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1 A MICRO-FICÇÃO/ESCRITA BREVE COMO ESTRATÉGIA INOVADORA  DE PROMOÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA CRIATIVA (para públicos jovem e adulto)* Apresentação realizada no âmbito do Encontro inter-concelhio  de grupos de trabalho das bibliotecas escolares (Faro, Silves e Lagoa) [versão aumentada] 12 de Julho de 2010  Biblioteca Municipal de Silves * por Paulo Pires | Técnico Superior da BMS (programador e mediador de leitura) biblioteca@cm-silves.pt  1 1
MICRO + FICÇÃO Definição literal |“texto inventado em formato conciso” Ingredientes centrais |CONCISÃO (engloba os conceitos de brevidade e precisão)                                                    +                           INTENSIDADE E EFICÁCIA EXPRESSIVAS (analogia com regra da Física: maior brevidade = maior intensidade) Convenço-me agora de que a brevidade é um fim em si mesmo quando leio uma linha e me parece mais larga do que a vida, e quando, depois, leio uma novela e esta me parece mais breve do que a morte. (Gabriel Jiménez Emán) Pluralidade terminológica actual |      Micro-narrativa / escrita breve / ficção súbita      Crônica (Brasil)      Microconto / miniconto / mini-miniconto / nanoconto / conto breve / ultraconto      Short story / short short story / four minute fiction (EUA)      Microrrelato (América Latina)
3 | ANTECEDENTES E INFLUÊNCIAS NA MICRO-FICÇÃO ESCRITA BREVE – remonta aos inícios da literatura, há 4000 anos (em textos sumérios e egípcios), surgindo como relatos intercalados Na literatura grega surgem como digressões imaginárias com uma unidade de sentido relativamente autónoma (como em Heródoto ou Luciano de Samotracia, entre outros). Tratam-se de textos inseridos em discursos maiores (geralmente em diálogos) e têm uma função digressiva, destinando-se a desviar o ouvinte do discurso central desses diálogos através da inserção de factos surpreendentes, pouco habituais ou extraordinários.  Na Idade Média começam a discernir-se nas expressões narrativas formas diferenciadas de ficção breve, sobretudo na literatura didáctico-religiosa.  3 3
4 A micro-ficção começa a insinuar-se no século XIX, ligada às opções e exigências editoriais das revistas literárias e jornais, sobretudo na América Latina, os quais criaram um mercado para a ficção breve, impondo-lhe uma restrição espacial que logo se confundiu com um traço genérico da mesma: a brevidade.  Ao longo dos inícios do século XX vão surgindo diversas publicações que apresentam textos/contos em miniatura.  A partir das décadas de 50 e 60 do século XX um número cada vez maior de escritores, nomeadamente na América Latina, vai-se demarcando das pretensões totalizadoras da narrativa convencional, deixando-se seduzir pelas possibilidades expressivas e formais da micro-ficção como registo independente, transgredindo ou alargando as fronteiras tradicionais dos géneros literários. Esta escrita tem vindo a desenvolver-se em duas direcções de difícil conciliação: ao encontro de uma herança canónica entendida como tradição (ultrapassada, mas que continua exercendo uma forte influência na compreensão do literário; e a busca de uma expressividade radicalmente nova.  4 4
5 FORMAS DA TRADIÇÃO ORAL E DA CULTURA LIVRESCA EPIGRAMA Composição poética breve que expressa, de forma engenhosa, um único pensamento principal, festivo ou satírico. Foi criada na Grécia Clássica e usada também por diversos escritores latinos. [quando inscrita sobre estruturas tumulares recebe o nome de EPITÁFIO] Exemplo: epigrama de Catulo [Roma antiga] Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris.  Nescio, sed fieri sentio, et excrucior. [Eu odeio-a e amo-a, não me perguntem porquê. É a maneira que sinto. Isto é tudo e lastimo.] 5 5
6 KOAN  Narrativa, diálogo, questão ou afirmação no zen-budismo que contém aspectos que são inacessíveis à razão. Trata-se em regra de um enigma ou charada, que é utilizado pela corrente/escola Rinzai do zen japonês monástico. . O objectivo deste texto é propiciar a iluminação do aspirante a zen-budista. Exemplo:  da tradição oral, atribuída a Hakuin Ekaku (1686-1769) [Japão] Batendo duas mãos uma na outra temos um som; qual é o som de uma [só] mão? 6 6
7 RUBA’I Poema de quatro versos (quadras), que segue um esquema rimático de tipo AABA, cujas origens remontam à poesia sufi persa (séc.VII a.C.).  Exemplo: de Abu Sa’id Abi ‘l-Khayr [Pérsia] bingar bi-jahan sirr-i ilahi pinhan chun ab-ihayat dar siyahi pinhan payda amad zi bahr mahi anbuh shud bahr zi anbuhi-yi mahi pinhan [Olhai para o mundo: o Divino Segredo está escondido. Tal como a Fonte da Vida, está escondido nas trevas. Milhões de peixes  surgiram no mar –  Por causa do seu número, o mar fechou-se secretamente.] 7 7
8 FÁBULA História narrativa, curta, que surgiu no Oriente, particularmente desenvolvido por Esopo no séc.VI a.C., na Grécia antiga, cujos protagonistas são animais.  O objectivo destas histórias inverosímeis de fundo didáctico é a transmissão de sabedoria de carácter moral e exemplar aos seres humanos. [quando, nesta mesma linha temático-ideológica, as personagens são seres inanimados, objectos, a história designa-se de APÓLOGO] [a PARÁBOLA, por seu lado, consiste também numa narrativa curta que tem um fundamento/objectivo moral e é protagonizada por seres humanos, apresentando habitualmente um cunho religioso] Exemplo:  “A ovelha negra”, de Augusto Monterroso[Guatemala] Num país longínquo existiu há muitos anos uma Ovelha Negra. Foi fuzilada. Um século depois, o rebanho arrependido ergueu-lhe uma estátua equestre que ficou muito bem no parque. Assim, sucessivamente, de cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente trespassadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e correntes pudessem exercitar-se também na escultura.  8 8
9 CONTO ZEN  Existem várias lendas dentro da tradição Zen, transmitidas e renovadas pela tradição oral e integrantes dos costumes chineses e japoneses, que se entrelaçam com a história factual. No Japão existem as narrativas setsuwa, que são histórias breves, contadas “de um fôlego só”. São transmitidas como reais ou supostamente reais, enquadram-se nos universos chinês, indiano e japonês (algumas das quais associadas ao budismo), e resultam sobretudo de uma criação colectiva anónima. Exemplo:  de autoria anónima, “A estrada enlameada” Tanzan e Ekido caminhavam juntos numa estrada enlameada. Caía ainda uma chuva forte. Junto a um cruzamento da estrada, encontraram uma bela moça que não conseguia atravessar porque não queria sujar o belo kimono de seda que trazia. – Anda moça – disse Tanzan imediatamente. E, carregando-a nos seus braços, atravessou-a para o outro lado. A partir daí, Ekido ficou calado todo o caminho que percorreram, até à noite. Ao chegarem ao templo onde ficariam a pernoitar, Ekido não conseguiu conter-se e disse a Tanzan: – Nós, os monges, não nos aproximamos de mulheres. Especialmente se são jovens e bonitas. É perigoso. Por que fizeste aquilo? – Eu deixei a moça lá atrás – disse Tanzan. – Tu ainda estás a carregá-la? 9 9
