espiritual, empresta à mesma a significação de o ser em nome de Deus. [...] BANDHÃ, (Banda) significa movimento constante ou força centrípeta emanante do Criador, a envolver e atrair a criatura para a perfectibilidade. Uma outra interpretação igualmente hindu, nos descreve BANDHÃ (Banda) como significando um lado do conhecimento, ou um dos templos iniciáticos do espírito humano. O escritor umbandista Alexandre Cumino, autor do livro História da Umbanda, traz um levantamento teórico de outras origens do vocábulo, como a origem da língua Quimbundo (de dialetos Bantos falados em Angola, Congo, Guiné e outros) sugerida por Cavalcanti Bandera; origem tupi mencionada em entrevistas feitas por João de Freitas; origem sânscrita também sustentada por Ramatis, dentre muitas outras origens (CUMINO, 2011, p. 91-103). 2 Primeiro Congresso Brasileiro do Espiritismo de Umbanda, Rio de Janeiro, 19 a 26 de outubro de 1941./Jornal do Commercio, RJ, 1942.
  • 23. 22 Há também a herança oriental, que fica clara nas palavras de Baptista de Oliveira na introdução do mesmo documento referente ao Primeiro Congresso de Umbanda: Umbanda veio da África, não há dúvida, mas da África Oriental, ou seja do Egito, da terra milenária dos Faraós, do Vale dos Reis e das Cidades sepultadas na areia do deserto ou na lama do Nilo. (PRIMEIRO CONGRESSO BRASILEIRO DO ESPIRITISMO DE UMBANDA, 1942). Mas se é difícil precisar de onde exatamente “veio” a Umbanda, não é tão difícil falar de sua fundação, ou seja, do estabelecimento da Umbanda como religião, que partiu de uma incumbência que teria recebido o médium brasileiro Zélio Fernandino de Moraes. Nascido em São Gonçalo, no Rio de Janeiro, em 1891, ele teria sido acometido por uma paralisia inexplicável, incompreendida pelos médicos e por padres. Fatos estranhos começaram a acontecer quando ele tinha dezessete anos. “Ora ele assumia a estranha postura de um velho, falando coisas aparentemente desconexas, como se fosse outra pessoa e que havia vivido em outra época, e em outras ocasiões, sua forma física lembrava um felino lépido e desembaraçado que parecia conhecer todos os segredos da natureza, os animais e as plantas”.3 Zélio de Moraes foi submetido a três exorcismos, realizados por um tio dele, que era padre (já que a família acreditava estar diante de uma possessão demoníaca), mas não surtiram efeito. As manifestações prosseguiram até que Zélio foi encaminhado à recém-fundada Federação Kardecista de Niterói. A Federação era presidida pelo Sr. José de Souza, médium clarividente (detentor da capacidade de “ver” espíritos), que começou um diálogo com o espírito que se manifestava no corpo do jovem assim que o viu. O espírito, então, contou ao médium que tinha sido padre em uma de suas encarnações, mas foi acusado de bruxaria e sacrificado na fogueira da Inquisição por ter previsto um terremoto que destruiu a capital portuguesa de Lisboa em 1755. Mas em sua última existência física, segundo ele, Deus lhe havia concedido “o 3 Texto de Ronaldo Antônio Linares, presidente da Federação Umbandista do Grande ABC, publicado no Jornal U&C, nº 92, em dezembro de 1995; referente a uma entrevista de Linares com o Caboclo das Sete Encruzilhadas, incorporado em Zélio de Moraes.
  • 24. 23 privilégio de nascer como um caboclo brasileiro” (entenda-se por caboclo uma entidade fundamental na Umbanda, representante dos espíritos de indígenas). Ele se identificou com o nome de Caboclo das Sete Encruzilhadas, e justificou a escolha de seu nome dizendo que para ele não existiriam “caminhos fechados”. O Caboclo afirmou ainda ter uma importante missão: “trazer a Umbanda, uma religião que harmonizará as famílias e há de perdurar até o final dos séculos”.4 A Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade foi a primeira a ser fundada, no dia seguinte à primeira manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Outras sete tendas foram criadas entre 1918 e 1935 e, mais tarde, outras dezenas de tendas foram criadas com o intuito de disseminar a Umbanda em todo o Brasil. As práticas identificadas com a feitiçaria, que já existiam antes da fundação da Umbanda por Zélio de Moraes, também foram mencionadas pela fala do Caboclo das Sete Encruzilhadas, como podemos ver no texto publicado em 26 de agosto de 2008 na página na internet da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade5 : No dia seguinte, na rua Floriano Peixoto, 30, na casa de Zélio de Moraes em São Gonçalo, próximo das vinte horas, estavam presentes membros da federação espírita, parentes, amigos, vizinhos e uma multidão de desconhecidos e curiosos, para verificar os acontecimentos. Pontualmente às vinte horas, o Caboclo das Sete Encruzilhadas incorporou e iniciou o novo culto, proferindo as seguintes palavras: - Aqui inicia um novo culto, em que os espíritos de pretos velhos africanos, que haviam sido escravos e que desencarnados não encontram campo de ação nos remanescentes das seitas negras, já deturpadas e dirigidas quase que exclusivamente para os trabalhos de feitiçaria e os índios nativos da nossa terra, poderão trabalhar em benefícios dos seus irmãos encarnados, qualquer que seja a cor, raça, credo ou posição social. Perguntaram, os presentes qual seria o nome do novo culto. - O novo culto se chamará Umbanda. Ainda perguntam: - O que quer dizer Umbanda? O espírito responde: - A manifestação do espírito para a caridade. 4 Trechos extraídos do texto publicado no site da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, disponível em http://www.tendaespiritanspiedade.com.br/>. Acessado em 21 de outubro de 2012. 5 Site da Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade. Disponível em: http://www.tendaespiritanspiedade.com.br/index.php?option=com_content&amp;view=article&amp;id= 62&amp;Itemid=161>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
  • 25. 24 Ainda lhe perguntaram qual seria a base de seu novo culto e ele respondeu: - A prática da caridade, no sentido do amor fraterno, será a característica principal deste culto, que tem base no Evangelho de Jesus, e Cristo como mestre supremo. Após estabelecer as normas que seriam utilizadas no culto e com sessões diárias das 20 às 22 horas, determinou que os participantes devessem estar vestidos de branco e o atendimento seria gratuito. Ainda falou como se chamaria o novo grupo: - O grupo irá se chamar Tenda Espírita Nossa Senhora da Piedade, pois, assim como Maria acolhe em seus braços o filho, a Tenda acolherá aos que a ela recorrerem nas horas de aflição. Ainda respondeu perguntas de sacerdotes que ali se encontravam em latim e alemão. O Caboclo foi atender um paralítico e um cego, dizendo: - Avistem todos: Se tem fé levanta, que quando chegardes a mim estarás curado. Assim iniciou as primeiras curas na nova religião. Após trabalhar fazendo previsões, passes e doutrinas, informou que deviera se retirar, pois outra entidade precisava se manifestar. Após a “subida” do Caboclo, incorporou uma entidade que parecia um senhor velho, saindo da mesa se dirigiu a um canto da sala onde permaneceu agachado. Sendo questionado do porquê não se sentar na mesa respondeu: - Nego num senta não meu sinhô, nego fica aqui mesmo. Isso é coisa de sinhô branco e nego deve arrespeitá. Após insistência ainda completou: - Num carece preocupa não. Nego fica no toco que é lugar di nego. E assim continuou dizendo outras coisas, mostrando a simplicidade, humildade e mansidão daquele que, trazendo o estereótipo do preto- velho, identificou-se como Pai Antônio. Logo cativou a todos com seu jeito. Perguntaram-lhe se ele aceitaria algum agrado, ao que respondeu: - Minha cachimba, nego qué o pito que deixou no toco. Manda mureque busca. Todos ficaram perplexos, pois sem saber, estavam presenciando a solicitação do primeiro elemento a ser utilizado como material de trabalho dentro da Umbanda. Na semana seguinte, sobraram cachimbos, visto que todos os que presenciaram as palavras de Pai Antônio trouxeram o elemento por ele solicitado, escolhendo ele o mais simples de todos. Assim, o cachimbo foi instituído na linha de pretos - velhos. No dia seguinte, formou-se verdadeira romaria em frente à casa da família Moraes. Cegos, paralíticos e médiuns, que eram tidos como loucos, foram curados. (2008, on-line, grifos meus)
