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INFORMATIVO BIMESTRAL
FÁBRICA DE IMAGENS
EDIÇÃO Nº 16
MARÇO-ABRIL 2014
CURTA O GÊNERO
O QUE ACONTECEU NA 3ª EDIÇÃO
página 6
FÁBRICA
ENTREVISTA
MAGDALENA VALDIVIESO
Feminismos do Sul
página 8
ARTIGO
LIBERDADE DE OPRESSÃO
Lola Aronovich fala sobre o humor que não se ri
página 5
FÁBRICA DE IMAGENS
NA TEIA NACIONAL
II Encontro Gênero nos Pontos
Mostra Audiovisual Curta O Gênero
página 11
2
INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16
EDITORIAL
P
ara seguir as considerações
sobre o Programa Cultura
Viva, iniciadas no nosso
último informativo, é imprescindível
refletir um pouco sobre seus aspectos
conceituais, sua inovação e seu sentido.
Nesse momento, o Programa completa
10 anos e nos aproximamos da Teia
e do Fórum Nacional dos Pontos de
Cultura, agora, no final de maio.
Nesse campo, afirmo que se
os Pontos de Cultura marcaram uma
viragem nas políticas culturais no
Brasil, a integração das ações em
identidade e diversidade no escopo do
Programa Cultura Viva poderá marcar
outra viragem. Neste caso, somente se
o Ministério da Cultura e os próprios
Pontos de Cultura empreenderem
conjuntamente uma política cultural
radical de defesa e promoção das
cidadãs e cidadãos mais discriminados
e violados em seus direitos, em que
destacamos pobres, mulheres em
geral, negros e negras, sujeitos LGBTT,
pessoas com deficiência, minorias
religiosas, crianças, adolescentes,
jovens e, especialmente, idosos e
idosas.
As questões que aqui se
apresentam conceitualmente são: o
Ministério da Cultura e a Secretaria
da Cidadania e da Diversidade
Cultural (SDCD) reestruturarão
de fato o Programa Cultura Viva à
altura dos desafios postos, incluindo
de modo prioritário os segmentos
acima listados? Os próprios Pontos de
Cultura,ativistasempolíticasculturais,
artistas e os autointitulados “fazedores
de cultura” percebem a necessidade de
radicalização do Programa Cultura
Viva nesse sentido? Sentido que
não é outro senão o da afirmação
da cultura como fenômeno político,
antropológico e histórico e o
entendimento de que as políticas
culturais têm, como assinalado
pelo ex-ministro Gilberto Gil em
seu discurso de posse, “o papel de
contribuir objetivamente para a
superação dos desníveis sociais”.
Não tenho como precisar se na
origem existia a percepção que trago
neste artigo, todavia imagino que
pelo menos em parte sim, pois são
significativas algumas afirmações
de Célio Turino, então secretário da
SCDC, como as que assinalo abaixo:
“Pontos de Cultura com ênfase
em juventude há em todos os estados,
mas nem enviam propostas voltadas
para questões de gênero, idosos,
indígenas, cegos, trabalhadores
rurais; no conjunto da rede de
Pontos, estes são subconjuntos que
também devem estar presentes”;
“A cultura tradicional
também foi inventada um dia,
incorpora preconceitos, ideologias,
comportamentos machistas. Ao
promover a ideia da emancipação
da mulher, o Ponto de Cultura
com ênfase em gênero pode estar
alterando comportamentos e pontos
de vista em um Ponto de cultura
popular, por exemplo”;
“A rede de gênero pode
influenciar na modificação de
comportamentos machistas nas
redes de hip hop ou de cultura
popular, que trazem consigo muitos
preconceitos machistas ou sexistas,
por exemplo”.
Mesmo que no seu livro “Ponto
deCultura–oBrasildebaixoparacima”,
de onde extrai os excertos acima, Célio
Turino algumas vezes mencione o tema
“direitos” e “direitos humanos”, faz
ainda explícita referência às questões
de gênero, raciais e geracionais várias
vezes, pois, mesmo considerando
que a Teia (grande encontro dos
Pontos de Cultura) de 2008 tenha
ocorrido trazendo como tema
“Cultura e Direitos Humanos”, de fato
o Programa avançou de modo muito
tímido no campo das relações entre
cultura e direitos humanos, binômio
na minha percepção fundamental
num programa intitulado Cultura
Viva e gerido por uma Secretaria da
Cidadania e Diversidade Cultural.
Em parte, isso se explica na
época pela divisão de atribuições entre
Secretaria da Cidadania Cultural e
Secretaria da Identidade e Diversidade
na gestão Gilberto Gil / Juca Ferreira,
mas ontem à semelhança de hoje, pode
também ser explicado pelo sempre
tenso clima de disputa político-
partidária dentro do Ministério e pelo
ranço da ideia obsoleta e corporativista
de que o campo da cultura é o campo
dos artistas, produtores culturais, das
linguagens e das expressões.
O importante aqui é destacar
o Programa Cultura Viva, sobretudo
como um Programa Cultural para a
promoção da cidadania, da democracia
e dos direitos. Para finalizar, acrescento
que na próxima edição trataremos
de um tema não menos difícil, as
relações entre Estado e sociedade
civil e a tão maltratada ideia de gestão
compartilhada.
Por Marcos Rocha | Diretor da Fábrica de Imagens | Membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura/GT Gênero
C
hegamos à 16ª edição do
Informativo Fábrica de Imagens
e à terceira edição do Curta o
Gênero. Um longo caminho trilhado pela
ONG Fábrica de Imagens tem resultado
na abrangência de suas ações. O Curta o
Gênero 2014 foi um marco de público,
programação e duração. A matéria de
capa ilustra um pouco de tudo o que foi
e representou o evento para a história e o
ativismo da Fábrica de Imagens.
Essa trajetória reflete-se nas ações em que a
FábricadeImagenséconvidada/convocada
a participar. São eventos locais e nacionais,
importantes espaços de discussão sobre
cultura, gênero e diversidade, como os
registrados nas primeiras notícias.
Desafiar e expandir algumas discussões de
gênero dá o tom deste informativo. Parte
das temáticas e pesquisas trazidas por
convidadxs do Seminário Internacional
Gênero, Cultura e Mudança inspiraram a
maioria das nossas pautas. O “Cinema de
Mulheres” na época da ditadura, pesquisa
da historiadora Ana Maria Veiga, traz
debate de gênero no cinquentenário do
golpe militar. Trazemos também uma
matéria que reflete sobre conceitos dos
Feminismos do Sul, levantando questões
que desafiam o feminismo tradicional. Em
entrevista, as pesquisadoras Cláudia Lima
Costa e Flávia Teixeira reforçaram a crítica
com argumentos do movimento transexual
e de prostitutas.
Entrevista com a professora Magdalena
Valdivieso também traz outras reflexões
sobreFemininosdoSulapartirdocontexto
socialdaAméricaLatina.AprofessoraLola
Aronovich, outra convidada do evento,
debruçou-se sobre o Humor e seus limites,
discutindo possibilidades de críticas e de
fazer diferente. Aproveitem a leitura!
PROGRAMA CULTURA VIVA PEDE RENOVAÇÃO EM SEUS 10 ANOS
3
A
Fábrica de Imagens está sempre
buscando oportunidades de
debater com outras instituições
e organismos as temáticas trabalhadas no
dia a dia da ONG. O diálogo nos permite
a troca de experiências e a construção de
umaredemaisforteeatenta.Foipensando
nisso que a equipe da Fábrica aceitou dois
convitesparaparticipardeeventosligados
à área de direitos humanos, gênero e
diversidade sexual.
De12a15demarço,representantes
da Fábrica de Imagens participaram da
4ª Mostra Nacional de Experiências em
Atenção Básica/Saúde da Família.
O encontro teve o intuito de
contribuir com a reflexão e constante
melhoria na produção do cuidado em
saúde nos serviços de atenção básica,
que constituem o principal ponto de
contato dos usuários do Sistema Único
de Saúde (SUS). Dentro da programação,
instituições que utilizam o audiovisual
como ferramente para informar e
sensibilizar a população apresentaram as
suas produções. A Fábrica de Imagens
apresentou os curtas-metragens “Viver
com Aids é possível”, “Vagas para amor de
carnaval”, “Surdos e Surdas” e “Mulheres
e DST/Aids”. Também participaram
os coletivos Eu Livre, Fitovida e Plante
Gentileza.
Já no dia 3 de abril aconteceu no
Rio de Janeiro mais um Seminário União
Europeia-Brasil em Direitos Humanos de
Sociedade Civil. A Fábrica de Imagens foi
uma das organizações da sociedade civil
convidadas para debater sobre educação,
esporte e direitos humanos, com vistas
a propor diretrizes para o diálogo entre
o Brasil e os Estados-membro da União
Européia. O posicionamento da ONG foi
no sentido de exigir políticas de educação
na perspectiva de combate ao machismo
e à discriminação com base na orientação
sexual e na identidade de gênero, assim
como a cobrança internacional por
uma resposta do governo brasileiro ao
crescente número de violação de direitos
humanos das populações LGBTT no país.
E
m março de 2014, o cantor Lenine
deu início à uma turnê diferente.
Desta vez, como expectadores,
não apenas os habituais fãs, e sim grupos
formados por comunidades, gestores e
técnicos de projetos socioambientais. Ao
todo,12projetosestãosendovisitadospelo
cantor, que aproveita a oportunidade para
conhecer a comunidade local e também a
história de outros projetos parceiros, além
deoferecerumshowgratuito.“Aarteéum
instrumento de aproximação poderoso
por uma sociedade mais justa. Gosto de
acreditar que a minha música vai além do
que meramente canto”, pontua Lenine.
AFábricadeImagens,representada
pelo diretor Marcos Rocha, foi convidada
a conversar sobre o projeto CACTO -
Centro de Referência em Cultura, Arte,
Comunicação e Novas Tecnologias para
a Promoção dos Direitos Humanos, da
Equidade de Gênero e da Diversidade
Sexual. O projeto é patrocinado pelo
Programa Sociombiental da Petrobras e
foi o único representante fora da parcela
ambiental do Programa a participar do
evento no Ceará. Lenine ganhou um
kit contento vários vídeos e materiais
educativo-informativos produzidos pela
ONG, especialmente no âmbito das
formações políticas em direitos humanos,
gênero e diversidade sexual, além das
linguagens audiovisuais, fotográficas etc.
O local escolhido, o município
de Chaval, tem um estuário que é a
segunda maior área de manguezais do
Nordeste, importante berço de peixes e
crustáceos, além de reduto para espécies
marinhas brasileiras em extinção. O
projeto anfitrião foi o Pesca Solidária,
que constrói e fortalece espaços de gestão
compartilhada, para que as comunidades
desenvolvam sua atividade em equilíbrio
com o meio ambiente.
Participaram também os projetos
De olho na água, No clima da Caatinga e
Esporte e Educação: essa é a nossa praia.
As atividades terminaram em uma grande
limpeza da praia de Jericoacoara, uma
ação de educação ambiental realizada pela
equipe do Pesca Solidária.
ENCONTROS SOCIOAMBIENTAIS
COM LENINE
FÁBRICA NO DEBATE
Por Sarah Coelho
FOTO:THYAGONOGUEIRA
FOTO: DIVULGAÇÃO
4
INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16
O
s anos de chumbo e sonhos no
escurovividosnaditaduramilitar
brasileira são lembrados em seu
cinquentário no ano de 2014. Foi um
período de grande ebulição política, onde
nasciam novos movimentos de esquerda
e grupos de guerrilha; eram militantes de
um lado, militares de outro e a sociedade
em cima da muralha do crescimento e
estabilidade econômicos, fachada erguida
pelo governo e pela mídia envolvida. A
cultura brasileira, que já estava em intensa
transformação quando o golpe aconteceu,
em destaque na música e no cinema,
passou por mudanças significativas
durante o período.
