1) O documento discute as tecnologias de comunicação antigas e modernas, como a fala e a escrita. 2) Analisa as críticas de Platão e Agostinho à fala e escrita, questionando se elas realmente fortalecem a memória e comunicam eficazmente. 3) Argumenta que as novas tecnologias de comunicação levam essas técnicas originais às últimas consequências, e que é necessário reexaminar criticamente a fala e escrita à luz dos problemas modernos.
1. XI SEMINÁRIO MODERNIZAÇÃO TECNOLÓGIA PERIFÉRICA
RECIFE, 4 a 6 de NOVEMBRO de 2009
Fundação Joaquim Nabuco, Apipucos, Sala Gilberto Osório, Rua Dois Irmãos, 92
Comunicação: pontos para pesquisa
Cesare Giuseppe Galvan
dugalvan@elogica.com.br
Centro de Estudos Josué de Castro
Resumo
Os meios de comunicação constituem uma das principais tecnologias de ponta e servem de
exemplo dos problemas relativos ao avanço tecnológico moderno. As Tecnologias da
Informação e Comunicação (TIC), por sua própria definição, se constituem em
desenvolvimentos da língua (da fala) e da escrita. Ora, fala e escrita se dão como favas
contadas na autoapresentação das modernas tecnologias. Desde milênios, porém, foram
objeto de análises e de críticas. Exemplos são a crítica de Agostinho ao uso da fala no De
Magistro e as observações de Platão (Sócrates) sobre a escrita (Fedro). É necessário retomar
tais observações e aprofundar a análise de ambas as técnicas.
Recolocamos portanto em questão a pauta dos estudos sobre comunicação. É um reesame do
programa inspirado no outro, proposto por G. Vico em 1708, quando comparou muitos
aspectos nos quais a pauta (ratio studiorum) dos antigos se diferenciava ou se parecia com
aquela dos modernos.
Fala e escrita são antes soluções que problemas da comunicação. Soluções básicas. Mas a
solução constitui problema (exemplo: a pluralidade das línguas e das escritas). “Comunicar
significa produzir um persistente barulho de fundo” (Marco Dotti). É o alastrar-se da
incomunicação no mundo invadido e dominado por meios de comunicação. Amarrando críticas
antigas (Platão, Agostinho) com problemas modernos, talvez se possa formular o seguinte: (1)
a memória não é (mais) memória; (2) a comunicação não comunica.
Palavras chave: comunicação-tecnologia; fala; escrita.
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1. Comunicação: tecnologia e problemas
Os meios de comunicação constituem hoje uma das principais tecnologias de ponta; inclusive
com seus problemas. Podemos portanto toma-los como o exemplo mais característico inclusive
no estudo das questões relativas ao avanço tecnológico moderno. Alguma hipótese que se
formule neste campo poderá sugerir eventualmente relações, problemas, características ou
caminhos válidos também para o entendimento de outros avanços da tecnologia.
O texto a seguir pretende captar nos meios mais antigos de comunicação alguns aspectos que
identifiquem detalhes específicos, que hoje eventualmente possam ter sido esquecidos no
estudo da ciência e da tecnologia modernas. A temática de um exame dos meios de
comunicação é talvez tão antiga quanto as civilizações, pois sempre os homens trataram de
comunicar-se: e para isso inventaram os mais variados meios. Por outro lado, nessa atividade
não deixaram de exercitar seu potencial crítico, na medida em que sua reflexão amadurecia.
Será portanto oportuno retomar hoje as observações que os antigos nos legaram. Tanto mais
se considerarmos aquilo que as Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) são por sua
própria definição: elas se constituem em desenvolvimentos, os mais diferenciados e
sofisticados, do uso de duas técnicas originais da civilização, que são a língua (a fala) e a
escrita.
A idéia inicial deste texto partiu de uma suposição preliminar: se os meios de comunicação
modernos levam a suas talvez últimas consequências o uso de ambas as técnicas (fala e
escrita), é necessário hoje retomar as observações formuladas a respeito delas. Naturalmente,
para encaixá-las em novos debates.
2. As TIC de ontem
O que acontece na difusão de sempre novas Tecnologias da Informação e Comunicação é que
fala e escrita acostumaram-se a ser simplesmente pressupostas – sem ulterior análise –
quando aparecem as tecnologias mais modernas. O próprio formato de nossas novas
tecnologias pressupõe já em sua mesma materialidade o seguinte: fala e escrita comunicam.