10 HAIKU Deriva de uma forma anterior de poesia, a tanka (com 5 versos), em voga no Japão entre os sécs.IX e XII, a qual versava temas religiosos ou ligados à Corte.  No século XV surge a renga, que assentava numa estrutura de 3 versos (uma espécie de mote, chamado hokku, sugerido por um poeta), à qual se iam juntando outras estrofes, num jogo competitivo entre vários poetas.  Essa estrofe inicial de 3 versos foi-se autonomizando, tornando-se uma forma independente de poesia que só no século XIX recebe o nome de haiku. Cada poema, composto de uma percepção sensorial e de uma percepção sugestiva, capta um momento de experiência, um modo de ver o mundo, um instante em que o simples subitamente revela a sua natureza interior e nos faz olhar de novo o observado. Exemplos: 3 poemas, sem título, de Matsuo Bashô (1644-1694) [Japão] Não esqueças nunca                           A água é tão fria                         Através da racha na lareira   o gosto solitário                                  Como pode a gaivota                  o gato do orvalho                                            adormecer?                                  vai ter com a amada 10 10
11 AFORISMO É uma sentença concisa, que geralmente encerra um preceito moral. Exemplos: de Hipócrates [Grécia antiga] A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil.  de Carlos Drummond de Andrade [Brasil]  O amor dinamita a ponte e manda o amante passar. Seria cómico, se não fosse trágico. Somos humildes na esperança de um dia sermos poderosos. O optimismo é um cheque em branco a ser preenchido pelo pessimista. 11 11
12 ANEDOTA  É uma história breve, com um desenlace cómico e, por vezes, surpreendente. Os objectivos da piada vão desde o simples entretenimento lúdico até à sátira social, recorrendo também ao humor negro, destinado a um público menos susceptível, o qual aborda usualmente temas como a morte, a religião, a doença, a orientação sexual, a violência e as relações/conflitos étnicos. Exemplo:  de autoria anónima, “A dedução de Watson”  Sherlock Holmes e o doutor Watson vão acampar. Após um bom jantar e uma garrafa de vinho, entram nos sacos de dormir e caem no sono.  Algumas horas depois, Holmes acorda e sacode o amigo.  – Watson, olhe para o céu estrelado. O que é que você deduz disso?  Depois de ponderar um pouco, Watson diz:  – Bem, astronomicamente, estimo que existam milhões de galáxias e potencialmente biliões de planetas. Astrologicamente, posso dizer que Saturno está em Câncer. Teologicamente, eu creio que Deus e o universo são infinitos. Também dá para supor, pela posição das estrelas, que são cerca de 3h15m da madrugada… O que você me diz, Holmes?.  Sherlock responde: – Elementar, meu caro Watson. Roubaram-nos a barraca!  12 12
13 CADÁVER-ESQUISITO (cadavre exquis) É um jogo colectivo surrealista inventado em França cerca de 1925. Procurando subverter o discurso literário convencional, privilegia-se o automatismo e a actividade colectiva, de forma a produzir sequências/textos dominados pelo absurdo, pelo acidental/inusitado, pela ideia de ligação improvável. Numa perspectiva heterodoxa, dominada pelo humor, poeticidade da linguagem, imaginação e visão onírica, luta-se contra a rotina/hábito convencionados, e concilia-se a expressão individual com a mensagem colectiva.   Exemplo:  “O vermelho e o verde”, de João Artur Silva e Mário-Henrique Leiria – De que cor é o vermelho? – É verde. – Quem é o teu pai? – É o revisor do comboio para a lua. – O que é a loucura? – É um braço solitário sorrindo para os meninos. – Quem é Deus? – É um vendedor de gravatas. – Como é a cara dele? – É bicuda, com uma maçaneta na ponta. 13 13
14 POEMA EM PROSA “A fronteira entre poesia e prosa, quando a invenção verbal não tem outra finalidade que não seja ela própria, é puramente formal; em literaturas adultas, não é raro ambas juntarem as suas águas e o resultado podem ser coisas esplendorosas, quando assinadas por esses homens ‘que dão corpo à alma da sua língua’”. (Eugénio de Andrade) O poema em prosa surge como um meio eficaz de a poesia ensaiar novos caminhos, adquirindo, através da prosa, uma respiração diferente. O mesmo Eugénio de Andrade enfatiza, a propósito desta modalidade, o facto de esta lhe permitir, na escrita, “uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno”. O texto poético apresenta assim uma dinâmica e um tom de narrativa brevíssima – traços que, não poucas vezes, podem constituir o gérmen de pequenos contos (anunciados, em alguns casos, pelos títulos do poemas que prefiguram uma dada opção genológica – exemplo: poema “Fábula”, de Eugénio de Andrade). 14 14
15 Exemplos:  “Ligação”, de Alberto Pimenta a palavra repousa de olhos semicerrados encoberta por um véu deixando entrever uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma mar. a palavra estremece abre os olhos. o poeta afasta-se de um golpe tropeça cai sentado. a palavra percorre-se com  as mãos a ver se está intacta. fica pensativa os dedos enfiados nas tranças brincando. o poeta aproxima-se então por trás. agarra a palavra pela cinta. ela tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam por terra. a palavra continua a debater se. o poeta mete um dedo na vulva da  palavra. a palavra torce-se toda. depois acalma. o poeta mete outro e outro de do ainda, retira um hífen todo molha do. a palavra cai ofegante. o poeta a fasta-se com um sorriso mete o hífen a o bolso e publica-o com uma palavra                     sua na capa “O Poeta”, de Manoel de Barros [Brasil] Vão dizer que não existo propriamente dito.Que sou um ente de sílabas.Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.Meu pai costumava me alertar:Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o somdas palavrasOu é ninguém ou zoró.Eu teria 13 anos.De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes quese perdia nos longes da BolíviaE veio uma iluminura em mim.Foi a primeira iluminura.Daí botei meu primeiro verso:Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.Mostrei a obra pra minha mãe.A mãe falou:Agora você vai ter que assumir as suasirresponsabilidades.Eu assumi: entrei no mundo das imagens. 15 15