  • 26. 25 1.2 Umbanda em termos Os umbandistas têm como princípio norteador de suas práticas a caridade, como pudemos ver nas palavras do Caboclo das Sete Encruzilhadas. Os terreiros de Umbanda recebem pessoas de todas as classes sociais para exercer a caridade, que se dá por várias formas, seja pela comunicação com as entidades incorporadas nos médiuns; por passes dirigidos por tais entidades; e até mesmo por trabalhos ou descarregos, como veremos em um capítulo posterior. As entidades na Umbanda, segundo Magnani, são espíritos de mortos que descem do astral onde habitam para o planeta Terra – considerado lugar de expiação – onde, através da ajuda dos mortais, ascendem em seu processo evolutivo em busca da perfeição. (MAGNANI, 1991, p. 30) Se os termos “macumba” e “baixo espiritismo” já eram explorados antes mesmo da instituição da Umbanda como religião, depois de sua formação esbarramos em outro termo: Quimbanda. Considerada uma ramificação da Umbanda para alguns autores e o oposto da religião umbandista para outros, o fato é que a Quimbanda também carrega elementos da magia. São sempre os escritores umbandistas que falam da Quimbanda em termos de unidade que se opõe à Umbanda. Retendo-se essa idéia de ‘sistematização num conjunto coerente’, pode-se analisar a oposição Umbanda/Quimbanda numa perspectiva durkheimiana que opõe a religião à magia. Muito embora esta distinção seja difícil de ser estabelecida, pode-se dizer que a magia tende para um agregado de ritos pouco sistematizados dentro de uma totalidade, tendo por principal característica a eficácia; neste sentido as práticas mágicas são multiplicadas ao infinito. (ORTIZ, 1991, p. 145, grifo do autor). Agrupou-se à Quimbanda entidades consideradas também como “de esquerda”, a exemplo de Exus e sua equivalência feminina, as Pombas Giras (as entidades consideradas “de direita” são Caboclos, Pretos Velhos, etc.). Sobre a Quimbanda, a visão antropológica de Roger Bastide a considerou “uma forma de espiritismo às avessas”:
  • 27. 26 O macumbeiro tornou-se sinônimo de feiticeiro, e de feiticeiro temível ou malvado. Umbanda, em vez de mostrar que a macumba é uma religião, aceita como um dado real essa concepção popular errônea, a Quimbanda, identificada com a macumba, se torna uma forma de espiritismo às avessas, uma magia negra que trabalha com os selvagens desencarnados, as almas penadas e os esqueletos. Sob a presidência das duas mais temíveis divindades negras, Exu, deus das encruzilhadas perdidas, e Omulu, deus das varíolas (BASTIDE, 1971, p. 447). Mencionar a concepção de Quimbanda analisada por Roger Bastide, no entanto, não é suficiente quando se aborda a controversa figura de Exu, por exemplo. Isso porque, ao mesmo tempo em que Exu torna-se sinônimo de entidade “temível”, conforme cita Bastide, Exu tem importância crucial no ritual umbandista, como mostrarei adiante. Uma ressalva necessária quando se fala em Exu é lembrar que também se fala em Exu como sendo um Orixá no Candomblé, enquanto na Umbanda Exu é um guardião. A entidade-Exu na Umbanda, segundo uma visão partilhada por muitos umbandistas, está “em evolução” (ou “ascensão”). Apesar disso, Exu aparece como guardião de mistérios, capaz de “praticar o bem” assim como as entidades que se considera de direita. Embora exista no candomblé uma tênue separação entre bem e mal, pode-se afirmar que ela se refere exclusivamente aos ritos, não se aplicando porém ao cosmo religioso propriamente dito. Já na Umbanda, o universo sagrado se transforma, tornando-se os orixás guardiões das legiões e falanges espirituais, mensageiros da luz. (ORTIZ, 1991, p. 131) As “legiões” e “falanges” espirituais mencionadas por Ortiz advêm de um agrupamento, uma classificação que reúne uma série de entidades que se manifestam na Umbanda, cada uma chefiada ou “comandada” por uma entidade ou um Orixá específico. Nesse agrupamento encontra-se a polêmica denominação das chamadas sete linhas de Umbanda. Polêmica, pois, assim como a origem do vocábulo “Umbanda”, muitos autores que se propuseram a estudar a religião umbandista trouxeram sua própria visão sobre o que e quais seriam essas “sete linhas”. Leal de Souza, o primeiro autor umbandista, escreve em 1933 o livro Espiritismo, Magia e as
  • 28. 27 Sete Linhas de Umbanda, ou seja, já na primeira obra sobre Umbanda encontramos uma referência clara a essas sete linhas, que inspirariam vários outros autores em obras posteriores. Uma dessas referências foi explorada por Ronaldo Linares, presidente da Federação Umbandista do Grande ABC (mantenedora do Santuário Nacional da Umbanda)6 : 1. “A primeira linha é caracterizada pela cor amarelo ouro bem clarinho e que seria a cor da Tenda de Santa Bárbara. O Orixá correspondente é INHAÇÃ…”. 2. “A segunda linha é caracterizada pela cor rosa, correspondente a tenda Cosme e Damião… O Orixá correspondente é IBEJI…”. 3. “A terceira linha é caracterizada pela cor azul. Com vários Santos Católicos sincretizados com ela, a saber: Nossa Senhora da Glória, Nossa Senhora da Conceição, Nossa Senhora dos Navegantes e Nossa Senhora da Guia. O Orixá que corresponde é IEMANJÁ…”. 4. “A quarta linha é caracterizada pela cor verde, representando a Tenda São Sebastião… O Orixá correspondente é OXOSSE…”. 5. “A quinta linha é caracterizada pela cor vermelho, representando a Tenda São Jorge. O orixá correspondente é OGUM.” 6. “A sexta linha é caracterizada pela cor marrom, representando a Tenda São Gerônimo. Seu Orixá correspondente é XANGÔ…”. 7. “A sétima linha é caracterizada pela cor violeta ou roxo, corresponde a Tenda de San’Ana… O Orixá correspondente é NANÃ…” 8. “Finalmente temos a cor negra, corresponde a Tenda de São Lázaro. É a ausência da cor e da luz da vida. Zélio de Moraes explica que as cores branco e preto não fazem parte das sete linhas, pois o branco que é a presença da luz, existe em todas elas e o negro, que é justamente a ausência da luz, está justamente na ausência delas… O Santo Católico São Lázaro é sincretizado com o Orixá ABALUAÊ ou OMULU… Este Orixá é conhecido ainda pelos nomes de XAPANÃ, ATOTÕ, e BABALÚ.” 6 Extraídas por Alexandre Cumino do livro Iniciação à Umbanda, de Diamantino Fernandes Trindade.