A Fábrica de Imagens relembra
agora os 50 anos do golpe militar pela
perspectiva feminista e de gênero, através
da pesquisa “Cineastas Brasileiras em
tempos de ditadura: cruzamentos, fugas,
especificidades”, da historiadora Ana
Maria Veiga, uma das convidadas para a
mesadeaberturadoCurtaoGênero2014.
A pesquisa de Ana Maria envolvia
inicialmente o contexto latino-americano,
mais especificamente Brasil e Argentina.
“Depois das pesquisas, no Rio de Janeiro
e em Buenos Aires, percebi que seria
comparar o incomparável, diante do
material riquíssimo que eu encontrei
no Brasil, referente às cineastas Tereza
Trautman,HelenaSolbergeAnaCarolina.
Aí mergulhei nesse objeto, que é o cinema
realizadopormulheresbrasileirasdurante
o período da ditadura civil-militar no
país”, conta a pesquisadora.
Segundo ela, uma vez que a
especificidade do cinema realizado por
essasdiretoraserajustamenteaintersecção
entre feminismo e ditadura, a tese explora
como cada uma delas lidou com a
influência do feminismo que chegava ao
Brasil e à América Latina, principalmente
nos anos 1970, e com a repressão política
e moral do regime ditatorial, que via nas
mulheres de família um importante pilar
da sociedade conservadora que buscavam
instituir e manter. “Um dos resultados é
que cada cineasta investigada lidou com
isso de maneira singular e isso aparece
claramente na estética e na política que
seus filmes engendram”, completa.
Expressões mais corriqueiras
da cultura, a oficialmente permitida,
acompanhavam uma tendência forte da
estratégia estatal até os anos 1970, que
era de manter o status quo da sociedade
brasileira para além da censura a ideias
opostas, mantendo as mulheres no seu
papel, de dona de casa e mãe de família,
e os homens na função de controle,
autoridade e poder. Ao mesmo tempo, a
pesquisa de Ana chega à constatação que
existia para as mulheres um “ambíguo
apelo à modernidade, também para elas,
colocava-as em uma situação de duplo
chamado, criando assim um paradoxo:
enquanto o projeto nacional as queria
no âmbito doméstico, os anos 1970
foram cenário do grande salto da entrada
das mulheres no mercado de trabalho
brasileiro”,conformeAnaMariaemtrecho
de seu artigo “’Cinema de mulheres’ e
ditadura: o contexto brasileiro”.
Então, nada mais previsível que
o cinema feito por mulheres, em que
elas próprias seriam protagonistas,
não fosse socialmente aceitável nesse
Brasil. Considerado uma insurgência
dessa época, o cinema de mulheres
já promovia festivais específicos e
apresentava “uma resposta a toda uma
cultura de submissão e de exclusão da
vida pública, considerando também
o acesso à produção cinematográfica.
Em seus moldes europeus, ele foi uma
resposta ao cinema clássico de Hollywood
e ao voyeurismo sobre os corpos das
mulheres; foi também uma resposta à
teoria feminista do cinema britânica que
provocava as mulheres a assumirem as
câmerasearealizaremumcontra-cinema,
rompendo com os padrões hegemônicos”.
Nos idos de 1960/70,
impulsionado pelo cineasta Glauber
Rocha, o Cinema Novo conseguia ser a
maior expressão cultural de resistência
para apreciadores e estudiosos do cinema
brasileiro. Mas, para Ana Maria, o cinema
de mulheres contestava algumas ideias
conservadoras camufladas nos filmes
de Glauber, pois eles “também jogavam
as mulheres para a periferia da história,
[elas] eram estigmatizadas e raramente
apareciam como sujeitos, com direito ao
seu próprio corpo, nem representadas
como mulheres modernas. O esquema
de punição e castigo era bastante forte
àquelas que buscavam se destacar, dentro
das narrativas, que muitas vezes as
colocava no papel das ‘malditas’, aquelas
que destruíam a vida dos protagonistas/
homens/heróis. Temos diversos exemplos
disso nos trabalhos do próprio
Glauber Rocha”, cita em sua
pesquisa.“O ‘cinema de mulheres’
consideromaisradicaldosqueoscinemas
vistos como radicais, porque além da
ordem do gênero, que ele tenta combater,
no caso das brasileiras temos ainda o
reforço dessa ordem, se considerarmos o
conservadorismo do regime militar. Além
disso, a resistência a esse regime se fazia
necessária, e é isso que eu vejo nas obras
de Tereza Trautman, Helena Solberg e Ana
Carolina,cadaqualemseuestilo,traduzido
em usos próprios e singulares da estética
e dos discursos fílmicos, em meio ao
emaranhado da política. Cinema é política
e o ‘cinema de mulheres’, em sua versão
brasileira, esteve duplamente engajado na
resistência a uma dupla opressão, vivida
intensamente por suas diretoras naquele
momento” conclui Ana Maria.
Do tempo em que falar, fazer e até pensar diferente do regime militar era censurado e reprimido. Para ser
mulher então, era preciso mais força e criatividade. Foi assim que algumas cineastas resistiram.
CINEMA DE MULHERES
EM TEMPOS DIFÍCEIS
Helena Solberg - cineasta que iniciou carreira em 1960
Por Monique Linhares
FOTO:IMAGEMDAINTERNET
5
Por Lola Aronovich
F
oi vendo o documentário
O Riso dos Outros (para
o qual tive a honra de ser
entrevistada), de Pedro Arante, que
descobri que Preta Gil é uma muleta
no humor brasileiro. Parece que,
quando a noite de um comediante
de stand-up não está rendendo e o
público não ri, o humorista faz uma
piadinha falando que a Preta Gil é
gorda e feia, e o pessoal gargalha.
Tem gente que adora chamar
negro de macaco, mulher de vadia
gorda, homossexual de viado, e faz
desse tipo de “humor” uma bandeira
contra o politicamente correto. Pra
essa gente, a pior praga que tem neste
planeta não é a fome ou a violência,
é o politicamente correto. Por que
como é que pode?! Durante séculos,
esse pessoal pôde escrever e falar
besteiras à vontade, fazer piada com
tudo, e de repente surge alguém para
criticá-los?!
A cada nova discussão, os
humoristas bradam “Censura!” Eles
reclamam que há uma “patrulha”, uma
“ditadura do politicamente correto”,
que não permite que realizem seu
trabalho, que, dizem eles, é apenas o
de fazer rir. Porém, há uma inversão
de valores que já foi consolidada
pelo senso comum. Enquanto
os comediantes são vistos como
modernos e despojados – apesar das
palavras francamente reacionárias
que saem de suas bocas –, as pessoas
quelutampormudançasnasociedade
são consideradas caretas e atrasadas.
O resultado é que hoje politicamente
incorreto virou eufemismo para
abertamente preconceituoso.
Chegamos num ponto em que
quase sempre que alguém bate no
peito pra dizer que é politicamente
incorreto, você pode se preparar
porque lá vem asneira contra
qualquer grupo que costuma ser
discriminado. O problema não é um
grupo ser discriminado; o problema é
alguém te achar uma besta quadrada
por você fazer piada com um grupo
que costuma ser discriminado!
O humor pode sim ser
transgressor. Mas o que esse pessoal
que ataca minorias pra fazer piada
precisa entender é que eles não estão
transgredindo nada. Seus tataravôs já
eram preconceituosos. Certamente
eles já comparavam negros com
macacos, e já faziam gracinhas sobre
a sorte que uma moça feia tem em ser
estuprada. Quem ainda adota essas
piadas no século 21 não está sendo
ousado ou criativo, só está seguindo
uma tradição. Ousadia é querer
mudar o mundo, começando pela
forma que falamos. Não há nada de
novo ou de rebelde ou de engraçado
em eternizar velhos preconceitos.
E não existe isso de “é só uma
piada”. Piadas não são neutras. São
armas que podem ferir, destruir,
perpetuar preconceitos, e também
derrubá-los. O humor é um discurso
como outro qualquer, não está
acima da lei. Querer que o humor
se responsabilize pelo que diz não
é censura – é também liberdade de
expressão. Mas muitos humoristas
parecem querer manter, a qualquer
custo, a liberdade de opressão.
Lola Aronovich é professora de
Literatura em Língua Inglesa da UFC,
e autora do blog Escreva Lola Escreva
A LIBERDADE DE OPRESSÃO DOS
ABERTAMENTE PRECONCEITUOSOS
LOLA
ARONOVICH
ARTIGO
“Chegamos num ponto em que quase sempre que
alguém bate no peito pra dizer que é politicamente
incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira...”
FOTO:ARQUIVOPESSOAL
6
INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16
CURTA O GÊNERO 2014
LIBERDADE, GÊNERO, SEXUALIDADE E DEMOCRACIA
A
ONG Fábrica de Imagens – Ações Educativas em Cidadania e Gênero realizou o Curta O Gênero 2014 entre os
dias 7 e 11 de abril de 2014, na Casa Amarela Eusélio Oliveira no Benfica, bairro universitário e importante pólo
cultural de Fortaleza. Foi a 3ª edição do evento, com mais de 350 inscritos e ouvintes participando das atividades.
A programação fixa da Mostra Audiovisual e do Seminário “Gênero, Cultura e Mudança” teve uma proposta internacional,
inédita, para ampliar ainda mais o debate acadêmico e político em torno das relações entre liberdade e gênero, sexualidade,
democracia, arte, fundamentalismos, violações de direitos e feminismos na contemporaneidade.
O
evento acontece desde 2012,
e agora conta com uma
programação mais extensa, com
convidados e convidadas internacionais
e vídeos de outros países também. Nas
duas primeiras edições, mais de 50
curtas-metragens foram exibidos, entre
ficções, documentários e animações, de
um total de 200 produções do Brasil e de
outros 4 países inscritas. Este ano, foram
projetados 30 filmes selecionados a partir
de um total de 170 filmes inscritos.
Umas das novidades de 2014
foram os Simpósios Temáticos do
Seminário Internacional Gênero,
Cultura e Mudança, em que acadêmicas
e acadêmicos de todo o país puderam
compartilhar suas pesquisas. Foram 28
apresentações de trabalhos de um total de
40 inscritos.
Ainda no ensejo da colaboração, a
exposição Constrastes – gênero, tempos,
lugares, olhares – com o tema Gênero
e Liberdade, em que os ensaios foram
compostos por fotografias pessoais, como
narrativasdesuashistóriascomrelaçãoao
seu corpo, sua sexualidade e identidades
por meio da imagem.
A noite de abertura foi encerrada
com show da cantora Di Ferreira e
theDillas, banda expoente do cenário
musical da noite fortalezense. A última
noite teve recorde de público, quando a
Casa Amarela esgotou sua capacidade
máximadepessoasnoauditórioBenjamin
Abrahão e em uma das salas de aula com
transmissão simultânea, com quase 250
expectadores para assistir à exibição
gratuita do longa-metragem “Tatuagem”.
O filme - dirigido por Hilton Lacerda,
vencedor de diversos prêmios em festivais
e com grande repercussão de público -
conta histórias da trupe de teatro Chão de
Estrelas, que coloca discussões de gênero
e inquietações políticas, tudo com muita
irreverência e sensualidade.
