Slides Lição 4, CPAD, Como se Conduzir na Caminhada, 2Tr24.pptx
Narrativas erodidas: os usos de si como estratégia poética.
1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DE SANTA CATARINA
CENTRO DE ARTES – CEART
DEPARTAMENTO DE ARTES PLÁSTICAS
PRISCILLA MENEZES DE FARIA
NARRATIVAS ERODIDAS:
OS USOS DE SI COMO ESTRATÉGIA POÉTICA
FLORIANÓPOLIS
2011
2. PRISCILLA MENEZES DE FARIA
NARRATIVAS ERODIDAS:
OS USOS DE SI COMO ESTRATÉGIA POÉTICA
Trabalho de conclusão de curso apresentado
ao curso de Artes Plásticas como requisito
parcial para a obtenção de grau em
Licenciatura em Educação Artística com
habilitação em Artes Plásticas.
Orientadora: Rosângela Cherem
FLORIANÓPOLIS
2011
3. PRISCILLA MENEZES DE FARIA
Trabalho de conclusão de curso apresentado ao curso de Artes Plásticas como requisito parcial
para a obtenção de grau em Licenciatura em Educação Artística com habilitação em Artes
Plásticas.
Banca examinadora
Orientadora: ________________________________
Profª. Dra. Rosangela Cherem (UDESC)
Membro: __________________________________
Profª. Dra. Marlen de Martino (FURG)
Membro: ___________________________________
Profª. Dra. Raquel Stolf (UDESC)
Florianópolis, 05 de julho de 2011
4. AGRADECIMENTOS
À minha querida orientadora Rosângela Cherem, por ter me acompanhado de maneira
tão gentil e atenciosa durante toda minha graduação, pelo contagiante amor à erudição e
pelos desvios através dos caminhos menos seguros do pensamento.
À professora e querida amiga Marlen de Martino, pela inspiração, os contágios e pelas
suas lindas aulas que pude assistir.
À professora Raquel Stolf, pelas suas narrativas inspiradoras e pela leitura deste
trabalho.
À querida amiga Marta Martins, pelos passeios on the wild side.
À minha mãe, pela sua biblioteca misteriosa que desde cedo povoou meu imaginário,
pela linda vida que me deu e pela grandeza do seu amor.
Ao meu avô Holbein e à minha avó Jarina por viverem a arte tão intensamente.
Aos amigos queridos, especialmente Fernanda, Kamilla, Mariana, Elisa, Luiz e
Maurício, pelas mais variadas cumplicidades.
Ao Gustavo, pelos dias.
5. “O papel da escrita é construir, com tudo o que a leitura
construiu, um corpo (quicquid lectione collectum est, stilus
redigat in corpus). E, este corpo, há que entendê-lo não como
um corpo de doutrina, mas sim – de acordo com a metáfora
tantas vezes evocada da digestão – como o próprio corpo
daquele que, ao transcrever as suas leituras, se apossou delas e
fez sua a respectiva verdade: a escrita transforma a coisa vista
ou ouvida em forças e em sangue ( in vire, in sanguinem).”
Michel Foucault
6. RESUMO
Neste trabalho, são investigadas algumas constituições dos usos e da fala de si na obra
de arte. Da auto-retratação às auto-narrativas, leva-se em consideração o movimento de
revelação de um eu que nunca cessa de se criar. Assim, desconfia-se da noção de
biografia como dispositivo revelador, e pensa-se a escritura da vida como potência
criadora, buscando investigar uma certa dobra na noção do sujeito artista. Ao narrar a si
mesmo na obra de arte, o sujeito escapa da posição do sujeitado e faz da subjetivação
uma estratégia poética: trama entre dispositivos confessionais, como experiências,
artifícios e produção ficcional. O sentido de erosão não é abordado como destruição ou
pura desaparição, mas intenso movimento transformador, daquilo que se transfigura na
força do irrompimento e se produz outro, em constante processo de auto-invenção.
Palavras-chave: confissão, ficção, estética da existência, arte contemporânea, história
da arte.
8. 7
Introdução
Falar de si é escapar de um centro. O eu que se anuncia o faz a partir de uma
margem, de um espaço desviado. A confissão, antes de ser pura revelação do eu,
também é trama ficcional, pois é possível que o eu da enunciação já esteja despedaçado,
desde o princípio, pela própria linguagem na qual se enuncia. E, se assim for, este eu
descentrado na linguagem já não pode dar conta da própria revelação, pois está em
constante transformação pela vertiginosa experiência de narrar-se.
Interessa investigar aqui artistas que trabalham com procedimentos
confessionais para pensar as estratégias poéticas que são empreendidas na constituição
de uma fala se si. Interessa investigar o que não pode ser puro rebatimento do vivido,
mas a confissão de uma vida que vive na obra. Da auto-retratação às narrativas de si,
procura-se verificar como comparece, em algumas obras, o movimento de revelação de
um eu que nunca cessa de se criar. Assim, desconfia-se da noção de biografia como
dispositivo revelador, e pensa-se a escritura da vida como potência criadora.
Ao catalogar biografias de sujeitos sem nenhuma fama especial, os homens
infames, Michel Foucault cria um abalo na noção histórica de sujeito. Desviando dos
projetos iluministas ou da confiança marxista no sujeito, Foucault, por muito tempo,
investiga os sujeitos sujeitados pelas instituições de controle – sanatórios, presídios,
escolas. Paralela a essa compreensão acerca do sujeito da submissão, Foucault investiga
os sujeitos da subjetivação – da produção artística. Seguindo uma sensibilidade que já
estava nos estudos semiológicos de Barthes e na noção de inconsciente lacaniano,
Foucault se aproxima da idéia de que não são os homens que produzem a linguagem,
mas que eles próprios são produzidos por ela, portanto, no lugar de sujeitos absolutos,
pensa os sujeitos possíveis; em vez de uma historiografia positiva e determinante, uma
história do imprevisto; em vez da narrativa do sujeito moderno, assentado em si mesmo
e proprietário de sua vida, Foucault pensa a história dos sujeitos formados na
experiência e, portanto, na indeterminação. Apenas este sujeito do abalo poderia ser
sujeito na linguagem, pois o ser da linguagem só se daria a ver na desaparição, no lapso.
Assim, para narrar-se seria preciso, de certa forma, desaparecer.
Também a figura do autor está, na narrativa, em movimento de desaparição.
Foucault abandona a noção de um sujeito-autor para pensar a função-autor, na qual a
narrativa transborda e extrapola o sujeito narrador. Associa o surgimento histórico da
figura do autor à necessidade de punir os sujeitos por suas narrativas:
9. 8
Os textos, os livros, os discursos começaram efetivamente a ter autores
(outros que não personagens míticas ou figuras sacralizadas e sacralizantes)
na medida em que o autor se tornou passível de ser punido, isto é, na medida
em que os discursos se tornaram transgressores. Na nossa cultura (e, sem
dúvida, em muitas outras), o discurso não era, na sua origem, um produto,
uma coisa, um bem; era essencialmente um ato – um ato colocado no campo
bipolar do sagrado e do profano, do lícito e do ilícito, do religioso e do
blasfemo. Historicamente, foi um gesto carregado de riscos antes de ser um
bem preso num circuito de propriedades. (FOUCAULT, 2000, p.47)
Nesse sentido, a função-autor também seria uma função-mácula: aquele que
narra como aquele que cria uma fratura nos discursos. Portanto, não se trata de
desvendamento ou de arqueologia, a narrativa seria antes quebra, interrupção. Se o
discurso não é revelação, também o sujeito-autor não se desvenda: a relação entre
narrativa e narrador se dá como a dança entre dois corpos opacos. É famigerada a
formulação que Foucault pegou emprestada de Beckett para pensar a autoria: Que
importa quem fala, disse alguém, que importa quem fala; assim, o sujeito-autor se
apresenta desimportante diante da sua função autoral. O autor como elemento a priori
estaria em desaparição para dar lugar a este autor que se inventa na obra.
Dessa forma, o artista que empreende uma autoria de si através de sua obra
também cria uma erosão em si mesmo: macular-se enquanto sujeito, para criar a vida do
eu que vive na obra. Neste trabalho, busca-se investigar esta dobra empreendida pelo
sujeito que, ao narrar-se na obra de arte, escapa da sujeição e faz da subjetivação uma
estratégia poética, uma trama entre dispositivos confessionais, experiências, artifícios e
produção ficcional. A partir de uma pequena tipologia das erosões do eu – refrações de
si, abandonos de si e dissoluções de si – investigamos algumas possibilidades dos usos e
da fala de si na obra arte. A noção de erosão não é pensada como destruição, pura
desaparição do dado, mas intenso movimento transformador, que se transfigura na força
do irrompimento; assim, estas erosões do eu se aproximam da noção de ascese, pensada
por Foucault como uma espécie de adestramento de si, empreendida pelos homens
interessados no que chama a arte de viver. Entre abstinências, memorizações, exames
de consciência, meditações, longos silêncios e escutas, a ascese se trata do exercício em
direções extremas, da experimentação de si naquilo que desconforta o eu. Ainda que
exercício consciente, a ascese tem finalidades místicas, sobretudo a comunhão com
aspectos divinos e, sendo assim, o acesso ao mistério. Interessante pensar este duplo
caráter da ascese: se por um lado trata-se de adestrar-se, o que poderia supor adquirir
10. 9
um grande controle sobre si mesmo, também é profundo desejo de perder-se no
imprevisto do mistério. Assim, a forja de si supõe, desde o princípio, a dissolução do eu.
Pois é nesta tensão irresoluta que operam os procedimentos erosivos dos artistas da
auto-narrativa.
No primeiro capítulo deste trabalho, intitulado Refrações, trata-se de artistas que
desconfiam da própria imagem e biografia e criam para si um desvio identitário. No
primeiro item, Fogos, é tecida uma interlocução entre o trabalho The Kitchen- Homage
to Saint Therese de Marina Abramovic e o conto Todos os Fogos o Fogo de Júlio
Cortazar na busca da formulação de um pensamento acerca do anacronismo como
possibilidade poética de contágios e desvios temporais. Os conceitos de acontecimento
em Deleuze e de Eterno Retorno em Nietzsche foram tramados junto a essa reflexão. No
mesmo item pensa-se a noção de conversão nas performances The Lovers- Great Wall
Walk e Role Exchange de Marina Abramovic, propondo o gesto conversor como uma
outra forma de refração de si, não mais em uma temporalidade diversa, mas na
identificação com o desvio, a fratura. A noção de deslimite que está em jogo na
conversão foi pensada junto à idéia de Experiência Interior de Bataille e de potência
dionisíaca em Nietzsche. No segundo item, Espelhos, trata-se do gesto de Narciso,
presente na pintura de Caravaggio e na performance endereçada a vídeo de Patty Chang.