  • 29. 28 9. “O Orixá maior da Umbanda é OXALÁ… o Chefe para o qual convergem todas as linhas, assim perfeitamente identificado na invocação com Jesus Cristo.”7 Torno a dizer que se trata de uma visão em torno da divisão teórica da Umbanda em sete linhas principais. É comum lermos que, para cada uma dessas sete linhas existam agrupamentos de seus Exus e suas Pombas Giras correspondentes. No entanto, não me cabe neste trabalho explorar essa classificação teórica complexa. Interessa-me mais mostrar como se dá o contato com essas entidades no ritual umbandista prático, a fim de, posteriormente, discutir a comunicação com tais entidades na internet e a maneira como umbandistas e não umbandistas falam a seu respeito nas redes sociais, por exemplo. A escolha de um terreiro de Umbanda no qual eu pudesse observar atentamente o ritual foi determinante para os resultados dessa pesquisa, antes, ainda, de abordar a ideia de “como se fala” ou “como se pratica” Umbanda na rede. 7 Disponível em http://raizculturablog.wordpress.com/2008/03/28/sete-linhas-de-umbanda-parte-i-por- alexandre-cumino/>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
  • 30. 29 1.3 Gruel – Grupo Umbanda é Luz O objetivo deste subcapítulo é apresentar as principais características que envolvem uma gira de Umbanda, a partir das observações etnográficas no GRUEL (Grupo Umbanda é Luz) 8 , localizado na Avenida das Cerejeiras, número 429, no bairro de Vila Maria. Acompanhei as sessões de março a setembro de 2012, com a frequência de dois sábados por mês. 1.3.1 Mediunidade e a figura do dirigente A mediunidade é uma questão central para adeptos de religiões que lidam com o espiritual, seja pelo contato com os espíritos de mortos, ou com Orixás. Meu objetivo aqui, ao mencionar a ideia da mediunidade, é entendê-la no contexto da prática da Umbanda nos terreiros para, mais tarde, contextualizá-la na prática da Umbanda na rede. No entanto, pude perceber que a concepção de “mediunidade” pode variar entre os médiuns. Isso porque há umbandistas que acreditam, por exemplo, que aqueles que, dentro do terreiro, exercem a função de cambones (que atuam como ajudantes dos médiuns) o fazem porque “não têm mediunidade”, isto é, não dispõem da faculdade necessária para a “incorporação”; enquanto outros, como os integrantes da corrente do Grupo Umbanda é Luz, creem que todos eles sejam médiuns, não apenas aqueles que incorporam os Orixás e as entidades. Uma dificuldade encontrada no decorrer da pesquisa foi a de definir com maior clareza a noção de “mediunidade”. Como explicar algo tão complexo, no contexto acadêmico? Como diferenciar as várias visões sobre o que é ser médium e encontrar nelas um elemento comum? Procurei recorrer a uma visão mais recorrente sobre a mediunidade encontrada tanto em livros como em conversas com colegas 8 Disponível em <http://gruel.com.br/>
  • 31. 30 kardecistas, umbandistas ou mesmo durante a pesquisa de campo sobre a qual falarei melhor no decorrer deste capítulo9 . Embora este trabalho esteja necessariamente inserido no contexto acadêmico, não se pode desprezar, ao menos para fundamentar essa afirmação em torno da mediunidade, a obra do médium Francisco Cândido Xavier, o Chico Xavier, já que os dizeres de seus livros, muitos deles ditados por um espírito desencarnado são endossados por aqueles que lidam com questões espirituais. Sobre a mediunidade ser inerente ao ser humano, menciono este trecho do livro Nos Domínios da Mediunidade, ditado pelo espírito André Luiz: Todos somos instrumento das forças com as quais entramos em sintonia. Todos somos médiuns, dentro do campo mental que nos é próprio, associando-nos às energias edificantes, se o nosso pensamento flui na direção da vida superior, ou às forças perturbadoras e deprimentes. (XAVIER, 1955, on-line) Nas palavras do espírito, ditadas a Chico Xavier “todos somos instrumento das forças com as quais entramos em sintonia”, o que não quer dizer que precisamos incorporar (no sentido etimológico, de “dar corpo a”) tais “energias” (as “edificantes” ou as “perturbadoras”) para senti-las, percebê-las. Diante disso, o que se pode observar é que ser médium não significa, necessariamente, emprestar o corpo a espíritos. Todo ser humano, independentemente de suas crenças, teria a capacidade de perceber sinais do mundo espiritual. Tais sinais se dão de várias formas (sonhos, clarividência, psicografia, etc.) e em vários graus: em algumas pessoas os sinais são mais intensos; em outras, menos, quase imperceptíveis. Considera-se também que existam vários tipos de médiuns. Dentro de um terreiro, por exemplo, pode haver os médiuns responsáveis por incorporar, de fato, os chamados guias (Orixás e entidades) para a consulta ou para os passes, emprestando seus corpos físicos para a comunicação com o espiritual. Mas há também médiuns responsáveis por orientar os consulentes, agindo como “tradutores” das práticas rituais que, muitas vezes, para o assistido que não está
  • 32. 31 muito habituado a elas (como um consulente que visita o espaço pela primeira vez), necessita de alguém que as explique. Esse último médium pode não incorporar, mas tem a capacidade de entrar em contato com seus guias intuitivamente, sem necessariamente emprestar-lhes seu corpo. A mediunidade, como já foi dito, relaciona-se a um conjunto de práticas muito amplo. A forma de contato entre o plano físico e o espiritual pode variar do kardecismo para a Umbanda – como mencionou Alexandre Cumino ao dizer que não se deve entender o ritual umbandista como sendo um ritual espírita, que carregaria outros elementos em sua constituição - ou para o Candomblé (principalmente pela natureza dos espíritos que se manifestam nas diferentes religiões), mas a partir de então, feitas as breves considerações sobre a mediunidade, interessa-me focar, agora sim, no Grupo Umbanda é Luz, dentro do qual incorporar guias não é uma condição para o trabalho mediúnico nas giras, como se denominam os rituais da Umbanda. O título que dei a esse subcapítulo, Mediunidade e a figura do dirigente coloca em discussão, ainda que breve duas questões importantes para uma pretensa pesquisa que tenha a Umbanda em seu tema. São elas a mediunidade, da qual já falei, e a figura do dirigente do terreiro, ou seja, o pai de santo (Babalorixá) ou mãe de santo (Iyalorixá)10 . O papel do dirigente é central não só para este capítulo, mas talvez para esta pesquisa inteira, já que torna a Umbanda peculiar, como bem notou Birman ao dizer que no plano da organização social a religião umbandista pode ser considerada um agregado de pequenas unidades que não um conjunto unitário. Não há, como na Igreja Católica, um centro bem estabelecido que hierarquiza e vincula todos os agentes religiosos. Aqui, ao contrário, o que domina é a dispersão. Cada pai-de-santo é senhor do seu terreiro, não havendo nenhuma autoridade superior por ele reconhecida. Há, portanto, uma multiplicidade de terreiros autônomos, embora estejam unidos na mesma crença. (BIRMAN, 1985, citada por CUMINO, 2011, p. 298) 10 Babalorixá e Iyalorixá são sinônimos de pai e mãe de santo em Iorubá, sendo Baba = pai – Ori = cabeça – Ixá = guardião, assim como Iyalorixá é a denominação da mãe de santo (Yá = mãe).
  • 33. 32 Não que isso signifique que não haja hierarquia dentro de um terreiro. Há terreiros que classificam seus integrantes hierarquicamente ainda que a superioridade do dirigente se mantenha (denominações como pai pequeno e mãe pequena são exemplos disso; sendo eles os “substitutos” dos pais e mães de santo quando estes se ausentarem, dentre outras funções que lhes cabem). Birman constata que não haja uma organização central para Umbanda tal como o Vaticano para a Igreja Católica. O que existe são as federações de Umbanda; porém, estar ligado a uma determinada federação (como a Federação Umbandista do Grande ABC, a Federação Brasileira de Umbanda ou a Federação de Umbanda do Brasil) não é condição determinante aos trabalhos em um terreiro. A própria existência de mais de uma federação já deixa isso claro. Voltando ao Grupo Umbanda é Luz, os médiuns da corrente enxergam no pai de santo não só o desempenho do papel do líder, ou do dono do espaço do terreiro, mas também as qualidades necessárias para exercer tal papel, pois é o pai de santo o responsável por criar os fundamentos do terreiro a partir da interpretação de sua raiz
  • 34. 33 1.3.2 “Umbandas” e o referencial teórico O Gruel é uma “escola iniciática da raiz Congo”. Nas palavras do Babalorixá, Marco Antonio dos Santos, “todo terreiro de Umbanda é uma Escola iniciática, pois se organiza a partir de um referencial teórico que justifica suas práticas, esse referencial teórico é chamado de raiz” 11 . O conceito de raiz na Umbanda justifica a escolha de apenas um terreiro para fundamentar a parte etnográfica deste trabalho. É na raiz umbandista, ou seja, é nesse referencial teórico mencionado pelo Babalorixá que se encontram as diferenças e semelhanças entre os rituais de Umbanda. O dirigente de um terreiro é o responsável por respeitar determinada raiz, por colocar em prática o que aprendeu na religião com aqueles que o iniciaram no culto e ter a capacidade de sustentar tais práticas, a fim de ensiná-las a seus filhos. Cada raiz de Umbanda tem suas peculiaridades, seu conjunto de práticas que seus adeptos deverão sustentar. O Gruel segue a raiz Congo, isto é, o referencial teórico Congo, implantado pela entidade conhecida como Pai Congo, incorporada no médium José Sanches Haro na década de 197012 . Cada detalhe da gira, dos elementos do Congá à maneira como os banhos devem ser preparados pelos médiuns deve estar de acordo com tal referencial teórico. A primeira característica que me chamou a atenção no ritual do Gruel foi a incorporação de Orixás. Isso porque, em minhas pesquisas teóricas sobre Umbanda, encontrei diferenciações ritualísticas entre Umbanda e Candomblé exatamente nesse ponto, na ideia de que no Candomblé os Orixás “baixam”, mas na Umbanda, não. Tal diferenciação, porém, carece de embasamento, já que no Gruel, por exemplo, os médiuns incorporam Orixás (ainda que estes venham não para consultas, mas para os chamados “trabalhos” como descreverei adiante). 11 Disponível em <http://gruel.com.br/wp-content/uploads/2011/10/A-raiz-Congo-e-a-Escola- Inici%C3%A1tica.pdf> 12 Idem à nota anterior.
