Recensão: A caminho
da Eurábia? Islamismo e multiculturalismo no espaço europeu.
Islamismo e Multiculturalismo. As ideologias após o fim da história, monografia da autoria de José Pedro Teixeira Fernandes,publicada em 2006.
Recensão de livro sobre islamismo e multiculturalismo
1. RECENSÃO
JOSÉ PEDRO TEIXEIRA
A caminho FERNANDES
Islamismo e
da Eurábia? Multiculturalismo.
As Ideologias após
islamismo o Fim da História
e multiculturalismo Coimbra,
Almedina,
2006, 343 páginas
no espaço europeu
João Pedro Vieira
UMA SIMBIOSE IDEOLÓGICA INESPERADA
A presente publicação, peculiar pela sua temática na
literatura académica portuguesa, surge na sequência
de um prolongado percurso de investigação do autor
sobretudo marcado, em época mais recente e no que
concerne à presente obra, por estudos relacionados
com a história e a política turca. Para o tratamento da
temática das sinergias ideológicas entre islamismo e
multiculturalismo no seio das sociedades europeias, o
autor, doutorado em Ciência Política e Relações Inter-
nacionais pela Universidade do Minho e professor-coor-
denador do ISCET, beneficia igualmente de um relevante
capital intelectual ligado à teoria das Relações Inter-
nacionais e da Economia Política, o qual dar outras perspectivas, dada a profunda
mobiliza activamente na obra aqui apre- intersecção entre religião e política nele
ciada. operada. De qualquer modo, o islamismo
O corpo do trabalho, de estrutura sólida, deve ser prioritariamente entendido como
clara e fluida, está dividido em cinco capí- ideologia política e não como simples
tulos, a que se juntam por mais de oitenta matéria de cultura e religião, conforme
páginas, após a conclusão, doze diversos advoga o autor.
anexos. O islamismo, um dos eixos temá-
ticos da obra, é aqui trazido na perspec- AVALIANDO DESAFIOS E RISCOS
tiva particular da ciência política, o que, IDEOLÓGICOS E SOCIOPOLÍTICOS
ressaltando – no que ao autor directamente A introdução da obra coloca o leitor em
interessava – a dimensão essencialmente contacto imediato com o enquadramento
política do fenómeno, não deve fazer olvi- genérico do estudo. Aí se apresentam
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RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2008 17 [ pp. 167-172 ]
2. este último com «objectivos explícitos ou
sucintamente os seus pressupostos, meto-
implícitos de conquista do poder» (p. 28):
dologia e hipótese geral a demonstrar,
objecto obrigatório, portanto, de crítica e
assim como a organização do trabalho.
discussão nos espaços públicos ociden-
O autor considera que a transformação
tais.
recente de estruturas geopolíticas mun-
Passados os pontos iniciais, são enun-
diais cria condições para rever a tese da
ciadas as três principais variantes do
hegemonia global indisputada da demo-
islamismo – radical, «capitalista», «multi-
cracia capitalista liberal. Essa tese, porém,
culturalista» – e avançada a sua contex-
assenta numa visão redutora e eurocên-
tualização e caracterização. As correntes
trica do fenómeno político à escala glo-
«capitalista» e «multiculturalista» recebem
bal, dificilmente capaz de identificar
maior destaque, porquanto aparentam
«formas de competição ideológica» (p. 8)
concentrar maior potencial expansivo e
emergentes, nomeadamente o islamismo
destabilizador entre as populações muçul-
e o multiculturalismo.
manas situadas no seio das sociedades
Isso porque o eixo do conflito ideológico
ocidentais e acarretar uma ameaça securi-
se tem vindo a deslocar do campo da eco-
tária latente. Em ambos os casos, ocorrem
nomia política para o campo da cultura,
fenómenos de apropriação e transforma-
no âmbito de um processo de reconfigu-
ção de produtos de uma «civilização» oci-
ração e reestruturação política e ideoló-
dental em vectores privilegiados de
gica, quer nas sociedades ocidentais, quer
proliferação ideológica do islamismo.
no plano internacional; duplo espaço esse
Enquanto o islamismo radical preconiza
em que o islamismo, na sua complexidade
o modelo da teodemocracia e do Estado
e heterogeneidade, goza de um «signifi-
-
islâmico (teocrático) regido pela sharı ‘a,
cativo potencial de expansão» (p. 11).