Enquanto Narciso é aquele que se afoga na própria imagem, Chang bebe de si mesma,
reconhecendo a imagem especular como uma coisa outra. Neste capítulo é tecida uma
reflexão foucaultiana acerca da diferença entre os preceitos délficos conhece-te a ti
mesmo e ocupa-te contigo e busca-se uma compreensão acerca da estética da existência.
Usando o conceito lacaniano de Estádio do Espelho e criando relações com o romance
Fogos de Marguerite Yourcenar, ressalta-se neste capítulo artistas que percebem o eu
como um outro, estranhando a imagem especular e fazendo do reflexo um desvio, uma
forma de refração.
No segundo capítulo intitulado Abandonos, trata-se de artista que se propõem à
práticas da perda, fazendo do despojamento uma forma de potência. No primeiro item
chamado Dissoluções, fala-se da performance Death Self de Marina Abramovic e Ulay
e relaciona-se a ela o conceito de Phármakon de Derrida, criando aproximações entre
malefício, benefício e artifício presentes no ato performático da dupla de artistas.
Relacionada à idéia de Phármakon está o conceito de paradoxo da paixão e de jogos
profundos tratadas por Vargas. No mesmo item também é explorado o vídeo Tornado
de Francis Alÿs, entendendo o gesto performático deste artista como outra possibilidade
11. 10
de dissolução de si através do manejo do ar. À obra de Alÿs é relacionado o conceito de
gozo lacaniano e de fruição em Barthes. O item é fechado com uma tempestade pintada
por William Turner, que também fazia da imagem do desastre uma potência para seu
trabalho. Assim, trata-se nesse item de artistas para os quais o risco é premissa para a
experiência estética. No segundo item, Encobrimentos, fala-se do abandono através das
práticas de veladura. É abordada a série fotografia Orr de Timo Klos, que põe em
questão a imagem em seu estado de apagamento. São trabalhadas as noções de
fotografia como jogo entre presença e perda, a partir de Barthes, e da imagem como
aquilo que revela encobrindo, presente no conceito de Fora em Blanchot. Tecendo ainda
relações com uma imagem do filme Notre Musique, de Godard, trata-se neste item da
potência reveladora das superfícies. No terceiro item, Errâncias, trata-se da
performance de Artur Barrio 4 dias, 4 noites e a partir da noção de confissão como
movimento apofático, proposto por Derrida, tratando da impossibilidade narrativa da
experiência. Usando a imagem deleuziana de deserto, são relacionadas às noções de erro
e errância com o Neutro blanchotiano e pensa-se a experiência confessional como
potência de auto-invenção através da incursão de um eu-narrativo despersonalizado
pelas bordas da linguagem.
No terceiro capítulo, Metamorfoses, são pensados artistas que inventam
identidades imprevistas para si a partir da experiência de seus corpos no espaço. No
item Olho-Taça fala-se da performance The Sea and the Mountain: Juju de Janaína
Tschäpe. São relacionadas a esta obra as noções de negligência de si e atração pelo fora,
a partir de Roger Callois, e de esquize do olho em Jacques Lacan, buscando a
compreensão acerca da nadificação que ocorre ao sujeito que se atrai pela paisagem. De
Lacan se toma emprestada esta idéia do olho como taça, compreendendo o olhar como
uma forma de empuxo, um local de apetites que arremessam o sujeito para fora de si.
No segundo item, Corpo-Murta, são abordadas as fotografias de Francesca Woodman a
partir dos conceitos deleuzianos de agenciamentos e de rizoma, para tratar dos corpos de
identidades fundidas e contaminadas retratados pela artista. A partir de uma série sem
título de 1980 no qual Woodman veste galhos de árvore em seus braços, são criadas
relações entre este trabalho, as narrativas de Ovídio em Metamorfoses e uma pintura de
Antonio di Jacopo Pollaiuolo que retrata o instante de metamorfose da ninfa Dafne em
árvore. São considerados estes instantes em que identidades se tornam híbridas e a
multiplicidade se dá como forma de identidade. Ao final do item são criadas relações
entre uma fotografia também sem título de Francesca Woodman datada de 1976 e a
12. 11
pintura Ofélia de Milais, criando-se uma reflexão acerca de atração e repulsão pelo meio
e estes estados de mortal comunhão entre corpo e paisagem. Por fim, é abordado o
conceito de identidade murta, trabalhado por Eduardo Viveiros de Castro, para falar da
inconstância da alma selvagem, feita de mutabilidades identitátia e da paixão pela
transmutação.
Ao fim deste trabalho, há um epílogo intitulado Sedimentos. Pois, sendo a erosão
este processo do sujeito que faz de si mesmo matéria maleável e transmutável pela força
de tudo aquilo que o atinge, certos sedimentos relativos à autora foram sendo expelidos
durante esta pesquisa e, assim, comparecem como um lampejo ao fim deste trabalho,
para o qual não há uma conclusão possível e sim a abertura para a descoberta e reflexão
acerca das infinitas possibilidades dos usos de si na obra de arte.
13. 12
1- Refrações
O eu é um outro. (Arthur Rimbaud)
1.1 - Fogos
O acontecimento permanece na e sobre a boca, afirma Derrida em Salvo o Nome
(1995, p.40) propondo uma compreensão na qual o acontecimento é, a um só tempo,
trabalho de enunciação e esforço corpóreo, gesto intencional e efeito de perturbação.
Acontecimento desta ordem é produzido por Marina Abramovic, em The Kitchen I -
Homage to Saint Therese, performance endereçada à fotografia realizada em 2009. Na
constituição de uma série de auto-retratos em uma grande cozinha abandonada, a artista
se deixa fotografar realizando ações como cozinhar, repousar entre utensílios
abandonados, flutuar e cair no chão. O título da obra indica que este trabalho é uma
homenagem a Santa Teresa d’Ávila, que relatava em seus diários os episódios de
arrebatamento e flutuação que a influência divina exercia em seu corpo. Abramovic
relata:1
2
The Kitchen sempre foi outro grande tema com o qual queria trabalhar. É
algo que reflete minha própria experiência quando estava com minha avó,
que era o centro do meu mundo quando eu era criança, e estava crescendo e
perdendo esse mundo devido minha vida nômade ao sair da Yoguslavia e
conhecer diferentes culturas, e então nunca voltei a usar uma cozinha para
cozinhar. Então há um tipo de memória e nostalgia nele e, por outro lado, há
a história do diário de Santa Teresa d’Ávila que li há tempo e do qual fiquei
copilando fragmentos, os quais até utilizei na publicação de um dos meus
livros há 10 anos, e se trata realmente de uma experiência sua levitando em
uma igreja e retornando a casa com fome e tentando cozinhar uma sopa e sua
levitação a impede com essa energia que ela não podia controlar e que a
tirava do solo. Ela não consegue terminar a sopa que está ardendo, e ela está
faminta. Me encantou esta de ideia de estar cansada do poder divino. E como
um dom pode ser também um obstáculo em sua vida cotidiana. Não sei, há
humor nisso, mas também me comoveu muito esse fragmento do diário de
sua experiência pessoal e eu queria combinar esses elementos, então fui a
Laboral em Gijón, no norte da Espanha e por acaso descobri esta cozinha das
freiras de clausura que cozinhavam para oito mil órfãos diariamente nos anos
cinquenta e essa enorme cozinha construída com uma arquitetura do período
1
Entrevista concedida em vídeo à Galeria La Fabrica por ocasião de exposição da artista na mesma,
disponível em <http://www.youtube.com/watch?v=fdonXtb55II> , acesso em 25/03/2011.
2
Livre tradução do original em inglês com legendas em espanhol.
14. 13
de Franco se converteu em algo mítico, uma espécie de milagre frente a mim
e imediatamente surgiram todas as minhas experiências, as de minha avó, a
da Santa Teresa d’Ávila e a nostalgia de minhas histórias neste espaço.
15. 14
Marina Abramovic – The Kitchen I – Homage to Saint Therese - 2009
Fotografia
Neste trabalho, Marina Abramovic cria um acontecimento no qual sua história
pessoal converge com a de uma santa do século XVI e, assim, trama um contato
anacrônico entre ficção, confissão, artifício e experiência. Estratégia narrativa
semelhante é empreendida em um conto de 1966, intitulado Todos os Fogos o Fogo, de
Julio Cortázar, uma narrativa na qual coexistem dois tempos e dois espaços: um
combate entre gladiadores romanos e uma conversa por telefone entre um homem e uma
16. 15
mulher. Sem explicar a concomitância entre estes dois acontecimentos, Cortázar
desenvolve as duas tramas, alternando de uma para outra abruptamente. Conflitos
amorosos, intrigas e desejos são constituidos nos dois espaços que, pouco a pouco,
convergem a um desfecho semelhante: a arena na qual os dois gladiadores que lutavam
pega fogo e a cama na qual o casal de interlocutores decide se encontrar também se
consome em chamas. O paradoxo temporal, a incoerência e a impropabilidade não
necessitam justificação: o fogo que tudo consome dissolve as impossibilidades e as
condensa em um mesmo amálgama de cinzas. Cortázar trabalha a narrativa em
combustão, a ausência de encadeamentos causais que justificassem os espaços narrados
se minimizam diante da narrativa que arde, colapsa, explode. O fogo aqui se dá como
matéria de possibilidades anacrônicas.
O anacronismo, presente na imagem do fogo em Cortázar, também comparece
no procedimento de Abramovic em Homage do Saint Therese, e pode ser pensado
como um movimento de refração: uma espécie de rebatimento contaminado e
contaminador. Não se trata de reflexo ou espelhamento, mas de mútuas identificações
entre temporalidades que divergem. Se a refração, em termos físicos, é um desvio
sofrido pelo raio luminoso, o anacronismo também pode ser aproximado esse desvio
que se propaga, corte que se faz potência. Noção semelhante foi pensada por Nietzsche
que propôs uma noção de tempo que não fosse pura propagação, mas um tempo de
contágios, em que comparece a ideia de um retorno do mesmo, em que o vivido se
manifesta em movimentos espirais. Assim, o Eterno Retorno se trata de um ato, uma
afirmação da vontade.