Esquecemos porém com isso que, já desde milênios, quando essas duas tecnologias eram
ainda (relativamente!) novas, houve quem chegasse a duvidar de sua eficácia na comunicação
e colocasse em questão suas virtudes. Hoje, quando as novas técnicas se difundem de forma
nunca dantes experimentada, nada aponta para uma reflexão sobre a necessidade de analisar
fala a escrita.
Podemos selecionar dois exemplos clássicos daquele processo de reflexão. Primeiro, o exame
que fez Agostinho do uso da fala em seu De Magistro: isso ocorreu no século quinto depois de
Cristo. Quanto à escrita, as observações de Platão remontam ao século quarto antes de Cristo
e constam em vários textos dele, salientando-se porém uma celebre passagem do Fedro.
Podem-se conferir também, entre outros, o Cármide e a VII Carta.
A lógica desse questionamento coloca os textos de Agostinho e de Platão numa ordem não
cronológica, mas de seu conteudo, para melhor articular algumas das principais mensagens
que eles formularam. Consideraremos então essas duas técnicas mais tradicionais na ordem
seguinte: a fala, em primeiro lugar e, em segundo, a escrita. Se essa não for, como não é de
fato, a ordem cronológica em que foram redigidos os escritos, ela é contudo a ordem
cronológica em que as duas técnicas apareceram.
Agostinho coloca inicialmente a pergunta chave ao filho Adeodato: “Que te parece que
pretendemos fazer quando falamos?”. Questiona com isso a própria razão de ser da fala. A
partir dai, surge uma série de dúvidas e questionamentos sobre as limitações dos sinais (pois a
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palavra é um sinal) para “transmitir” conhecimento. Chegam, ele e Adeodato, a uma conclusão
negativa, felizmente provisória: “talvez não encontres nada que se possa aprender pelos seus
próprios sinais” (cit., n.10.33). Sem entrar em todo o rico debate que se segue, podem-se
salientar os seguintes pontos na parte conclusiva do texto: quem fala pretende mostrar sinais
usando outros sinais; ou então mostrar coisas com sinais. Pois “as palavras devem ser
consideradas de menor importância em confronto com aquilo por que as usamos” (ibid., 9.26).1
O nó dessa questão aparece quando se considerar o seguinte: para que alguém, ao ouvir o
nome (sinal) de algo, pense exatamente naquela mesma coisa que o nome indica, será
necessário primeiro que ele mesmo conheça de antemão a coisa; segundo, conheça também o
sinal (o nome) e, em terceiro lugar, perceba a relação entre a coisa e seu sinal. Só com essas
tres premissas, alguem entende de que coisa se trata, quando escuta pronunciar aquele nome;
ou seja só nesse caso a comunicação chega a seu termo. Em outras palavras, o sucesso no
uso da fala para comunicar pressupõe (e não fornece!) uma complexa elaboração conceitual,
que é deixada ao ouvinte, para que ele a desenvolva.
Com essa contribuição – que contou com o apoio e a provocação de seu filho Adeodato –
Agostinho ampliou a reflexão que seu mestre Platão tinha elaborado muitos séculos antes
numa crítica da outra técnica tradicional, a escrita, sobretudo no diálogo Fedro.2
Pedindo vênia
pela longa citação, podemos extrair daquele diálogo os trechos seguintes que Platão coloca na
boca de Sócrates:
Ouvi dizer que na região de Náucratis, no Egito, houve um dos velhos deuses daquele país (...)
chamava-se Thoth. Foi ele que inventou os números e o cálculo, a geometria e a astronomia, o
jogo de damas e os dados, e também a escrita. Naquele tempo governava todo o Egito Tamuz,
(...). Thoth foi ter com ele e mostrou-lhe as suas artes (...). Quando chegaram à escrita, disse
Thoth: “Esta arte, caro rei, tornará os egípcios mais sábios e lhes fortalecerá a memória;
portanto, com a escrita inventei um grande auxiliar para a memória e a sabedoria.” Responde
Tamuz: “Grande artista Thoth! Não é a mesma coisa inventar uma arte e julgar da utilidade ou
prejuizo que advirá aos que a exercerem. Tu, como pai da escrita, esperas dela com o teu
entusiasmo precisamente o contrário do que ela pode fazer. Tal cousa tornará os homens
esquecidos, pois deixarão de cultivar a memória; confiando apenas nos livros escritos, só se
lembrarão de um assunto exteriormente e por meio de sinais, e não em si mesmos. Logo, tu não
inventaste um auxiliar para a memória, mas apenas para a recordação. Transmites aos teus
alunos uma aparência de sabedoria, e não a verdade, pois eles recebem muitas informações
sem instrução e se consideram homens de grande saber embora sejam ignorantes na maior
parte dos assuntos. Em consequência serão desagradáveis companheiros, tornar-se-ão sábios
imaginários ao invés de verdadeiros sábios”.