16 Exemplo: “Rã”, de Alexandre O’Neill Propus a Helena, a primeira vez que a vi, organizarmos, de parceria, um campeonato de saltos de rã. Não sei exac- tamente como a ideia maluca me saltou da cabeça, antes mesmo de eu a ter pensado bem. Helena aderiu logo a ela, quase com entusiasmo. Helena tentava, por essa altura,  promover tudo: encontros culturais, sessões de autógrafos, “happenings”, reuniões taparwere, musicatas, recitatas, tudo, tudo! A ideia dos saltos de rã, afinal, não era assim tão estranha como isso:  vinha direitinha do conto de Mark Twain “A célebre rã saltadora do distrito de Calaveras”. Então, eu e a Helena pusémo-nos à procura de rãs. Em Sacavém, uns rapazitos  apanharam, para nós, duas rãs. Paguei cinco escudos por cada uma. Dentro da caixa de sapatos,  as rãs latejavam. A meu lado, Helena segurava na caixa, na qual fizéramos dois buracos para os bichos poderem respirar. Já em Lisboa, Helena disse de repente: E se experimentássemos  agora mesmo as rãs? Em Cabo Ruivo, a dez metros do Tejo, parei o carro.  Saímos. Helena agachou-se, destapou cuidadosamente a caixa, não sem, primeiro afastar para o lado a cabeça. Uma das rãs saltou logo para o chão. 16 16
17 [“A rã”, de Alexandre O’Neill (conclusão)] A outra recusou-se. Tocámos-lhe com pauzinhos, batemos na caixa – e nada. Estando a rã que saltara semcompetidora, de que se haviade lembrar o diabo da Helena?Simples! Pôs-se ao lado da rã, segurouas saias e, com enérgicos“hop lá! hop lá!”, foi saltandocom ela até que, sem darpor isso, caiu nas águas do Tejo. Tive um trabalhão para pescar a Helena etrazê-la, para minha casa,encharcada e a bater o dente. Ainda hoje lá está… 17 17
18 | ASPECTOS PREPARATÓRIOS SOBRE A MICRO-FICÇÃO ,[object Object]
é um texto experimental de extensão mínima (visando eliminar o supérfluo, o desnecessário, o excessivo), com elementos literários de carácter moderno e pós-                                        -moderno, o qual pretende levar até ao limite o espírito de síntese e de depuração estilística;
 é necessário reler o micro-texto para reconhecer as suas múltiplas formas de ironia (as histórias são artificialmente limitadas); a micro-ficção enriquece-se a cada nova leitura: “Temos de dar algumas migalhas para o leitor fazer o resto do pão” (Rui Manuel Amaral) – estamos perante uma nova experiência de leitura;18 18
[object Object]
 é também o género mais recente: só no final do século XX é que começou a ser considerado uma forma literária autónoma (as suas raízes residem nas vanguardas hispano-americanas do período entre guerras);
é o género mais didáctico, lúdico, irónico e fronteiriço da literatura; Rui Costa realça a sua “extrema aptidão para a promiscuidade”, enfatizando a ideia de micro-ficção enquanto não-género: “é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os géneros e deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição”;
 o seu reconhecimento e canonização, nos anos mais recentes, coincidem com a prática crescente da escrita digital (nomeadamente através da blogosfera);,[object Object]
desconstruir o preconceito: não se trata de preguiça de escrever; escrever pouco não é necessariamente sinónimo de escrever de forma simplista, fácil ou superficial (“Não fui breve porque não tive tempo” – disse o poeta romântico alemão Heinrich Heine). A escrita micro-ficcional apresenta um significativo desafio de imaginação, criatividade, originalidade e destreza linguística para quem a produz;
 instala a confusão entre a prosa e a poesia; ao mesmo tempo, os textos breves e os poéticos exigem mais ao leitor do que qualquer outro género (note-se que os poetas são quem melhor lida, nos domínios da literatura, com a ideia de sintético);
não obstante a sua habitual brevidade, o que importa sobretudo é o estatuto fictício (inventado) das histórias, atendendo ao estrato do universo narrado. Mais do que uma mera quantificação do número de palavras/caracteres, ou de uma medição do espaço impresso ocupado pelo texto (em termos de páginas), o que vale é a intenção de concisão máxima do autor para contar/narrar uma história.,[object Object]
22 7. utilizar um formato popular, não literário 8. utilizar uma lógica desviante 9. estabelecer falsas atribuições 10. aplicar a ironia 11. dessacralizar personagens conhecidas 12. apresentar uma perspectiva/quadro infrequente ou único EM RESUMO: ,[object Object]
 diversas estratégias de intertextualidade: hibridez genérica, silepse, alusão, citação e paródia;
diversas modalidades de metaficção (no plano narrativo: a  estrutura em abismo (“mise en abyme”), a metalepse, o diálogo/interpelação do leitor; no plano linguístico: jogos de linguagem como o lipograma, o tautograma ou as repetições lúdicas);
 várias estratégias de ambiguidade semântica: por exemplo, um final inesperado/surpreendente ou enigmático;
 diversas formas de humor (intertextual) e de ironia (necessariamente instável).22 22
23 | ALGUMAS TIPOLOGIAS DE TEXTOS MICROFICCIONAIS * * segundo David Lagmanovich DISCURSO SUBSTITUÍDO A essência destes relatos sãos os jogos de linguagem, recorrendo a neologismos e a jogos gramaticais e de sentido Exemplo:  “acordo”, de Paulo Condessa Um dos homens era do campo. O outro era da cidade. Um tinha uma horta. O outro tinha uma gráfica. Um dia acordaram os dois na mesma página e decidiram fazer um acordo.  E fizeram. Um acordo horta-gráfica. DISCURSO MIMÉTICO Textos que tentam imitam o falar quotidiano e que se enquadram no discurso popular Exemplo:  “Urdimbre”, de Orlando Enrique Van Bredam – Tu marido es celoso? – preguntó él.  – Sí. Mi marido es el oso que viene ahí – respondió ella.  23 23
24 REESCRITA E PARÓDIA↔ noção de intertextualidade 2 modalidades:      – paráfrase de obra de um ou mais autores      – apropriação de elementos relativos à biografia, estilo de escrita ou visão que o colectivo social tem de um dado autor (ligado ou não ao mundo literário) O(s) intertexto(s) pode(m) estar oculto(s) devido ao silêncio manifestado pelo texto ou através de alusões, verdadeiras ou falsas, que pretendem desviar a atenção do leitor do rumo que vinha tomando; ou o(s) intertexto(s) pode(m) “ler-se debaixo da letra”, como um palimpsesto                                            ↓ o grau de “ingrediente de impureza” que o microficcionista aplica ao material reescrito é que marca a diferença ao nível do tratamento textual ESCRITA EMBLEMÁTICA  Textos que transmitem uma visão transcendente da existência humana e que podem ser interpretados de um ponto de vista mítico ou religioso (não há casos abundantes) 24 24
25 | ENQUADRAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE EXPANSÃO E AFIRMAÇÃO DA MICRO-FICÇÃO ↔ CONTEXTO PÓS-MODERNO  PÓS-MODERNIDADE (na literatura) 	- privilegia a hibridez e a contaminação de temas, formas e processos 	- apresenta uma propensão dominantemente paródica  	- combina, cruza e/ou alterna traços e tendências clássicas e modernas 	- adopção crescente do formato portátil * * numa dupla vertente: no tamanho físico do livro/dispositivo digital de leitura (em papel ou como audio-book ou e-book) e na duração das histórias [A nível da interpretação textual] já não é suficiente dizer: “Aqui está o texto para demonstrar o que digo” [critério moderno], nem tão pouco “Aqui está a intenção do autor para certificar a análise” [critério clássico]. Em seu lugar, o que parece estar em jogo é a necessidade de dizer: “Aqui está esta leitura para desarticular a intenção do autor e a intenção evidente do texto”.(Lauro Zavala) PÓS-MODERNIDADE= hiperbolização da polissemia e da experimentação modernas + reciclagem irónica das convenções da narrativa clássica(Lauro Zavala) 25 25