EXPOSIÇÃO
CONTRASTES
GÊNERO, TEMPOS LUGARES E OLHARES
Por Monique Linhares
FOTOS: THYAGO NOGUEIRA
7
CURTA O GÊNERO
REVISITADO
O Curta o Gênero é um
projeto que propõe a transformação
de mentalidades por meio do debate
e difusão de obras audiovisuais,
fotográficas e cênicas comprometidas
com a denúncia das desigualdades
de gênero, com a construção ou
invenção de outras representações e
interpretações simbólicas, baseadas na
equidade de gênero e na afirmação da
diversidade sexual.
Participantes circulavam o dia
inteiro pela Casa Amarela durante os
dias de programação, com a realização
de minicursos e simpósios pela manhã;
de mesas do seminário pela tarde; e da
mostra audiovisual pela noite. O Curta
o Gênero atraiu um público diverso,
vindo inclusive de outros estados, como
Gabriela Paes, estudante de Dança da
Universidade Federal de Uberlândia
(MG):“Atrocaealiberdadedeconversar
que rolou essa semana me inspirou
muito. Me ensinou a ouvir, a falar, não
só a caminhar na trajetória de gênero,
mas trocar com as pessoas mesmo. A
proposta do evento é muito particular e
inovadora, e fez a gente olhar pra esse
tema, que tem sido abordado por tanta
gente durante tanto tempo de um outro
jeito. Espero poder contribuir mais e vir
em todas as próximas edições”, comenta.
O Simpósio atraiu pesquisadores
e pesquisadoras de diversas regiões do
Brasil e áreas de estudo transversais
às temáticas abordadas no Seminário,
como no caso de Luciana Sttefen, do Rio
Grande do Sul, que é musicoterapeuta,
doutoranda em Teologia e estuda
gênero, deficiência e musicoterapia. Ela
afirma que é “muito importante ter esses
espaços de discussão, principalmente
nessa área de gênero, que é quase
inexistente na musicoterapia, também
não tão divulgada dentro da teologia. É
importante se discutir gênero em todas
as áreas e aprimorar a ciência do país
como um todo”.
As provocações lançadas nesta
terceira edição partem da compreensão
de que as lutas democráticas, a
efervescência das ruas, a recusa ao
disciplinamento machista, misógino
e homofóbico sobre os corpos e
comportamentos dos indivíduos
supõe aspirações de liberdade. É este
o cenário de discussões que marcaram
esta edição do Seminário Gênero,
Cultura e Mudança, trazendo mais
uma vez à Fortaleza um conjunto
de pesquisadores/as, escritores/as e
ativistas/as de referência nacional e
internacional.
A abertura do Curta o Gênero
2014 teve Mesa composta por María
Magdalena Valdivieso, do Centro de
Estudos da Mulher da Universidade
Central de Venezuela, e Ana Maria
Veiga, doutora em História pela
Universidade Federal de Santa Catarina.
No encerramento, foram debatidos
os desafios do pensamento feminista
na conferência com a portuguesa
Conceição Nogueira, doutora em
Psicologia Social pela Universidade
do Minho. Para falar sobre práticas e
prazeres sexuais dissidentes, vieram
nomes importantes de pesquisa da área,
como a professora colombiana María
Elvira Benitez, de Antropologia Social
do Museu Nacional da Universidade
Federal do Rio de Janeiro, e Bruno Zilli,
pesquisadorassociadodoCentroLatino-
americano em Sexualidade e Direitos
Humanos - CLAM/IMS/UERJ. Para
discutir diversos olhares feministas, a
programação contou com a colaboração
da professora associada de Teoria
Literária na Universidade Federal de
Santa Catarina, Cláudia Lima Costa. A
ativista Sônia Corrêa, coordenadora no
Brasil do Observatório de Sexualidade
e Política (Sexuality Policy Watch,
SPW), projeto sediado na Associação
Brasileira Interdisciplinar de Aids
(Abia), e o argentino Mario Pecheny,
professor e pesquisador em diversas
universidades e grupos acadêmicos,
entre eles Universidade de Buenos Aires,
dividiram a Mesa “Horizontes incertos:
Estado, fundamentalismos e direitos
sexuais e reprodutivos no Brasil”.
A
feminista e pesquisadora
Magdalena Valdivieso, da
Universidade Central da
Venezuela, faz o registro de sua
participação no Curta o Gênero 2014
mostrando a necessidade urgente de
resistir e de criar espaços de discussão
sobre as temáticas. “Eu felicito e
valorizo esta apresentação tão diversa
que vocês têm organizado, que nos
mostra estes distintos modos de resistir,
criatividades e ao mesmo tempo uma
sólida proposta alternativa. Creio
que esse seja o caminho, complexo,
porque esta explosão da diversidade
traz novos desafios. É muito mais
difícil o momento de poder encontrar
estratégias comuns, dialogar, construir
juntas e juntos, muito mais difícil
era quando tínhamos ideias únicas,
quando acreditávamos solitariamente
em uma revolução que seria de
determinada forma com um um sujeito
privilegiado. Agora não há sujeito
privilegiado, somos todas e todos
sujeitos privilegiados deste processo e
aportamos nossa diversidade e criamos
espaços também diferentes, como a
Universidade, onde possamos discutir
estas temáticas”.
NOS CORREDORES
Nos intervalos da programação,
participantes poderiam flanar pela
MiniFeira de livros, com exposição
de exemplares especiais sobre gênero,
diversidade e liberdade da livraria Lua
Nova. A Feira Criativa também ocupou
os corredores com os bonecos da
BudegAma e artigos personalizados da
Guarderia de Meninos.
8
INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16
FEMINISMOS DO SUL
DEMOCRACIA, POLÍTICA E LIBERDADE
Por Cristhian Caje
FÁBRICA
ENTREVISTA
O auditório da Casa Amarela Eusélio Oliveira estava lotado para ouvir a conferência de abertura do Curta o Gênero
2014 sobre Feminismos do Sul, ministrada pela professora doutora da Universidade Central da Venezuela (UCV), Magdalena
Valdivieso. Ela, que é diretora do Centro de Estudos da Mulher na UCV e especialista no estudo das mulheres e seu ambiente,
conversou com um pouco mais com a equipe da Fábrica de Imagens sobre o assunto. Confira!
Como foi a sua trajetória dentro do
feminismo e dos estudos de gênero?
Eu me graduei na Universidade do
Chile. Havia muitos anos que eu estava
na Escola de Ciências Políticas, e saí do
Chile por conta do golpe de Estado em
1973, e vivi a vida inteira como exilada
política na Venezuela. Lá trabalhei na
Universidade Central da Venezuela, a
qual pertenço e onde terminei a carreira
profissional, no Centro de Estudos da
Mulher, que tem uma maestria nos
estudos de gênero. Pouco a pouco,
durante a carreira profissional, pude ir
dedicando-me aos temas de gênero e
ao feminismo, e também à militância
política. Na militância, estive em quantas
organizações de mulheres podíamos
criar. Em um primeiro momento, no
interior dos partidos de esquerda na
América Latina, fazíamos um feminismo
autônomo, devido às relações complexas
que as feministas têm com os partidos
políticos que conservam um grau de
machismo, mas que são importantes em
nossos países.
Então, fiz meu doutorado em Ciências
Políticas e, do ponto de vista dos títulos,
sou professora titular da Universidade
Central de Venezuela e doutora em
Ciências Políticas. Atualmente, trabalho
tanto na Universidade Central da
Venezuela, como no Conselho Latino-
americano de Ciências Sociais, que é um
organismo criado pela Unesco, que reúne
investigadoras e investigadores latino-
americanos, e ali sou coordenadora
de um grupo de trabalho - o grupo
de feminismos, transformações e
alternativasparaAméricaLatinaeCaribe
- e também organizo seminários virtuais
em uma plataforma que o Conselho
Latino-americano tem, que chega a todos
os países latino-americanos. Portanto, é
por ali que tenho andado e escrito o que
creio que possa ter alguma importância,
ou que ao menos possa ser útil a estas
novas gerações.
E em relação à essa proposta que você
traz como Feminismos do Sul, como
você poderia defini-lo de uma maneira
mais objetiva?
Bem, sobre a conversa que tivemos na
Conferência de abertura do Curta o
Gênero 2014, sobre feminismos do sul,
mas também sobre democracia, política e
liberdades, creio que falar de democracia
política e liberdades na América Latina
nos remete necessariamente a estes
projetos de estados nacionais, que se
instalaram excluindo uma quantidade de
populações e que se centraram demais
nesse caráter de estados nacionais ou
de projetos de estados nacionais latino-
americanos, com essa gramática original,
tão colonial, tão eurocêntrica, que têm
pretendido ser estados homogeneizantes
de populações que são a toda vista e a
toda vida diversas. Lá passam os temas
de cidadania, desta cidadania deficitária,
desta democracia sempre em dívida,
desta liberdade que nós temos. Na
América Latina, a cidadania é mais um
privilégio que um direito, e democacracia
é mais uma manifestação de vontade
que uma realidade. Sobre o significado
de feminismos do sul, fazemos alusão à
metáfora de Boaventura de Souza Santos,
quando ele se refere às epistemologias
do sul. Não um Sul geográfico, e sim a
um sul metafórico, mas que também é
um sul geopolítico. Este Sul é um lado
do mundo invisibilizado, colonizado,
inventado, olhado sempre com olhos de
fora, com olhos que sempre quiseram
nos colonizar, nos inventar e nos negar
como realidade; impor sobre nossas
próprias realidades um modelo distindo,
que nos trouxe modernidade. Então,
tomando isso como base, se pergunta
como fazer feminismo nesses espaços;
um feminismo enraizado, situado;
um feminismo que responda a nossa
complexa situação. Por que complexa?
Porque se entrecruzam situações diversas
que levam a diversas manifestações do
MAGDALENA
VALDIVIESO
9
padrão de poder dominante. Nosso
padrão de poder dominante é um padrão
de poder, sem dúvida, no mínimo
colocial, capitalista e patriarcal, e essas
dominações se entrecruzam. Quando se
quer trabalhar em política ou se tem uma
proposta social ideológica, uma proposta
de troca social, você tem que se dar conta
que está em um continente onde essas
variáveis, raça, gênero, etnia e lugar de
nascimento se entrecruzam. Então, que
opções temos como feministas?
Uma opção é fazer o que vinha se
fazendo desde o feminismo liberal, e
trazer à América Latina os avanços
dos progressos conquistados pelas
mulheres em um mundo ocidental
norte-americano e europeu. Sem dúvida
essa foi uma estratégia útil. Não se pode
negar os avanços que alcançamos no
reconhecimento de direitos em geral,
que são direitos que competem a toda a
humanidade, como o direito à vida, mas
uma vida livre de violência; o direito
ao trabalho, mas sem discriminações; o
direito à saúde, que não está reconhecido
em muitos países latino-americanos.
Esta complexidade que temos é de
uma superposição de capas; de ter sido
originalmente um tipo de população
e logo ter a capa da colonização, da
conquista que nos tranformou em outra
coisa. Agora, buscando essa origem, mas
respondendo também à situação atual.
Esse ponto de vista é impossível,
creio eu, realizar um trabalho político
feminino sem assumir que o continente
está dominado pelo processo de
globalização capitalista, pelo patriarcado
e pelo colonialismo, de modo que a
situação das mulheres da qual somos
parte, com a qual queremos trabalhar,
não são só as situações de subordinação
de gênero, porque essa situação de
gênero está mediada, está marcada, está
determinada por seu caráter também
de raça, de etnia, de lugar de vida. Se
não se leva isso em conta, pouco é o
diálogo; pouco útil é o feminismo que
podemos fazer. Seria um feminismo
bastante inútil para a mobilização
social e para a efetiva transformação
social que aspiramos. O pensamento
feminista é transformador por definição,
de maneira que não se trata somente de
ter explicações epistemológicas do que
é a opressão das mulheres, se não for
um feminismo situado e comprometido
com a transformação social, política e
econômica, e isso requer se dar conta de
que é colonial, é patriarcal e é capitalista.
