Este documento discute a evolução da educação para a saúde nas escolas nas últimas décadas. Inicialmente focada em prevenção de comportamentos de risco, passou a enfatizar o desenvolvimento de competências pessoais e a promoção de estilos de vida saudáveis. Atualmente defende que a mensagem de saúde deve promover satisfação, felicidade e realização pessoal, com expectativas positivas mas realistas sobre o futuro.
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Questões e razões
MAS AFINAL OS ALUNOS PRECISAM DE QUÊ?
DEPOIS DE DÉCADAS DE EDUCAÇÃO
PARA A SAÚDE, O QUE FAZ AINDA FALTA?
A saúde é apresentada neste texto como um conceito abrangente que evoluiu
nas últimas décadas até se afirmar num discurso positivo que valoriza o
gosto pela vida e a adopção de comportamentos saudáveis. A saúde é assim
definida, de acordo com a Organização Mundial de Saúde, como um estado
completo de bem-estar físico, social e mental.
Texto de Margarida Gaspar de Matos1
Faculdade de Motricidade Humana da Universidade Técnica de Lisboa
Ilustrações de Raquel Pinheiro
2. Por fim, enquanto gerações de adolescentes viam flo-
rescer e ser reprimidas no seu corpo as hormonas, as
características sexuais secundárias emergentes, e ainda
o amor e o desejo, com uma fúria e um ímpeto capazes
de os desconcentrar das tarefas escolares, os promotores
de saúde alertavam: “Não à infecção pelo VIH! Não às
relações sexuais desprotegidas! Não à gravidez não pla-
Durante anos, a Promoção e Educação para a Saúde nas neada! Por uma sexualidade segura e responsável!”
escolas centrou-se na diminuição de aspectos negativos Apesar de esta atitude, nos anos 80, representar um ver-
e comprometedores da saúde e nos comportamentos de dadeiro progresso face aos processos de ocultação ou de
risco dos jovens. Esta forma de actuação foi, no entanto, punição anteriores, gerações seguintes de promotores de
uma inovação face às atitudes vigentes na época: escon- saúde e de alunos começaram, contudo, a questionar-se:
der o que não era conhecido, porque o relevante era evi- “Afinal qual é a mensagem em termos de promoção da
tar que os problemas viessem a público; castigar, afastan- saúde nos jovens? É para dizer e para fazer o quê?” Estas
do do sistema de ensino os alunos “mal formatados” para dúvidas tinham uma tripla vertente, que se foi eviden-
que não prevaricassem de novo. ciando numa lógica temporal.
Pelo início dos anos 80, numa atitude moderna para a
época, entrou-se na era de identificação de riscos para a DO DISCURSO PREVENTIVO
saúde e de prevenção, com acções informativas a nível AO ESTILO DE VIDA SAUDÁVEL
da escola e da comunidade. Poucos anos depois, porém, Primeiro, percebeu-se que a esse rol de interdições e pres-
alguns promotores de saúde mais vanguardistas viram- crições não correspondia uma lista de instruções alter-
-se enredados num discurso normativo. Do seu esforço nativas.
informativo junto dos alunos desprendia-se sempre um Assumindo o ponto de vista do adolescente: “Certo, tudo
discurso pouco claro à volta do tema saúde e sofrimento. isso faz muito mal à minha saúde, mas então COMO
vou ser capaz de identificar e resistir aos meus impulsos
COMPORTAMENTOS COMPROMETEDORES DA SAÚDE internos e às tentações externas e, ainda assim, optar por
O tabaco, o álcool e, embora um pouco menos, as drogas comportamentos saudáveis?”
estavam inseridos numa cultura de pares e associados a Surgiram então várias correntes apontando a necessida-
um conceito (quiçá imaturo, mas efectivo) de “pertença” . de da promoção de competências sociais e pessoais, do
A palavra de ordem foi: “Não ao álcool e ao consumo de desenvolvimento da resiliência, da auto-regulação e lá se
tabaco e drogas. Por uma juventude sem vícios.” deu mais um passo em frente, mais um progresso para a
A preguiça do adolescente enroscado num sofá, a comer época (então pelos anos 90).
rebuçados e pipocas e a ver televisão depois de um dia Foi também por esta altura que se começou a falar da Pro-
de aulas, foi alvo da admoestação: “Não ao sedentarismo moção da Saúde na escola numa perspectiva desenvolvi-
e à obesidade. Pratica actividade física todos os dias! Vê mental (cada idade tem as suas características e necessi-
pouca ou nenhuma televisão! Come apenas alimentos dades), numa perspectiva de igualdade de oportunidades
saudáveis!” (dirigindo-se a necessidades diferentes dos grupos, por
Quanto ao confronto, através de interacções mais negati- género, estatuto socio-económico, etnia, religião, região,
vas com os amigos na escola, aparece a prescrição: “Não etc.) e ainda numa perspectiva ecológica (envolvendo
à provocação e vitimização entre pares. Por uma escola actores e cenários relevantes da vida dos jovens: a famí-
sem violência!” lia, a escola e a comunidade).