E se um dia ou uma noite um demônio se esgueirasse em tua mais solitária
solidão e te dissesse: "Esta vida, assim como tu vives agora e como a viveste,
terás de vivê-la ainda uma vez e ainda inúmeras vezes: e não haverá nela
nada de novo, cada dor e cada prazer e cada pensamento e suspiro e tudo o
que há de indivisivelmente pequeno e de grande em tua vida há de te
retornar, e tudo na mesma ordem e sequência - e do mesmo modo esta aranha
e este luar entre as árvores, e do mesmo modo este instante e eu próprio. A
eterna ampulheta da existência será sempre virada outra vez - e tu com ela,
poeirinha da poeira!". Não te lançarias ao chão e rangerias os dentes e
amaldiçoarias o demônio que te falasses assim? Ou viveste alguma vez um
instante descomunal, em que lhe responderias: "Tu és um deus e nunca ouvi
nada mais divino!" Se esse pensamento adquirisse poder sobre ti, assim como
tu és, ele te transformaria e talvez te triturasse: a pergunta diante de tudo e de
cada coisa: "Quero isto ainda uma vez e inúmeras vezes?" pesaria como o
17. 16
mais pesado dos pesos sobre o teu agir! Ou, então, como terias de ficar de
bem contigo e mesmo com a vida, para não desejar nada mais do que essa
última, eterna confirmação e chancela? (NIETZSCHE, p.164, 1991)
Ao supor essa possibilidade de Eterno Retorno, Nietzsche cria uma fragilidade
no tempo como cronos, que é o tempo “que faz do passado e do futuro suas duas
dimensões dirigidas, tais que vamos sempre do passado ao futuro (DELEUZE, p. 80,
2003) e instaura a possibilidade de um tempo aion, que é “o passado-futuro em uma
subdivisão infinita do momento abstrato, que não cessa de se decompor nos dois
sentidos ao mesmo tempo, esquivando-se para sempre de todo presente” (DELEUZE,
p.80, 2003) . A força da possibilidade de aion é a potência anacrônica da narrativa que
refrata no vivido, já que refração não é nem determinação e nem pura aceitação, pois o
Eterno Retorno tem a ver com a noção de aceitação desejante – amor fati – transfigurar
todo assim foi em assim quis que fosse (PERNIOLA, 2000, p.45). Trata-se, portanto, de
um sutil encontro entre o que se impõe no tempo – a imutabilidade do vivido – e o que
se constroi pela vontade e no desejo – o dizer sim, o gesto performático.
Homage to Saint Therese tem a ver ainda com a noção de acontecimento
proposta por Deleuze, já que o autor fala do acontecimento como um território
fronteiriço entre o que se efetua e o que se contra-efetua, localizando-o como espaço de
convivência entre o que se impõe como acidente e o que é manipulado em operações
desejantes.
Assim como os acontecimentos se efetuam em nós, e esperam-nos e nos
aspiram, eles nos fazem sinal: Minha ferida existia antes de mim, nasci para
encarná-la. Chegar a esta vontade que nos faz o acontecimento, tornar-se a
quase-causa do que se produz em nós, o Operador, produzir as superfícies e
as dobras em que o acontecimento se reflete. (DELEUZE, 2003, p. 151)
O acontecimento se trata, portanto, desta quase-causa, esta determinação
vacilante, ávida de sustos. O quase é o desvio, a possibilidade da refração, o tempo em
súbitas colisões, neste sentido, é o próprio combate travado contra às determinações.
Que quer dizer então querer o acontecimento? Será que é aceitar a guerra
quando ela chega, o ferimento e a morte quando chegam? É muito provável
que a resignação seja uma figura do ressentimento, ele que, em verdade,
tantas figuras possui. Se querer o acontecimento significa primeiro captar-lhe
a verdade eterna, que é como o fogo no qual se alimenta, este querer atinge o
ponto em que a guerra é travada contra a guerra, o ferimento, traçado vivo
18. 17
como a cicatriz de todas as feridas, a morte que retorna querida contra todas
as mortes. (DELEUZE, 2003, p. 152)
O fogo surge novamente em Deleuze como essa espécie de verdade eterna, esse
mistério sutil no qual aceitar não é resignar-se, mas torna-se profundo trabalho e alegre
combate: é a aceitação desejante, a concessão do Eterno Retorno nietzschiano, o
mistério de todos os fogos serem o mesmo fogo em Cortázar, a possibilidade de Marina
Abramovic refratar sua biografia na história de Santa Teresa D’Ávila.
A noção de fogo, para além da imagem do anacronismo, pode ser pensada no
trabalho de Abramovic como a imagem daquilo que é levado até o limite, até a completa
combustão, já que artista costuma levar seus trabalhos performáticos a pontos extremos
quando se propõe a experienciar limites corpóreos, com ações que envolvem privações,
exaustão, dores físicas e vulnerabilidade, tornando radical também a própria noção de
performance, tramando sua vida apaixonadamente em seus trabalhos. As obras The
Lovers- The Great Wall Walk (1988) e Role Exchange (1975) são exemplos da
radicalidade com a qual Marina Abramovic torna sua vida campo de experimentações
performáticas e faz de sua performance potência para a criação de sua própria vida. Em
The Lovers – The Great Wall Walk,3 Marina decide marcar o fim de seu relacionamento
conjugal e sua parceria artística com Ulay com uma caminhada sobre a Muralha da
China. Anos atrás, o casal havia solicitado permissão ao governo Chinês para realizar a
caminhada, quando a permissão finalmente é concedida, a caminhada se torna o último
de seus trabalhos em parceria. A obra consiste nos registros desta caminhada iniciada
por Marina e Ulay em lados opostos da Muralha, a fim de se encontrarem em algum
ponto e ali se despedirem um do outro. Abramovic começou a andar no leste da
Muralha em Shan Hai Guan, Ulay começou no oeste, em Jai Yu Guan. Depois de
caminharem por 90 dias, se encontraram na pronvíncia de Shaanxi. Esta performance
foi filmada pelo canal de tv BBC e resultou no documentário The Great Wall: Lovers at
the Brink. Em um outro vídeo The Lovers: Boat Emptying, Stream Entering Marina
Abramovic relata a performance sob seu ponto de vista.
3
Informações obtidas no site
<http://catalogue.nimk.nl/site/?page=%2Fsite%2Fart_play.php%3Fid%3D8754>, acesso em 25/03/2011.
19. 18
Marina Abramovic e Ulay – The Lovers – The Great Wall Walk – 1988
Fotografia
Já em Role Exchange4, Marina Abramovic, ao completar 10 anos como artista
profissional, decide trocar de lugar com Suze, uma mulher que completava 10 anos na
profissão de prostituta. Durante a noite de 2 de julho, uma assumiu o lugar da outra
durante 4 horas. Abramovic ficou na vitrine de Suze, em Red Lights District de
Amsterdam, e Suze foi à abertura de uma exposição de Abramovic em uma galeria
local. As experiências de cada uma delas foram registradas em câmeras Super 8 e as
gravações foram exibidas simultaneamente em 15 de Julho na mesma galeria em que
Suze havia comparecido.
4
Informações obtidas no site
<http://catalogue.nimk.nl/site/?page=%2Fsite%2Fart.php%3Fdoc_id%3D16039> , acesso em
25/03/2011.
20. 19
Marina Abramovic – Role Exchange - 1975
Fotografia
Abramovic cria espaços de indefinição nos quais sua subjetividade não opera
como estrutura: sua subjetividade é fraturada, estatelada, transtornada pelo acaso. Faz
do auto-assombro potência de auto-invenção. Opera em quase-causas, pois tudo
inventa, mas nada determina, experimenta para poder narrar. Não fala de si, se concebe
em sua fala; não produz matéria visceral, mas fratura exposta. A radicalidade destas
performances tange uma noção de conversão: marca desviante em uma biografia,
arrebatamento que se impõe, experiência de profunda alteração. Michel Onfray fala
destes acontecimentos conversores:
(...) Num momento preciso da vida do filósofo, num lugar determinado, numa
hora identificável, ocorre alguma coisa – o não sei o que de Benito Feijoo –
que resolve contradições e tensões acumuladas precedentemente num corpo.
21. 20
A carne registra esse abalo, a fisiologia o mostra: suores, choros, soluços,
tremores, suspensão da consciência, abolição do tempo, abatimento físico,
liberações vitais. Depois dessa mística pagã, após os transes do corpo, o
filósofo efetua um número consideravel de variações sobre esse material
acumulado, Genealogia da obra. (...) Esse relâmpago em que se manifesta o
destino em potência perturba, fura, penetra, abate, assassina e dopa.
(ONFRAY, 2010, p.16)
A conversão se trata deste lampejo que atinge o ser, afetando corpo e espírito,
fazendo com que algo se transmute radicalmente na biografia do sujeito atingido. O não
sei o quê é a a marca da experiência conversora, que provoca esse desvio imprevisível,
essa alteração impremeditada, essa cicatriz no corpo biográfico. Abramovic encena o
gesto conversor quando se propõe a situações das quais não poderá sair senão alterada,
maculada, convertida. Entretanto, a conversão enquanto gesto artístico difere de uma
conversão religiosa, por exemplo, pois não resulta em um novo estado a ser mantido,
mas é motor de novas conversões: o sujeito artista se dá como essa matéria disposta a
transmurtar-se, a abandonar estados e forjar-se outro no lampejo da experiência
artística. Bataille escreveu A Experiência Interior para tratar dessas experiências de
arrebatamento, que perturbam e alteram o sujeito da razão, em um trecho do livro,
escreve:
A experiência interior responde à necessidade em que me encontro – e
comigo a existência humana – de colocar tudo em jogo (em questão) sem
repouso admissível. (...) Os pressupostos dogmáticos deram limites indevidos
à experiência: aquele que já sabe não pode ir além de um horizonte
conhecido. Que a experiência conduzisse lá onde ela própria quisesse, e não
levá-la para qualquer fim preestabelecido. E digo logo que ela não leva a
porto algum (mas a um lugar de extravio, de contra-senso). Quis que o não-
saber fosse seu princípio. (BATAILLE, 1992, p.11)
Assim, Marina Abramovic, ao conferir radicalidade a suas ações performáticas,
abalando profundamente seu conforto identitário, tange estas noções de conversão e de
experiência interior, já que lida o tempo todo com a necessidade de colocar tudo em
jogo sem repouso admissível e aposta no não-saber – pois dá ao acontecimento
performático o estatuto da imprevisibilidade profunda – como potência de sua ação.
Bataille fala de dirigir-se ao extremo do possível como gesto provocador das
experiências profundas, onde se trata de alargar a possibilidade do vivível na clave do
não-saber: viver o que a razão não prevê, o que a lógica não admite. Esta intensidade
22. 21
proposta por Bataille e presente na obra de Abramovic tem a ver com a noção da força
dionísica da obra de arte, descrita por Nietzsche. O filósofo fala sobre a ideia de
individuação, que estaria presente numa potência apolínea da obra arte, relacionada ao
sonho, à projeção, à advinhação, à forma. Oposta a essa potência, aponta a força
dionisíaca da obra, a que tem a ver com a embriaguez, a desmedida, a laceração do
indivíduo em prol da força criadora. Em um texto no qual ressalta a potência dionisíaca
da obra de arte, o filósofo critica a noção de individuação subjetiva.