  • 35. 34 A escolha deste terreiro para minhas observações de campo tem como objetivo mostrar um exemplo de um ritual particular (entenda-se “particular” não como fechado, mas como próprio, ou específico) de Umbanda. Por razões metodológicas, visitar terreiros, além do Gruel, que seguissem referenciais teóricos distintos me tornaria responsável por diferenciá-los a todo o momento. Mas a religião de Umbanda bebe em tantas fontes (católica, africana, indígena, espírita...), tem tantos elementos que diferenciam um terreiro do outro, que talvez fosse melhor falar em “Umbandas”, como se esse plural contivesse as várias raízes de uma mesma religião.
  • 36. 35 1.3.3 As giras no Gruel A incorporação dos guias, bem como as giras como um todo acontece necessariamente dentro do terreiro. Terreiro é como são denominados os pequenos grupos que congregam em torno de uma mãe ou pai de santo (PRANDI, 2003, on- line), mas não apenas isso: é o terreiro o espaço adequado para o ritual. Não se incorporam guias espirituais em casa, na rua ou em qualquer outro lugar que não seja o terreiro (discutirei melhor essa questão no capítulo a seguir quando mencionar um estudo de caso de um programa de web-rádio). No Gruel as giras acontecem duas vezes por semana: às quartas-feiras, às 19h30, e aos sábados às 17h. A distribuição de senhas é indispensável para que o assistido possa se consultar com uma entidade através do médium. A senha é composta por um número (impresso) e um nome, que indica a equipe à qual o médium pertence. Cada equipe tem um número determinado de senhas, que são distribuídas cerca de duas horas antes do início das sessões. As consultas são gratuitas, individuais e requerem uma senha. Porém, no terreiro também são realizados os passes, que não necessitam de senha; para tomar passe os consulentes devem formar uma fila na entrada do terreiro. A entidade que dá passes, entretanto, não conversa com o consulente (essa comunicação se dará nas consultas). O terreiro funciona na parte de baixo da casa do Babalorixá. Os consulentes aguardam em filas pelo início dos trabalhos, até que um dos médiuns os chame (pela senha para consulta; ou autorizando a entrada seguindo a sequência da fila, se para o passe). Na fotografia abaixo, reproduzida do site do Gruel, pode-se observar a fila para o passe na entrada do terreiro e um dos médiuns carregando uma prancheta utilizada para organizar as consultas.
  • 37. 36 Além das consultas e dos passes, no Gruel também são realizadas outras atividades, como descarrego, energização e transporte. Por uma opção metodológica, conduzi minha observação para alguns detalhes do ritual que me ajudassem a compreender as possibilidades de transposição desses mesmos detalhes para a Web. Por essa razão, explicar em que consiste cada ritual particular neste terreiro foi um enorme desafio por requerer uma experiência antropológica maior do que aquela que geralmente é oferecida ao jornalista em termos de pesquisa de campo. Ao tentar descrever um ritual de Umbanda, percebi que o exercício da descrição a partir da observação torna-se muito mais amplo, já que descrever o que vejo é diferente de saber exatamente a razão e eficácia de cada ritual que compõe uma gira, como o ritual de defumação, Ipadê, etc., bem como saber a maneira correta de manipular cada detalhe de acordo com os ensinamentos da raiz. Achei prudente fazer essa ponderação, pois, antes de analisar detalhes que se referem direta ou indiretamente ao ritual de Umbanda na internet, falar da religião
  • 38. 37 de Umbanda “genericamente” me parece arriscado. Certas peculiaridades dos rituais que compõem uma gira pertencem, muitas vezes, a uma herança passada de pai para filho (de santo, no caso) e a exposição virtual pode esvaziar toda uma tradição. Podemos encontrar bons exemplos dessa questão nos jogos divinatórios originalmente africanos, como é o caso do Opele-Ifá, que são de conhecimento exclusivo dos Babalawôs, sacerdotes conhecedores dos mistérios que cercam essa prática. Eles são os responsáveis por preservar o segredo e transmitir seus conhecimentos apenas aos iniciados. No entanto, é comum vermos anúncios na internet de consultas divinatórias “on-line”, como é o caso dos sites que oferecem consultas “grátis” dos búzios13 . (Há também os cursos virtuais que oferecem apostilas dessas artes divinatórias14 ; entretanto, estas devem ser compradas por quem estiver interessado). A internet pode funcionar, ainda, como um canal para solicitar consultas por e-mail, por telefone ou até “marcar uma consulta presencial diretamente no terreiro”, como o site de Mãe Preta Iyalorixá15 . O interessado em uma breve consulta não presencial deve preencher os campos obrigatórios com seus dados (sexo, idade, data de nascimento, cidade e estado) e quase que imediatamente recebe, por e- mail, seu “Orixá de proteção”. A diferença desse exemplo de Mãe Preta, no que diz respeito ao esgotamento de uma tradição antiga que se quer preservada e transmitida apenas àqueles que pertencem ao culto é que ela não explica como se consulta o oráculo: essa tarefa cabe a ela enquanto Iyalorixá. Essa prática representa um “risco”, porque, via internet, como é possível saber se ela, de fato, manipulou os búzios? Se ela, de fato, o fez no território sagrado do terreiro? Ou ainda, se ela detém o conhecimento necessário para fazê-lo? Mencionar tais exemplos não significa necessariamente coloca-los à prova, o que ficará mais claro no capítulo seguinte, no qual abordarei um estudo de caso de 13 Disponível em <http://horoscopovirtual.uol.com.br/jogo-de-buzios.asp> (acessado em 23 de outubro de 2012); consulta virtual gratuita do “jogo de búzios” para a qual basta que mentalizemos perguntas e cliquemos com o mouse sobre as conchas, que teremos imediatamente a “resposta” do oráculo. 14 Disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=fTjwUkCQ8Qg>. Acessado em 23 de outubro de 2012. 15 Disponível em <http://www.maepreta.com/ficha.php>. Acessado em 23 de outubro de 2012.
  • 39. 38 consulta on-line com uma entidade de Umbanda. Minha intenção ao descrevê-los é mostrar que o advento da internet traz possibilidades de comunicação que vão além do presencial, quando pensamos na ideia de se comunicar com o espiritual on-line (seja essa comunicação eficaz ou não, o que vai depender da fé e do conhecimento de quem estiver do outro lado do computador, iPad, celular, etc.). Contudo, uma vez que observei as práticas rituais off-line e alguns modos por meio dos quais essas práticas foram transpostas para o “mundo virtual”, não poderia deixar de abordar também os problemas dessa transposição (ou tradução), principalmente no que diz respeito à preservação de tradições. Neste caso: As relações que se constroem na Web propõem uma possibilidade de angariar os saberes desta cultura [africana], desde que legitimados por um saber letrado. Não obstante, essa cultura revela- se apenas naquilo que se pode vivenciar no seio da comunidade. (...) Hoje essa manifestação religiosa encontra-se no âmbito da territorialidade e da temporalidade ocidental capitalista. Decerto que a inserção das religiões afro-brasileiras na Internet refletem um longo processo de plasticidade, adaptação e transigência no ambiente da metrópole contemporânea. (SANTOS, 2001, on-line, grifo meu) As atividades que pude observar no Gruel estando de fora da corrente foram essenciais para esse trabalho, mas o conhecimento de determinadas práticas ali realizadas cabe aos médiuns da corrente, que as vivenciam, sendo que algumas dessas práticas – como a consulta oracular – são exclusivas do Babalorixá. Procurarei descrever algumas das práticas que pude observar no Gruel enquanto pesquisadora, que vão desde o comportamento dos médiuns até o desempenho dos trabalhos que realizam. Ainda do lado de fora do terreiro, na entrada, vemos um espaço reservado aos guardiões que, como mencionado anteriormente, são os Exus e as Pombas Giras. Todos os médiuns, ao chegar ao terreiro, devem, antes de adentrar o espaço sagrado, fazer uma saudação frente a este espaço, conhecido por umbandistas como “tronqueira” ou “casa de força”.
  • 40. 39 Antes de a gira começar, o Babalorixá conduz um procedimento durante o qual os médiuns permanecem ajoelhados, de frente para o Congá, entoando uma cantiga em Iorubá16 para saudar os ancestrais. Segundo Marco Antonio dos Santos, a cantiga traz a seguinte mensagem: “cuidado com o chão onde pisa, pois ele carrega as cinzas de seus ancestrais”. Saudar a ancestralidade, dentro deste ritual inicial, significa para o médium do Gruel, saudar tanto seus ascendentes espirituais, ou seja, os espíritos ancestrais que o guiam, como também ascendentes carnais, sua família. Da ideia de respeitar “o chão onde pisa” pude compreender outro ato de respeito dos médiuns da corrente do Gruel quando, após saudarem o espaço dos guardiões na entrada do terreiro, ajoelham-se rapidamente e encostam os dedos das mãos no chão, “cumprimentando” o solo. Esse contato físico com o solo sagrado é apenas um dos muitos atos simbólicos presentes nos rituais de Umbanda que, na internet, evidentemente, vão se perder. 16 Conhecido como Ipadê, prática comum ao Candomblé de origem Ketu.