Você falava de uma condição latino-
americana entre iguais sabendo
também que há países na América do
Sul com realidades muito diferentes.
Qual seria a sua perspectiva para
pensar o Brasil dentre deste panorama?
Bem, primeiro reconhecer a
heterogeneidade dos países
sulamericanos. Sem dúvida temos
diferenciais importantes entre os
diversos países, mas se há algo em
comum nesses Estados é que seguem
sendo marcadamente patriarcais. Essa
é uma condição que nos iguala em
algum sentido. Por outro lado também
há situações distintas das mulheres.
No feminismo, não podemos cair no
universalismo que criticamos, então
efetivamente não podemos falar de
uma maneira de fazer feminismo,
mas agora falamos dos feminismos no
plural e nas muitas formas de fazê-lo.
Na América Latina, neste momento,
podemos diferenciar estados em que há
Estados liberais que fazem um grande
esforço em manter sua condição de
Estados neoliberais, apesar de terem
sociedades bastante mobilizadas
e que têm feito protestos bastante
significaticos nos últimos anos, dos
quais não têm escapado países que se
mostram exitosos dentro do modelo. No
caso do Chile, as mobilizações em 2011
mostram que um país que alcançou,
em termos de cifras macroeconômicas,
talvez os maiores benefícios do modelo
capitalista neoliberal, apresenta uma
sociedade profundamente insatisfeita
com os avanços, porque o que estava em
questão com as manifestações estudantis
era as mobilizações pela situação
ambiental, de defesa da terra, do modo
de vida etc. Mas temos Estados que
estão pretendendo levar adiante projetos
alternativos. O mundo ia ser globalizado
capitalisticamente e não havia outra
alternativa, mas aos poucos outro tipo
de movimento tem sido despertado
na América Latina, com importantes
debates sobre outras formas de vida,
sobre o que chamamos de bem viver.
Que caminhos nos restam diante deste
cenário?
Eu creio no que aquele cartaz que está
lá fora diz: nem ditadura militar, nem
ditadura civil, nem ditadura do Estado,
nem ditadura do mercado. Ele mostra
muito do que se quer, do desejo de
viver de acordo com cada grupo e cada
comunidade e fortalecendo a ideia de
comunidade. Neste momento vivemos
uma ditadura de mercado, em todos
os nossos países impera o mercado.
Com as mulheres isto se vê claríssimo
com o tema do corpo. O Estado tem se
tentado dominar o corpo da mulher pelo
mercado, com todas as normas e leis que
tentam regular como nós vivenciamos
nossos corpos e como podemos atuar
sobre eles. As igrejas vivem tentando
impor isto através do mercado, como
devem ser os corpos das mulheres, e
ainda lhes oferecem uma ampla gama
de possibilidades para transformar os
corpos de acordo com os ditados do
mercado. Esse processo, ao qual se
refere Edgardo Lander, das tendências,
processos e tendências à mercantilização
de todas as formas de expressão da
vida. Creio que o caminho é complexo
porque esta explosão da diversidade traz
novos desafios. É difícil o momento de
poder encontrar estratégias comuns,
dialogar, construir juntas e juntos.
Muito mais difícil era quando tínhamos
ideias únicas, quando acreditávamos
solitariamente em uma revolução que
seria de determinada forma e com um
um sujeito privilegiado. Agora não há
sujeito privilegiado, somos todas e todos
sujeitos privilegiados deste processo.
10
INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16
A
s situações relatadas são
verdadeiras e introduzem
algumas inquietações que têm
feito tantxs pesquisadorxs e ativistas
pelo mundo a voltarem suas produções
para uma outra lógica de pensamento,
as chamadas epistemologias do sul. A
primeira foi vivida pela professora da
UniversidadeFederaldeSantaCatarina,
Cláudia Lima Costa, e a segunda pela
professora da Universidade Federal de
Uberlândia, Flávia Teixeira. As duas
educadoras foram levadas por vivências
pessoais a revisitarem conceitos e
teorias tradicionais e concluirem que,
em certos casos, apenas um nova
leitura, ancorada em visões de mundo
contra-hegemônicas e questionadoras,
seria capaz de dar conta de realidades
particulares.
No que se refere ao feminismo,
segundo Claudia Lima Costa, a mais
recente noção que tem aparecido é a de
feminismos descoloniais, que teriam
emergido nas regiões andinas com o
surgimento de uma indigeneidade,
ou seja, o indígena surgindo como
um forte e novo movimento social,
representante de uma outra ontologia.
“A partir da figura do indígena, começa-
se a pensar a possibilidade de outros
saberes, como o dos quilombolas. Isso
começa a aglutinar, a agrupar pessoas
preocupadas com isso, e começa
a pipocar aqui e ali uma reflexão”,
comenta.
Para Cláudia, ao falar de gênero,
a tradução – e consequentemente
o signifcado - que vamos dar, vai
mudar de um local pro outro. “As
categorias parecem ser sobre a mesma
coisa, mas na verdade são diferentes”.
Descolonizar o saber é produzir um
conhecimento que esteja atento a essas
peculiaridades.
Flávia Teixeira levanta ainda
outros desafios ao feminismo
tradicional, que, segundo a professora,
infelizmente ainda reproduz visões de
mundo que reforçam o capitalismo, o
colonialismo e o patriarcado. Para ela,
grandes discussões têm sido levantadas
pelo movimento Transexual: “Para
se construir essa pessoa [trans], se
constrói também um único jeito de
ser transexual. A mulher trans tem
que ter repulsa pelo pênis; o homem
trans tem um seio intocável. (...) Então
o que dizer quando um homem trans
reivindica o direito de amamentar?
Ou quando mulheres trans começam
a tomar hormônios masculinos
para serem mulheres com músculos
tipicamente masculinos?”.
Inquietações também são
levantadas pela professora ao falar
sobre a relação do feminismo com
as prostitutas: “Quando se fala que a
prostituição usurpa o corpo feminino,
se esquece que existe a prostituição
masculina e que existem as mulheres
como clientes. Quando eu falo em
mercado do sexo, de que é que eu estou
falando?”, reflete ela.
Antes de prosseguir com a leitura deste texto, permita-se duas reflexões:
Reflexão número 1:
A luta por um corpo e um comportamento libertos vinha de um tempo em que o pai dizia que ela não poderia estudar sozinha
na capital porque “era mulher”. O feminismo, portanto, apareceu como um bom amigo e tornou-se caminho para entender o
lugar que poderia ocupar no mundo. Entretanto, anos depois, ao trabalhar como pesquisadora com pessoas trans e prostituas,
viu que aquele feminismo também poderia lhe virar as costas. Entendeu, então, que a mulher de que o feminismo falava
era determinada unicamente pela biologia de seu organismo; e o corpo, que se desejava tão livre, poderia ser novamente
aprisionado se a dona dele o transformasse em meio de trabalho ou ocupação. Era tempo de rever conceitos. “Como um
movimento, que reivindica o afastamento das bases da natureza, que diz que ‘ser mulher não é destino’, vira para as pessoas
trans e diz que elxs não são legítimxs porque não são naturais? E como esse movimento, que também reivindica o direito da
mulher de dizer sobre seu corpo, retira esse direito no momento em que ela é prostituta?”, provoca ela.
Reflexão número 2:
Anos de formação em universidades americanas a muniram de argumentos para embasar um discurso pós-moderno que ia
contra raízes. “Raízes nos aprizionam”, pensava. Com o retorno ao Brasil, veio a oportunidade de trabalhar com mulheres sem-
teto e, com ela, uma constatação: “Tudo pelo que aquelas mulheres lutavam era por um sentido de pertencimento, por uma
raiz, uma identidade”. O que fazer com todas as teorias aprendidas?
Realidades particulares e vivências plurais escancaram a necessidade de pensarmos para onde
estamos indo com o feminismo. Mas que feminismo?
FOTO:IMAGEMDAINTERNET
DESCOLONIZAR
É PRECISO
Por Sarah Coelho
11
A
cidade de Natal (RN) recebe a
Teia e o Fórum Nacional dos
Pontos de Cultura entre 19 e
24 de maio deste ano. Evento marcante
dentro do Programa Cultura Viva, tanto
pelo seu aspecto político quanto pelo seu
valor e potencial estéticos, sobretudo pela
integração dessas duas dimensões. Esses
momentos convidam a todas e todos os
interessados no Programa a mergulharem
em processos de avaliação, percepção
crítica dos caminhos que o mesmo tem
trilhado e suas perspectivas para os
próximos dois anos, pelo menos.
Nesse contexto, a Fábrica de Imagens se
fará presente no evento através de duas
ações que se complementam e se reforçam
estética e politicamente, o II Encontro
Gênero nos Pontos e a primeira itinerância
da Mostra Internacional Audiovisual do
Curta o Gênero 2014.
	 OIIEncontroGêneronosPontos
é o espaço para se avaliar em que nível de
prioridadeeemqueintensidadeasquestões
de gênero têm influenciado e contribuído,
de certa forma, para a estruturação do
Programa Cultura Viva. Encontros como
este já foram realizados em 2008, na Teia
Iguais na Diferença de Brasília; em 2010,
na Teia Tambores Digitais de Fortaleza e
na programação do Curta o Gênero 2012,
através do I Encontro Gênero nos Pontos.
	 Para esse encontro, o Ponto de
Cultura Outros Olhares – equidade e
diversidade, da Fábrica de Imagens, e o
Ponto de Cultura panelladexpressão, do
Distrito Federal, uniram esforços para
tecer uma programação que englobará
duas mesas de discussão e três rodas de
conversa. Nas mesas, de caráter mais
conceitual, a discussão apresenta o tema:
“O lugar da cultura para a superação
das opressões de classe, gênero, raça e
orientação sexual” e as relações entre
“Políticas Culturais e Políticas de Gênero/
Mulheres – desafios e perspectivas
dentro do Programa Cultura Viva”.
Quanto às rodas de conversa, estas terão
um direcionamento mais avaliativo e
propositivodecaráterpolíticoeestratégico
para uma inserção mais consistente do
tema gênero no Programa Cultura Viva.
	 Leila Negalaize, uma das
organizadoras, alerta-nos sobre a
necessidade de fomentar momentos e
debates sob essas perspectivas, e reforça
que “um país onde os fundamentalismos
ganham eco social de seus preconceitos,
só pode estar caminhando para uma
cultura da morte. País laico é um país
que produz cultura livre de preconceitos.
Reflete a arte de viver nas diferenças sem
medo”.
MOSTRA INTERNACIONAL
AUDIOVISUAL CURTA O GÊNERO
	
Já a Mostra Internacional Audiovisual
Curta o Gênero, ação aprovada na seleção
artística da Teia Nacional, insere-se nesse
contexto como uma ação referencial de
integração entre cultura, política cultura
e gênero, integrando-se a proposta do II
Encontro Gênero nos Pontos. A Mostra,
em sua passagem por Natal, exibirá 18
realizações nacionais e internacionais que
apresentam ao expectador um painel de
questões e desafios urgentes no campo das
relações de gênero e suas conexões com
questões de classe, orientação sexual, raça,
geração,dentreoutras.Estesdocumentários
e ficções oferecem ainda a possibilidade de
refletir sobre o machismo, o sexismo e a
heteronormatividade e suas repercussões
sociais diárias, desde as mais “inofensivas”
até as mais dramáticas como a violência e o
assassinatodemulheresesujeitosLGBTT.
	 Importante ainda destacar que a
segunda itinerância do Curta o Gênero e
sua Mostra Audiovisual já tem pouso certo.