Em outros termos, o Sócrates de Platão redimensiona o efeito do uso da escrita na sociedade
onde seu uso se difunde: é o costume – hoje milenarmente encravado na sociedade – de
confiar não na memória das pessoas, mas naquilo que, em nossa linguagem técnica moderna,
denominamos de memória RAM ou memória ROM, ambas vinculadas ao funcionamento da
máquina que prescinde tranquilamente de como funciona a memória humana. Eventualmente,
a máquina, o computador, ajudará a recordar aquilo que já foi esquecido. Para Platão, a
máquina era a escrita.
Mais adiante Sócrates acrescenta outra observação a respeito do uso da “memória” escrita.
Prossegue a exposição de Sócrates:
O uso da escrita, Fedro, tem um inconveniente que se assemelha à pintura. Também as figuras
pintadas tem a atitude de pessoas vivas, mas se alguém as interrogar conservar-se-ão
gravemente caladas. O mesmo sucede com os discursos. Falam das cousas como se as
conhecessem, mas quando alguém quer informar-se sobre qualquer ponto do assunto exposto,
eles se limitam a repetir sempre a mesma cousa. Uma vez escrito, um discurso sai a vagar por
toda parte, não só entre os conhecedores mas também entre os que não o entendem, e nunca se
pode dizer para quem serve e para quem não serve.
3
Para Platão, podemos constatar, a escrita apresenta várias propriedades, que talvez se
possam resumir nas observações seguintes:
1 No texto GALVAN, 2009, há alguns outros detalhes das análises de Agostinho e Adeodato.
2 O conteudo desse trecho do diálogo platoniano está brilhantemente reproduzido no filme Socrate de Rossellini (1971), que foi
recentemente distribuido em DVD aqui no Brasil (São Paulo, Versatil Home Video, www.dvdversatil.com.br).
3 Os trechos são citados conforme a tradução de Jorge Paleikat, contida em PLATÃO (s.d.), p.261-263. Os itálicos são meus.
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1) um ponto central: fortalecimento da memória – é aquilo que com esses meios artificiais
(escrita) não acontece; antes pelo contrário. A propósito disso, note-se que essa propriedade
“negativa” da escrita deve-se atribuir exatamente à sua capacidade mais propria, positiva: a
capacidade de guardar (neste caso, fisicamente) algo, independentemente da mente humana;
pode guardar até algum conceito, contanto que se possa escrever seu sinal, a palavra;
2) uma mudança de situação se opera entre o “não ter” e o “ter” esse meio artificial de
conservação da “memória”: o meio artificial é constituido, por sua natureza, de sinais, e dos
sinais deve-se passar (conforme ensinaria Agostinho alguns séculos depois) ou a outros sinais,
ou às coisas que eles indicam, ou seja “signi-ficam”; em outras palavras, a teoria que nos é
apresentada pelo mestre Platão e por seu discípulo longínquo Agostinho é uma teoria dos
sinais;
3) o mesmo deus Thoth produz também outros inventos: cálculo, geometria, astronomia,
damas, dados. Isso sugere que pode haver certa analogia entre a caracterização da escrita e
muitas outras invenções, a propósito das quais “não é a mesma coisa inventar uma arte e
julgar da utilidade ou prejuizo que advirá aos que a exercerem”. Nessa passagem da invenção
ao uso, a sociedade envolvida pode nos reservar muitas surpresas. Sabia-o Santos Dumont
quando constatou o uso bélico de sua invenção.
Platão, um filósofo que muito se apoiou nos meios de comunicação de que dispunha na época,
em particular na escrita, não se sentiu tranquilo com sua própria obra senão quando chamou a
atenção de seus leitores sobre os limites da escrita ... e da leitura.
3. Na pauta dos estudos: um entreato
Essas observações podem sugerir alguns pontos vitais a ser hoje devidamente reexaminados
nos estudos sobre meios de comunicação4
, hoje, depois de tantas inovações. Essa proposta
inspira-se inclusive numa tentativa análoga de reexame dos estudos que foi formulada por
Giambattista Vico em 1708, quando comparou muitos aspectos nos quais o programa de
estudo (ratio studiorum) dos antigos se diferenciava ou, alternativamente, se parecia com
aquele dos estudiosos que naquela época se consideravam modernos. Vico visava a
esclarecer melhor o que se devia programar para adequar-se a seus tempos. Havia então
notáveis novidades. Analogamente, hoje outras há, muito mais notáveis ainda.