26 | TRAÇOS PÓS-MODERNOS DA MICRO-FICÇÃO - CEPTICISMO RADICAL – é o resultado da descrença nas utopias; para demonstrar a inexistência de verdades absolutas, recorre-se frequentemente ao paradoxo e ao princípio da contradição. Exemplos:  [sem título], de Henrique Manuel Bento Fialho Como ninguém tomava banhos de imersão, a banheira andava deprimida.  Encheu-se de água e deixou-se afogar. “os meus problemas”, de Rafael Mota Miranda os taxistas perguntam-me sempre se não tenho mais pequeno.  as mulheres, se não tenho maior. “De la ubicuidad de las manzanas”, de Ana María Shua [Argentina] La flecha disparada por la ballesta precisa de Guillermo Tell parte en dos la manzana que está a punto de caer sobre la cabeza de Newton. Eva toma una mitad y le ofrece la outra a su consorte para regocijo de la serpiente. Es así como nunca llega a formularse la ley de la gravedad. 26 26
27 -ABOLIÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNIDADE NARRATIVA – desaparecimento do sujeito tradicional (ou seja, de um protagonista claramente identificável), que é muitas vezes substituído por deícticos que permitem ao leitor contextualizar o micro-relato em qualquer tempo, espaço ou personagem que lhe ocorra.  Nesta linha, algumas das categorias centrais/habituais da narrativa (como a acção, tempo ou espaço) podem surgir apenas sugeridas, implicitamente.  Exemplos:  “O Dinossauro”, de Augusto Monterroso [Guatemala] Cuando  despertó, el dinosaurio todavía estaba allí. [Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.] “Literatura”, de Rui Manuel Amaral Uma macieira que dá laranjas. 27 27

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Estratégias de escrita breve na história e suas influências na microficção

  • 1. 1 A MICRO-FICÇÃO/ESCRITA BREVE COMO ESTRATÉGIA INOVADORA DE PROMOÇÃO DA LEITURA E DA ESCRITA CRIATIVA (para públicos jovem e adulto)* Apresentação realizada no âmbito do Encontro inter-concelhio de grupos de trabalho das bibliotecas escolares (Faro, Silves e Lagoa) [versão aumentada] 12 de Julho de 2010 Biblioteca Municipal de Silves * por Paulo Pires | Técnico Superior da BMS (programador e mediador de leitura) biblioteca@cm-silves.pt 1 1
  • 2. MICRO + FICÇÃO Definição literal |“texto inventado em formato conciso” Ingredientes centrais |CONCISÃO (engloba os conceitos de brevidade e precisão) + INTENSIDADE E EFICÁCIA EXPRESSIVAS (analogia com regra da Física: maior brevidade = maior intensidade) Convenço-me agora de que a brevidade é um fim em si mesmo quando leio uma linha e me parece mais larga do que a vida, e quando, depois, leio uma novela e esta me parece mais breve do que a morte. (Gabriel Jiménez Emán) Pluralidade terminológica actual | Micro-narrativa / escrita breve / ficção súbita Crônica (Brasil) Microconto / miniconto / mini-miniconto / nanoconto / conto breve / ultraconto Short story / short short story / four minute fiction (EUA) Microrrelato (América Latina)
  • 3. 3 | ANTECEDENTES E INFLUÊNCIAS NA MICRO-FICÇÃO ESCRITA BREVE – remonta aos inícios da literatura, há 4000 anos (em textos sumérios e egípcios), surgindo como relatos intercalados Na literatura grega surgem como digressões imaginárias com uma unidade de sentido relativamente autónoma (como em Heródoto ou Luciano de Samotracia, entre outros). Tratam-se de textos inseridos em discursos maiores (geralmente em diálogos) e têm uma função digressiva, destinando-se a desviar o ouvinte do discurso central desses diálogos através da inserção de factos surpreendentes, pouco habituais ou extraordinários. Na Idade Média começam a discernir-se nas expressões narrativas formas diferenciadas de ficção breve, sobretudo na literatura didáctico-religiosa. 3 3
  • 4. 4 A micro-ficção começa a insinuar-se no século XIX, ligada às opções e exigências editoriais das revistas literárias e jornais, sobretudo na América Latina, os quais criaram um mercado para a ficção breve, impondo-lhe uma restrição espacial que logo se confundiu com um traço genérico da mesma: a brevidade. Ao longo dos inícios do século XX vão surgindo diversas publicações que apresentam textos/contos em miniatura. A partir das décadas de 50 e 60 do século XX um número cada vez maior de escritores, nomeadamente na América Latina, vai-se demarcando das pretensões totalizadoras da narrativa convencional, deixando-se seduzir pelas possibilidades expressivas e formais da micro-ficção como registo independente, transgredindo ou alargando as fronteiras tradicionais dos géneros literários. Esta escrita tem vindo a desenvolver-se em duas direcções de difícil conciliação: ao encontro de uma herança canónica entendida como tradição (ultrapassada, mas que continua exercendo uma forte influência na compreensão do literário; e a busca de uma expressividade radicalmente nova. 4 4
  • 5. 5 FORMAS DA TRADIÇÃO ORAL E DA CULTURA LIVRESCA EPIGRAMA Composição poética breve que expressa, de forma engenhosa, um único pensamento principal, festivo ou satírico. Foi criada na Grécia Clássica e usada também por diversos escritores latinos. [quando inscrita sobre estruturas tumulares recebe o nome de EPITÁFIO] Exemplo: epigrama de Catulo [Roma antiga] Odi et amo. Quare id faciam fortasse requiris. Nescio, sed fieri sentio, et excrucior. [Eu odeio-a e amo-a, não me perguntem porquê. É a maneira que sinto. Isto é tudo e lastimo.] 5 5
  • 6. 6 KOAN Narrativa, diálogo, questão ou afirmação no zen-budismo que contém aspectos que são inacessíveis à razão. Trata-se em regra de um enigma ou charada, que é utilizado pela corrente/escola Rinzai do zen japonês monástico. . O objectivo deste texto é propiciar a iluminação do aspirante a zen-budista. Exemplo: da tradição oral, atribuída a Hakuin Ekaku (1686-1769) [Japão] Batendo duas mãos uma na outra temos um som; qual é o som de uma [só] mão? 6 6
  • 7. 7 RUBA’I Poema de quatro versos (quadras), que segue um esquema rimático de tipo AABA, cujas origens remontam à poesia sufi persa (séc.VII a.C.). Exemplo: de Abu Sa’id Abi ‘l-Khayr [Pérsia] bingar bi-jahan sirr-i ilahi pinhan chun ab-ihayat dar siyahi pinhan payda amad zi bahr mahi anbuh shud bahr zi anbuhi-yi mahi pinhan [Olhai para o mundo: o Divino Segredo está escondido. Tal como a Fonte da Vida, está escondido nas trevas. Milhões de peixes surgiram no mar – Por causa do seu número, o mar fechou-se secretamente.] 7 7