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ESCOLAS PROMOTORAS DE SAÚDE
Em segundo lugar, percebeu-se que, visto que, ao definirem uma fasquia tão
para serem eficazes, os profissionais alta, tornavam-se quase, de per si, um
precisam de formação e de desenvolver factor de insucesso e de baixa de auto- bem-estar e na realização pessoal não
um trabalho de parceria com as famílias -estima para os jovens que fracassavam tem nada de apelo aos maus costumes,
e com outros profissionais na comuni- nas suas tentativas para a saúde (ex.: a à libertinagem e à má convivência. Tão
dade; concluiu-se ainda que, melhor do alimentação nunca era suficientemente pouco é um apelo à vida sem regras e
que trabalhar para os alunos, era traba- saudável, os jovens nunca eram sufi- sem limites, ou mote para aglutinações
lhar em conjunto com os alunos. cientemente activos). tribais exotéricas. É apenas a constata-
Encontrou-se nessa altura o conceito Apesar de todos estes conhecimentos, ção de que os riscos estão muitas vezes
de escolas promotoras de saúde e o de avançámos no milénio sem uma res- associados a uma necessidade de pro-
comunidade educativa promotora de posta cabal à questão: “Para ter saúde, cura de prazer alternativo, a uma des-
saúde, sem que todavia se chegasse à para não escolher comportamentos motivação para outro modo de acção.
resposta para a seguinte questão: “Para comprometedores da saúde, é preciso Por isso, os jovens não precisam ape-
ter saúde, para não escolher comporta- fazer o quê?” A dada altura achou-se nas de informação, precisam de saber
mentos comprometedores de saúde, é por bem juntar a esta questão a seguin- agir de outro modo e de alternativas ca-
preciso fazer o quê?” te formulação: “Para ter saúde, para não tivantes: precisam de saber identificar
Proliferaram os estudos do tipo epide- escolher comportamentos comprome- e neutralizar “tentações” do ambiente
miológico sobre os comportamentos de tedores da saúde, mantendo-nos felizes, físico e social, mas também de encon-
risco e de protecção e suas associações satisfeitos, participativos e realizados, é trar, em si e no seu grupo social, forças
com moderadores e mediadores: situa- preciso fazer o quê?” e gostos alternativos cuja vivência con-
ções, grupos, contextos. Confirmou-se siderem que vale a pena.2,3
a importância dos contextos, das dife- O GOSTO PELA VIDA Por consequência, se desde os anos 90
renças de género e estatuto socio-eco- COMO MENSAGEM DE SAÚDE se fortaleceram competências face ao
nómico, o poder agregador de alguns Finalmente, em meados da primeira risco, agora há que favorecer o desenvol-
desses comportamentos em determina- década do milénio, as questões da satis- vimento de competências para uma ci-
dos nichos populacionais. fação, felicidade e realização pessoal fo- dadania autónoma, responsável, partici-
Evitar o risco e promover a protecção ram definitivamente postas na equação pativa, feliz e realizada, chamando a esse
tornou-se a mensagem forte dos profis- das estratégias promotoras de saúde. estado “saudável”! Como
sionais, que se socorreram de vários mo- Se uns até ali as acharam irrelevantes, diz a teoria em uníssono,
delos de mudança de comportamentos outros acharam-nas sinal de hábitos ninguém muda volunta-
em saúde para definir os seus programas “maus e hedonistas” atentando contra
, riamente para pior.
de intervenção. Assim começou a ouvir- a moral e os bons costumes, numa cul- Ou se concentram
-se falar de “fortalecimento de inten- tura que habitualmente associava o os recursos educa-
ções” “criação de hábitos” “manutenção
, , sofrimento às boas causas; outros tivos para a “vigi-
da motivação intrínseca” “relação custo-
, ainda tentaram associar satis- lância, controlo,
-benefício” “controlo percebido”
, . fação/bem-estar/felicidade a punição” dos
Outros começaram a falar de “exaustão uma qualquer transcendên- comportamen-
do EU” e de “a saúde nos valores médios cia de cariz exótico e tos indeseja-
culturalmente relevantes” para pôr tra- acientífico. dos dos alunos, ou
vão a esta quase obsessão com a saúde Pensar positi- a “mensagem de
e com os comportamentos saudáveis – vo, pensar no saúde” tem de ser de satisfação,
4. gosto e valorização da vida, e a promo- social, de construção de expectativas realistas, mas positivas,
ção da saúde um modo de alcançar este face ao futuro. E claro que, então, “não vale” que o futuro, afinal,
estado agradável.4 não seja nenhum...