  • 41. 40 Após o ritual descrito acima, os médiuns começam a entoar o que na literatura umbandista se convencionou chamar de ponto cantado (cantigas geralmente acompanhadas pelo toque de atabaque, instrumento musical sagrado, cuja entoação “atrai” os guias nelas homenageados). O primeiro deles é um ponto de defumação, cantado não apenas no Gruel, como em muitos outros terreiros de Umbanda: Corre a gira pai Ogum Filho quer se defumar Umbanda tem fundamento É preciso preparar Com incenso e benjoim Alecrim e alfazema Defumar filhos de fé Com as ervas da Jurema As ervas às quais o ponto faz menção são os elementos que compõem outro ritual imprescindível às giras, que é a defumação. Nesses dois versos (“Umbanda tem fundamento/ é preciso preparar”) uma afirmação importantíssima sobre a Umbanda de que me valho para colocar em discussão as pretensas práticas ritualísticas na Web: a Umbanda tem fundamento (ditado pela “raiz”) e é preciso preparar – sacralizar - o espaço, o médium e tudo o que vai compor uma gira. Isso tudo se perde quando se tenta tornar virtual uma gira, como procurarei demonstrar. Voltando à descrição, enquanto entoam os pontos de defumação, defumam- se os médiuns, um a um. As ervas aromáticas utilizadas e a maneira como o processo de defumação ocorre no Gruel devem respeitar a raiz Congo17 , porém, de 17 Disponível em “Defumação: Ritual Explicativo da Raiz Congo”: <http://gruel.com.br/wp- content/uploads/2011/10/Defuma%C3%A7%C3%A3o-ritual-explicativo-da-raiz-Congo.pdf>. Acessado em 12 de setembro de 2012.
  • 42. 41 maneira objetiva, poderíamos entender a defumação como um ato de purificação do médium a fim de prepara-lo para o contato sagrado que virá na sequência. A ideia da formação de uma corrente, sendo essa corrente o conjunto dos médiuns integrantes do terreiro, começa a ganhar força na abertura das giras. Todos os médiuns cantam e dançam juntos, numa harmonia coletiva capaz de despertar notado interesse em pessoas que passam pela avenida naquele momento. A fumaça característica da queima das ervas tem a função de dissipar energias ruins, sacralizando o ambiente. Na fotografia abaixo, um dos médiuns do Gruel defuma o terreiro no início de uma gira.
  • 43. 42 Na sequência são entoados outros pontos, mais específicos das entidades que ali vão “trabalhar”, além de os médiuns saudarem Orixás e entidades com gestos e saudações específicas de cada um desses guias. O Babalorixá diz, por exemplo:_Saravá Iansã! Ao que os médiuns respondem com sua saudação correspondente, Epahei! e seu gesto, com o braço direito erguido e a mão se movimentando como os ventos (sendo Iansã Orixá dos ventos e tempestades).
  • 44. 43 É preciso salientar uma característica das giras do Gruel muito comum em outros terreiros de Umbanda: a organização das sessões de acordo com as entidades que vão trabalhar naquele dia. Há as giras de Caboclo, nas quais os médiuns vão incorporar majoritariamente essas entidades, identificadas com índios, para as consultas; há as giras de Preto Velho nas quais são os Pretos Velhos (comumente associados a espíritos de negros que teriam sido escravizados) que ali incorporam. Se em um sábado a gira foi de Caboclo, por exemplo, no próximo será de Preto Velho e assim sucessivamente. Na sequência de pontos cantados isso fica mais claro: após os pontos de defumação, se a gira é de Caboclo, pode-se perceber que os médiuns cantam pontos geralmente dedicados a Oxóssi (Orixá que “comanda” os Caboclos na Umbanda). Já na abertura das giras de Exu – que também ocorrem no Gruel – podemos ouvir pontos dedicados ao “povo da rua” (uma referência aos guardiões Exu e Pomba Gira). O Babalorixá então organiza uma espécie de círculo com médiuns de mãos dadas e eis que, durante o toque dos atabaques com os pontos específicos, um a um nessa corrente vai de fato “incorporando”. Numa gira de Caboclo, por exemplo, a incorporação é imediatamente percebida pelos brados das entidades, próprios de indígenas, assim como numa gira de Exu as gargalhadas são marcantes. O uso de um elemento, durante as giras, pelo Babalorixá, chamou-me a atenção, pois não o tinha notado em outros terreiros nos quais estive (não ainda como pesquisadora): o adjá18 . Trata-se de uma espécie de sineta de metal que, de acordo com o que ele me explicou, serve para unir, no espaço do terreiro, dois outros ambientes simbólicos fundamentais na tradição Iorubá: o Orum (plano espiritual) e o Ayê (plano físico), análogos ao ambiente do céu (onde habitam Deus e anjos na visão cristã) e da terra (onde nós, seres humanos, vivemos). Quando o Babalorixá manipula o adjá – produzindo o som característico de um sino - os médiuns concentram-se para a incorporação. O som do adjá, por sua 18 Termo de origem Iorubá.
  • 45. 44 vez, faz com que os seres do Orum (os guias espirituais) entrem em sintonia com os do Ayê (médiuns). Assim que os médiuns de incorporação de fato incorporam e vão assumindo seus lugares dentro do espaço físico do terreiro (o Babalorixá geralmente se coloca ao centro e ao fundo, próximo ao Congá), os médiuns responsáveis pela organização das consultas vão chamando os consulentes pelas senhas, ou permitindo, na sequência da fila já formada do lado de fora, a entrada um por vez. Os médiuns de consulta são sempre acompanhados por um cambone que, como já foi dito de forma breve, atua como assistente do médium enquanto este estiver incorporado, sendo responsável, no caso do Gruel, por anotar o que acontece durante as consultas e entregar às entidades os elementos por elas solicitados (como flores, garrafas d’água, velas, perfumes entre outros, que serão manipulados de acordo com a necessidade da consulta; alguns entregues ao consulente depois). A atividade de um cambone não só é essencial para o médium que estiver se iniciando dentro da corrente, para que este aprenda como se comportar durante as giras, como também é fundamental para que uma consulta ocorra dentro do Gruel, onde cada médium de consulta tem um caderno no qual são anotados pelo cambone o nome de cada consulente, a data de cada consulta, as perguntas feitas pelo consulente e as respostas dadas pela entidade, a data do retorno (caso seja necessário o assistido pode retornar, com consulta pré-agendada) e o tipo de atividade que a entidade solicita (a exemplo dos chamados trabalhos com Orixás e outros guias, dos quais falarei a seguir).
  • 46. 45 1.3.4 Os trabalhos e a ideia de rede No campo espiritual, a palavra trabalho pode ter muitos significados. O termo geralmente é utilizado, assim como outros dos quais já falei, como sinônimo de feitiçaria, quando se fala, por exemplo, em trabalhos de magia negra. Porém, além de a concepção de magia causar muita confusão quando aproximada, teórica ou praticamente, da Umbanda (assunto que pretendo discutir mais à frente), no Grupo Umbanda é Luz entende-se por trabalho uma ação espiritual praticada por um médium incorporado (com entidades ou Orixás) para equilibrar energeticamente o consulente. De modo sucinto, é como se a entidade ou Orixá, através de um médium, pudesse emitir sua energia sagrada ao consulente, reequilibrando-o de acordo com suas necessidades específicas. Diferentemente da consulta, no trabalho as entidades não conversam com o consulente, apenas “agem” sobre ele. O tipo de trabalho a ser realizado é determinado durante a consulta. Um exemplo é quando o consulente relata estar com baixa autoestima. A entidade, então, pode solicitar um trabalho de Oxum, Orixá do amor, da beleza e também da autoafirmação, para devolver-lhe o amor próprio. Oxum incorpora em outro médium (não o mesmo da consulta, já que existem, na corrente, os médiuns próprios para a realização dos trabalhos) transmitindo um pouco de seus predicados (de beleza, autoestima, etc.) ao assistido. Essa incorporação é percebida por meio de gestos característicos do Orixá feminino Oxum: as mãos do médium movimentam-se lentamente, como as águas dos rios (morada de Oxum nas lendas africanas); às vezes movimentando lentamente os quadris e cantando, com um timbre frequentemente agudo, tudo isso de maneira muito suave. É comum um cambone cantar pontos em homenagem a Oxum durante a realização do trabalho, aconselhando que o consulente mantenha os olhos fechados e pensamentos positivos.