Essa divinização da individuação, particularmente se for considerada como
imperativa e prescritiva, não conhece senão uma única lei, o indivíduo, isto é,
a manutenção dos limites da personalidade, a medida, no sentido helênico.
Apolo, como divindade ética, exige dos seus a medida e, para poder
conservá-la, o conhecimento de si. E assim, à necessidade estética da beleza
vem se juntar a disciplina desses preceitos: Conhece-te a ti mesmo! e Nada
em demasia. (NIETZSCHE, 2007, p. 45)
Neste sentido, em Nietzsche, conhecer a si mesmo seria um mecanismo
limitador, um instaurador da medida, conhecer-se suporia aceitar-se como já formado, já
configurado em uma subjetividade estruturada. Contrária a essa aceitação seria o
dionísiaco esquecimento de si, noção próxima ao impulso de abandonar-se na narrativa
do outro adotada por Abramovic no trabalho The Kitchen I – Homage to Saint Therese.
Esquecer de si para converter-se em outra, viver a profundidade de uma experiência
transmutadora. Dessa forma, a obra tem a ver com a vida da artista, suas memórias e
desejos, mas não pode ser revelação de uma vida anterior ao acontecimento da obra,
pois ao se propor a encarnar a narrativa alheia, a refratar-se no desconhecido, Marina
Abramovic frequenta a desmedida de si e toda revelação será revelação da impossível
distinção do eu.
(...) ele pode se permitir dizer eu: mas esse eu não é aquele do homem
desperto, do homem da realidade impírica, mas sim o único eu existente
verdadeira e eternamente no fundo de todas as coisas e, pelas imagens com as
quais ele o manifesta, o poeta lírico penetra até o fundo de todas as coisas. (
NIETZSCHE, 2007, p.50)
Bataille afirma que “estamos totalmente expostos somente quando nos dirigimos
sem trapacear ao desconhecido. É a parte do desconhecido que dá à experiência de Deus
– ou do poético – sua grande autoridade.” (1992, p.13) Assim, as performances
conversoras como The Great Wall Walk e Role Exchange e a noção de refratamento
23. 22
temporal em Homage to Saint Therese tem a ver, de certa forma, com lançar-se a essa
exposição ao desconhecido; ainda que premeditadas, estas performances lidam com a
vivência da identerminação, não saber o que acontecerá na experiência de caminhar,
trocar de papel, encenar uma vida. Desta forma, pensa-se a noção de refração como um
desvio que cria imagens, um espelhamento que não é pura superfície refletora, mas ação
que impulsiona o reflexo para além de si. A refração dos tempos que se tangenciam e se
contaminam, pensada junto à imagem do fogo em Todos os Fogos o Fogo de Cortázar e
a partir da compreensão deleuziana, dá ao acontecimento o estatuto de campo de tensões
entre determinações e imprevisibilidades. Já a conversão encenada em algumas
performances de Marina Abramovic se dá como essa operação de dobra, refração entre
ser o sujeito que premedita a ação conversora e ser o próprio afetado pela conversão.
Agir e estar passivo a um só tempo: ser o agente do próprio acontecimento de uma
ruptura. Pois como diz Foucault: “O eu que se converte é um eu que renunciou a si
mesmo. Renunciar a si mesmo, morrer para si, renascer em outro eu sob uma outra
forma...” (2010, p.190) Assim, o gesto de Abramovic em suas performances que
encenam conversões é o de criar um ponto limite entre ser sujeito da ação e sujeito que
se sujeita ao imprevisível do ato. Desta forma, a refração é esse movimento de desvio
no tempo ou na ação, que faz com que o sujeito empreenda uma forja de sua própria
existência, já que “é preciso desviar-se para virar-se em direção a si” (FOUCAULT,
2010, p.186) e, nesta forja desviante, Marina Abramovic entrelaça a criação de sua vida
à criação de sua obra.
1.2 - Espelhos
Entre 1594 e 1596, Caravaggio pintou um Narciso retratado no instante do seu
apaixonamento. A imagem do homem se reflete na superfície da água em puro
rebatimento, puro reflexo. Diz a mitologia 5 grega que a ninfa Liríope, mãe de Narciso,
consultou o adivinho Tirésias para saber o futuro da criança. O sábio lhe respondeu que
Narciso poderia viver muitos anos na condição de que ele nunca conhecesse a si
mesmo. A ninfa Eco, privada da própria fala por um desejo da deusa Hera e condenada
a repetir as últimas sílabas das palavras que ouvisse, apaixonou-se por Narciso e, na
5
Informações obtidas no site http://www.algosobre.com.br/mitologia/narciso.html, acesso em
25/03/2011.
24. 23
impossibilidade de declarar-lhe seu amor, se limitava a segui-lo. Porém Narciso a
desprezava e Eco, entristecida, definhou até morrer. Nêmesis, deusa da Justiça, ao ser
convocada pelas ninfas revoltadas com o destino de Eco, condenou Narciso a viver um
amor impossível. Assim, cumprindo-se a maldição, certo dia Narciso se aproximou da
fonte de Tespias para se refrescar. Ao enxergar sua imagem refletida nas águas, viu-se
imediatamente seduzido por sua própria beleza, apaixonando-se então por si próprio e
afogando-se mortalmente no seu próprio reflexo.
Caravaggio – Narciso - 1594-1596
Óleo sobre tela, 110 x 92 cm, Galleria Nazionale d'Arte Antica.
Narciso é aquele que não consegue se apaixonar pelo diverso, mover-se para
fora de si. É possível que um movimento de refração ou desvio pudessem salva-lo,
pois demonstrariam a precariedade deste que contempla, feito apenas da pele frágil dos
espelhamentos. A pena de Narciso foi ser vítima da determinação do destino e afogar-
se na superfície da própria imagem. Conhecer a si mesmo foi mortal para Narciso, pois
este conhecimento foi a marca limitadora de sua existência.
Em 1972, Patty Chang, realizou uma performance intitulada Fountain, na qual
refaz o primeiro gesto de Narciso: põe-se de diante de uma superfície refletora e encara
25. 24
a própria imagem. Em um vídeo 6colorido de 5 minutos e 29 segundos, a artista registra
sua ação diante de seu reflexo. Patty Chang se encara em um espelho redondo coberto
por uma camada de camada de água, a qual passa a sugar e ingerir vigorosamente. Em
um ângulo fechado, no qual aparecem apenas os rostos de Chang, perde-se a noção de
perspectiva e a camada de água que parece estar posicionada paralelamente em relação
ao rosto da artista cria um elemento perturbador na imagem, que assume sua gravidade
artificial e seu acontecimento injustificado. Entretanto, em vez de apaixonar-se, Chang
seduz essa imagem diante da qual se coloca. Auto-absorção, auto-hipnose, autofagia. A
contemplação de si abre lugar para um intenso trabalho desejante, um procedimento em
que se coloca em jogo a vontade da tanger e impossibilidade da retenção. A artista
relata 7:
Eu estava obcecada pela idéia de uma superfície lisa e a ilusão de
profundidade que isto envolve, isso é um abismo superficial. Baudrillard
escreveu como a sedução significa morrer enquanto realidade e reconstruir-se
como ilusão. Olhar-se é um ato de sedução, a ação de se olhar se torna um
ciclo de vida e morte e o gesto de beber a água é uma aceitação de ciclo.
Patty Chang - Stills do vídeo Fountain - 1972
Água e espelho são espaços para a revelação, instrumentos de oráculo, mas, se o
adivinho se coloca diante dessas superfícies para contemplá-las, a espera de uma visão,
Chang recusa a pura contemplação e entende que, se há alguma verdade a ser
encontrada nas superfícies, é a verdade de seu ato: o ato de beber. A sucção de Chang é
o desvio que cria. Se Narciso é a crença no reflexo, Chang é o reconhecimento da
imagem do espelho, da imagem do eu, como um corpo estranho, que pode ser seduzido,
sugado e até ingerido.
6
Informações obtidas no site < http://collection.fraclorraine.org/collection/print/106?lang=en >, acesso
em 25/03/2011.
7
Livre tradução do original em inglês disponível em
<http://collection.fraclorraine.org/collection/print/106?lang=en > , acesso 25/03/2011.
26. 25
Michel Foucault, em A Hermenêutica do Sujeito, afirma que as questões da
relação entre sujeito e verdade na cultura ocidental sempre esteviram pautadas no
preceito délfico conhece-te a ti mesmo. Entretanto, reconhece que havia um outro
preceito grego, o ocupa-te contigo que foi marginalizado na construção da noção do
sujeito. Foucault traduz o ocupa-te contigo no conceito do cuidado de si, que descreve
como sendo um conjunto de práticas formadoras de um prestar serviço a si mesmo.
Contrário ao conhece-te a ti mesmo instaurador da medida, o cuidado de si é invenção
das possibilidades do eu e, neste sentido, um dispositivo da prática de execeder-se.“ O
cuidado de si é uma espécie de aguilhão que deve ser implantado na carne dos homens,
cravado na sua existência, e constitui um princípio de agitação, um princípio de
movimento, um princípio de permanente inquietude no curso da existência.”
(FOUCAULT, 2010, p.9).
Inconformar-se com o repouso do eu é o princípio para tornar a si mesmo
matéria plástica da obra de arte. Relacionada ao cuidado de si e ao uso do prazeres,
Foucault aponta a constituição de uma estética da existência, na qual a vida é tramada
na potência de uma obra de arte. Através do cuidado de si, o sujeito adquire a força
necessaria para empreender uma existência artesanal, forjada por si mesmo.
(...) desde os cínicos – os pós-socráticos: cínicos, epicuristas, estoicos, etc. -,
a filosofia vinha, cada vez mais, buscando sua definição, seu centro de
gravidade, fixando seu objetivo em torno de alguma coisa que chamava
tékhne toû bíou, isto é, a arte, o procedimento refletido da existência, a
técnica de vida. Ora, à medida que o eu vai se afirmando como sendo objeto
de um cuidado (...), percebemos que entre a arte da existência (a tékhne toû
bíou ) e o cuidado de si – ou então, para falar mais sucintamente, entre a arte
da existência e a arte de si mesmo – há uma identificação cada vez mais
acentuada. (FOUCAULT, 2010, p. 160)
Desta forma, Foucault afirma que a estética da existência está associada a um
conjunto de práticas – as práticas do cuidado de si. Ressalta-se que, na Hermenêutica do
Sujeito, Foucault cria distância entre a noção de cuidado de si e práticas políticas ou
pedagógicas, propondo o cuidado de si e a estética de existência como práticas que
resistem às estruturas e são campo de possibilidades para o movimento de seres que se
inventam na imprevisão. Se a noção de existência está recoberta de ideias de
determinismo – destino, fado, escritura prévia a ser cumprida – Foucault cria uma uma
dobra nessa noção, pois, para o autor, mais determinante é aquilo que o sujeito faz
27. 26
daquilo que fizeram dele. O sujeito, portanto, é artífice de si mesmo e, daquilo que é,
transforma-se em tudo que pode vir a ser. É duelo entre estrutura e invenção: “Mas ela
tem também uma função de luta. A prática de si é concebida como um combate permanente.”