praticando necessariamente uma fusão
O primeiro capítulo do estudo, intitulado
entre o religioso e o político, o modelo
«O islamismo como ideologia não oci-
dito «capitalista» adopta estratégias sub-rep-
dental de ambição universalista», começa
tícias de implementação do seu programa
por tratar da genealogia do termo «isla-
ideológico, afastando-se pontualmente de
mismo», delimitando por empréstimo o
reivindicações radicais e posições intran-
seu conteúdo: o islamismo é um «amplo
sigentes, e suscitando, em suma, uma sín-
movimento que abrange todos os que pro-
tese pragmática entre capitalismo e
curam islamizar o ambiente onde se
islamismo orientada para a reislamização
encontram» (p. 27). A «tradição holística
do todo sociopolítico. Já a corrente «mul-
do Islão» (p. 26), o seu carácter totalizante,
ticulturalista» apresenta-se como produto
assim como o seu típico militantismo
específico da interacção entre sociedades
– com assíduo recurso a práticas de dissi-
ocidentais e grupos muçulmanos imigra-
mulação –, criam uma considerável ameaça
dos; a sua actuação é moderada ou até
securitária e sociológica nas sociedades
progressista e os seus líderes tendem a
ocidentais, razão prática pela qual é fun-
monopolizar a representação mediática e
damental distinguir o Islão do islamismo,
168
RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2008 17
3. Este novo complexo ideológico ocidental
institucional das populações muçulmanas
entronca na necessidade ou exigência de
imigrantes. Para o autor, o seu objectivo
reconhecimento associada à defesa das
geral será a islamização do sistema edu-
minorias, da sua identidade e autonomia.
cativo e dos estilos de vida, num investi-
Depois de percorridos os fundamentos
mento a longo prazo em países como a
ideológicos do multiculturalismo, o autor
Grã-Bretanha, a Holanda ou a Alemanha.
delimita e trata dois modelos de «espaço
O segundo capítulo trata da «conexão cul-
multicultural», ambos eminentemente
tural» entre os movimentos islamitas,
políticos: o liberal/cidadania diferenciada
a diáspora muçulmana na Europa e as popu-
(modelo liberal multicultural da tipologia
lações muçulmanas autóctones dos Balcãs.
de Andrea Semprini) e o marxista-cultu-
Adoptando a noção de «muçulmano so-
ral/pós-moderno (multicultural «maxi-
ciológico» – porventura excessivamente
malista»). Apesar da sua heterogeneidade
abrangente – e expondo as diversas limita-
global, da concorrência de substanciais
ções à formação de uma percepção fiável
variações ou divergências de sensibilida-
da expressão demográfica das populações
des, ambas as correntes convergem na
muçulmanas balcânicas, o autor apresenta
ideia da obsolescência do modelo político
as respectivas estimativas e leituras ideo-
liberal clássico.
lógicas antagónicas subjacentes – entre a
A denúncia da opressão das minorias, do
defesa e a diabolização do Islão –, as quais
racismo, do imperialismo político ou cul-
explicam a preferência de cifras maxima-
tural, constitui factor de aproximação entre
listas ou minimalistas. De seguida, é des-
os discursos ideológicos islamita e mul-
montada a expressão operativa «comuni-
ticulturalista marxista-cultural. As simili-
dade muçulmana», demonstrado o seu
tudes ideológicas permitem, no limite,
carácter redutor e desenvolvidos estudos
o desenvolvimento de bloqueios intelectuais
de caso sobre as realidades britânica, fran-
que desembocam num «desarmamento
cesa, holandesa, germânica e balcânica.
intelectual» (p. 161) face ao islamismo no
Torna-se assim patente a heterogeneidade
geral, fenómeno assaz flagrante no mul-
étnica, linguística e mesmo religiosa das
ticulturalismo denominado marxista-cul-
populações muçulmanas imigrantes e as
tural. Trata-se, com efeito, da existência
modalidades e dificuldades de relaciona-
de um aparente défice crítico em relação
mento entre essas populações e os esta-
ao islamismo que é adicionalmente poten-
dos europeus.
ciado por uma atitude francamente nega-
O multiculturalismo é o núcleo temático
tiva e historicamente enraizada para com
polarizador do terceiro capítulo. À seme-
a cultura ocidental. Finalizando o capí-
lhança do anteriormente efectuado com o
tulo, o autor procede a uma desmontagem
conceito de islamismo, o autor desenvolve
do sistema de millet como modelo para-
agora considerações sobre a genealogia
digmático (e utópico) de Estado multi-
do conceito de multiculturalismo, «pro-
cultural, denunciando, entre outros erros,
duto cultural estreitamente associado ao
o anacronismo da retroprojecção de um
universo cultural anglo-saxónico» (p. 122).