Para Vico o importante é a verdade. Ele toma esse princípio como guia para encontrar o
caminho a ser apontado para os estudos. Articula para esse fim as contribuições dos antigos e
suas características com fenômenos ligados a desenvolvimentos então ainda recentes,
sobretudo na formação universitária, sem assumir como critério geral de definição nem o
programa “moderno” nem alguma alternativa que o estudo dos antigos poderia ou pareceria
sugerir.
Note-se, a respeito das duas técnicas que estávamos a examinar: como já mencionamos, fala
e escrita, ambas, são e se apresentam antes como soluções do que como problemas da
comunicação. São, aliás, até hoje, as soluções básicas da comunicação. No entanto nos dois
casos verifica-se que a própria solução carrega algum problema dentro de si. Exemplo seja a
pluralidade que é conatural ao desenvolvimento da língua e da escrita: com várias línguas e
várias escritas surge logo o problema de como relacioná-las entre si.5
4 Alguém estranhará talvez que no texto não apareça o termo familiar “mídia”. A motivação para isso vem de certa alergia
pessoal, que reconheço tranquilamente. Ela tem sua origem numa constatação etimológica. Os ingleses, a um certo ponto,
optaram por designar os meios de comunicação com o correspondente vocábulo latino, “media”, palavra da qual os romanos
usavam também o singular “medium”. Mas como parece que os ingleses nunca aprenderam por completo a ler e escrever, ao ler
“media” pronunciaram “midia”. Equívoco fonético ou liberdade etimológica? Nós, latinos (embora não todos os latinos, é
claro!), colonizados disciplinados e assumidos, adotamos essa pronúncia equivocada como se fosse termo técnico; chegamos
inclusive a esquecer o singular e a escrever conforme nossa grafia para essa pronúncia, mudando a “e” em “i”. Essa história
bem mereceria o estudo de algum etimólogo. Nesse caso, se o pesquisador for judaico, poderia talvez encontrar algum paralelo
com a origem da palavra Jeovah. Mas por enquanto baste ter fornecido uma razão a título pessoal.
5 E dentro de cada uma, cada avanço acumula novos problemas de comunicação. Por esemplo, na escrita, a proliferação de siglas
e abreviaturas.
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A falta desses aspectos nas pesquisas sobre comunicação, numa sociedade dominada por
relações de tipo mercantil, pode derivar de um dado próprio da mercadoria: seus problemas se
definem ao nível da relação das coisas entre si, relação coisa-coisa, permanecendo as
relações entre homens – entre pessoas – como que entre parênteses. Essas relações são
consideradas quase como pressupostos, até inquestionáveis.
Essa redução ao relacionamento coisa-coisa chega ao ponto de aplicar-se, analogamente, às
teorias do bem estar: nelas, a satisfação humana é frequentemente identificada com a posse
de determinadas coisas. Portanto a solução dos problemas humanos se supõe (implicitamente,
nos modelos) que esteja localizada nas relações entre as coisas.
4. Incomunicação – o problema
It is a tale
Told by an idiot, full of sound and fury,
Signifying nothing.
Uma história
Contada por um idiota, cheia de furor e rumor,
Que não significa nada.
(SHAKESPEARE, Macbeth, ato V, cena 5)
Passando agora aos novos tempos das grandes tecnologias da informação e comunicação, ou,
se quiserem, das TIC, um paradoxo se apresenta: é o grau profundo de incomunicação
interpessoal que caracteriza nossa sociedade, tão madura e rica quando se trata de meios de
comunicação. Estes, aliás, reconheça-se, são amplamente eficientes.
Os questionamentos alinhados acima podem sugerir que os problemas da comunicação
vinculados com o uso da fala e da escrita não só permanecem, mas se aprofundam a partir das
características de suas novas aplicações nos meios mais avançados das recentes tecnologias.
Por um lado, as limitações apontadas permanecem: isso decorre de forma totalmente natural
do simples fato de que fala e escrita continuam a ser sistemicamente os instrumentos básicos
das tecnologias de informação e comunicação.