Em julho levaremos oficinas, a exposição
Contrastes e a própria Mostra Internacional
Audiovisual para Florianópolis, Santa
Catarina.Eoutrasitinerânciasaindapodem
seguir por outras paragens, através de
parcerias e convites que outras instituições
tenhaminteresse.AFábricadeImagensestá
decaminhoaberto.
A programação da Teia conta com duas intervenções da Fábrica de Imagens: o II Encontro Gênero nos Pontos e
a Mostra Internacional Audiovisual Curta O Gênero
FÁBRICA DE IMAGENS
NA TEIA NACIONAL DA DIVERSIDADE
FOTO:DIVULGAÇÃO
Por Marcos Rocha
EXPEDIENTE
Este jornal é uma publicação do projeto Cacto
realizado pela ONG Fábrica de Imagens - ações
educativas em cidadania e gênero.
Coordenação Geral: Marcos Rocha
Coordenação Socioeducativa: Christiane Ribeiro
Gonçalves, Tel Cândido e Taiane Alves
Design Editorial: Thyago Nogueira
Jornalista Reponsável: Monique Linhares MTB JP 2630/CE
Reportagens: Sarah Coelho e Monique Linhares
Endereço: Rua Odilon Benévolo, 1133, Maraponga, Fortaleza - CE
Contatos: (85) 34951887 / fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br
www.fabricadeimagens.org.br
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Eliana Moeckel
Foto: Iza Guedes
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Informativo Fábrica de Imagens - ED. 16

  • 1. INFORMATIVO BIMESTRAL FÁBRICA DE IMAGENS EDIÇÃO Nº 16 MARÇO-ABRIL 2014 CURTA O GÊNERO O QUE ACONTECEU NA 3ª EDIÇÃO página 6 FÁBRICA ENTREVISTA MAGDALENA VALDIVIESO Feminismos do Sul página 8 ARTIGO LIBERDADE DE OPRESSÃO Lola Aronovich fala sobre o humor que não se ri página 5 FÁBRICA DE IMAGENS NA TEIA NACIONAL II Encontro Gênero nos Pontos Mostra Audiovisual Curta O Gênero página 11
  • 2. 2 INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16 EDITORIAL P ara seguir as considerações sobre o Programa Cultura Viva, iniciadas no nosso último informativo, é imprescindível refletir um pouco sobre seus aspectos conceituais, sua inovação e seu sentido. Nesse momento, o Programa completa 10 anos e nos aproximamos da Teia e do Fórum Nacional dos Pontos de Cultura, agora, no final de maio. Nesse campo, afirmo que se os Pontos de Cultura marcaram uma viragem nas políticas culturais no Brasil, a integração das ações em identidade e diversidade no escopo do Programa Cultura Viva poderá marcar outra viragem. Neste caso, somente se o Ministério da Cultura e os próprios Pontos de Cultura empreenderem conjuntamente uma política cultural radical de defesa e promoção das cidadãs e cidadãos mais discriminados e violados em seus direitos, em que destacamos pobres, mulheres em geral, negros e negras, sujeitos LGBTT, pessoas com deficiência, minorias religiosas, crianças, adolescentes, jovens e, especialmente, idosos e idosas. As questões que aqui se apresentam conceitualmente são: o Ministério da Cultura e a Secretaria da Cidadania e da Diversidade Cultural (SDCD) reestruturarão de fato o Programa Cultura Viva à altura dos desafios postos, incluindo de modo prioritário os segmentos acima listados? Os próprios Pontos de Cultura,ativistasempolíticasculturais, artistas e os autointitulados “fazedores de cultura” percebem a necessidade de radicalização do Programa Cultura Viva nesse sentido? Sentido que não é outro senão o da afirmação da cultura como fenômeno político, antropológico e histórico e o entendimento de que as políticas culturais têm, como assinalado pelo ex-ministro Gilberto Gil em seu discurso de posse, “o papel de contribuir objetivamente para a superação dos desníveis sociais”. Não tenho como precisar se na origem existia a percepção que trago neste artigo, todavia imagino que pelo menos em parte sim, pois são significativas algumas afirmações de Célio Turino, então secretário da SCDC, como as que assinalo abaixo: “Pontos de Cultura com ênfase em juventude há em todos os estados, mas nem enviam propostas voltadas para questões de gênero, idosos, indígenas, cegos, trabalhadores rurais; no conjunto da rede de Pontos, estes são subconjuntos que também devem estar presentes”; “A cultura tradicional também foi inventada um dia, incorpora preconceitos, ideologias, comportamentos machistas. Ao promover a ideia da emancipação da mulher, o Ponto de Cultura com ênfase em gênero pode estar alterando comportamentos e pontos de vista em um Ponto de cultura popular, por exemplo”; “A rede de gênero pode influenciar na modificação de comportamentos machistas nas redes de hip hop ou de cultura popular, que trazem consigo muitos preconceitos machistas ou sexistas, por exemplo”. Mesmo que no seu livro “Ponto deCultura–oBrasildebaixoparacima”, de onde extrai os excertos acima, Célio Turino algumas vezes mencione o tema “direitos” e “direitos humanos”, faz ainda explícita referência às questões de gênero, raciais e geracionais várias vezes, pois, mesmo considerando que a Teia (grande encontro dos Pontos de Cultura) de 2008 tenha ocorrido trazendo como tema “Cultura e Direitos Humanos”, de fato o Programa avançou de modo muito tímido no campo das relações entre cultura e direitos humanos, binômio na minha percepção fundamental num programa intitulado Cultura Viva e gerido por uma Secretaria da Cidadania e Diversidade Cultural. Em parte, isso se explica na época pela divisão de atribuições entre Secretaria da Cidadania Cultural e Secretaria da Identidade e Diversidade na gestão Gilberto Gil / Juca Ferreira, mas ontem à semelhança de hoje, pode também ser explicado pelo sempre tenso clima de disputa político- partidária dentro do Ministério e pelo ranço da ideia obsoleta e corporativista de que o campo da cultura é o campo dos artistas, produtores culturais, das linguagens e das expressões. O importante aqui é destacar o Programa Cultura Viva, sobretudo como um Programa Cultural para a promoção da cidadania, da democracia e dos direitos. Para finalizar, acrescento que na próxima edição trataremos de um tema não menos difícil, as relações entre Estado e sociedade civil e a tão maltratada ideia de gestão compartilhada. Por Marcos Rocha | Diretor da Fábrica de Imagens | Membro da Comissão Nacional dos Pontos de Cultura/GT Gênero C hegamos à 16ª edição do Informativo Fábrica de Imagens e à terceira edição do Curta o Gênero. Um longo caminho trilhado pela ONG Fábrica de Imagens tem resultado na abrangência de suas ações. O Curta o Gênero 2014 foi um marco de público, programação e duração. A matéria de capa ilustra um pouco de tudo o que foi e representou o evento para a história e o ativismo da Fábrica de Imagens. Essa trajetória reflete-se nas ações em que a FábricadeImagenséconvidada/convocada a participar. São eventos locais e nacionais, importantes espaços de discussão sobre cultura, gênero e diversidade, como os registrados nas primeiras notícias. Desafiar e expandir algumas discussões de gênero dá o tom deste informativo. Parte das temáticas e pesquisas trazidas por convidadxs do Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança inspiraram a maioria das nossas pautas. O “Cinema de Mulheres” na época da ditadura, pesquisa da historiadora Ana Maria Veiga, traz debate de gênero no cinquentenário do golpe militar. Trazemos também uma matéria que reflete sobre conceitos dos Feminismos do Sul, levantando questões que desafiam o feminismo tradicional. Em entrevista, as pesquisadoras Cláudia Lima Costa e Flávia Teixeira reforçaram a crítica com argumentos do movimento transexual e de prostitutas. Entrevista com a professora Magdalena Valdivieso também traz outras reflexões sobreFemininosdoSulapartirdocontexto socialdaAméricaLatina.AprofessoraLola Aronovich, outra convidada do evento, debruçou-se sobre o Humor e seus limites, discutindo possibilidades de críticas e de fazer diferente. Aproveitem a leitura! PROGRAMA CULTURA VIVA PEDE RENOVAÇÃO EM SEUS 10 ANOS
  • 3. 3 A Fábrica de Imagens está sempre buscando oportunidades de debater com outras instituições e organismos as temáticas trabalhadas no dia a dia da ONG. O diálogo nos permite a troca de experiências e a construção de umaredemaisforteeatenta.Foipensando nisso que a equipe da Fábrica aceitou dois convitesparaparticipardeeventosligados à área de direitos humanos, gênero e diversidade sexual. De12a15demarço,representantes da Fábrica de Imagens participaram da 4ª Mostra Nacional de Experiências em Atenção Básica/Saúde da Família. O encontro teve o intuito de contribuir com a reflexão e constante melhoria na produção do cuidado em saúde nos serviços de atenção básica, que constituem o principal ponto de contato dos usuários do Sistema Único de Saúde (SUS). Dentro da programação, instituições que utilizam o audiovisual como ferramente para informar e sensibilizar a população apresentaram as suas produções. A Fábrica de Imagens apresentou os curtas-metragens “Viver com Aids é possível”, “Vagas para amor de carnaval”, “Surdos e Surdas” e “Mulheres e DST/Aids”. Também participaram os coletivos Eu Livre, Fitovida e Plante Gentileza. Já no dia 3 de abril aconteceu no Rio de Janeiro mais um Seminário União Europeia-Brasil em Direitos Humanos de Sociedade Civil. A Fábrica de Imagens foi uma das organizações da sociedade civil convidadas para debater sobre educação, esporte e direitos humanos, com vistas a propor diretrizes para o diálogo entre o Brasil e os Estados-membro da União Européia. O posicionamento da ONG foi no sentido de exigir políticas de educação na perspectiva de combate ao machismo e à discriminação com base na orientação sexual e na identidade de gênero, assim como a cobrança internacional por uma resposta do governo brasileiro ao crescente número de violação de direitos humanos das populações LGBTT no país. E m março de 2014, o cantor Lenine deu início à uma turnê diferente. Desta vez, como expectadores, não apenas os habituais fãs, e sim grupos formados por comunidades, gestores e técnicos de projetos socioambientais. Ao todo,12projetosestãosendovisitadospelo cantor, que aproveita a oportunidade para conhecer a comunidade local e também a história de outros projetos parceiros, além deoferecerumshowgratuito.“Aarteéum instrumento de aproximação poderoso por uma sociedade mais justa. Gosto de acreditar que a minha música vai além do que meramente canto”, pontua Lenine. AFábricadeImagens,representada pelo diretor Marcos Rocha, foi convidada a conversar sobre o projeto CACTO - Centro de Referência em Cultura, Arte, Comunicação e Novas Tecnologias para a Promoção dos Direitos Humanos, da Equidade de Gênero e da Diversidade Sexual. O projeto é patrocinado pelo Programa Sociombiental da Petrobras e foi o único representante fora da parcela ambiental do Programa a participar do evento no Ceará. Lenine ganhou um kit contento vários vídeos e materiais educativo-informativos produzidos pela ONG, especialmente no âmbito das formações políticas em direitos humanos, gênero e diversidade sexual, além das linguagens audiovisuais, fotográficas etc. O local escolhido, o município de Chaval, tem um estuário que é a segunda maior área de manguezais do Nordeste, importante berço de peixes e crustáceos, além de reduto para espécies marinhas brasileiras em extinção. O projeto anfitrião foi o Pesca Solidária, que constrói e fortalece espaços de gestão compartilhada, para que as comunidades desenvolvam sua atividade em equilíbrio com o meio ambiente. Participaram também os projetos De olho na água, No clima da Caatinga e Esporte e Educação: essa é a nossa praia. As atividades terminaram em uma grande limpeza da praia de Jericoacoara, uma ação de educação ambiental realizada pela equipe do Pesca Solidária. ENCONTROS SOCIOAMBIENTAIS COM LENINE FÁBRICA NO DEBATE Por Sarah Coelho FOTO:THYAGONOGUEIRA FOTO: DIVULGAÇÃO