EXPECTATIVAS POSITIVAS, O DESAFIO DA PROMOÇÃO DA SAÚDE
MAS REALISTAS Políticos e profissionais já se conven-
Urge assim, antes de mais, a modifica- ceram da necessidade de combate às
ção do vocabulário em saúde, passando iniquidades sociais – um verdadeiro
a falar-se de “trajectórias pessoais para problema global. Em 2000, 189 Estados
o bem-estar, satisfação e realização pes- das Nações Unidas8 reafirmaram o seu
soais” (o que cada um faz em determi- compromisso de que a erradicação da
nado momento e o caminho a tomar pobreza no Mundo teria a maior prio-
1
Psicóloga, pro-
para o futuro). 5 ridade política. Em muitos países
fessora e coordenadora
Num paralelo com a estratégia cogniti- ainda há tanto por fazer! Em Por- da equipa Aventura Social
va de resolução de problemas e confli- tugal, muito vai sendo feito, mas na Faculdade de Motricidade
Humana da Universidade Técnica de Lis-
tos, onde se fala de “parar para pensar” , há nichos de privação económica e boa; investigadora responsável pela equipa
é necessário agora falar de “parar para sociocultural que nos privam a todos Health and Education do Centro de Malária
e Doenças Tropicais do Instituto de Higiene
sentir” e para saborear o que fizemos e de saúde e de satisfação. e Medicina Tropical da Universidade Nova de
conseguimos, usufruir e manter a me- Este ponto prende-se com a conclu- Lisboa.
2
Matos, M. G (ed) (2005). Comunicação, gestão de
mória dos sucessos recentes, antes de são mais óbvia: a promoção da saúde conflitos e saúde na escola. Lisboa: Edições FMH.
prosseguir para o próximo desafio.6 nas escolas está intimamente ligada ao 3
Matos, M.G. ; Negreiros, J; Simões, C. & Gas-
par, T. (2009) Violência, Bullying e Delinquên-
Urge, para além de listar as “tentações” sucesso escolar e vocacional, à igualda- cia- Gestão dos problemas em meio escolar: Lis-
a que somos sujeitos por parte do nosso de de oportunidades e ao direito dos boa: Coisas de Ler.
4
Matos, M.G. & Sampaio, D. (2009) Jovens com
grupo social e ambiente físico e as difi- alunos a uma vida digna, comprome-
saúde: diálogo com uma geração. Lisboa: Texto
culdades a ultrapassar, listar também tida e reconhecida pelo grupo social.9,10 Editora.
5
Search Institut org (2010) What Kids Need:
os nossos “trunfos” numa trajectória Em Promoção da Saúde, quando as pes-
Thriving and Sparks, acedido a 20 Março
para uma vida saudável, activa e perce- soas que trabalham no terreno e as que 20010 em http://www.search-institute.org/
bida como agradável e com qualidade.7 investigam vão conseguindo ter respos- thriving-and-sparks
6
Bryan, F ; Veroff, J (2007) Savouring: a new
Urge falar das “centelhas” pessoais tas, mudam as perguntas! Mas é mesmo model of positive experience. London: Law-
(a “luzinha“ que nos torna especiais e para ser assim: um desafio dinâmico rence Erlbaum Ass.
7
Morgan, A. (2008). Frameworks for improving
únicos: um interesse, um talento, uma que lida com as dinâmicas das pessoas young people’s mental well being: Assets and def-
competência, uma preocupação, um so- e das sociedades. icits models. WHO/HBSC Forum: Social Cohe-
sion and Mental Health, Copenhaga: WHO.
nho, uma paixão de carácter artístico, Uma solução sensata para esta instabili- 8
World Health Organisation (2003). Millenni-
intelectual, desportivo, relacional – en- dade seria evitar andar sempre um passo um Development Goals. WHO’s contribution to
tracing progress and measuring achievements,
fim uma fonte de inspiração, renovação atrás de problemas cuja visibilidade, às Organização Mundial de Saúde, Genebra.
e motivação). Estas “centelhas” têm de vezes, se deve apenas a circunstâncias 9
GTES (2005) Educação para a saúde – rela-
tório preliminar, GTES (2007a) Educação para
ser identificadas em cada aluno (ou de pressão mediática ou a inesperadas
a saúde – relatório de progresso, GTES (2007b)
pessoa) e necessitam de ser continua- agendas políticas, e permitir que os pro- Educação para a saúde – relatório final, acedi-
mente alimentadas por um grupo social motores de saúde possam definir a sua dos em 30 Setembro 2007 em www.dgidc.min-
edu.pt
(amigos, colegas, família, professores) própria agenda em função dos conheci- 10
Matos, M.G. et al. (2008). Health and well-
que as reconheça, valorize e apoie, para mentos da ciência do seu tempo e das being in Portuguese adolescents. WHO/HBSC
Forum: Social Cohesion and Mental Health,
que se tornem verdadeiros motores de necessidades de saúde e bem-estar dos Copenhaga: WHO
mudança e de crescimento pessoal e jovens alunos, professores e famílias. ::