  • 47. 46 Os trabalhos são realizados majoritariamente nas giras de sábado. Um detalhe importante dessas giras são as aulas ministradas pelo Babalorixá (que é também professor) todo sábado, uma hora antes do início das sessões, ou seja, às 16h. A cada sábado, um tema é abordado pelo Babalorixá, que se utiliza de recursos eletrônicos como apresentação de slides, ou mesmo de desenhos de próprio punho em uma lousa dentro do terreiro. As aulas são abertas. Embora alguns dos temas sejam pertinentes aos médiuns da corrente e versem sobre as atividades e o comportamento dos mesmos
  • 48. 47 dentro do terreiro, os visitantes também podem acompanhá-las, uma vez que o Babalorixá aborda também, durante tais aulas, questões ligadas ao cotidiano de todos nós (fala sobre relacionamentos afetivos, questões financeiras, felicidade, prosperidade, liberdade, humildade... enfim, questões de interesse pessoal e não apenas mediúnico). O espaço físico onde as aulas ocorrem aos sábados é o mesmo onde o ritual acontecerá uma hora depois. Essa delimitação do espaço é essencial, já que o simples fato de estar “dentro” do terreiro não é suficiente para incorporar entidades. Isso porque, no momento da aula, os médiuns estão desincorporados, ali se tornando alunos, fazendo anotações em seus cadernos como se estivessem em uma sala de aula; o dirigente do terreiro, ainda que detenha o conhecimento necessário para ocupar esse papel na hierarquia do lugar, também está desincorporado porque naquele momento assume o papel de professor, embora suas experiências como pai de santo – e também como filho de santo, quando menciona o terreiro ao qual pertencia antes de ter o seu – o auxiliem a lecionar. A importância das aulas, conforme me explicou o Babalorixá durante minhas visitas ao terreiro é fundamental para a preservação da raiz Congo, já que ele tem a missão de transmitir o conhecimento adquirido com seu pai de santo a seus filhos (os médiuns da corrente do Gruel), que deverão fazer o mesmo com os novos integrantes da corrente e assim por diante. A ideia de rede, essencial nesta pesquisa, começa a ser delineada. As giras de quarta-feira não raro se estendem até depois da meia-noite. Já aos sábados, as sessões terminam por volta das 21h. Durante as sessões, há sempre uma mensagem predominante, uma energia percebida pelo Babalorixá ou mesmo manifesta pelas próprias entidades durante as giras, algo como o que se pôde aprender com as atividades realizadas naquele dia. Em uma das giras de sábado cujo encerramento tive a oportunidade de observar, o Babalorixá transmitiu aos médiuns uma mensagem da Pomba Gira Maria Padilha. Em outra gira, também de sábado, a mensagem predominante foi relacionada à cura, à necessidade do ser humano de se libertar de certos traumas que o aprisionam. Conforme me explicou um dos médiuns antes do final da sessão, nesta gira especificamente foi possível
  • 49. 48 “sentir a energia de Obaluaiê”, Orixá ligado às doenças e, portanto, responsável também pela cura. Ao final da sessão, quando todos os consulentes já foram atendidos, os médiuns desincorporam e formam mais uma vez uma corrente, de mãos dadas em círculo, e fazem uma oração em agradecimento por terem realizado mais um trabalho juntos. Do início ao fim da sessão, não é difícil perceber que se vai formando, naquele espaço sagrado, uma rede – seja ela espiritual composta por todas as entidades que ali trabalham; seja ela social integrada pelos consulentes que, do lado de fora, aguardam sua vez. Uma gira no Gruel não existe só com o pai de santo. Além dele, estão presentes os demais médiuns (de incorporação e cambones que os auxiliam, por exemplo) e os próprios consulentes. Todos têm certa importância para a realização das sessões. A ideia de que a Umbanda “não existe sozinha”, de que um médium só ou uma entidade só não seja suficiente para que o ritual aconteça está presente até mesmo na própria manifestação das entidades. Cada entidade que se manifesta na Umbanda tem um nome e um “sobrenome”, que indica a qual “família” essa entidade pertence. Para que isso fique mais claro, tomemos como exemplo dois nomes de diferentes Pretos Velhos: Pai Joaquim de Angola e Pai Joaquim de Aruanda. Embora os nomes sejam iguais (“Joaquim”), os “sobrenomes” marcam sua vinculação a um grupo (um é “de Angola”, outro “de Aruanda”). Pode-se dizer que eles se agrupam no plano espiritual antes de incorporarem de fato (no plano físico, portanto). Não existe uma entidade que não esteja “agrupada”, ou seja, que não pertença a uma determinada “família” espiritual. Essa noção de “grupo” é o que talvez aproxime o ritual de Umbanda (falando, agora, da Umbanda de maneira geral, não apenas da raiz Congo) de uma das hipóteses em torno do significado da palavra Umbanda, como sendo a junção da palavra oriental UM (que significa Deus) com BANDA (que quer dizer agrupamento, legião). (PINTO, 1971, p. 197, citado por CUMINO, 2011, p. 101-102)
  • 50. 49 Corrêa Lages menciona uma “rede social formada pelos médiuns, comunidade, cambones e por espíritos de antepassados” (2011, on-line). Ela fala, ainda, da formação de outra rede, a rede familiar: Na Umbanda, uma ampla rede de parentesco é encenada, estabelecendo novas relações de filiação, que são assentadas em afetos e cuidados com os seus filhos. Pretos-velhos e Pretas- velhas se tornam pais e avós, sendo chamados de Pai Joaquim de Angola, Pai Benedito de Aruanda, Pai João do Congo, Mãe Joaquina de Aruanda (...) A autoconfiança proporcionada pela relação amorosa é a base indispensável para a participação autônoma na vida pública e ponte para a rede que vai sendo costurada rumo ao reconhecimento inter- subjetivo e auto-realização dos sujeitos. A reconstituição da família e dos laços paternais no terreiro promovem sentimentos de pertencimento a um grupo social que duramente desrespeitado pelas humilhações e agressões físicas da escravidão, continuam compartilhando semelhantes formas de opressão e sofrimento em suas vidas cotidianas, uma vez que continuam sendo afetados pela inequidade em saúde, o desemprego, a falta de acesso aos serviços públicos, o menor acesso à educação, à justiça. (2011, on-line, grifo meu) A discussão que proponho neste trabalho de conclusão de curso é entender como se apresenta a idéia de “rede” na Umbanda e quais são as possíveis relações dessas redes físico-espirituais com as redes virtuais. Durante o período em que frequentei o Gruel para anotar dados que seriam descritos aqui, tentei entender como conceitos subjetivos como o amor, a felicidade, a liberdade, a caridade etc., são aplicados ao ritual de Umbanda. A prática da caridade existe quando não se cobra pelas consultas, passes ou trabalhos. A humildade existe em pequenos gestos das próprias entidades, a exemplo de uma Cabocla (incorporada em uma médium) que, durante uma consulta – sendo eu mesma a assistida – ajoelhou-se diante de mim, explicando que o fazia em respeito às atitudes que tomei em determinadas situações que não vou mencionar aqui por razões evidentes. A fraternidade existe no comportamento de respeito entre os filhos de santo (irmãos porque filhos de um mesmo pai de santo), etc.
  • 51. 50 Há inclusive uma música, Princesa Negra, de autoria da compositora pernambucana Jeane Siqueira19 que é cantada em forma de ponto nas sessões do Gruel. Por meio dos trechos que cito abaixo, é possível notar que a concepção de liberdade e felicidade, na música, é adaptada à maneira como os médiuns do Gruel entendem a Umbanda. Bate tambor, bate atabaque Repica agogô20 na imensidão Hoje o decreto diz, seja livre e feliz Minha palavra é lei (grifos meus) Isso porque o decreto, como diz a música, de ser “livre e feliz” não só está presente nas estrofes entoadas pelos médiuns durante as giras; é, também, orientação do pai de santo, como é possível verificar no Código de Conduta para médiuns atuantes no terreiro durante o ano de 2012: Não acredite estar no terreiro apenas para praticar a caridade, você está aqui para evoluir emocionalmente, tornar-se mais feliz e ser uma referência para os que estão a sua volta. Só há um decreto na Umbanda: seja livre e feliz.21 (grifos meus) Neste mesmo documento o Babalorixá enumera algumas regras que todos os médiuns devem seguir, como vestir branco (todos usam um avental próprio do Gruel), cuidar da higiene pessoal, não estabelecer vínculos (de amizade, sexual, etc) com consulentes, entre outras exigências. Por meio da convivência no Gruel, seja antes da pesquisa, como consulente; ou depois, no papel de pesquisadora, observando, constatei que princípios como a caridade, a humildade, a fraternidade entre tantos outros aos quais tanto se alude 19 Disponível em < http://www.youtube.com/watch?v=sdAmDM079KY>. Acessado em 14 de outubro de 2012. 20 Instrumento de múltiplos sinos, tradicional na cultura Iorubá. 21 Disponível em http://gruel.com.br/wp-content/uploads/2011/10/C%C3%B3digo-de-Conduta-para- m%C3%A9diuns-atuantes-em-2012-nos-trabalhos-do-GRUEL-15.pdf>. Acessado em 14 de outubro de 2012.