  • 8. 8 FÁBULA História narrativa, curta, que surgiu no Oriente, particularmente desenvolvido por Esopo no séc.VI a.C., na Grécia antiga, cujos protagonistas são animais. O objectivo destas histórias inverosímeis de fundo didáctico é a transmissão de sabedoria de carácter moral e exemplar aos seres humanos. [quando, nesta mesma linha temático-ideológica, as personagens são seres inanimados, objectos, a história designa-se de APÓLOGO] [a PARÁBOLA, por seu lado, consiste também numa narrativa curta que tem um fundamento/objectivo moral e é protagonizada por seres humanos, apresentando habitualmente um cunho religioso] Exemplo: “A ovelha negra”, de Augusto Monterroso[Guatemala] Num país longínquo existiu há muitos anos uma Ovelha Negra. Foi fuzilada. Um século depois, o rebanho arrependido ergueu-lhe uma estátua equestre que ficou muito bem no parque. Assim, sucessivamente, de cada vez que apareciam ovelhas negras eram rapidamente trespassadas pelas armas para que as futuras gerações de ovelhas comuns e correntes pudessem exercitar-se também na escultura. 8 8
  • 9. 9 CONTO ZEN Existem várias lendas dentro da tradição Zen, transmitidas e renovadas pela tradição oral e integrantes dos costumes chineses e japoneses, que se entrelaçam com a história factual. No Japão existem as narrativas setsuwa, que são histórias breves, contadas “de um fôlego só”. São transmitidas como reais ou supostamente reais, enquadram-se nos universos chinês, indiano e japonês (algumas das quais associadas ao budismo), e resultam sobretudo de uma criação colectiva anónima. Exemplo: de autoria anónima, “A estrada enlameada” Tanzan e Ekido caminhavam juntos numa estrada enlameada. Caía ainda uma chuva forte. Junto a um cruzamento da estrada, encontraram uma bela moça que não conseguia atravessar porque não queria sujar o belo kimono de seda que trazia. – Anda moça – disse Tanzan imediatamente. E, carregando-a nos seus braços, atravessou-a para o outro lado. A partir daí, Ekido ficou calado todo o caminho que percorreram, até à noite. Ao chegarem ao templo onde ficariam a pernoitar, Ekido não conseguiu conter-se e disse a Tanzan: – Nós, os monges, não nos aproximamos de mulheres. Especialmente se são jovens e bonitas. É perigoso. Por que fizeste aquilo? – Eu deixei a moça lá atrás – disse Tanzan. – Tu ainda estás a carregá-la? 9 9
  • 10. 10 HAIKU Deriva de uma forma anterior de poesia, a tanka (com 5 versos), em voga no Japão entre os sécs.IX e XII, a qual versava temas religiosos ou ligados à Corte. No século XV surge a renga, que assentava numa estrutura de 3 versos (uma espécie de mote, chamado hokku, sugerido por um poeta), à qual se iam juntando outras estrofes, num jogo competitivo entre vários poetas. Essa estrofe inicial de 3 versos foi-se autonomizando, tornando-se uma forma independente de poesia que só no século XIX recebe o nome de haiku. Cada poema, composto de uma percepção sensorial e de uma percepção sugestiva, capta um momento de experiência, um modo de ver o mundo, um instante em que o simples subitamente revela a sua natureza interior e nos faz olhar de novo o observado. Exemplos: 3 poemas, sem título, de Matsuo Bashô (1644-1694) [Japão] Não esqueças nunca A água é tão fria Através da racha na lareira o gosto solitário Como pode a gaivota o gato do orvalho adormecer? vai ter com a amada 10 10
  • 11. 11 AFORISMO É uma sentença concisa, que geralmente encerra um preceito moral. Exemplos: de Hipócrates [Grécia antiga] A vida é breve, a arte é longa, a ocasião fugidia, a experiência enganosa, o julgamento difícil. de Carlos Drummond de Andrade [Brasil] O amor dinamita a ponte e manda o amante passar. Seria cómico, se não fosse trágico. Somos humildes na esperança de um dia sermos poderosos. O optimismo é um cheque em branco a ser preenchido pelo pessimista. 11 11
  • 12. 12 ANEDOTA É uma história breve, com um desenlace cómico e, por vezes, surpreendente. Os objectivos da piada vão desde o simples entretenimento lúdico até à sátira social, recorrendo também ao humor negro, destinado a um público menos susceptível, o qual aborda usualmente temas como a morte, a religião, a doença, a orientação sexual, a violência e as relações/conflitos étnicos. Exemplo: de autoria anónima, “A dedução de Watson” Sherlock Holmes e o doutor Watson vão acampar. Após um bom jantar e uma garrafa de vinho, entram nos sacos de dormir e caem no sono. Algumas horas depois, Holmes acorda e sacode o amigo. – Watson, olhe para o céu estrelado. O que é que você deduz disso? Depois de ponderar um pouco, Watson diz: – Bem, astronomicamente, estimo que existam milhões de galáxias e potencialmente biliões de planetas. Astrologicamente, posso dizer que Saturno está em Câncer. Teologicamente, eu creio que Deus e o universo são infinitos. Também dá para supor, pela posição das estrelas, que são cerca de 3h15m da madrugada… O que você me diz, Holmes?. Sherlock responde: – Elementar, meu caro Watson. Roubaram-nos a barraca! 12 12
  • 13. 13 CADÁVER-ESQUISITO (cadavre exquis) É um jogo colectivo surrealista inventado em França cerca de 1925. Procurando subverter o discurso literário convencional, privilegia-se o automatismo e a actividade colectiva, de forma a produzir sequências/textos dominados pelo absurdo, pelo acidental/inusitado, pela ideia de ligação improvável. Numa perspectiva heterodoxa, dominada pelo humor, poeticidade da linguagem, imaginação e visão onírica, luta-se contra a rotina/hábito convencionados, e concilia-se a expressão individual com a mensagem colectiva. Exemplo: “O vermelho e o verde”, de João Artur Silva e Mário-Henrique Leiria – De que cor é o vermelho? – É verde. – Quem é o teu pai? – É o revisor do comboio para a lua. – O que é a loucura? – É um braço solitário sorrindo para os meninos. – Quem é Deus? – É um vendedor de gravatas. – Como é a cara dele? – É bicuda, com uma maçaneta na ponta. 13 13
  • 14. 14 POEMA EM PROSA “A fronteira entre poesia e prosa, quando a invenção verbal não tem outra finalidade que não seja ela própria, é puramente formal; em literaturas adultas, não é raro ambas juntarem as suas águas e o resultado podem ser coisas esplendorosas, quando assinadas por esses homens ‘que dão corpo à alma da sua língua’”. (Eugénio de Andrade) O poema em prosa surge como um meio eficaz de a poesia ensaiar novos caminhos, adquirindo, através da prosa, uma respiração diferente. O mesmo Eugénio de Andrade enfatiza, a propósito desta modalidade, o facto de esta lhe permitir, na escrita, “uma respiração mais ampla, um ritmo mais próximo do falar materno”. O texto poético apresenta assim uma dinâmica e um tom de narrativa brevíssima – traços que, não poucas vezes, podem constituir o gérmen de pequenos contos (anunciados, em alguns casos, pelos títulos do poemas que prefiguram uma dada opção genológica – exemplo: poema “Fábula”, de Eugénio de Andrade). 14 14