(FOUCAULT, 2010, p.124). A estética da existência, assim, é a prática empreendida pelo
sujeito que coloca sua identidade na clave do devir, que busca desviar das estruturas
subjetivantes e se permite a invenção de uma existência.
É também a partir da força da luta, da arrebentação da individuação limitadora,
que Nietzsche pensa a potência dionisíaca de tornar a vida um bloco com potência de
arte.
Cantando e dançando, o homem se manifesta como membro de uma
comunidade superior: ele desaprendeu a caminhar e falar e está a ponto de,
dançando, voar pelos ares. Seus gestos revelam uma encantadora beatitude.
Assim como agora os animais falam e a terra produz leite e mel, também a
voz do homem ressoa como algo de sobrenatural: ele se sente um deus; agora
seu andar é tão nobre e cheio de êxtase como aquele dos deuses que viu em
seus sonhos. O homem não é mais artista, tornou-se obra de arte: a potência
estética da natureza inteira, para a máxima satisfação do Um primordial, se
revela aqui sob o estremecimento da embriaguez. A argila mais nobre, o
mármore mais precioso, o homem aqui é moldado e trabalhado (....).
(NIETZSCHE, 2007, p.31)
Jogo de superfícies, a refração do eu marca a convivência de corpos narrativos,
produções de existências que convergem na criação de uma terceira a vida, a vida da
obra. Procedimento de invenções anacrônicas no qual o tempo é torcido pelo desejo da
experiência. Tragédia maculada: o destino deixa de ser imperativo para tornar-se
matéria da invenção.
Lacan formulou a teoria do Estádio do Espelho, para dar conta de uma noção
central em seu pensamento: a serparação entre o moi (o Eu produzido pela alienação, ou
seja, pela identificação com uma imagem pré-definida) e o je (o sujeito do desejo, da
pura negatividade). O Estádio do Espelho é este momento em que o bebê, que até então
não possui uma imagem de si mesmo, confundindo sua identidade com a de sua mãe e
da paisagem que o cerca, passa a se reconhecer com um sujeito definido por uma
imagem especular. A formação da noção de eu, portanto, se dá sobretudo a partir da
identificação com uma imagem exterior ao sujeito, sua imagem refletida em uma
superfície exterior. Essa falta de concidência entre o eu do desejo e o eu identificado
com a imagem tornará o sujeito para sempre barrado, ou seja, sujeito de uma falta.
28. 27
(...) o primeiro efeito que aparece da imago no ser humano é um efeito de
alienação do sujeito. É no outro que o sujeito se identifica e mesmo se
experimenta de início (...). Essa relação erótica em que o indivíduo humano
se fixa a uma imagem que o aliena em si mesmo, eis aí a energia e eis aí a
forma onde tem origem esta organização passional que ele chamará de seu
eu. (LACAN, 2008, p. 113)
A noção de eu como uma organização passional proposta por Lacan comparece
no procedimento de Patty Chang ao jogar com a sedução diante da própria imagem. A
morte de Narciso é a crença na coincidência do eu com a identificação de sua imagem,
e esta crença é paralisante, pois é auto-centrada e incapacitada de se lançar para fora de
si. Chang, ao reconhecer a sua imagem como uma coisa outra, cria a refração diante do
reflexo e assim instaura o desvio no gesto narcísico, o eu se salva porque se reconhece
como um outro. Gesto semelhante empreendeu a escritora Marguerite Yourcenar na
escritura de seu livro Fogos, publicado em 1974, no qual intercala pequenos aforismos
conficionais como “Espero que este livro jamais seja lido” e “Não mais se dar é dar-se
ainda. É fazer a dádiva do prório sacrifício” com narrativas que revisitam mitos gregos
(como em “Aquiles ou a mentira”, “Anígona ou a escolha”, “Pátroclo ou o destino”,
“Safo ou o suicídio” e outros), um mito cristão (“Maria Madalena ou a salvação”).
Criando intricadas narrativas que deslizam entre o ficcional e o conficional, Yourcenar
narra na primeira pessoa através da voz de tais personagens. O prefácio do livro também
se trata de uma confissão da autora, que relata ser Fogos o “produto de uma crise
passional, uma série de prosas líricas interligadas por uma certa noção de amor” (1983,
p 9). A autora afirma que “o amor louco cessa rapidamente de ser algo mais que um
jogo de espelhos ou uma mania triste. Em Fogos, onde acreditei não fazer outra coisa
senão glorificar um amor concreto, ou talvez, exorcizá-lo (...)”(1983, p.22). Amor
exorcizado, fala amorosa de múltiplos corpos, confissão que escapa da intenção
ficcional, ficção catártica que lida com a crise, novamente a imagem do fogo surge
como a matéria da união dos díspares. Todos os corpos apaixonados queimam, ardem
em brasa e assim se tornam indistintos nesta narrativa onde o que importa é tratar da
potência do enamoramento. Assim, Yourcenar refrata os seus próprios exorcismos
amorosos na voz de outros sujeitos narrativos e mistura o mais confessional ao
puramente inventado – tornando os dois registros – confissão e ficção – idistinguíveis.
Em Homage do Saint Therese, assim como em suas obras no qual põe sua
biografia em estados de risco, Marina Abramovic produz-se no deslimite da alteridade,
29. 28
cria para si acontecimentos que colocam sua subjetividade a toda prova, fazendo desse
estado de constante risco um estado em que sua existência é potência e motor de gestos
artísticos. Em Foutain, Patty Chang encena o Narciso que brinca com o seu reflexo e,
no reconhecimento da própria identidade como matéria moldável e maleável, se salva
do afogamento, do engessamento na própria na imagem. Abramovic e Chang criam
gestos no qual a imagem de si nunca está em repouso, em conformidade, mas é
superfície incendiária, onde o gesto poético entra em combustão. Criam para si um
acontecimento como propõe Deleuze, para quem criar o acontecimento se tratava de
“tornar-se o filho de seus próprios acontecimentos e por aí renascer, refazer para si
mesmo um nascimento, romper com seu nascimento de carne”. (2003, p.152).
Marguerite Yourcenar em Fogos, Marina Abramovic e Patty Chang fazem do eu um
outro e, nesse gesto, fazem com que a obra de arte seja o espaço onde tempos, corpos e
narrativas possam se frequentar. Como um raio luminoso que, quando atinge uma
superfície refletora emana fogo, esta refração de identidades produz a potência de
deslimite e na combustão dos corpos desejantes da criação de si.
30. 29
2- Abandonos
Eu sou mais forte que eu. (Clarice Lispector)
2.1 - Dissoluções
Em 1977, Marina Abramovic e Ulay apresentam pela primeira vez a
performance Death Self (Breathing in, Breathing out) no Studenski Kulturni Centar em
Belgrado. Neste trabalho, Marina e Ulay se ajoelham de frente para o outro com suas
bocas coladas e, tendo seus narizes tamponados, permancem trocando o ar de seus
pulmões até que o oxigênio se esgote. Ambos tem microfones colados em suas
gargantas, para que o público possa ouvir suas respirações ofegarem até falhar. A
performance dura 19 minutos.
31. 30
Marina Abramovic e Ulay – Self Death (Breathing in, Breathing out) – 1977
Fotografias da performance
Self Death faz parte de uma série de performances realizadas em parceria por
Marina Abramovic e Ulay. Durante uma década o casal de artistas explorou diversas
formas de engajamentos entre seus corpos e suas consciências; tempo, espaço, ritmos
eram manipulados e provocados por suas ações conjuntas, na busca daquilo que
chamavam a formação de uma consciência artística única através de uma da morte de
seus egos individuais. Nesta performance, Abramovic e Ulay trabalham com o ar:
alento preso, partilhado, contaminado, insuficiente. A dupla encena o desejo e a
impossibilidade dessa completa comunhão de seus corpos: quando se fecham um no
outro, falham; quando assumem apenas o comum, não suportam. A busca da formação
desse ego único, portanto, é uma busca de desvios, falhas, desmaios. Quando se propõe
radicalmente às experiências de auto-abandono, a dupla bordeja o risco, a falência, pois
sabem que somente no limite do suportável é que criam o desejado transtorno de suas
medidas, assim, as experiências corpóreas de Abramovic e Ulay tem a desproteção
como forma de potência.
Michel Onfray, em A Potência de Existir, reivindica um pensamento-corpo, uma
intelectualidade visceral, condição fundamental do que considera uma existência
potente. Se Marina Abramovic e Ulay trabalham um conceito – o de consciência
artística única - através de experiências corpóreas, também Onfray aponta o estado de
criação filosófica como um estado corpóreo:
32. 31
O corpo do filósofo é de uma natureza singular: hiperestésico, arranhado,
frágil e forte ao mesmo tempo, poderoso e delicado, mecânica de precisão
capaz de desempenhos sublimes, mas por causa da precisão, mecânica sujeita
a desregulagens ínfimas. Corpo de artista (...), corpo destinado ao
conhecimento pelos abismos – conforme a feliz expressão de Michaux.
(Onfray, 2010, p.17)
O corpo-conceito seria esse que pratica a travessia do abismo como forma de
conhecimento – ou de produção – de si. Self Death figura como a pratica de um
acontecimento que, a um mesmo tempo, revela e produz subjetividade e assim alarga as
margens do possível pois ir “ aonde você não pode ir, no impossível, é, no fundo, a
única forma de ir ou de vir. Ir aonde é possível não é ir, é já estar lá, se paralisar na in-
decisão do inacontecimento” (DERRIDA, 1995, p.63). Marina Abramovic e Ulay,
quando afirmam a busca pela morte de seus egos em suas ações conjuntas,
comprometem-se com a desmedida e a impossibilidade do completo auto-abandono.