  • 52. 51 quando se fala da Umbanda, são importantes na prática. E é dessa prática (ou tentativa de) que falarei no próximo capítulo.
  • 53. 52 2. DO RITUAL AO VIRTUAL 2.1 “Programa do Seu Tranca”: um estudo de caso Quando observamos um blog que fala sobre Umbanda ou mesmo um vídeo de uma gira no YouTube, uma série de elementos que fazem parte do ritual no espaço físico destinado a ele não está presente, como é o caso da defumação, dos passes outros elementos, abordados anteriormente. Por mais que se assista a um vídeo em que a defumação é feita dentro de um terreiro, o internauta não é capaz de sentir o cheiro das ervas, nem de entrar em contato com a fumaça, essencial para dissipar “más energias”, ou mesmo entrar em sintonia com seus guias como por meio do adjá, instrumento do qual falei no capítulo anterior. Partindo de uma dificuldade que encontrei no trabalho de descrição das práticas on-line no que diz respeito à transposição de práticas “físico-espirituais” para práticas “virtual-espirituais”, cheguei aos estudos relacionados à netnografia. Esse método pode ser caracterizado do seguinte modo: O neologismo 'netnografia' (netnography = net + etnography) foi originalmente cunhado por um grupo de pesquisadores/as norte- americanos/as, Bishop, Star, Neumann, Ignacio, Sandusky & Schatz, em 1995, para descrever um desafio metodológico: preservar os detalhes ricos da observação em campo etnográfico usando o meio eletrônico para 'seguir os atores' (BRAGA, 2001, p. 5, citado por AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line). A ideia de “seguir os atores” me pareceu adequada na medida em que havia a possibilidade de encontrar e me comunicar com umbandistas na rede e assim perceber como eles interagem com umbandistas e não umbandistas e, principalmente, de que maneira se utilizam das novas tecnologias para falar sobre sua religião.
  • 54. 53 A partir dessa interação virtual com alguns umbandistas conheci a web-rádio Toques de Aruanda22 , responsável pelo programa “Conversando com Seu Tranca” (ou Programa do Seu Tranca). Nesse momento, essa web-rádio servirá de referência para o estabelecimento de possíveis traduções entre o mundo físico-espiritual-ritual, etnográfico – das observações no Gruel – e o mundo virtual- espiritual, “netnográfico” - que passarei a abordar tomando como base a análise da Umbanda representada na Web, nos blogs e nas redes sociais como Twitter e Facebook. O programa é transmitido, ao vivo, todas as segundas-feiras das 21h às 23h pela web-rádio. Funciona assim: cada dia um tema específico ligado à Umbanda é discutido pelos apresentadores, Mãe Gladys Camorim e Alan Barbieri, das 21h às 22h. Essa primeira hora do programa (21h às 22h) é dedicada à discussão do tema a partir, principalmente, do conhecimento teórico e prático da médium (Mãe Gladys) sobre a religião. Os internautas podem enviar suas perguntas por e-mail (programadoseutranca@hotmail.com) ou via MSN, através do mesmo endereço. A figura abaixo (um printscreen salvo no momento em que um dos programas estava sendo transmitido) mostra a figura icônica da possibilidade de interação do espiritual, sagrado (sintetizado na figura do Exu Tranca Rua das Almas, entidade popular na Umbanda e que dá nome ao programa) com o virtual, por meio do MSN. 22 <http://www.radiotoquesdearuanda.com.br>; acessado em 10 de junho de 2012.
  • 55. 54 Observem as características do desenho utilizado para representar este Exu: um homem moreno, de bigode e cavanhaque, trajando uma roupa preta (possivelmente uma capa), com uma espécie de cartola preta apoiada sobre a perna. Uma rápida pesquisa no Google Imagens basta para encontrarmos várias representações parecidas relacionadas ao guardião Tranca Rua das Almas23 , chamado de “Seu Tranca” pelos responsáveis pelo programa em questão. Outra característica curiosa é a “disponibilidade” da entidade. Ao lado do nome, vemos entre parêntesis que “Seu Tranca” está disponível. Mesmo a cor, verde, em torno da figura dentro do quadrado, no canto esquerdo da caixa de conversação é bem representativa para quem, alguma vez, já se utilizou do MSN Messenger: “verde” indica que a pessoa (no caso, a entidade) está on-line. É nessa caixa de conversação que o internauta digita sua pergunta. Durante a transmissão do programa é comum até mesmo ouvir um som característico do MSN, indicando o recebimento de uma nova mensagem. Ao escutar todo um episódio24 pelo YouTube (todos vão para o canal da web- rádio no YouTube após a transmissão ao vivo) pude perceber a predominância de dúvidas de internautas umbandistas, ainda iniciantes na religião. Dúvidas, em sua maioria, sobre o fato de frequentar um terreiro há algum tempo e “ainda não ter incorporado”. Na segunda hora do programa, portanto das 22h às 23h, a médium incorpora o Exu Tranca Rua das Almas para que a entidade, que pode ser reconhecida pelo timbre de sua voz e o modo como fala possa responder às perguntas enviadas por e-mail ou pelo MSN. Ou seja, a partir de um rápido intervalo que antecede a incorporação (a segunda hora do programa, portanto), quem responde às dúvidas dos internautas é a entidade incorporada, e não mais a médium Gladys Camorim. 23 Disponível em https://www.google.com.br/search?hl=ptBR&tok=QC3HOyS6OLkKc85U5jrhIg&cp=16&gs_id=23&xhr= t&q=exu+tranca+rua+das+alma&bav=on.2,or.r_gc.r_pw.r_cp.r_qf.&bpcl=3527702&biw=1024&bih=65 3&um=1&ie=UTF8&tbm=isch&source=og&sa=N&tab=wi&ei=4m17UL6eDu_H0AGFuoBY>. Acessado em 14 de outubro de 2012. 24 Disponível em “Programa Conversando com Seu Tranca: Hábitos das Entidades”, http://www.youtube.com/watch?v=Fi6oTHx2cFk>. Acessado em 10 de junho de 2012.
  • 56. 55 2.1.1 Ausência e presença de elementos do ritual Durante a comunicação da entidade com os participantes do programa, é possível notar alguns aspectos comuns a uma incorporação, como a alteração na voz. Percebe-se que se trata da mesma médium que apresentou o programa desde o início, mas seu modo de falar se altera quase que completamente, assemelhando- se à voz de um homem (embora ainda seja possível identificar o timbre de voz da própria médium). Outros participantes da transmissão do programa se encarregam de ler as perguntas enviadas ao referido Exu, tratando-o por “Seu Tranca” a todo o instante. Os apresentadores, no entanto, insistem em que as perguntas enviadas digam respeito à religião de Umbanda, sendo questões menos pessoais e mais abrangentes. Qualquer um pode participar enviando dúvidas ou comentários, independentemente de sua religião, o que sugere uma democratização tanto da religião umbandista, representada naquele momento pelos responsáveis pelo programa, como da própria internet enquanto ambiente propiciador desse contato “aberto” promovido pela rede (discorrerei melhor sobre essa ideia de “democracia virtual” característica mais à frente). Outra característica comum à incorporação – essa predominantemente notada na incorporação de Exus e Pombas Giras – são as gargalhadas emitidas por “Seu Tranca” durante a transmissão do programa. Em um dos episódios, quando uma internauta que se diz médium questiona se é normal o fato de seu apetite sexual aumentar após desincorporar sua Pomba Gira, “Seu Tranca” solta uma gargalhada debochada25 . Outra característica indicativa de incorporação é quando a entidade incorporada em Gladys Camorim afirma não saber falar algumas palavras que ela, seu cavalo (termo que, assim como aparelho geralmente empregado por kardecistas, é sinônimo de médium de incorporação), saberia dizer. É como se, ali, 25 Aos 1:35:20 do áudio disponível em http://www.youtube.com/watch?v=Fi6oTHx2cFk&feature=related>. Acessado em 21 de outubro de 2012.