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A caminho da Eurábia? islamismo e multiculturalismo no espaço europeu João Vieira
4. -
jihad, são desmembradas e enjeitadas com
corpo conceptual próprio da ciência polí-
recurso a literatura especializada, aler-
tica ocidental completamente estranho à
tando-se para o risco que representam ao
realidade histórica em causa.
atribuir uma certa legitimidade às reivin-
As similitudes discursivas e até ideológi-
dicações de movimentos islamitas que
cas entre multiculturalismo e islamismo
vêem os territórios ibéricos como terra
são aprofundadas no capítulo seguinte.
ocupada a recuperar.
Os antecedentes dessa aproximação levam
A conclusão, encerrando o corpo do tra-
o autor até Nietzsche e à colaboração activa
balho, cinge-se genericamente ao resumo
entre os regimes nacional-socialista ale-
das principais e parciais conclusões adu-
mão e fascista italiano com governos ára-
zidas ao longo do estudo, em busca de
bes-muçulmanos coetâneos. O autor finda
uma síntese integradora, advertindo espe-
por deduzir a ressurgência de um processo
cialmente para o risco representado pela
de aproximação entre radicalismos,
convergência desestruturadora entre radi-
nomeadamente entre partidos europeus,
calismos políticos islâmicos e ocidentais
quer de extrema-esquerda quer da extrema-
no interior das sociedades de matriz civi-
direita, e movimentos islamitas. Mas as
lizacional ocidental.
estratégias dos movimentos islamitas
Segue-se, rematando a obra, um conjunto
estendem-se outrossim ao uso da teolo-
muito enriquecedor e pertinente de ane-
gia, explorando pontos de contacto entre
xos que abordam diferentes matérias, com
as tradições religiosas cristãs e islâmicas,
recurso alargado a extensas citações de
e suavizando ou omitindo discrepâncias
documentos ou literatura especializada,
de fundo, à deturpação do conceito de
-
desde a sharı‘a (anexo 1), a sunna e os aha-
«islamofobia» e à apropriação táctica dos
-
dith (anexo 2) ou a jihad (anexo 5), até diver-
valores ocidentais para fins de reislami-
sos decretos jurídico-religiosos (fatwa;
zação.
anexos 8-10) e a excertos da carta funda-
O quinto e penúltimo capítulo trata da
dora do Hamas (anexo 12). Este conjunto
representação ideológica multiculturalista
de anexos, para além de auxiliar a con-
do al-Andalus medieval (711-1492), onde
textualização e o suporte de toda a infor-
se compendiam em traços largos as pers-
mação tratada no corpo do trabalho,
pectivas historiográficas de Castro e de
permite abrir uma janela suplementar à
Olagüe que, conquanto historiografica-
forma mentis islâmica.
mente ultrapassadas ou insustentáveis,
ganharam particular relevância e aceita-
ção entre os correligionários do multi- BALANÇO: VIRTUDES, LIMITAÇÕES
culturalismo – exemplo da recente obra E PERSPECTIVAS
da autoria de Sardar e Davis – e certos gru- Posta esta dilatada resenha dos conteúdos
pos de muçulmanos imigrados. Estas e da obra, cabe agora deixar algumas obser-
outras visões idealizadas e claramente vações mais demoradas sobre diversos
orientadas do ponto de vista ideológico, aspectos de cariz mais metodológico e
incidindo também sobre o al-Andalus e a conceptual. A abundância de citações e
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RELAÇÕES INTERNACIONAIS MARÇO : 2008 17
5. ocidentais de acordo com as suas próprias
remissões ao longo do texto, mau grado
coordenadas.