  • 4. 4 INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16 O s anos de chumbo e sonhos no escurovividosnaditaduramilitar brasileira são lembrados em seu cinquentário no ano de 2014. Foi um período de grande ebulição política, onde nasciam novos movimentos de esquerda e grupos de guerrilha; eram militantes de um lado, militares de outro e a sociedade em cima da muralha do crescimento e estabilidade econômicos, fachada erguida pelo governo e pela mídia envolvida. A cultura brasileira, que já estava em intensa transformação quando o golpe aconteceu, em destaque na música e no cinema, passou por mudanças significativas durante o período. A Fábrica de Imagens relembra agora os 50 anos do golpe militar pela perspectiva feminista e de gênero, através da pesquisa “Cineastas Brasileiras em tempos de ditadura: cruzamentos, fugas, especificidades”, da historiadora Ana Maria Veiga, uma das convidadas para a mesadeaberturadoCurtaoGênero2014. A pesquisa de Ana Maria envolvia inicialmente o contexto latino-americano, mais especificamente Brasil e Argentina. “Depois das pesquisas, no Rio de Janeiro e em Buenos Aires, percebi que seria comparar o incomparável, diante do material riquíssimo que eu encontrei no Brasil, referente às cineastas Tereza Trautman,HelenaSolbergeAnaCarolina. Aí mergulhei nesse objeto, que é o cinema realizadopormulheresbrasileirasdurante o período da ditadura civil-militar no país”, conta a pesquisadora. Segundo ela, uma vez que a especificidade do cinema realizado por essasdiretoraserajustamenteaintersecção entre feminismo e ditadura, a tese explora como cada uma delas lidou com a influência do feminismo que chegava ao Brasil e à América Latina, principalmente nos anos 1970, e com a repressão política e moral do regime ditatorial, que via nas mulheres de família um importante pilar da sociedade conservadora que buscavam instituir e manter. “Um dos resultados é que cada cineasta investigada lidou com isso de maneira singular e isso aparece claramente na estética e na política que seus filmes engendram”, completa. Expressões mais corriqueiras da cultura, a oficialmente permitida, acompanhavam uma tendência forte da estratégia estatal até os anos 1970, que era de manter o status quo da sociedade brasileira para além da censura a ideias opostas, mantendo as mulheres no seu papel, de dona de casa e mãe de família, e os homens na função de controle, autoridade e poder. Ao mesmo tempo, a pesquisa de Ana chega à constatação que existia para as mulheres um “ambíguo apelo à modernidade, também para elas, colocava-as em uma situação de duplo chamado, criando assim um paradoxo: enquanto o projeto nacional as queria no âmbito doméstico, os anos 1970 foram cenário do grande salto da entrada das mulheres no mercado de trabalho brasileiro”,conformeAnaMariaemtrecho de seu artigo “’Cinema de mulheres’ e ditadura: o contexto brasileiro”. Então, nada mais previsível que o cinema feito por mulheres, em que elas próprias seriam protagonistas, não fosse socialmente aceitável nesse Brasil. Considerado uma insurgência dessa época, o cinema de mulheres já promovia festivais específicos e apresentava “uma resposta a toda uma cultura de submissão e de exclusão da vida pública, considerando também o acesso à produção cinematográfica. Em seus moldes europeus, ele foi uma resposta ao cinema clássico de Hollywood e ao voyeurismo sobre os corpos das mulheres; foi também uma resposta à teoria feminista do cinema britânica que provocava as mulheres a assumirem as câmerasearealizaremumcontra-cinema, rompendo com os padrões hegemônicos”. Nos idos de 1960/70, impulsionado pelo cineasta Glauber Rocha, o Cinema Novo conseguia ser a maior expressão cultural de resistência para apreciadores e estudiosos do cinema brasileiro. Mas, para Ana Maria, o cinema de mulheres contestava algumas ideias conservadoras camufladas nos filmes de Glauber, pois eles “também jogavam as mulheres para a periferia da história, [elas] eram estigmatizadas e raramente apareciam como sujeitos, com direito ao seu próprio corpo, nem representadas como mulheres modernas. O esquema de punição e castigo era bastante forte àquelas que buscavam se destacar, dentro das narrativas, que muitas vezes as colocava no papel das ‘malditas’, aquelas que destruíam a vida dos protagonistas/ homens/heróis. Temos diversos exemplos disso nos trabalhos do próprio Glauber Rocha”, cita em sua pesquisa.“O ‘cinema de mulheres’ consideromaisradicaldosqueoscinemas vistos como radicais, porque além da ordem do gênero, que ele tenta combater, no caso das brasileiras temos ainda o reforço dessa ordem, se considerarmos o conservadorismo do regime militar. Além disso, a resistência a esse regime se fazia necessária, e é isso que eu vejo nas obras de Tereza Trautman, Helena Solberg e Ana Carolina,cadaqualemseuestilo,traduzido em usos próprios e singulares da estética e dos discursos fílmicos, em meio ao emaranhado da política. Cinema é política e o ‘cinema de mulheres’, em sua versão brasileira, esteve duplamente engajado na resistência a uma dupla opressão, vivida intensamente por suas diretoras naquele momento” conclui Ana Maria. Do tempo em que falar, fazer e até pensar diferente do regime militar era censurado e reprimido. Para ser mulher então, era preciso mais força e criatividade. Foi assim que algumas cineastas resistiram. CINEMA DE MULHERES EM TEMPOS DIFÍCEIS Helena Solberg - cineasta que iniciou carreira em 1960 Por Monique Linhares FOTO:IMAGEMDAINTERNET
  • 5. 5 Por Lola Aronovich F oi vendo o documentário O Riso dos Outros (para o qual tive a honra de ser entrevistada), de Pedro Arante, que descobri que Preta Gil é uma muleta no humor brasileiro. Parece que, quando a noite de um comediante de stand-up não está rendendo e o público não ri, o humorista faz uma piadinha falando que a Preta Gil é gorda e feia, e o pessoal gargalha. Tem gente que adora chamar negro de macaco, mulher de vadia gorda, homossexual de viado, e faz desse tipo de “humor” uma bandeira contra o politicamente correto. Pra essa gente, a pior praga que tem neste planeta não é a fome ou a violência, é o politicamente correto. Por que como é que pode?! Durante séculos, esse pessoal pôde escrever e falar besteiras à vontade, fazer piada com tudo, e de repente surge alguém para criticá-los?! A cada nova discussão, os humoristas bradam “Censura!” Eles reclamam que há uma “patrulha”, uma “ditadura do politicamente correto”, que não permite que realizem seu trabalho, que, dizem eles, é apenas o de fazer rir. Porém, há uma inversão de valores que já foi consolidada pelo senso comum. Enquanto os comediantes são vistos como modernos e despojados – apesar das palavras francamente reacionárias que saem de suas bocas –, as pessoas quelutampormudançasnasociedade são consideradas caretas e atrasadas. O resultado é que hoje politicamente incorreto virou eufemismo para abertamente preconceituoso. Chegamos num ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira contra qualquer grupo que costuma ser discriminado. O problema não é um grupo ser discriminado; o problema é alguém te achar uma besta quadrada por você fazer piada com um grupo que costuma ser discriminado! O humor pode sim ser transgressor. Mas o que esse pessoal que ataca minorias pra fazer piada precisa entender é que eles não estão transgredindo nada. Seus tataravôs já eram preconceituosos. Certamente eles já comparavam negros com macacos, e já faziam gracinhas sobre a sorte que uma moça feia tem em ser estuprada. Quem ainda adota essas piadas no século 21 não está sendo ousado ou criativo, só está seguindo uma tradição. Ousadia é querer mudar o mundo, começando pela forma que falamos. Não há nada de novo ou de rebelde ou de engraçado em eternizar velhos preconceitos. E não existe isso de “é só uma piada”. Piadas não são neutras. São armas que podem ferir, destruir, perpetuar preconceitos, e também derrubá-los. O humor é um discurso como outro qualquer, não está acima da lei. Querer que o humor se responsabilize pelo que diz não é censura – é também liberdade de expressão. Mas muitos humoristas parecem querer manter, a qualquer custo, a liberdade de opressão. Lola Aronovich é professora de Literatura em Língua Inglesa da UFC, e autora do blog Escreva Lola Escreva A LIBERDADE DE OPRESSÃO DOS ABERTAMENTE PRECONCEITUOSOS LOLA ARONOVICH ARTIGO “Chegamos num ponto em que quase sempre que alguém bate no peito pra dizer que é politicamente incorreto, você pode se preparar porque lá vem asneira...” FOTO:ARQUIVOPESSOAL
  • 6. 6 INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16 CURTA O GÊNERO 2014 LIBERDADE, GÊNERO, SEXUALIDADE E DEMOCRACIA A ONG Fábrica de Imagens – Ações Educativas em Cidadania e Gênero realizou o Curta O Gênero 2014 entre os dias 7 e 11 de abril de 2014, na Casa Amarela Eusélio Oliveira no Benfica, bairro universitário e importante pólo cultural de Fortaleza. Foi a 3ª edição do evento, com mais de 350 inscritos e ouvintes participando das atividades. A programação fixa da Mostra Audiovisual e do Seminário “Gênero, Cultura e Mudança” teve uma proposta internacional, inédita, para ampliar ainda mais o debate acadêmico e político em torno das relações entre liberdade e gênero, sexualidade, democracia, arte, fundamentalismos, violações de direitos e feminismos na contemporaneidade. O evento acontece desde 2012, e agora conta com uma programação mais extensa, com convidados e convidadas internacionais e vídeos de outros países também. Nas duas primeiras edições, mais de 50 curtas-metragens foram exibidos, entre ficções, documentários e animações, de um total de 200 produções do Brasil e de outros 4 países inscritas. Este ano, foram projetados 30 filmes selecionados a partir de um total de 170 filmes inscritos. Umas das novidades de 2014 foram os Simpósios Temáticos do Seminário Internacional Gênero, Cultura e Mudança, em que acadêmicas e acadêmicos de todo o país puderam compartilhar suas pesquisas. Foram 28 apresentações de trabalhos de um total de 40 inscritos. Ainda no ensejo da colaboração, a exposição Constrastes – gênero, tempos, lugares, olhares – com o tema Gênero e Liberdade, em que os ensaios foram compostos por fotografias pessoais, como narrativasdesuashistóriascomrelaçãoao seu corpo, sua sexualidade e identidades por meio da imagem. A noite de abertura foi encerrada com show da cantora Di Ferreira e theDillas, banda expoente do cenário musical da noite fortalezense. A última noite teve recorde de público, quando a Casa Amarela esgotou sua capacidade máximadepessoasnoauditórioBenjamin Abrahão e em uma das salas de aula com transmissão simultânea, com quase 250 expectadores para assistir à exibição gratuita do longa-metragem “Tatuagem”. O filme - dirigido por Hilton Lacerda, vencedor de diversos prêmios em festivais e com grande repercussão de público - conta histórias da trupe de teatro Chão de Estrelas, que coloca discussões de gênero e inquietações políticas, tudo com muita irreverência e sensualidade. EXPOSIÇÃO CONTRASTES GÊNERO, TEMPOS LUGARES E OLHARES Por Monique Linhares FOTOS: THYAGO NOGUEIRA
  • 7. 7 CURTA O GÊNERO REVISITADO O Curta o Gênero é um projeto que propõe a transformação de mentalidades por meio do debate e difusão de obras audiovisuais, fotográficas e cênicas comprometidas com a denúncia das desigualdades de gênero, com a construção ou invenção de outras representações e interpretações simbólicas, baseadas na equidade de gênero e na afirmação da diversidade sexual. Participantes circulavam o dia inteiro pela Casa Amarela durante os dias de programação, com a realização de minicursos e simpósios pela manhã; de mesas do seminário pela tarde; e da mostra audiovisual pela noite. O Curta o Gênero atraiu um público diverso, vindo inclusive de outros estados, como Gabriela Paes, estudante de Dança da Universidade Federal de Uberlândia (MG):“Atrocaealiberdadedeconversar que rolou essa semana me inspirou muito. Me ensinou a ouvir, a falar, não só a caminhar na trajetória de gênero, mas trocar com as pessoas mesmo. A proposta do evento é muito particular e inovadora, e fez a gente olhar pra esse tema, que tem sido abordado por tanta gente durante tanto tempo de um outro jeito. Espero poder contribuir mais e vir em todas as próximas edições”, comenta. O Simpósio atraiu pesquisadores e pesquisadoras de diversas regiões do Brasil e áreas de estudo transversais às temáticas abordadas no Seminário, como no caso de Luciana Sttefen, do Rio Grande do Sul, que é musicoterapeuta, doutoranda em Teologia e estuda gênero, deficiência e musicoterapia. Ela afirma que é “muito importante ter esses espaços de discussão, principalmente nessa área de gênero, que é quase inexistente na musicoterapia, também não tão divulgada dentro da teologia. É importante se discutir gênero em todas as áreas e aprimorar a ciência do país como um todo”. As provocações lançadas nesta terceira edição partem da compreensão de que as lutas democráticas, a efervescência das ruas, a recusa ao disciplinamento machista, misógino e homofóbico sobre os corpos e comportamentos dos indivíduos supõe aspirações de liberdade. É este o cenário de discussões que marcaram esta edição do Seminário Gênero, Cultura e Mudança, trazendo mais uma vez à Fortaleza um conjunto de pesquisadores/as, escritores/as e ativistas/as de referência nacional e internacional. A abertura do Curta o Gênero 2014 