Derrida, em A Farmácia de Platão, recupera a noção grega de phármakon, que
se refere às substâncias que são, ao mesmo tempo, remédio e veneno, cura e
adoecimento. “Esse encanto, essa virtude de fascinação, essa potência de feitiço podem
ser – alternada ou simultaneamente benéficas e maléficas.” (DERRIDA, 2005, p.14)
Além de elemento de essência benéfica com propriedades dolorosas, o phármakon é
também cosmético, artifício. A performance de Abramovic e Ulay pode ser aproximada
a essa íntima relação entre beneficio, malefício e artifício, pois, se por um lado produz
prejuízos a seus corpos, é benéfica enquanto produção desejante de corpos que levam a
si mesmos a pontos raros da experiência, e se trata também de operação cosmética, já
que é obra de arte, forja de si, experiência poética. A performance do casal de artistas é,
ao mesmo tempo, sujeição a uma alteração e a própria conjuração do elemento
alterador: é a decantação de um phármakon particular. Derrida descreve:
Esta dolorosa fruição, ligada tanto à doença quanto ao apaziguamento, é um
phármakon em si. Ela participa ao mesmo tempo do bem e do mal, do
agradável e do desagradável. Ou antes, é no seu elemento que se desenham
essas oposições. Depois, mais profundamente, para além da dor, o remédio
farmacêutico é essencialmente nocivo porque artificial. (...) O phármakon
contraria a vida natural: não apenas a vida quando nenhum mal a afeta, mas
mesmo a vida doente, ou antes a vida da doença. (2005, p.47)
33. 32
Assim, o phármakon se aproxima da experiência performática de Marina
Abramovic e Ulay pois se trata da produção de um desvio, de um arrebatamento
voluntário, forjado. Derrida escreve que “o phármakon é esse suplemento perigoso que
entra por arrombamento exatamente naquilo que gostaria de não precisar dele e que, ao
mesmo tempo, se deixa romper, violentar, preencher e substituir” (2005, p.57), portanto,
existe neste conceito pensado por Derrida a mesma tensão entre o arrombamento e o
deixar-se romper presente em Self Death. “Apreendido como mistura e impureza, o
phármakon também age como arrombamento e a agressão, ele ameaça uma pureza e
uma segurança interiores. (...) A pureza do centro (...).” (2005, p.77) Levar a si a
voluntários estado de desproteção teria a ver, portanto, com esse movimento de
descentramento, de perda da segurança em um centro estruturado e puro, em direção às
margens da experiência.
Vargas (2006) fala das práticas de auto-abandono como agenciamentos
paradoxais, práticas que encenam o próprio paradoxo da paixão: “como pode alguém
agir tão intensamente para que aconteça alguma coisa contra a qual não se pode fazer
nada?”. Contrário a toda positividade, a toda noção de lucro e otimização, o paradoxo
da paixão é pura prática do excesso, puro exercício dionisíaco. Premeditar o
incalculável, buscar o indizível, entregar-se ao indeterminável, criar o acontecimento
como Clarice Lispector criava o instante “O próximo instante é feito por mim? ou se faz
sozinho? Fazemo-lo juntos com a respiração. E com uma desenvoltura de toureiro na
arena.” (1973, p. 7) Vargas escreve sobre experimentações intensivas e auto-abandono,
ou o paradoxo das ações que deliberadamente visam “sair de si”, como o uso de drogas.
Chama essas práticas de jogos profundos, utilizando do termo cunhado por Jeremy
Bentham, filosófo utilitarista fundador da teoria do calculo hedonista. Para Bentham os
jogos profundos eram aqueles nos quais “as apostas são tão altas que, da perspectiva
utilitarista, é irracional que os homens se engajem nele(s).” Nesse sentido, pode-se
pensar a performance Self Death como um jogo profundo, uma forma de apostar alto, de
praticar o risco e exercer o que não é ganho na perspectiva utilitarista.
Vargas (2006) define os jogos profundos como “práticas que envolvem modos
singulares de engajamento no mundo, nos quais as substâncias são mediadoras
indispensáveis para a produção de alter-ações.” Há, portanto, uma substância mediadora
necessária para alcançar a experiência do jogo profundo. Vargas escreve:
34. 33
(...) essas alterações intensivas que implicam abandono ou dissolução do eu
são auto-engendradas, são voluntariamente visadas, são minuciosamente
preparadas. Esse ponto é decisivo: deslocamento, movimento para fora, sair
de si, não é exatamente essa a fórmula do êxtase? Dessa perspectiva é
possível sintetizar nos seguintes termos o paradoxo do êxtase(...): fazer de
tudo (ou quase...) para que nos aconteça algo que nos escapa desde o início
Êxtase desejado, alteração batalhada, o jogo profundo seria produtor desses
modos singulares de engajamento no mundo. Conhecer pelo abismo e, alterado pelo
conhecimento abissal, produzir-se no mundo. Michel Onfray (2010) escreve sobre a
noção de substância prometeica, essa característica de Prometeu, inventor dos homens,
ladrão do fogo, enganador dos deuses. Na mitologia grega, Prometeu era um dos titãs,
uma espécie gigantesca que habitou a terra antes do homem. Prometeu e seu irmão
Epimeteu foram incumbidos de forjar o homem e os outros animais, assim como
incutir-lhes todas as habilidades que fossem essenciais a suas sobrevivências. Epimeteu
passou a executar e o trabalho e Prometeu encarregou-se de examiná-lo depois que
estivesse pronto. Epimeteu tratou de dar a cada animal habilidades variadas, porém,
chegando a vez do homem, Epimeteu deu-se conta que havia gastado seus recursos com
muita rapidez e que nada mais havia sobrado. Para ajudar o irmão, Prometeu subiu ao
céu e acendeu sua tocha no carro do sol trazendo o fogo para o homem. O fogo lhe
possibilitou construir as armas com as quais pode domar os animais, ferramentas com
que arou terra, aquecer sua casa de modo a se salvar dos determinismos do clima e
demais vantagens sobre os outros animais. Assim, a substância prometeica é essa
potência de apropriar-se do fogo divino, de artificializar-se, escapando do determinismo
do meio, forjando-se. A noção de substância prometeica se aproxima da noção de
phármakon já que “operando por sedução, o phármakon faz sair dos rumos e das leis
gerais, naturais ou habituais” (p.14), é a própria produção de descaminho, potência de
desvio.
Se Marina Abramovic e Ulay buscam desviar de seus próprios egos esgotando-
se um na respiração do outro, Francis Alÿs também encena a dissolução de si no ar . No
vídeo Tornado de 2010, Alÿs apresenta o resultado de cerca de dez ano de caça às
tempestades de areia e tornados sazonais, que ocorrem no deserto mexicano. Aplicando-
se fervorosamente nesta tarefa desgastante e perigosa, o vídeo intercala cenas curtas,
filmadas pelo próprio artista ao confrontar-se com o tornado, com cenas longas em que
Alÿs é filmado a distância.
35. 34
Francis Alÿs – Tornado – 2010
Stills de vídeo
8
Alys relata :
Entrar não é difícil, tem uma corrente de vento e areia muito agressiva em
volta, mas, lá no meio, é calmo, monocromático, até sublime. Não sei se
procuro beleza, graça ou redenção, só acredito que, nesse caso, houve uma
busca por um silêncio sublime, por ordem e paz num lugar estranho, como se
experimentasse o que é estar à beira da ruína, de um colapso interno.
Trabalho extenuante, captura que nada retém, jogo profundo, Tornado é a
imagem da luta pela dissolução de si, jornada através do gozo. Lacan fala do gozo como
um excesso que não encontra representação, que não encontra significação, que não
pode se enlaçar com a cadeia significante: é algo que está fora da simbolização e além da
linguagem. Assim é o encontro de Alÿs com o tornado: excessivo, indefinível, indomável. A
compulsão do artista em perseguir esses fenômenos metereológicos fala de uma repetição
gozosa, fruída. Barthes escreve: “Texto de fruição: aquele que põe em estado de perda,
aquele que desconforta (talvez até um certo enfado), faz vacilar as bases históricas,
8
Informação extraída de
(http://www.eseu.com.br/arte_e_cultura/materias/francis_alys_apresenta_obra_sobre_filme_de_furacoes.
html), acesso em 03/05/2011.
36. 35
culturais, psicológicas, do leitor, a consistência de seus gostos, de seus valores e de suas
lembranças, faz entrar em crise sua relação com a linguagem”. (1996, p.21) . A fruição
é, portanto, a um só tempo, estado de produção e perda, engajamento singular no
mundo, que pressupõe a negligência de si em favor da paixão pelo fora. A paixão de
Francis Alÿs parece ser a de empreender o máximo de esforço para obter um mínimo de
resultado, como se pode perceber na sequência de seus atos performáticos que incluem
mover uma duna de lugar (Quando a fé move montanhas, 2002), subir uma ladeira
íngreme com um Fusca (Rehearsal I, 1999-2001), caminhar destecendo um suéter
deixando um fio de lã pelo caminho (Fairy Tales, 1995) e arrastar um bloco de gelo
pelas ruas do Novo México (Sometimes Doing Nothing Leads to Nothing, 1997).
Assim, refazendo de muitas formas o esforço de Sísifo, aquele que foi condenado a rolar
uma imensa pedra até o topo de uma colina para, em seguida, deixá-la cair e recomeçar
a tarefa infinitamente, Alÿs desconcerta a própria noção de produção e põe em cena este
esforço que não se fixa, essa paixão sem objeto, essa prática gozosa.
Em Tornado, Francis Alÿs se propõe a uma prática eremita: caminha pelo
deserto em busca de um encontro sublime, assume uma solidão que produz o seu corpo
desejante de tormentas. Assim, a ação performática do artista é a de uma
imprevisibilidade tão negra quanto o olho convulso de cada tornado em que se joga.
“Caráter associal da fruição. Ela é perda abrupta da socialidade e, no entanto, não se
segue daí nenhuma recaída no sujeito (a subjetividade), na pessoa, na solidão: tudo se
perde, integralmente. Fundo extremo da clandestinidade, negro de cinema” (BARTHES,
1996, p.53) . Salto no indizível, no excesso, na linguagem quando lapso. Alÿs, quando
se expõe em seu vídeo, não revela nada de si, senão a sua imensa disponibilidade para
criar-se, para criar no seu corpo essa camada convulsa, esse parentesco com os ventos e
os solos desérticos, instaura uma espécie de dicção corpórea, o que Barthes nomeia de
“a arte de conduzir o próprio corpo” (1996, p.86). Assim, tanto Alÿs como Abramovic e
Ulay fazem de seus corpos motores do acontecimento imprevisto, da experiência como
forma de travessia pelo perigo. Experiência-teia, na qual o corpo é matéria inventiva
dele mesmo:
Texto quer dizer tecido, mas enquanto até aqui esse tecido foi sempre tomado
por um produto, por um véu todo acabado, por trás do qual se mantém, mais
ou menos oculto o sentido (a verdade), nós acentuamos agora, no tecido, a
ideia gerativa de que o texto se faz, se trabalha através de um entrelaçamento
perpétuo; perdido neste tecido – nessa textura – o sujeito se desfaz nele, qual
37. 36
uma aranha que se dissolvesse ela mesma nas secreções construtivas de sua
teia. (1996, p.82)
Imagem-gozo, excesso, transbordamento. Experiência de fruição, pois “(...)isso
granula, isso acaricia, isso raspa, isso corta: isso frui” (1996, p.86) Assim como o
phármakon é, a um só tempo, veneno e antídoto, a prática do gozo é fruição e dor.