Por outro lado, aos problemas mencionados acrescenta-se um elemento novo: as novas
tecnologias apresentam suas próprias exigências específicas para o funcionamento da
comunicação. Instrumentos e suas linguagens (“hardware” e “software”) não se reduzem a
simples meios, nem se situam só como “intermediários”: eles passam agora a exigir do usuário
algum grau de conhecimento deles mesmos, a fim de poder entender corretamente a
mensagem. Ou seja, a própria presença e o funcionamento dos meios torna-se um objeto a
mais que deve ser conhecido e reconhecido: essa é a condição para que uma comunicação a
respeito das coisas desse mundo seja eficiente no contexto da sociedade informatizada.
Podem-se arrolar muitos argumentos a confirmar o que foi dito. Baste, no momento, um,
simbólico, escolhido aliás dentre os mais simples. No uso dos “novos” padrões da comunicação
ocorre um problema que se apresentou e teve que ser resolvido com frequência durante toda a
história da própria elaboração dessas tecnologias. Os sons, que eram consignados àquela
memória artificial que vinha sendo construida a cada nova invenção, deixavam de soar com
sua clareza original, mesclando-se com outros sons – melhor: rumores – devidos ao próprio
funcionamento da máquina comunicadora ou reprodutora daqueles mesmos sons originais. É o
barulho de fundo que veio constituir insistentemente um fenômeno adicional, que deveria ser
eliminado a fim de preservar a pureza do som original. Mas frequentemente permanece.
No campo da imagem e das palavras (sinais de conceitos), costuma apresentar-se algo
análogo com esse “barulho de fundo”. A máquina intermediadora faz sempre aparecer “algo
mais”, que, ao acrescentar-se aos dados originais, soma-se também à problemática original da
comunicação pelas palavras, faladas ou escritas. É bem verdade que a história dessas
tecnologias é uma sequência de superações, frequentemente muito bem sucedidas,
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exatamente desses “barulhos de fundo”. Por outro lado, porém, a própria presença física das
máquinas – quase sempre garantida como serviço de terceiros – introduz outros e novos
condicionamentos ao fluir da relação entre pessoas que tentam se comunicar. São como que
novas personagens a povoar o panorama.
Resultado de um mundo que se comunica através desses “meios”: “comunicar significa
produzir um persistente barulho de fundo”: assim resume Marco Dotti uma resenha dos
recentes estudos de Mario Perniola sobre comunicação. O mesmo se poderia talvez dizer
olhando a questão por outro lado: o paradoxo que apresenta o dilagar atual da incomunicação
em nosso mundo invadido por poderosos meios de comunicação. E dominado por eles.
Resumindo (e continuando a menção a Dotti e Perniola): o mundo das Tecnologias de
Informação e Comunicação realizou o que Shakespeare coloca na boca de Macbeth: “Uma
história contada por um idiota, cheia de furor e rumor, que não significa nada.”
5. Tentando concluir
Amarrando, de certa forma, críticas antigas (Platão, Agostinho) com problemas modernos, seria
talvez possivel formular o seguinte: (1) a memória não é mais memória, para o homem; (2) a
comunicação não comunica, pois as pessoas se isolam. Usar meios de comunicação não
significa necessariamente comunicar.
Uma hipótese: será que a incomunicação não tem nada a ver com a natureza dos próprios
meios de comunicação? Ou, talvez melhor e mais importante, com sua inserção na sociedade
em que vivemos, que aliás é a única até hoje que conseguiu realizar desenvolvimentos tão
profundos daqueles meios. Josué de Castro dizia: “A tecnologia não é boa nem má. É a sua
utilização que lhe dá sentido ético”. A esse – necessário! – sentido ético acrescentam-se, no
caso da comunicação, ulteriores problemas técnicos inerentes à própria definição da relação de
homem a homem. E da sua inserção nesse mundo onde as relações se dão entre coisas.
Bibliografia
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Fornero. Torino: UTET, 2006 (10a
ristampa).
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Randall M. Smith. Los Angeles, 1992-2002. Amplíssima coleção de autores gregos em CD.
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Congresso Brasileiro de História Econômica, ABPHE, Campinas, 6 a 8 de setembro de 2009.
PLATÃO. Diálogos I: Mênon, Banquete, Fedro. Tradução de Jorge Paleikat. Rio de Janeiro,
Edições de Ouro, s.d.
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7. XI SEMINÁRIO MODERNIZAÇÃO TECNOLÓGIA PERIFÉRICA
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PLATON. Oeuvres complètes. Traduction et notes Léon Robin; collab. M.-J. Moreau. Pais,
Gallimard, 1950. 2v. Textos citados: Phèdre, v.II, p.9-82; Lettre VII, v.II, 1184-1224.
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