teve Mesa composta por María Magdalena Valdivieso, do Centro de Estudos da Mulher da Universidade Central de Venezuela, e Ana Maria Veiga, doutora em História pela Universidade Federal de Santa Catarina. No encerramento, foram debatidos os desafios do pensamento feminista na conferência com a portuguesa Conceição Nogueira, doutora em Psicologia Social pela Universidade do Minho. Para falar sobre práticas e prazeres sexuais dissidentes, vieram nomes importantes de pesquisa da área, como a professora colombiana María Elvira Benitez, de Antropologia Social do Museu Nacional da Universidade Federal do Rio de Janeiro, e Bruno Zilli, pesquisadorassociadodoCentroLatino- americano em Sexualidade e Direitos Humanos - CLAM/IMS/UERJ. Para discutir diversos olhares feministas, a programação contou com a colaboração da professora associada de Teoria Literária na Universidade Federal de Santa Catarina, Cláudia Lima Costa. A ativista Sônia Corrêa, coordenadora no Brasil do Observatório de Sexualidade e Política (Sexuality Policy Watch, SPW), projeto sediado na Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abia), e o argentino Mario Pecheny, professor e pesquisador em diversas universidades e grupos acadêmicos, entre eles Universidade de Buenos Aires, dividiram a Mesa “Horizontes incertos: Estado, fundamentalismos e direitos sexuais e reprodutivos no Brasil”. A feminista e pesquisadora Magdalena Valdivieso, da Universidade Central da Venezuela, faz o registro de sua participação no Curta o Gênero 2014 mostrando a necessidade urgente de resistir e de criar espaços de discussão sobre as temáticas. “Eu felicito e valorizo esta apresentação tão diversa que vocês têm organizado, que nos mostra estes distintos modos de resistir, criatividades e ao mesmo tempo uma sólida proposta alternativa. Creio que esse seja o caminho, complexo, porque esta explosão da diversidade traz novos desafios. É muito mais difícil o momento de poder encontrar estratégias comuns, dialogar, construir juntas e juntos, muito mais difícil era quando tínhamos ideias únicas, quando acreditávamos solitariamente em uma revolução que seria de determinada forma com um um sujeito privilegiado. Agora não há sujeito privilegiado, somos todas e todos sujeitos privilegiados deste processo e aportamos nossa diversidade e criamos espaços também diferentes, como a Universidade, onde possamos discutir estas temáticas”. NOS CORREDORES Nos intervalos da programação, participantes poderiam flanar pela MiniFeira de livros, com exposição de exemplares especiais sobre gênero, diversidade e liberdade da livraria Lua Nova. A Feira Criativa também ocupou os corredores com os bonecos da BudegAma e artigos personalizados da Guarderia de Meninos.
  • 8. 8 INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16 FEMINISMOS DO SUL DEMOCRACIA, POLÍTICA E LIBERDADE Por Cristhian Caje FÁBRICA ENTREVISTA O auditório da Casa Amarela Eusélio Oliveira estava lotado para ouvir a conferência de abertura do Curta o Gênero 2014 sobre Feminismos do Sul, ministrada pela professora doutora da Universidade Central da Venezuela (UCV), Magdalena Valdivieso. Ela, que é diretora do Centro de Estudos da Mulher na UCV e especialista no estudo das mulheres e seu ambiente, conversou com um pouco mais com a equipe da Fábrica de Imagens sobre o assunto. Confira! Como foi a sua trajetória dentro do feminismo e dos estudos de gênero? Eu me graduei na Universidade do Chile. Havia muitos anos que eu estava na Escola de Ciências Políticas, e saí do Chile por conta do golpe de Estado em 1973, e vivi a vida inteira como exilada política na Venezuela. Lá trabalhei na Universidade Central da Venezuela, a qual pertenço e onde terminei a carreira profissional, no Centro de Estudos da Mulher, que tem uma maestria nos estudos de gênero. Pouco a pouco, durante a carreira profissional, pude ir dedicando-me aos temas de gênero e ao feminismo, e também à militância política. Na militância, estive em quantas organizações de mulheres podíamos criar. Em um primeiro momento, no interior dos partidos de esquerda na América Latina, fazíamos um feminismo autônomo, devido às relações complexas que as feministas têm com os partidos políticos que conservam um grau de machismo, mas que são importantes em nossos países. Então, fiz meu doutorado em Ciências Políticas e, do ponto de vista dos títulos, sou professora titular da Universidade Central de Venezuela e doutora em Ciências Políticas. Atualmente, trabalho tanto na Universidade Central da Venezuela, como no Conselho Latino- americano de Ciências Sociais, que é um organismo criado pela Unesco, que reúne investigadoras e investigadores latino- americanos, e ali sou coordenadora de um grupo de trabalho - o grupo de feminismos, transformações e alternativasparaAméricaLatinaeCaribe - e também organizo seminários virtuais em uma plataforma que o Conselho Latino-americano tem, que chega a todos os países latino-americanos. Portanto, é por ali que tenho andado e escrito o que creio que possa ter alguma importância, ou que ao menos possa ser útil a estas novas gerações. E em relação à essa proposta que você traz como Feminismos do Sul, como você poderia defini-lo de uma maneira mais objetiva? Bem, sobre a conversa que tivemos na Conferência de abertura do Curta o Gênero 2014, sobre feminismos do sul, mas também sobre democracia, política e liberdades, creio que falar de democracia política e liberdades na América Latina nos remete necessariamente a estes projetos de estados nacionais, que se instalaram excluindo uma quantidade de populações e que se centraram demais nesse caráter de estados nacionais ou de projetos de estados nacionais latino- americanos, com essa gramática original, tão colonial, tão eurocêntrica, que têm pretendido ser estados homogeneizantes de populações que são a toda vista e a toda vida diversas. Lá passam os temas de cidadania, desta cidadania deficitária, desta democracia sempre em dívida, desta liberdade que nós temos. Na América Latina, a cidadania é mais um privilégio que um direito, e democacracia é mais uma manifestação de vontade que uma realidade. Sobre o significado de feminismos do sul, fazemos alusão à metáfora de Boaventura de Souza Santos, quando ele se refere às epistemologias do sul. Não um Sul geográfico, e sim a um sul metafórico, mas que também é um sul geopolítico. Este Sul é um lado do mundo invisibilizado, colonizado, inventado, olhado sempre com olhos de fora, com olhos que sempre quiseram nos colonizar, nos inventar e nos negar como realidade; impor sobre nossas próprias realidades um modelo distindo, que nos trouxe modernidade. Então, tomando isso como base, se pergunta como fazer feminismo nesses espaços; um feminismo enraizado, situado; um feminismo que responda a nossa complexa situação. Por que complexa? Porque se entrecruzam situações diversas que levam a diversas manifestações do MAGDALENA VALDIVIESO
  • 9. 9 padrão de poder dominante. Nosso padrão de poder dominante é um padrão de poder, sem dúvida, no mínimo colocial, capitalista e patriarcal, e essas dominações se entrecruzam. Quando se quer trabalhar em política ou se tem uma proposta social ideológica, uma proposta de troca social, você tem que se dar conta que está em um continente onde essas variáveis, raça, gênero, etnia e lugar de nascimento se entrecruzam. Então, que opções temos como feministas? Uma opção é fazer o que vinha se fazendo desde o feminismo liberal, e trazer à América Latina os avanços dos progressos conquistados pelas mulheres em um mundo ocidental norte-americano e europeu. Sem dúvida essa foi uma estratégia útil. Não se pode negar os avanços que alcançamos no reconhecimento de direitos em geral, que são direitos que competem a toda a humanidade, como o direito à vida, mas uma vida livre de violência; o direito ao trabalho, mas sem discriminações; o direito à saúde, que não está reconhecido em muitos países latino-americanos. Esta complexidade que temos é de uma superposição de capas; de ter sido originalmente um tipo de população e logo ter a capa da colonização, da conquista que nos tranformou em outra coisa. Agora, buscando essa origem, mas respondendo também à situação atual. Esse ponto de vista é impossível, creio eu, realizar um trabalho político feminino sem assumir que o continente está dominado pelo processo de globalização capitalista, pelo patriarcado e pelo colonialismo, de modo que a situação das mulheres da qual somos parte, com a qual queremos trabalhar, não são só as situações de subordinação de gênero, porque essa situação de gênero está mediada, está marcada, está determinada por seu caráter também de raça, de etnia, de lugar de vida. Se não se leva isso em conta, pouco é o diálogo; pouco útil é o feminismo que podemos fazer. Seria um feminismo bastante inútil para a mobilização social e para a efetiva transformação social que aspiramos. O pensamento feminista é transformador por definição, de maneira que não se trata somente de ter explicações epistemológicas do que é a opressão das mulheres, se não for um feminismo situado e comprometido com a transformação social, política e econômica, e isso requer se dar conta de que é colonial, é patriarcal e é capitalista. Você falava de uma condição latino- americana entre iguais sabendo também que há países na América do Sul com realidades muito diferentes. Qual seria a sua perspectiva para pensar o Brasil dentre deste panorama? Bem, primeiro reconhecer a heterogeneidade dos países sulamericanos. Sem dúvida temos diferenciais importantes entre os diversos países, mas se há algo em comum nesses Estados é que seguem sendo marcadamente patriarcais. Essa é uma condição que nos iguala em algum sentido. Por outro lado também há situações distintas das mulheres. No feminismo, não podemos cair no universalismo que criticamos, então efetivamente não podemos falar de uma maneira de fazer feminismo, mas agora falamos dos feminismos no plural e nas muitas formas de fazê-lo. Na América Latina, neste momento, podemos diferenciar estados em que há Estados liberais que fazem um grande esforço em manter sua condição de Estados neoliberais, apesar de terem sociedades bastante mobilizadas e que têm feito protestos bastante significaticos nos últimos anos, dos quais não têm escapado países que se mostram exitosos dentro do modelo. No caso do Chile, as mobilizações em 2011 mostram que um país que alcançou, em termos de cifras macroeconômicas, talvez os maiores benefícios do modelo capitalista neoliberal, apresenta uma sociedade profundamente insatisfeita com os avanços, porque o que estava em questão com as manifestações estudantis era as mobilizações pela situação ambiental, de defesa da terra, do modo de vida etc. Mas temos Estados que estão pretendendo levar adiante projetos alternativos. O mundo ia ser globalizado capitalisticamente e não havia outra alternativa, mas aos poucos outro tipo de movimento tem sido despertado na América Latina, com importantes debates sobre outras formas de vida, sobre o que chamamos de bem viver. Que caminhos nos restam diante deste cenário? Eu creio no que aquele cartaz que está lá fora diz: nem ditadura militar, nem ditadura civil, nem ditadura do Estado, nem ditadura do mercado. Ele mostra muito do que se quer, do desejo de viver de acordo com cada grupo e cada comunidade e fortalecendo a ideia de comunidade. Neste momento vivemos uma ditadura de mercado, em todos os nossos países impera o mercado. Com as mulheres isto se vê claríssimo com o tema do corpo. O Estado tem se tentado dominar o corpo da mulher pelo mercado, com todas as normas e leis que tentam regular como nós vivenciamos nossos corpos e como podemos atuar sobre eles. As igrejas vivem tentando impor isto através do mercado, como devem ser os corpos das mulheres, e ainda lhes oferecem uma ampla gama de possibilidades para transformar os corpos de acordo com os ditados do mercado. Esse processo, ao qual se refere Edgardo Lander, das tendências, processos e tendências à mercantilização de todas as formas de expressão da vida. Creio que o caminho é complexo porque esta explosão da diversidade traz novos desafios. É difícil o momento de poder encontrar estratégias comuns, dialogar, construir juntas e juntos. Muito mais difícil era quando tínhamos ideias únicas, quando acreditávamos solitariamente em uma revolução que seria de determinada forma e com um um sujeito privilegiado. Agora não há sujeito privilegiado, somos todas e todos sujeitos privilegiados deste processo.