  • 57. 56 enquanto o corpo da médium está ocupado pelo espírito da entidade, ela, Mãe Gladys, se ausentasse da comunicação, embora ainda detivesse controle sobre a incorporação. Por todas essas características, o programa Conversando com Seu Tranca é pertinente para discutir o conceito de terreiro virtual a ser explorado neste trabalho. No entanto, também é capaz de incitar uma discussão muito mais ampla sobre a transposição dos elementos rituais em torno da incorporação na Umbanda para o espaço virtual, isto é, do off-line para o on-line. Nesse caso, cabem alguns alertas sobre o trabalho netnográfico: A netnografia, como transposição virtual das formas de pesquisa face a face e similares, apresenta vantagens explícitas tais como consumir menos tempo, ser menos dispendiosa e menos subjetiva, além de menos invasiva já que pode se comportar como uma janela ao olhar do pesquisador sobre comportamentos naturais de uma comunidade durante seu funcionamento, fora de um espaço fabricado para pesquisa, sem que este interfira diretamente no processo como participante fisicamente presente (KONIZETS, 2002, citado por AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line). Por outro lado, ela perde em termos de gestual e de contato presencial off- line que podem revelar nuances obnubiladas pelo texto escrito, emoticons, etc. (...) O pesquisador deve permanecer consciente de que está observando um recorte comunicacional das atividades de uma comunidade on-line, e não a comunidade em si, composta por outros desdobramentos comportamentais além da comunicação (gestual, apropriações físicas, etc.), sendo esse um dos principais diferenciais entre o processo etnográfico off-line e on-line. (AMARAL, NATAL e VIANA, 2008, on-line). Tomando como principal exemplo, neste momento, o programa mencionado fica claro que alguns elementos do espaço off-line da Umbanda são insubstituíveis on- line e poderiam dar margem a dúvidas (do tipo “como saber se a médium está vestida de branco?”, entre outras); isso porque após a transmissão ao vivo, apenas o áudio do programa é disponibilizado. Por outro lado, características da “vida real” parecem influenciar a programação da web-rádio. No canal do YouTube encontram-se alguns episódios cujos temas estão ligados a datas importantes na Umbanda, como os datas comemorativas dos Orixás. Comemora-se o Dia de Ogum (sincretizado com a imagem católica de São Jorge) em 23 de abril. O episódio do Programa do Seu
  • 58. 57 Tranca de 23 de abril de 2012 tem como tema, em homenagem à data, “Orixá Ogum” 26 . Quando os temas dos episódios do Programa do Seu Tranca estão ligados ao calendário do cotidiano off-line, ainda que o episódio não tenha sido disponibilizado no YouTube na mesma data que foi ao ar (dia 23 de abril de 2012 foi uma segunda- feira, coincidentemente), podemos aproximar essa ideia da maneira como Pierre Lévy entende as tecnologias: “como produto de uma sociedade e de uma cultura” (LÉVY, 1997, on-line). No programa Conversando com Seu Tranca a ausência de alguns elementos que antecedem as incorporações no terreiro (como descrito no capítulo referente ao Grupo Umbanda é Luz: pontos cantados em grupo, saudação aos ambientes sagrados, aos guias, etc.) despertou meu interesse em mencioná-lo neste trabalho. Mas o mais curioso talvez seja o fato de essa comunicação (entre dois mundos?) tornar-se possível de alguma forma. Além disso, naquele momento, ao menos na maioria dos episódios que ouvi do início ao fim, apenas Mãe Gladys Camorim está incorporada, enquanto a incorporação na Umbanda pressupõe um conjunto, uma rede que se forma no espaço físico do terreiro, uma corrente de médiuns, daí a ligação entre o capítulo anterior e este. No programa, após a primeira hora, há um intervalo (ao vivo) destinado à incorporação de “Seu Tranca”, mas não sabemos se todo o procedimento de abertura de uma gira acontece durante esse intervalo, de cerca de cinco minutos, embora, a todo instante, os apresentadores deixem claro que “o programa é transmitido ao vivo do Templo Escola Caboclo Sete Espadas”. Só a partir dessa menção durante o programa já seria possível identificar dois espaços: espaço físico (do Templo Escola Caboclo Sete Espadas) e virtual (da web-rádio e sua transmissão), que parecem estar unidos no momento da transmissão do programa. Mas é exatamente no intervalo entre a primeira e a 26 Ver http://www.youtube.com/watch?v=uutlmO08li4&feature=relmfu>. Acessado em 14 de outubro de 2012.
  • 59. 58 segunda hora as práticas ritualísticas não ficam claras, já que não se sabe de que maneira Tranca Rua das Almas de fato incorporou (se, no terreiro, cantaram os pontos em sua homenagem; se houve a preparação prévia do espaço sagrado e do corpo da médium, etc.)
  • 60. 59 2.1.2 A interatividade e a quebra de barreiras Ao ouvir o Programa do Seu Tranca, tendo eu antes acompanhado com frequência giras de Umbanda presencialmente é clara a sensação de que a comunicação entre entidades e consulentes, embora possa se dar por outras vias, é de alguma forma reduzida. Explico o porquê: no terreiro, o espaço físico ideal da incorporação, quando há a consulta, o consulente não tem um tempo pré-determinado para “conversar” com a entidade, podendo tirar quaisquer dúvidas. No caso do programa promovido pela web-rádio, além de haver a limitação com relação ao teor das perguntas (não devem ser pessoais e necessariamente precisam estar relacionadas à Umbanda), há outra limitação ainda maior: o tempo de duração do programa. Não que as giras de Umbanda não tenham hora para terminar: elas têm, mas tudo vai depender das consultas. Essa delimitação espaço-temporal é análoga ao estudo de Calil Júnior acerca das comunidades virtuais de Espiritismo no Orkut (entenda-se por Espiritismo o conjunto de ideias que constituem a doutrina espírita postulada por Allan Kardec, citada no primeiro capítulo) quando menciona a moderação nessas comunidades. Ao colocar a lente sobre a moderação presente no mundo espírita virtual, minha intenção é chamar a atenção para os processos de demarcação de fronteiras, mesmo em se tratando de um espaço aparentemente desterritorializado. (CALIL JÚNIOR, 2010, on-line, grifo meu). O que o autor considera como “espaço aparentemente desterritorializado” é o ciberespaço27 . A desterritorialização para a qual ele aponta, permitida no ciberespaço, é a quebra das fronteiras que se formam ainda no espaço físico, quando diz que “o discurso de que na internet é possível falar e estudar o espiritismo sem a censura e o cerceamento característico de muitos centros espíritas é recorrente” (2010, on-line). 27 Tanto o conceito de ciberespaço como a relação que proponho entre esse conceito e as práticas relacionadas à Umbanda na internet serão explorados em um capítulo posterior.
  • 61. 60 No entanto, com a moderação das comunidades - recurso comum nas redes sociais, quando um internauta se responsabiliza por monitorar perfis e comentários sobre o conteúdo postado – ocorre o fenômeno contrário, a re-territorialização, entendendo novas fronteiras (a fronteira da moderação, do veto) como demarcadoras de novos territórios reconfigurados (em uma comunidade moderada, cria-se um perfil homogêneo que esteja de acordo com a permissividade do moderador, embora heterogêneo já que é formado por espíritas – neste caso – de diferentes lugares do mundo). Seguindo este raciocínio, pode-se dizer que há uma re-territorialização verificável também no Programa do Seu Tranca a partir da delimitação de assunto, ou seja, do que o internauta pode ou não perguntar, e também porque as perguntas enviadas por MSN pelos internautas passam, antes, pela seleção – ainda que “em tempo real” – do assistente que as está lendo para a entidade, além da delimitação do tempo de duração do programa. Para Calil Júnior, no Espiritismo a ideia de desterritorialização já estava presente muito antes do advento da internet, pois a transposição das fronteiras pelos espíritas não se restringia aos limites temporais. No bojo da reencarnação não estavam implícitos não apenas outros tempos, mas também outros lugares. As experiências do espírito em reencarnações anteriores abriam as portas para o estabelecimento de relações com países e regiões que muitos , na atual existência, não teriam ou terão oportunidade de visitar (...) Muitos dos espíritas estabeleciam relações estreitas com lugares nunca vistos ou visitados. Este 'espiritoscape' e as paisagens e movimentos dele decorrentes eram facilitados a partir dos processos de desterritorialização e de re-territorialização engendrados na conformação do mundo espírita vitual que estaria submetido à virtualidade espírita de compreensão do tempo e do espaço, pela capacidade inerente ao espírito de juntar presente, passado e futuro. (CALIL JÚNIOR, 2010, on-line). Isso significa que, muito antes de a internet existir, os médiuns já tinham experiências que lhes permitiam o contato com encarnações anteriores, rompendo as barreiras do tempo e do espaço atuais, por meio dos sonhos (é comum a ideia, segundo as crenças espíritas, de que os espíritos saem de nosso corpo quando sonhamos).