lhe confiram amplo suporte, parece por
Isto, todavia, sem que o próprio autor deixe
vezes colaborar para a construção de um
de incorrer na reprodução de algumas des-
discurso muito próximo, nas suas linhas
sas imprecisões, nomeadamente no que
de investigação e visões interpretativas, da
respeita ao uso problemático ou impró-
bibliografia – em que se estranha a ausên-
prio dos termos «rito» (e.g., pp. 82 e 116)
cia da referência aos estudos citados de
e «clérigo» (p. 49). O primeiro deles,
Samir Khalil Samir –, apagando um pouco
visando exprimir o árabe madhhab, deve-
a individualidade e originalidade do
ria ser preterido em favor da expressão
estudo. O seu principal mérito talvez resida
«escolas teológico-jurídicas», adiante usada
na abertura consistente de um campo de
pelo autor (pp. 193 e 294). O termo madh-
exploração na ciência política nacional
hab designa genericamente modos espe-
para uma temática até então na penum-
cíficos de interpretação das fontes
bra. Os principais desenvolvimentos da
normativo-religiosas do Islão e o seu pro-
obra caracterizam-se, portanto, pelo
duto, extravasando a dimensão puramente
esforço de síntese, especialmente visível
jurídica ou ritual que o vocábulo «rito» lhe
na conclusão, que carece em certa medida
atribui de forma redutora.
de rasgo interpretativo, quase circunscrita
No que respeita ao termo «clérigo», a sua
à reunião das principais conclusões ou
aplicação à realidade iraniana é pertinente,
informes expostos ao longo do trabalho.
dado o protagonismo político e institu-
A discussão das potencialidades e limita-
cional da hierarquia religiosa, não dei-
ções do multiculturalismo e sua conexão
xando, contudo, de revestir essa realidade
com o islamismo poderia ter sido desen-
de contornos ocidentais. Apesar das simi-
volvida, considerando a relevância atri-
litudes com a realidade institucional cató-
buída ao plano social, com aportações da
lica, não existe propriamente ordenação
esfera da psicologia social, dado o carác-
sacramental nem sacerdócio no Islão: na
ter estruturante de fenómenos como o pre-
generalidade do mundo islâmico, não
conceito e o estereótipo, consequência de
existe uma tal instância necessária de
processos de construção identitária e dinâ-
mediação entre as esferas humana e divina,
micas inerentes à sua existência social.
o que poderia ter sido assinalado.
É perceptível desde a introdução um
De notar também, a par da preocupação
esforço muito relevante no sentido da
pela desmontagem de ideias preconcebi-
desarticulação de lugares-comuns, falá-
das e simplificações abusivas, a opção trans-
cias ou simples paralogismos discursivos
versal de contextualização histórica das
cuja ocorrência parte, não raro, da lite-
problemáticas abordadas, o esforço de
ratura especializada ou dela se estende.
enquadramento personalizado de cada uma,
É reconhecida a necessidade de apreen-
amiúde reforçado por notas de rodapé
são de um contexto ideológico que se rege
prolixas e pelos diversos anexos já men-
por estruturas conceptuais e modos de
cionados. As notas de rodapé assumem fre-
representação da realidade diferentes dos
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A caminho da Eurábia? islamismo e multiculturalismo no espaço europeu João Vieira
6. quentemente, no entanto, uma extensão Alcorão de José Pedro Machado, em detri-
desmesurada e o seu conteúdo poderia even- mento da edição da SPORPRESS utilizada
tualmente ter enriquecido directamente o pelo autor. A liberdade frequentemente
corpo do trabalho ou os anexos. tomada nesta tradução leva a distorções
De registar ainda a não uniformização das significativas de conteúdo, caso do v. 2:105
citações de textos (nem sempre traduzi- (não utilizado pelo autor), cuja tradução
das), a não vernacularização integral de nega o sustentáculo alcorânico de refe-
-
alguns estrangeirismos (e.g., kizilbaxes), rência para a teoria da ab-rogação (nasikh
-
wa mansukh).
casos de hifenização aparentemente des-
necessária (e.g., socialismo-comunista) e Aguardar-se-ão próximos estudos em que
a persistência do galicismo «Corão», em o autor possa aprofundar a sua visão sobre
detrimento do vocábulo português «Alco- a temática do islamismo e do multicultu-
rão», tudo isto apesar de manifestas preo- ralismo e alargar o espaço de reflexão
cupações de consentaneidade com a estru- nacional sobre tais temáticas, com even-
tura lexical portuguesa (p. 167, n. 2). tuais desenvolvimentos sobre os contex-
Deveria ter sido preferida a tradução do tos balcânico e turco.
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