  • 15. 15 Exemplos: “Ligação”, de Alberto Pimenta a palavra repousa de olhos semicerrados encoberta por um véu deixando entrever uma mama: o poeta aproxima-se tenta ma mar. a palavra estremece abre os olhos. o poeta afasta-se de um golpe tropeça cai sentado. a palavra percorre-se com as mãos a ver se está intacta. fica pensativa os dedos enfiados nas tranças brincando. o poeta aproxima-se então por trás. agarra a palavra pela cinta. ela tenta furtar-se ao contacto. caem. rolam por terra. a palavra continua a debater se. o poeta mete um dedo na vulva da palavra. a palavra torce-se toda. depois acalma. o poeta mete outro e outro de do ainda, retira um hífen todo molha do. a palavra cai ofegante. o poeta a fasta-se com um sorriso mete o hífen a o bolso e publica-o com uma palavra sua na capa “O Poeta”, de Manoel de Barros [Brasil] Vão dizer que não existo propriamente dito.Que sou um ente de sílabas.Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.Meu pai costumava me alertar:Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o somdas palavrasOu é ninguém ou zoró.Eu teria 13 anos.De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes quese perdia nos longes da BolíviaE veio uma iluminura em mim.Foi a primeira iluminura.Daí botei meu primeiro verso:Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.Mostrei a obra pra minha mãe.A mãe falou:Agora você vai ter que assumir as suasirresponsabilidades.Eu assumi: entrei no mundo das imagens. 15 15
  • 16. 16 Exemplo: “Rã”, de Alexandre O’Neill Propus a Helena, a primeira vez que a vi, organizarmos, de parceria, um campeonato de saltos de rã. Não sei exac- tamente como a ideia maluca me saltou da cabeça, antes mesmo de eu a ter pensado bem. Helena aderiu logo a ela, quase com entusiasmo. Helena tentava, por essa altura, promover tudo: encontros culturais, sessões de autógrafos, “happenings”, reuniões taparwere, musicatas, recitatas, tudo, tudo! A ideia dos saltos de rã, afinal, não era assim tão estranha como isso: vinha direitinha do conto de Mark Twain “A célebre rã saltadora do distrito de Calaveras”. Então, eu e a Helena pusémo-nos à procura de rãs. Em Sacavém, uns rapazitos apanharam, para nós, duas rãs. Paguei cinco escudos por cada uma. Dentro da caixa de sapatos, as rãs latejavam. A meu lado, Helena segurava na caixa, na qual fizéramos dois buracos para os bichos poderem respirar. Já em Lisboa, Helena disse de repente: E se experimentássemos agora mesmo as rãs? Em Cabo Ruivo, a dez metros do Tejo, parei o carro. Saímos. Helena agachou-se, destapou cuidadosamente a caixa, não sem, primeiro afastar para o lado a cabeça. Uma das rãs saltou logo para o chão. 16 16
  • 17. 17 [“A rã”, de Alexandre O’Neill (conclusão)] A outra recusou-se. Tocámos-lhe com pauzinhos, batemos na caixa – e nada. Estando a rã que saltara semcompetidora, de que se haviade lembrar o diabo da Helena?Simples! Pôs-se ao lado da rã, segurouas saias e, com enérgicos“hop lá! hop lá!”, foi saltandocom ela até que, sem darpor isso, caiu nas águas do Tejo. Tive um trabalhão para pescar a Helena etrazê-la, para minha casa,encharcada e a bater o dente. Ainda hoje lá está… 17 17
  • 18.
  • 19. é um texto experimental de extensão mínima (visando eliminar o supérfluo, o desnecessário, o excessivo), com elementos literários de carácter moderno e pós- -moderno, o qual pretende levar até ao limite o espírito de síntese e de depuração estilística;
  • 20. é necessário reler o micro-texto para reconhecer as suas múltiplas formas de ironia (as histórias são artificialmente limitadas); a micro-ficção enriquece-se a cada nova leitura: “Temos de dar algumas migalhas para o leitor fazer o resto do pão” (Rui Manuel Amaral) – estamos perante uma nova experiência de leitura;18 18
  • 21.
  • 22. é também o género mais recente: só no final do século XX é que começou a ser considerado uma forma literária autónoma (as suas raízes residem nas vanguardas hispano-americanas do período entre guerras);
  • 23. é o género mais didáctico, lúdico, irónico e fronteiriço da literatura; Rui Costa realça a sua “extrema aptidão para a promiscuidade”, enfatizando a ideia de micro-ficção enquanto não-género: “é a riqueza da impossibilidade de o ser. Confunde os géneros e deixa-nos (bem) perdidos no caminho para qualquer definição”;
  • 24.
  • 25. desconstruir o preconceito: não se trata de preguiça de escrever; escrever pouco não é necessariamente sinónimo de escrever de forma simplista, fácil ou superficial (“Não fui breve porque não tive tempo” – disse o poeta romântico alemão Heinrich Heine). A escrita micro-ficcional apresenta um significativo desafio de imaginação, criatividade, originalidade e destreza linguística para quem a produz;
  • 26. instala a confusão entre a prosa e a poesia; ao mesmo tempo, os textos breves e os poéticos exigem mais ao leitor do que qualquer outro género (note-se que os poetas são quem melhor lida, nos domínios da literatura, com a ideia de sintético);
  • 27.
  • 28.
  • 29. diversas estratégias de intertextualidade: hibridez genérica, silepse, alusão, citação e paródia;
  • 30. diversas modalidades de metaficção (no plano narrativo: a estrutura em abismo (“mise en abyme”), a metalepse, o diálogo/interpelação do leitor; no plano linguístico: jogos de linguagem como o lipograma, o tautograma ou as repetições lúdicas);
  • 31. várias estratégias de ambiguidade semântica: por exemplo, um final inesperado/surpreendente ou enigmático;
  • 32. diversas formas de humor (intertextual) e de ironia (necessariamente instável).22 22
  • 33. 23 | ALGUMAS TIPOLOGIAS DE TEXTOS MICROFICCIONAIS * * segundo David Lagmanovich DISCURSO SUBSTITUÍDO A essência destes relatos sãos os jogos de linguagem, recorrendo a neologismos e a jogos gramaticais e de sentido Exemplo: “acordo”, de Paulo Condessa Um dos homens era do campo. O outro era da cidade. Um tinha uma horta. O outro tinha uma gráfica. Um dia acordaram os dois na mesma página e decidiram fazer um acordo. E fizeram. Um acordo horta-gráfica. DISCURSO MIMÉTICO Textos que tentam imitam o falar quotidiano e que se enquadram no discurso popular Exemplo: “Urdimbre”, de Orlando Enrique Van Bredam – Tu marido es celoso? – preguntó él. – Sí. Mi marido es el oso que viene ahí – respondió ella. 23 23