  • 10. 10 INFORMATIVOBIMESTRALFÁBRICADEIMAGENS/ED.16 A s situações relatadas são verdadeiras e introduzem algumas inquietações que têm feito tantxs pesquisadorxs e ativistas pelo mundo a voltarem suas produções para uma outra lógica de pensamento, as chamadas epistemologias do sul. A primeira foi vivida pela professora da UniversidadeFederaldeSantaCatarina, Cláudia Lima Costa, e a segunda pela professora da Universidade Federal de Uberlândia, Flávia Teixeira. As duas educadoras foram levadas por vivências pessoais a revisitarem conceitos e teorias tradicionais e concluirem que, em certos casos, apenas um nova leitura, ancorada em visões de mundo contra-hegemônicas e questionadoras, seria capaz de dar conta de realidades particulares. No que se refere ao feminismo, segundo Claudia Lima Costa, a mais recente noção que tem aparecido é a de feminismos descoloniais, que teriam emergido nas regiões andinas com o surgimento de uma indigeneidade, ou seja, o indígena surgindo como um forte e novo movimento social, representante de uma outra ontologia. “A partir da figura do indígena, começa- se a pensar a possibilidade de outros saberes, como o dos quilombolas. Isso começa a aglutinar, a agrupar pessoas preocupadas com isso, e começa a pipocar aqui e ali uma reflexão”, comenta. Para Cláudia, ao falar de gênero, a tradução – e consequentemente o signifcado - que vamos dar, vai mudar de um local pro outro. “As categorias parecem ser sobre a mesma coisa, mas na verdade são diferentes”. Descolonizar o saber é produzir um conhecimento que esteja atento a essas peculiaridades. Flávia Teixeira levanta ainda outros desafios ao feminismo tradicional, que, segundo a professora, infelizmente ainda reproduz visões de mundo que reforçam o capitalismo, o colonialismo e o patriarcado. Para ela, grandes discussões têm sido levantadas pelo movimento Transexual: “Para se construir essa pessoa [trans], se constrói também um único jeito de ser transexual. A mulher trans tem que ter repulsa pelo pênis; o homem trans tem um seio intocável. (...) Então o que dizer quando um homem trans reivindica o direito de amamentar? Ou quando mulheres trans começam a tomar hormônios masculinos para serem mulheres com músculos tipicamente masculinos?”. Inquietações também são levantadas pela professora ao falar sobre a relação do feminismo com as prostitutas: “Quando se fala que a prostituição usurpa o corpo feminino, se esquece que existe a prostituição masculina e que existem as mulheres como clientes. Quando eu falo em mercado do sexo, de que é que eu estou falando?”, reflete ela. Antes de prosseguir com a leitura deste texto, permita-se duas reflexões: Reflexão número 1: A luta por um corpo e um comportamento libertos vinha de um tempo em que o pai dizia que ela não poderia estudar sozinha na capital porque “era mulher”. O feminismo, portanto, apareceu como um bom amigo e tornou-se caminho para entender o lugar que poderia ocupar no mundo. Entretanto, anos depois, ao trabalhar como pesquisadora com pessoas trans e prostituas, viu que aquele feminismo também poderia lhe virar as costas. Entendeu, então, que a mulher de que o feminismo falava era determinada unicamente pela biologia de seu organismo; e o corpo, que se desejava tão livre, poderia ser novamente aprisionado se a dona dele o transformasse em meio de trabalho ou ocupação. Era tempo de rever conceitos. “Como um movimento, que reivindica o afastamento das bases da natureza, que diz que ‘ser mulher não é destino’, vira para as pessoas trans e diz que elxs não são legítimxs porque não são naturais? E como esse movimento, que também reivindica o direito da mulher de dizer sobre seu corpo, retira esse direito no momento em que ela é prostituta?”, provoca ela. Reflexão número 2: Anos de formação em universidades americanas a muniram de argumentos para embasar um discurso pós-moderno que ia contra raízes. “Raízes nos aprizionam”, pensava. Com o retorno ao Brasil, veio a oportunidade de trabalhar com mulheres sem- teto e, com ela, uma constatação: “Tudo pelo que aquelas mulheres lutavam era por um sentido de pertencimento, por uma raiz, uma identidade”. O que fazer com todas as teorias aprendidas? Realidades particulares e vivências plurais escancaram a necessidade de pensarmos para onde estamos indo com o feminismo. Mas que feminismo? FOTO:IMAGEMDAINTERNET DESCOLONIZAR É PRECISO Por Sarah Coelho
  • 11. 11 A cidade de Natal (RN) recebe a Teia e o Fórum Nacional dos Pontos de Cultura entre 19 e 24 de maio deste ano. Evento marcante dentro do Programa Cultura Viva, tanto pelo seu aspecto político quanto pelo seu valor e potencial estéticos, sobretudo pela integração dessas duas dimensões. Esses momentos convidam a todas e todos os interessados no Programa a mergulharem em processos de avaliação, percepção crítica dos caminhos que o mesmo tem trilhado e suas perspectivas para os próximos dois anos, pelo menos. Nesse contexto, a Fábrica de Imagens se fará presente no evento através de duas ações que se complementam e se reforçam estética e politicamente, o II Encontro Gênero nos Pontos e a primeira itinerância da Mostra Internacional Audiovisual do Curta o Gênero 2014. OIIEncontroGêneronosPontos é o espaço para se avaliar em que nível de prioridadeeemqueintensidadeasquestões de gênero têm influenciado e contribuído, de certa forma, para a estruturação do Programa Cultura Viva. Encontros como este já foram realizados em 2008, na Teia Iguais na Diferença de Brasília; em 2010, na Teia Tambores Digitais de Fortaleza e na programação do Curta o Gênero 2012, através do I Encontro Gênero nos Pontos. Para esse encontro, o Ponto de Cultura Outros Olhares – equidade e diversidade, da Fábrica de Imagens, e o Ponto de Cultura panelladexpressão, do Distrito Federal, uniram esforços para tecer uma programação que englobará duas mesas de discussão e três rodas de conversa. Nas mesas, de caráter mais conceitual, a discussão apresenta o tema: “O lugar da cultura para a superação das opressões de classe, gênero, raça e orientação sexual” e as relações entre “Políticas Culturais e Políticas de Gênero/ Mulheres – desafios e perspectivas dentro do Programa Cultura Viva”. Quanto às rodas de conversa, estas terão um direcionamento mais avaliativo e propositivodecaráterpolíticoeestratégico para uma inserção mais consistente do tema gênero no Programa Cultura Viva. Leila Negalaize, uma das organizadoras, alerta-nos sobre a necessidade de fomentar momentos e debates sob essas perspectivas, e reforça que “um país onde os fundamentalismos ganham eco social de seus preconceitos, só pode estar caminhando para uma cultura da morte. País laico é um país que produz cultura livre de preconceitos. Reflete a arte de viver nas diferenças sem medo”. MOSTRA INTERNACIONAL AUDIOVISUAL CURTA O GÊNERO Já a Mostra Internacional Audiovisual Curta o Gênero, ação aprovada na seleção artística da Teia Nacional, insere-se nesse contexto como uma ação referencial de integração entre cultura, política cultura e gênero, integrando-se a proposta do II Encontro Gênero nos Pontos. A Mostra, em sua passagem por Natal, exibirá 18 realizações nacionais e internacionais que apresentam ao expectador um painel de questões e desafios urgentes no campo das relações de gênero e suas conexões com questões de classe, orientação sexual, raça, geração,dentreoutras.Estesdocumentários e ficções oferecem ainda a possibilidade de refletir sobre o machismo, o sexismo e a heteronormatividade e suas repercussões sociais diárias, desde as mais “inofensivas” até as mais dramáticas como a violência e o assassinatodemulheresesujeitosLGBTT. Importante ainda destacar que a segunda itinerância do Curta o Gênero e sua Mostra Audiovisual já tem pouso certo. Em julho levaremos oficinas, a exposição Contrastes e a própria Mostra Internacional Audiovisual para Florianópolis, Santa Catarina.Eoutrasitinerânciasaindapodem seguir por outras paragens, através de parcerias e convites que outras instituições tenhaminteresse.AFábricadeImagensestá decaminhoaberto. A programação da Teia conta com duas intervenções da Fábrica de Imagens: o II Encontro Gênero nos Pontos e a Mostra Internacional Audiovisual Curta O Gênero FÁBRICA DE IMAGENS NA TEIA NACIONAL DA DIVERSIDADE FOTO:DIVULGAÇÃO Por Marcos Rocha
  • 12. EXPEDIENTE Este jornal é uma publicação do projeto Cacto realizado pela ONG Fábrica de Imagens - ações educativas em cidadania e gênero. Coordenação Geral: Marcos Rocha Coordenação Socioeducativa: Christiane Ribeiro Gonçalves, Tel Cândido e Taiane Alves Design Editorial: Thyago Nogueira Jornalista Reponsável: Monique Linhares MTB JP 2630/CE Reportagens: Sarah Coelho e Monique Linhares Endereço: Rua Odilon Benévolo, 1133, Maraponga, Fortaleza - CE Contatos: (85) 34951887 / fabricadeimagens@fabricadeimagens.org.br www.fabricadeimagens.org.br sER.á.Linha_do Eliana Moeckel Foto: Iza Guedes Exposição Contrastes