Precisa ser arrebentamento, para arrebatar. Destroi, para criar. Em Self Death e em
Tornado o ar é elemento desestabilizador que molesta o corpo, mas é experienciado
como phármakon, forma de substância prometeica, porque é manipulado, desafiado,
transfigurado em substância artística. A radicalidade destas obras é própria radicalidade
do desvio: o que naturalmente destruiria, aqui, é pura produção, construção de corpos e
subjetividades inesperadas. Pois, como escreve Marguerite Yourcenar, “(...) o prazer e a
arte constituem em nos abandonarmos conscientemente a essa bem-aventurada
inconsciência , consentindo em sermos sutilmente mais fracos, mais leves, mais pesados
e mais confusos que nós mesmos” (1980, p.25). E é esse estado de abandono e bem-
aventurança, a um só tempo, que é posto em cena tanto em Self Death como em
Tornado.
O ar em convulsão também foi matéria de pesquisa do pintor William Turner
(1773-1851). Tendo pintado diversas cenas de pragas, destruições de cidades,
naufrágios, tormentas e mares revoltos, Turner criou uma gramática do desastre em sua
produção pictórica. A forma convulsa e dissolvida de sua pintura não pretende dar conta
do mundo através da perspectiva renascentista, como seus contemporâneos neo-
clássicos; mas, de uma maneira mais visceral, Turner era acometido por uma
sensibilidade romântica que estava comprometida com “um regresso à Natureza, a
Natureza desmedida, selvagem e variável, sublime ou pitoresca.” (JASON, 1989, p.
574). Um mergulho, portanto, nesta mesma natureza que enfrenta Francis Alÿs, a
natureza como produtora de indeterminação já que “foi em nome da Natureza que os
Românticos adoraram a liberdade, o poder, o amor e a violência, os Gregos, a Idade
Média, numa palavra, tudo o que lhes inspirava entusiasmo.’ (JASON, 1989, p. 574).
Há, em comum, um fascínio pela natureza caótica e indomável, como a pintada em
Snow Storm - Steam Boat off a Harbour's Mouth de 1842.
38. 37
William Turner – Snow Storm – Steam Boat off Habour’s Mouth – 1842
Óleo sobre tela, 91,4 x 121,9 cm. Tate Britain
Alguns biógrafos de Turner relatam que o pintor se fez amarrar ao mastro de um
barco em meio a uma tempestade para vivenciar no corpo os efeitos do fenômeno
atmosférico, dado que aproxima o procedimento investigativo de Turner ao
procedimento performático de Alÿs. Mais que pesquisa formal, a incursão de Alÿs e
Turner em direção às tormentas podem ser pensadas como buscas por estados sensíveis,
experiências profundas. Nietzsche escreve sobre a potência que pode haver na passagem
por estados que desequilibram o corpo:
E no que toca à doença: não estaríamos quase tentados a perguntar se ela é
realmente dispensável para nós? Apenas a grande dor é o extremo liberador
do espírito, enquanto mestre da grande suspeita (...). Apenas a grande dor,
lenta e prolongada dor, aquela que não tem pressa, na qual somos queimados
como madeira verde, por assim dizer, obriga a nós, filósofos, a alcançar
nossa profundidade extrema e nos desvencilhar de toda confiança, toda
benevolência, tudo o que encobre , que é brando, mediano, tudo que em que
antes púnhamos talvez nossa humanidade. Duvido que tal dor aperfeiçoe –
mas sei que nos aprofunda (...) sobretudo com a vontade de ora em diante
questionar mais, mais profundamente, severamente, duramente,
maldosamente, silenciosamente do que até então se questionou. (2001, p.13)
Recusando o brando, Turner e Alÿs se propõem a estados investigativos, onde o
risco é premissa da experiência estética. Assim, o que está em jogo é o ato criador que
39. 38
passa por um corpo que é profundamente atingido no processo de criação. Desviando da
noção de arte como cosa mentale, aqui a obra é também coisa do corpo: nasce de um
arrebatamento, da travessia de um corpo pelo perigo. A obra como uma cicatriz fora do
corpo.
Não somos batráquios pensantes, não somos aparelhos de observar e
registrar, de entranhas congeladas – temos de continuamente parir nossos
pensamentos em meio a nossa dor, dando-lhes maternalmente todo o sangue,
coração, fogo, prazer, paixão, tormento, consciência, destino e fatalidade que
há em nós. Viver – isto significa para nós, transformar continuamente em luz
e flama tudo o que somos, e também tudo o que nos atinge. (2001, p.13)
Tanto Self Death, quanto Tornado e Snow Storm lidam com a experiência da
perda. Mas, enquanto Abramovic e Ulay praticam a deliberada perda de seus egos,
buscando através de experiências corpóreas estados em que suas subjetividades se
indeterminam e se fundem, Francis Alÿs perde-se por inteiro no furacão, abdica do
controle sobre seu corpo entregando-se à brutalidade dos ventos. Turner perde a forma
em sua distinção, perde a certeza do olho, perde o estado seguro, perde-se na
tempestade e, depois, perde a tempestade na pintura. O que estas experiências poéticas
colocam em jogo é uma desconfiança acerca da compreensão maniqueísta de prazer e
dor. Para além de pura pulsão de morte praticada, estes artistas praticam a sutil noção
heideggeriana de verwindung: a um só tempo,vitória e resignação. Ou ainda, a vitória
pela resignação, transfiguração da experiência dolorosa em uma outra matéria: matéria
poética. Praticam a superação da inércia, dos determinismos. São também artistas da
veneração, como propõe Mario Perniola:
Veneratio é dizer sim ao mundo, e, portanto, abandono de toda atitude de
ressentimento, de crítica preconcebida ou de negação sistemática do
presente.(...) Veneratio , enfim, é dizer sim a si mesmo. (...) A veneração (...)
é vontade de querer aquilo que foi, aquilo que é, entretanto não mais para
ficar fechado no círculo de um retorno infinito do igual, mas, ao contrário,
para poder querer o presente sem estar condicionado pelo seu conteúdo.
Portanto, ao contrário do quietismo, que se abandona por completo ao
destino, na veneração é a adesão humana que transforma qualquer
acontecimento em destino (2000, p.43)
40. 39
Arte como experiência de veneração da vida, de passagem pelo phármakon,
criação de substância transmutadora. “A arte como (...) via de acesso a estados onde o
sofrimento é querido, transfigurado, divinizado, onde o sofrimento é uma forma de
grande delícia. (...) A arte como tarefa própria da vida.” (NIETZSCHE, 1991, p.28)
Assim, a prática da perda nestas obras é também a própria prática da gênese, em uma
compreensão na qual criar não pode ser processo de acumulação, sobreposição,
construção sobre bases sólidas, mas como jogo de nascimento e morte, esquecimento e
compreensão, afirmação e negação de si.
2.2 – Encobrimentos
Em 2009, o fotógrafo alemão Timo Klos (1983, Bad Hersfeld ), criou uma série
de fotografias intitulada Orr, comentando o seguinte sobre seu trabalho 9: “A série foi
criada durante o que pode ter sido os últimos dez dias com a minha namorada. Eu usei
minha câmera para capturar nossos últimos momentos juntos e eu expus cada momento
durante o tempo que ele durasse. O nome dela “Orr” significa luz.” Timo Klos
conheceu Orr em Helsinki e lá passaram a namorar. Dez dias antes de voltar à
Alemanha, Klos começou a fotografar seus últimos momentos com Orr, o método de
realização das fotografias consistia em fazer exposições tão longas quanto durasse o
momento a ser registrado. A despedida no aeroporto, por exemplo, durou 12 minutos e
foi registrada em uma fotografia com obturação de 12 minutos. As fotografias resultam
em borrões, veladuras e revelam muito pouco acerca do que aconteceu, dado que só é
sugerido pela descrição textual fornecida pelo artista, bem como sua duração.
9
Livre tradução de “The series was created during what may have been the last 10 days with my
girlfriend. I took my photo camera in order to capture our last time together and I exposed every moment
as long as it lasted. Her name “Orr” means “Light”.”, extraído de www.timoklos.de, acesso em
09/05/2011
41. 40
Timo Klos - Orr - 2009
Despedida no aeroporto – 12 minutos
Timo Klos - Orr – 2009
Assistindo Twin Peaks – 90 minutos
42. 41
Timo Klos -Orr – 2009.
Banho quente - 12 minutos
Em A Câmara Clara, Barthes se indaga sobre a ontologia da fotografia: o que
ela seria em si? Logo começa a associá-la às noções de desordem e de inclassificação.
“Seja o que for que ela dê a ver e qualquer que seja a maneira, uma foto é sempre
invisível: não é ela que vemos” (BARTHES, p. 16, 1984). Na voluntária recusa de
pensar a fotografia pelo viés da técnica ou dos arranjos sociológicos, Barthes procura
uma compreensão que passe pela sua experiência, por certos movimentos pessoais.
“Diante de certas fotos, eu me desejava selvagem, sem cultura” (p. 17, 1984), escreve o
autor, para quem a fotografia é elemento que atinge o corpo e marca a vida. Barthes
identifica ainda três elementos na fotografia, o operator, o spectator e o spectrum-
assim, para além de uma relação entre produtor e receptor, haveria na fotografia uma
sobra, um resíduo: ausência bruta que se faz presença. Barthes escreve sobre o fato de
muitos autores criarem relações de filiação entre a fotografia e a pintura, ou a fotografia
e os dioramas, mas afirma que prefere associar a fotografia ao teatro, pelo fato de o
teatro ter sido uma das primeiras formas de culto aos mortos e o palco ter sido
originalmente um lugar de risco, uma espécie de extensão do Hades; aproxima assim o
procedimento fotográfico ao teatro clássico e ao pós-dramático, que lidam com as
noções de teatro como afetação, contágio, produção de entorpecimento. Em Barthes a
fotografia é a revelação de um movimento paradoxal: algo que está faltando e aparece;
nesse sentido, Orr é uma arqueologia do corpo fotográfico – a foto eviscerada,
autopsiada, o spetcrum se faz corpo e o resíduo, uma totalidade. O dado biográfico que
43. 42
Timos Klo anexa ao seu trabalho fotográfico – o fato de Orr ser uma tentativa de
retenção e desta retenção ser, desde o princípio, obliterada – coloca em jogo a noção de
perda, de esvanecimento e o uso que se pode fazer deste movimento na vida e na obra.
Barthes, a respeito de uma fotografia de Charles Clifford, uma antiga casa em
Alambra, escreve:
Uma velha casa, um pórtico com sombra, telhas, uma ornamentação árabe
envelhecida, um homem sentado de costas para a parede, uma rua deserta,
uma árvore mediterrânea (...): essa foto antiga (1845) me toca: simplesmente
porque tenho vontade de viver aí. Essa vontade mergulha em mim a uma
profundidade e segundo raízes que não conheço: calor do clima? Mito
mediterrâneo, apolinismo? Ausência de herdeiros? Aposentadoria?