  • 34. 24 REESCRITA E PARÓDIA↔ noção de intertextualidade 2 modalidades: – paráfrase de obra de um ou mais autores – apropriação de elementos relativos à biografia, estilo de escrita ou visão que o colectivo social tem de um dado autor (ligado ou não ao mundo literário) O(s) intertexto(s) pode(m) estar oculto(s) devido ao silêncio manifestado pelo texto ou através de alusões, verdadeiras ou falsas, que pretendem desviar a atenção do leitor do rumo que vinha tomando; ou o(s) intertexto(s) pode(m) “ler-se debaixo da letra”, como um palimpsesto ↓ o grau de “ingrediente de impureza” que o microficcionista aplica ao material reescrito é que marca a diferença ao nível do tratamento textual ESCRITA EMBLEMÁTICA Textos que transmitem uma visão transcendente da existência humana e que podem ser interpretados de um ponto de vista mítico ou religioso (não há casos abundantes) 24 24
  • 35. 25 | ENQUADRAMENTO NA PÓS-MODERNIDADE EXPANSÃO E AFIRMAÇÃO DA MICRO-FICÇÃO ↔ CONTEXTO PÓS-MODERNO PÓS-MODERNIDADE (na literatura) - privilegia a hibridez e a contaminação de temas, formas e processos - apresenta uma propensão dominantemente paródica - combina, cruza e/ou alterna traços e tendências clássicas e modernas - adopção crescente do formato portátil * * numa dupla vertente: no tamanho físico do livro/dispositivo digital de leitura (em papel ou como audio-book ou e-book) e na duração das histórias [A nível da interpretação textual] já não é suficiente dizer: “Aqui está o texto para demonstrar o que digo” [critério moderno], nem tão pouco “Aqui está a intenção do autor para certificar a análise” [critério clássico]. Em seu lugar, o que parece estar em jogo é a necessidade de dizer: “Aqui está esta leitura para desarticular a intenção do autor e a intenção evidente do texto”.(Lauro Zavala) PÓS-MODERNIDADE= hiperbolização da polissemia e da experimentação modernas + reciclagem irónica das convenções da narrativa clássica(Lauro Zavala) 25 25
  • 36. 26 | TRAÇOS PÓS-MODERNOS DA MICRO-FICÇÃO - CEPTICISMO RADICAL – é o resultado da descrença nas utopias; para demonstrar a inexistência de verdades absolutas, recorre-se frequentemente ao paradoxo e ao princípio da contradição. Exemplos: [sem título], de Henrique Manuel Bento Fialho Como ninguém tomava banhos de imersão, a banheira andava deprimida. Encheu-se de água e deixou-se afogar. “os meus problemas”, de Rafael Mota Miranda os taxistas perguntam-me sempre se não tenho mais pequeno. as mulheres, se não tenho maior. “De la ubicuidad de las manzanas”, de Ana María Shua [Argentina] La flecha disparada por la ballesta precisa de Guillermo Tell parte en dos la manzana que está a punto de caer sobre la cabeza de Newton. Eva toma una mitad y le ofrece la outra a su consorte para regocijo de la serpiente. Es así como nunca llega a formularse la ley de la gravedad. 26 26
  • 37. 27 -ABOLIÇÃO DO PRINCÍPIO DA UNIDADE NARRATIVA – desaparecimento do sujeito tradicional (ou seja, de um protagonista claramente identificável), que é muitas vezes substituído por deícticos que permitem ao leitor contextualizar o micro-relato em qualquer tempo, espaço ou personagem que lhe ocorra. Nesta linha, algumas das categorias centrais/habituais da narrativa (como a acção, tempo ou espaço) podem surgir apenas sugeridas, implicitamente. Exemplos: “O Dinossauro”, de Augusto Monterroso [Guatemala] Cuando  despertó, el dinosaurio todavía estaba allí. [Quando acordou, o dinossauro ainda estava lá.] “Literatura”, de Rui Manuel Amaral Uma macieira que dá laranjas. 27 27
  • 38. 28 -TEXTOS EXCÊNTRICOS – privilegiando zonas marginais relativamente aos centros canónicos da Modernidade. Esta tendência conduz a experimentações com temas, personagens, registos linguísticos e formatos literários que haviam sido relegados para segundo plano. Engloba textos que normalmente não são considerados literários, nomeadamente formatos retirados do universo dos mass media e outros. Exemplos: Os manuais de instruções (veja-se o texto “Instrucciones para subir una escalera”) constantes da obra Historias de cronopios y de famas, de Julio Cortázar “Fastos II”, de Alberto Pimenta artur vilas boas fez um filho na noite de núpcias. josé galhardo fez um filho na n oite de 29 de Fevereiro e a mulh er disse: isto não acontece todos os anos. nuno aranha fez dezassete filhos legítimos. joão de aguiar fez num só dia dois filhos, e conta o caso a quem o quiser ouvir. joão manuel dito o larote fez três filhos, todos sem querer. 28 28
  • 39. 29 assis conceição em princípio só faz gémeos. josé marreta vai e vem, entra e sai, faz um filho ou não faz nada. brito e cunha educa os filhos à antiga: manda-os calar com o chicote. mota lucas educa-os à moderna: manda-os simplesmente calar. bento themudo faz um filho sem pre que pode. reinaldo rosas faz filhos só qua ndo quer. tomé de lima antes de fazer filh os faz jejum. artur campos faz filhos por distr acção. “Fastos II”, de Alberto Pimenta (continuação) joão da atouguia não sabe quan tos filhos fez. carlos mendonça fez nove filhas e à décima tentativa fez um fil ho varão como a família exigia. luís bastos além de filhos fez t ambém netos. daniel laranjo fez as contas – 1 f ilho, 160; 2 filhos, 180 cada; cad a filho a mais, 240 – e começou logo com a produção* (*muito desactualizado; ver nova tabela no decreto regulamentar.) manuel almeida ainda não casou, mas quando casar fará os filhos que quiser. 29 29
  • 40. 30 “Fastos II”, de Alberto Pimenta (conclusão) brito e cunha educa os filhos à antiga: manda-os calar com o chicote. mota lucas educa-os à moderna: manda-os simplesmente calar. bento themudo faz um filho sem pre que pode. tomé de lima antes de fazer filh os faz jejum. artur campos faz filhos por distr acção. azevedo filho acha que é gosto so fazer azevedo neto. luís pacheco é o que se sabe. joão pestana estava a fazer um filho, mas interrompeu a meio. [sem título], de Ernest Hemingway (Prémio Nobel da Literatura em 1954) For sale: baby shoes, never worn. [Para venda: sapatos de bebé, nunca usados.] 30 30
  • 41. 31 -VIRTUOSISMO INTERTEXTUAL – é um reflexo da bagagem cultural do escritor, através do qual ele recupera a tradição literária, quer renovando obras do passado mediante a sua reescrita, quer subvertendo-as através do recurso a processos reinterpretativos como o humor/paródia, a sátira e a ironia. Exemplos: “Rapidinhas culturais”, de Carlos Quevedo, Rui Zink e Nuno Miguel Guedes (resumo a partir da obra Hamlet, de William Shakespeare) Um príncipe com insónias passeia pela muralha do castelo, quando o fantasma do pai lhe diz que foi morto pelo tio que dorme com a mãe, cujo homem de confiança é o pai da namorada que entretanto se suicida ao saber que o príncipe matou seu pai para se vingar do tio que tinha matado o pai do seu namorado e que dormia com a mãe. O príncipe mata o tio que dorme com a mãe, depois de falar com uma caveira, e morre, assassinado pelo irmão da namorada, a mesma que era doida e que se tinha suicidado. “paixão”, de Augusto Mota (a partir do soneto camoniano “Amor é fogo que arde sem se ver”) Inscreveu-se no corpo dos bombeiros voluntários. Queria apagar um fogo que ardia sem se ver. Estava apaixonado. 31 31
  • 42. 32 - RECURSO FREQUENTE AO HUMOR E À IRONIA – são ingredientes centrais na construção de um texto microficcional e podem assumir inúmeras variantes e cambiantes, tendo em conta o estilo do autor, o tema tratado e a tipologia textual, entre outros factores. Exemplos: “antivírus”, de Augusto Mota Apaixonou-se na net. Juraram fidelidade na net. Tiveram relações na net. Como não se protegeu devidamente, o computador contraiu uma terrível infecção. “Acidentes”, de Russell Edson [EUA] Um barbeiro cortou acidentalmente uma orelha. É como uma coisa recém-nascida deitada no chão num ninho de cabelo. Ui, diz o barbeiro, não devia ser lá grande orelha. Mal se queixou. Pois não era, disse o cliente, sempre teve muita cera. Tentei pôr-lhe um pavio e derreter a cera, a ver se encontrava o meu lado musical. Mas ao acendê-lo fiquei com a cabeça em chamas. O fogo alastrou até às minhas virilhas e sovacos e chegou a uma floresta próxima. Senti-me um santo. Houve quem pensasse que eu era um génio! É reconfortante sabê-lo, diz o barbeiro, mas ainda assim não posso deixá-lo regressar a casa só com uma orelha. Vou ter de remover a outra. Mas não se preocupe, será um acidente. Simetria a quanto obrigas! Mas que seja um acidente, não o quero a cortar-me de propósito. Se calhar corto-lhe a garganta…. Claro, desde que seja um acidente… 32 32
  • 43. 33 Ainda neste tópico, é de destacar o uso frequente do HUMOR NUM REGISTO NEGRO OU TERRÍFICO, que não passe apenas pela vertente lúdica ou cómico-anedótica, como atestam o último texto citado ou, por exemplo, os Crimes exemplares, de Max Aub. O recurso ao NONSENSE E À IDEIA DE ABSURDO, através de um humor (aparentemente) perturbado e sem sentido, constitui igualmente um traço recorrente da escrita breve, como demonstram os próximos três exemplos: “Rifão quotidiano”, de Mário-Henrique Leiria Uma nêspera estava na cama deitada muito calada a ver o que acontecia chegou a Velha é o que acontece e disse às nêsperas olha uma nêspera que ficam deitadas e zás comeu-a caladas a esperar o que acontece 33 33
  • 44. 34 Exemplo 2: “Três sonhos: 1.º sonho de Calvino”, de Gonçalo M. Tavares Do alto de mais de trinta andares, alguém tira da janela abaixo os sapatos de Calvino e a sua gravata. Calvino não tem tempo para pensar, está atrasado, atira-se também da janela, como que em perseguição. Ainda no ar alcança os sapatos. Primeiro, o direito: calça-o; depois, o esquerdo. No ar, enquanto cai, tenta encontrar a melhor posição para apertar os atacadores. Com o sapato esquerdo falha uma vez, mas volta a repetir, e consegue. Olha para baixo, já se vê o chão. Antes, porém, a gravata; Calvino está de cabeça para baixo e com um puxão brusco a sua mão direita apanha-a no ar e, depois, com os seus dedos apressados, mas certeiros, dá as voltas necessárias para o nó: a gravata está posta. Os sapatos, olha de novo para eles: os atacadores bem apertados; dá o último jeito no nó da gravata, bem a tempo, é o momento: chega ao chão, impecável. 34 34
  • 45. 35 Exemplo 3: “O Rapaz Robô”, de Tim Burton Mr. e Mrs. Smith tinham uma boa vida. Faziam um belo casal, feliz e normal. Um dia aconteceu-lhes uma coisa bestial: Mrs. Smith engravida. Mr. Smith fica ufano. Mas algo correu mal com o rebento de amor: Não tinha nada de humano, era um rapaz robô! Não era quente nem fofo e, sem pele que se visse, era, ao invés, de chapa batida com uma série de antenas da cabeça saídas. Tinha um ar molengão, sem morte nem vida. Só parecia vivente com uma grande extensão ligada à corrente. Mr. Smith levou a mal: “Sr. Doutor, este não é o meu moço. Não é de carne e osso, é de liga de metal.” Disse o médico docemente: “Há-de parecer-lhe demente, mas não é o senhor o legítimo progenitor deste ser repelente. Não conseguimos determinar o sexo deste horror; mas não há que enganar: o pai era um ferro a vapor.” Os Smiths passaram a viver como um casal ressentido. Mrs. Smith odiava o marido e este odiava a mulher. Nunca lhe conseguiu perdoar o seu pecado mortal: um encontro sexual com um ferro de engomar. E o Rapaz Robô um homem se tornou. Mas tomavam-no por bicho ou por caixote do lixo. 35 35
  • 46. 36 - OBRAS ABERTAS – textos em que só o leitor pode apreender o seu sentido último. São obras que não se conformam com uma leitura qualquer, senão com um leitor culto que maneja as fontes da tradição literária. Exigem uma participação activa do leitor, visto que oferecem uma pluralidade de interpretações e apoiam-se em modos oblíquos de expressão (como a alegoria). Por exemplo, para interpretar de forma correcta a micro-história (poema em prosa) “Nota para um conto fantástico”, de Jorge Luis Borges, o leitor tem de possuir conhecimentos sobre a Guerra da Secessão norte-americana, o poeta John Donne, a obra Dom Quixote de La Mancha, etc.: No Wisconsin e no Texas ou no Alabama as crianças brincam à guerra e os lados são o Norte e o Sul. Eu sei (todos sabem) que a derrota possui uma dignidade que a ruidosa vitória não merece, mas também sei imaginar que esse jogo, que abarca mais de um século e um continente, descobrirá algum dia a arte divina de destecer o tempo ou, como disse Pietro Damiano, de modificar o passado. Se isso acontecesse, se no decurso dos complexos jogos o Sul humilhar o Norte, o hoje gravitará sobre o ontem e os homens de Lee serão vencedores em Gettysburg nos primeiros dias de Julho de 1863 e a mão de Donne poderá terminar o seu poema sobre as transmigrações de uma alma e o velho fidalgo Alonso Quijano conhecerá o amor de Dulcineia e os oito mil saxões de Hastings derrotarão aos normandos como antes derrotaram aos noruegueses, e Pitágoras não reconhecerá num pórtico de Argos o escudo que usou quando foi Euforbo. 36 36
  • 47.
  • 48. permite, pelo processo de reescrita lúdica/irónica, a aproximação a obras de referência (os chamados “clássicos”) a partir da acessibilidade do resumo e/ou do fragmento;
  • 49. cria ao leitor a possibilidade de reconhecer as formas mais complexas de escrita, ou seja: humor, ironia, paródia, alusão, alegoria e indeterminação, permitindo- -lhe, assim, “treinar” a descodificação dos diversos níveis de interpretação textual (leitura de superfície/leitura(s) de profundidade);
  • 50. dissolve a distinção entre leitores de textos e criadores de interpretações;
  • 51. estimula o leitor mais sistemático a que oriente o seu interesse/pesquisa para terrenos inexplorados, não necessariamente ligados à micro-ficção
  • 52. “as características da micro-ficção podem ser uma das soluções para o problema da iliteracia” (José Mário Silva) Com estilos de vida cada vez mais acelerados, as pessoas podem ler facilmente duas ou três histórias nos transportes públicos. A micro-ficção também pode ser facilmente difundida por telemóvel, através de sms’s, ou pela internet, através de e-mails ou redes sociais.37 37