Anonimato? Nobreza? Não importa o que seja (de mim mesmo, de meus
móveis, de meu fantasma), tenho vontade de viver lá, com finura – e essa
finura jamais é satisfeita pela foto de turismo. Para mim, as fotografias de
paisagens (urbanas ou campestres) devem ser habitáveis, e não visitáveis.
Esse desejo de habitação, se o observo bem em mim mesmo, não é onírico
(não sonho com um local extravagante) nem empírico (não procuro comprar
uma casa segundo as vistas de um prospecto de agência imobiliária); ele é
fantasmático, prende-se a uma espécie de vidência que parece levar-me
adiante, para um tempo utópico, ou me reportar para trás, para não sei onde
de mim mesmo (...) (BARTHES, 1984, p. 65)
Ao instaurar a noção de fotografias habitáveis, confere a elas a dimensão de
território. No caso de Orr, a fotografia é operada como esta imagem habitada, estendida
no tempo e, portanto, inapreensível no instante. Orr é um território velado, ao qual não
se pode retornar, habitável apenas pela fantasmagoria do desejo. Assim como o palco
teatral é território-hades, a fotografia também é uma espécie de território infernal, pela
sua própria ontologia perturbadora. Barthes localizou dois elementos na imagem
fotográfica: o punctum e o studium. O studium, pode-se dizer, teria a ver com aquilo que
a fotografia comunica, enquanto o punctum guarda relação com aquilo que ela afeta:
(...) não sou eu que vou busca-lo (...), é ele que parte da cena, como uma
flecha, e vem me transpassar. Em latim existe uma palavra para designar essa
ferida, essa picada, essa marca feita por um instrumento pontudo(...). A esse
segundo elemento que vem contrariar o studium chamarei então punctum;
pois punctum é também picada, pequeno buraco, pequena mancha, pequeno
44. 43
corte – e também lance de dados. O punctum em uma foto é esse acaso que,
nela, me punge (mas também me mortifica, me fere). (1984, p. 46)
A partir da compreensão de Barthes, pensa-se que a fotografia é uma questão de
presença – de corpos habitantes que se afetam e se ferem pela superfície fotográfica. O
que está em jogo em Orr não é fotografia como documentação ou exploração do mundo
visível por uma lente coletora, mas a noção de presença em seus aspectos limítrofes.
Barthes (1984) escreve que a vidência do fotógrafo não consiste em ver, mas em estar lá
e, assim, deixa de ser fenômeno do olho e se dá como fenômeno de uma existência, o
que cria uma modificação no próprio sentido do ato fotográfico: uma fotografia como
trabalho ótico seria uma fotografia da acumulação – o olho distanciado do objeto
fotografado passa a possuir a imagem que produz - enquanto a fotografia como trabalho
da presença implica na disposição de perder-se – aquele que se presentificou na foto cria
para si uma irrecuperabilidade, o que se implica corporalmente na fotografia se implica
na sua própria fantasmagoria, no aviso de sua presença mas também na sua iminente
ausência. Barthes fala da fotografia como uma espécie de raio que flutua, para dar conta
de sua condição dupla de presente-ausente; se o raio é o intempestivo, o instantâneo, a
fotografia faria essa aparição abrupta flutuar, se distender: como um susto que
compreende a si mesmo ou um espanto que se contempla. Esse caráter misterioso da
fotografia, afirma o autor, teria a ver com a sua própria constituição, a foto é processo
químico, é alquimia, tem parentesco com a mágica – beira o inexplicável, tange o
enigma.
É o efeito de Orr, que também é a própria emanação do referente, do qual fala
Barthes: “A foto do ser desaparecido vem me tocar como os raios retardados de uma
estrela. Uma espécie de vínculo umbilical liga meu olho ao corpo da coisa fotografada:
a luz, embora impalpável, é aqui um meio carnal, uma pele que partilho com aquele ou
aquela que foi fotografado.” (1984, p.121 ). Orr tem um certo caráter de relíquia: o
ausente potente, aquilo que é forte em seu despedaçamento, sua decomposição. Ao fim
de A Câmara Clara, Barthes relaciona a noção de punctum a noção de tempo, o tempo
na superfície fotografia: o isso-foi – a vertiginosa possibilidade de estremecer pelo que
já ocorreu.
A fotografia não rememora o passado (não há nada de proustiano numa foto).
O efeito que ela produz em mim não é o de restituir o que é abolido (pelo
45. 44
tempo, pela distância), mas o de atestar que o que vejo de fato existiu. Ora,
esse é um efeito verdadeiramente escandaloso. A Fotografia sempre me
espanta, com um espanto que dura e se renova, inesgotavelmente. Talvez
esse espanto, essa teimosia mergulhe na substância religiosa de que sou
forjado; nada a fazer: a fotografia tem alguma coisa a ver com a ressurreição:
não se pode dizer dela o que diziam os bizantinos da imagem de Cristo
impregnada no Sudário de Turim, isto é, que ela não era feita por mão de
homem, acheiropoeitos? (1984, p.123)
Ainda que guarde uma potência documental, a fotografia estaria neste território
da produção de efeitos e forja de afetos, e seria a própria revelação de que o olhar é ao
mesmo tempo efeito de verdade e efeito de loucura. Orr, talvez seja o contrário do luto,
não a criação na ausência, mas a elaboração da presença – o estado de presença que, em
si, é sempre estado-limite, de precipitação. Neste sentido, em Orr a perda existencial –
a iminente perda da amada que é o mote do trabalho – converge com a própria imagem
que se perde na revelação de seu corpo frágil. A perda, em Orr, é uma pele revelada.
Timo Klos – Orr – 2009
Pic nic no domingo – 30 minutos
46. 45
Timo Klos – Orr - 2009
Dormindo – 9 horas
A imagem, como uma pele, é aquilo que tem a propriedade de revelar
encobrindo. Blanchot diz
A imagem é a duplicidade da revelação. Aquilo que encobre revelando, o véu
que revela encobrindo na indecisão ambígua da palavra revelar é a imagem.
A imagem é imagem nesta duplicidade, não o duplo do objeto, mas o
desdobramento inicial que permite em seguida a figuração da coisa. (2007,
p.69)
Torcendo uma concepção platônica na qual a imagem seria o duplo de uma
essência intangível, em Blanchot é a imagem que se dá como veladura, impossibilidade.
Guarda em si a potência de duplicidade: é, a um só tempo, habitante da caverna e sua
sombra projetada, simulação e presença. Esse caráter revelador-encobridor da imagem
pode ser percebido na narrativa catalogada pelo enciclopedista romano Plínio que, no
texto História Natural, descreve um concurso de pintura que houve na Grécia antiga, no
qual participou Zeuxis e Parrasio; enquanto o primeiro produziu uma natureza-morta
com uvas tão realistas que pássaros tentaram bicar a superfície pictórica, o segundo, por
sua vez, apresentou sua obra velada ao seu adversário que, vendo a pintura encoberta
por um véu, quis providenciar este fosse removido. Assim, Parrasio ganhou a disputa ao
revelar que o véu era a sua própria pintura. Nesta narrativa comparece a noção de que a
47. 46
aparição está no encobrimento e na potência que este tem de criar um efeito de
profundidade. A revelação – de qual seria a melhor pintura – estava na veladura.
Noção semelhante está em uma passagem do filme Notre Musique (2004) de
Godard, na qual é narrada a história de uma menina que alegara ter visto uma aparição
da Virgem Maria:
É uma camponesa da época do Segundo Império, que diz ter visto a Virgem.
Perguntam como ela é, e Bernadette diz: não sei dizer. A madre superiora e o
bispo mostram a ela reprodução das grandes pinturas religiosas... a Virgem
de Rafael, de Murilo, e por aí vai. Bernadette diz para todas: não, não é ela.
De repente, surge a Virgem de Cambray, um ícone. Bernadette de ajoelha e
diz: é ela, monsenhor! Sem movimento, sem profundidade, nenhuma ilusão.
O sagrado.
Still do filme Notre Musique – Jean-Luc Gordard - 2004
Aqui, novamente, imagem elegida - a reveladora - é a que está em estado de
apagamento. O acesso ao mistério, portanto, se dá como obliteração, veladura. Talvez
não no sentido de que o mais profundo esteja inevitavelmente vetado, mas numa
sensibilidade aproximada a de Valéry, que diz que o mais profundo é a pele – o mistério
48. 47
é inteiro esse rosto sem feições, como a noção de corpo sem órgãos, cunhada por
Artaud e explorada por Deleuze, tange esta idéia de um corpo todo pele, sem órgãos,
sem um interior estruturante, sem uma organização hierarquizável, um corpo todo
superfície, em sua plena potência de auto-invenção. Também Blanchot aponta uma
potência das superfícies em sua noção de Fora, descrevendo-a como uma prática, uma
experiência potente, uma possibilidade de fundação de mundo. O Fora seria justamente
esse território auto-fundado, em uma compreensão na qual a obra não é a explicação ou
a organização de nada que já esteja dado no mundo, mas criação de um mundo próprio.
O Fora blanchotiano põe a prova o cogito, pois recusa noções de unidade, identidade,
de visibilidade do eu cartesiano que, seguro de sua existência, é dissolvido no Fora pela
impessoalidade do estado poético. Para Blanchot, a literatura, em vez de ser a revelação
de uma interioridade pré-concebida, é produção de neutralidade. O eu que pode devir
qualquer ele e criar-se outro na experiência do Fora.
Em Orr, a experiência do Fora parece ser a própria experiência da intimidade
revelada. Para tudo mostrar, é preciso que algo da aparência se dissolva. Para tudo
apreender, é preciso eleger uma perda. Para falar da dimensão da experiência amorosa, é
preciso, de certa forma, perde-la. Assim, é pertinente que as imagens criadas por Timos
Klo sejam imagens que, na perspectiva técnica, sejam feitas a partir de um erro
premeditado, uma perda intencional. Tanto as fotografias de Orr, como a narrativa
descrita em Notre Musique tocam essa noção da superfície como produção de
impessoalidade, no sentido de promoverem a dissolução, o apagamento de feições e
somente nesta produção neutra é que guardam a potência de revelar.
2.3 – Errância
Trabalho de dissolução é também a radical performance de Artur Barrio
intitulada 4 dias, 4 noites realizada em 1970. Neste trabalho, Barrio andou durante –
talvez – quatro dias e quatro noites pela cidade do Rio de Janeiro, com a intenção de
viver uma experiência deambulatória e registrá-la em um caderno. Entretanto, o
caderno permaneceu vazio, e o registro da experiência é uma série de páginas em
branco. Em entrevista ao catálogo de Panorama 2001, Barrio diz: