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Capítulo 4 | Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos




     AUGUSTO DE FRANCO
  Vida humana e convivência social nos novos
mundos altamente conectados do terceiro milênio


                        1
2
4
Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos



                                                Os deuses eram ventos.
                                          Arturjotaef em Numância (2010)




               Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria...
                        Traduzida literalmente significa “retorno à mãe”
                                     - na medida em que os ex-escravos
                     eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”.
  Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade.
                                                         Wikipedia (2010)



                                         Vulcanos têm “sete sentidos”,
              que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos
                                            e um sexto sentido animal,
                              que é “a habilidade de sentir a presença
                                 de distúrbio em campos magnéticos”.
     Walter Robinson (Ritoku, pessoa-zen) citando Gene Roddemberry (1979)
                    em Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana (2008)




                                 3
Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece.
      (Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de
      dizer, pois fluzz já é o sopro).

      Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz
      soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para
      que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que
      nação, para que Estado?

      Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como
      remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se
      prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões,
      escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será,
      afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores
      que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo
      dos fluxos.




O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um
homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável”
(1). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando
livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou
desconstitui todos os caminhos).

Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz
votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos
anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto
ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela
viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e
agora sabes o que significam Ítacas” (2).

Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver em
processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento.



                                    4
Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve
direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram
orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por
essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que
chamamos de instituições: escolas, ensino, religiões, igrejas, corporações,
partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força, ou seja, para
impor caminhos.

A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há
nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é
preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a
força. Fluzz é o curso.

Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas
interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma rede
que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo social é
composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre um
desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com outros;
ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se isso
acontece é porque interworlds foram aniquilados.

Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro –
mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles).
Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis –
de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e
belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do
Egito... para aprender” (3).




                                     5
Deformando a rede-mãe

           Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas




A investigação das redes sociais leva-nos a uma nova hipótese
antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso for),
que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se
aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram
de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”) (4).

Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres
humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede.
Logo, sem essa rede não podemos ser humanos.

Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não
poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser humano’
– então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa que
somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa “mãe”.
Ou seja, que existe uma rede-mãe.

A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a
metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela
sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão)
redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos
transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida,
brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (5).

Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a
concepção do homo economicus simplesmente partiram desse fundamento
hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada indivíduo.
Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase uma tara –
baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na ausência de
“um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o que é pior
do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta” (6).
Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação com o bem-estar
dos outros não existe” (7) existiria, entretanto, paradoxalmente, o indivíduo
enquanto unidade isolada dos outros indivíduos. Evidentemente, diante de
tantos atos gratuitos de colaboração que praticamos e presenciamos no dia-
a-dia, essa construção intelectual só pode se revelar uma perversão. Daí a
tara individualista, tão freqüente e inadequadamente denominada de
liberalismo (econômico).


                                     6
Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos
abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...)
poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o
contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o
fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede. Como
disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo combate,
mas sim pela formação de redes” (8).

A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva deve
ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para
guerrear e a convivência fica ameaçada.

Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de
Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes
distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores,
em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de interatividade
ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem fluxos,
separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é, exatamente, o
que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de uma hipótese
religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente competitivo (ou em
parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o que isso for). Tal
hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe que possam existir
seres humanos (entes biológico-culturais) como entes (biológicos) isolados.

Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural (comportamental)
que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo dictyous – se é que se
pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ – é relacional.

Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos
(verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma
medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (9). Na ausência do
poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos dizer
que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware da
rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo simples
motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o que precisa
ser explicado é o processo de centralização, não o estado de distribuição.
São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam ser
justificados, não a convivência.

Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na presença
de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais comuns do
que se pensa – em que o software modifica o hardware (como quando




                                     7
aprendemos    uma    língua   e   alteramos   para   tanto   nossas   conexões
neuronais).

Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam programas
meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes atribuímos
atributos super-humanos), sejam programas organizacionais (que rodam
comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – como escolas,
igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições assemelhadas
com todos os seus aparatos).

No interior e no entorno dessas organizações hierárquicas o campo social é
profundamente perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado
obrigando as fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é
disciplinada sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas
monstruosas funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é
aterrorizante. Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas
predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez
não por acaso: organizações hierárquicas de seres humanos geram seres
não-humanos. Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o
diagrama (B) de Paul Baran (1964) já exposto aqui na Fig. 1.




              Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica



Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a
escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando outros



                                      8
caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso que a
primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra suméria
Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”.

Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola?
Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz
soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para
que nação, para que Estado?

Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se
misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro
que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de
programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando
anisotropias no espaço-tempo dos fluxos.

É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam-
se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos
altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa
ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante tempo
já fazemos com as religiões que professamos quando nos convertemos
depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por simpatia ou por outras
razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por razões análogas,
preferirá se identificar com uma região ou cidade: será californiano ou
cidadão-cultural de Lyon.

Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também
seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na
condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de
perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O movimento
do homeschooling já começou e avançará para o communityschooling (na
linha do unschooling). Comunidades de aprendizagem em rede tendem a
florescer e se multiplicar nos Highly Connected Worlds substituindo as
atuais burocracias do ensinamento (chamadas de escolas).

Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o
controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa
pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado-
nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para milhares
de centros com autonomia crescente), dará margem à configuração de
novos modelos glocais de governança baseados no localismo cosmopolita de
miríades de cidades como redes de comunidades interdependentes.




                                     9
É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como
remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se
tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade que
atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do terceiro
milênio.




                                   10
Perturbações no campo social

A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a
capacidade de “sentir” perturbações no campo social




Walter Robinson (2008), também conhecido por Ritoku – um zen-budista
que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo “Morte e
Renascimento de uma Mente Vulcana” (10), observa que “Vulcanos têm
“sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos e
um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a presença de
distúrbio em campos magnéticos” (11).

A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente
digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de
perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas
perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social
foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por exemplo,
basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa para constatar
com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos chefes modifica
a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos fluxos). Os fluxos se
abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros, engolidouros,
alçapões de fluxos.

Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do campo
social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders externos da
organização, transbordando para seu entorno. É por isso que uma grande
empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual não existam
outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se acreditava –
impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina o capital social
local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem exemplos à farta.

Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a capacidade
de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg diminui a sua
dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social). Vestem sempre
uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que não usam
uniformes elas se uniformizam interiormente. E até exteriormente: não raro
preferem roupas que escondem o corpo e os tons de cinza para o vestuário.
No exercício continuado da servidão voluntária, autolimitam suas
potencialidades escondendo-se na penumbra das rotinas e optando por não
se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem tudo – sobretudo o que




                                    11
delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! – para se submeter ao
sistema e aos seus chefes.

E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma
genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas
encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que,
após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a.
E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem).

Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que
se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a
daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do
campo social sob o domínio da sombra de Dario (12). O regime monstruoso
não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes vantagens militares.
Os persas foram rechaçados pelos irreverentes, insolentes e mais livres
atenienses e seus aliados na planície de Maratona (em 490). Sim, mas o
que é realmente monstruoso é que tal programa (que poderia ser chamado,
em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de Dario) – instalado quase três
milênios antes de Dario – continue a rodar... quase três milênios depois!

Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido
humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é
propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-move-com
uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo
social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto, mesmo que
seus membros não tenham consciência disso, quaisquer tentativas de
comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do conhecimento ou
ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores de corpos,
construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores de rebanhos
não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem mesmo, nas
mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são utilizadas
como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são, todos,
netavoids.

Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas quais
o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não se faz
necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau de
distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele detecta
distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois acaba
metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias no
espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que chamamos
de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar os motivos
dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa está



                                    12
errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou mesmo
um troll, nas mídias sociais).

É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso.




                                  13
Destruidores de mundos

Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para
conversar com a rede-mãe




Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele
representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na
intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do
primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –,
na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um
programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador.

Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o
homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio
Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados
em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes.
Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará –
em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma
medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces
(interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se
conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas
têm tanta dificuldade de gerar pessoas.

Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e
nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a
com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a
convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais
chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a
morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da
criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo
transformador da vida.

Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia
da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o
alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não
tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para
escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência,
obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos
vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição
da ordem).




                                    14
Nas     organizações    hierárquicas,   um    processo  intermitente    de
despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos,
separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia
ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de
contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os
setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das)
pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não
participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão,
a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como
incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na
deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem
explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um
espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem
‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos
estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos.
Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces
adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando
obstáculos à livre conversação entre pessoas.

Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam                  com    redes.
Organizações hierárquicas não podem conversar com redes.

Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas
dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas.
A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos
– ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o
que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas
organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse
acontecido.

É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais
profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes
reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma
determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços
não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não
mudam, parece que tudo continua como d’antes...

Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de
base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de
enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social
que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens
emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja
estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma



                                     15
igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das
ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar –
com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e
organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se
eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder
hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos
da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque
precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o
reconhecimento social pela sua atuação.

Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe
for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a
partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico,
seja com base no interesse político de um grupo particular que quer
manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social
não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que
construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre
privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a
privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados
que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se
universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando
satisfeitos.

Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”.
Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo
interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for
possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para
copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela.

Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada
vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em
organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na
normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade,
as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios
caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para
aprender naquelas “muitas cidades do Egito...”




                                   16
Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4



(1) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote:

<http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca>

Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia de
SENECA: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/>

(2) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum livro em
vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e Haroldo de
Campos em:

<http://www.org2.com.br/kavafis.htm>

(3) KAVÁFIS: Op. cit.

(4) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder das
conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010.

(5) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

(6) HOBBES: Op. cit.

(7) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit.

(8) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years of
microbial evolution. Los Angeles: University of California Press, 1997.

(9) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1893
views em 23/01/2011]

<http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a-
versao>

(10) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente vulcana” in
EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a ira de Kant. São
Paulo: Madras, 2010.

(11) O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a
força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus. Vulcanos não
vêem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou filosófica. Eles tratam isso
como um simples fato que insistem não ser mais incomum ou difícil de entender do
que a habilidade de ouvir ou ver” [como escreveu o criador da série Star Trek,
Gene Roddenberry (1979)]. Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo



                                        17
dizer “uma combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a
existência valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf.
RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket Books, 1979.

(12) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já morto
na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra para advertir aos
persas que jamais movam novamente uma guerra aos gregos. Depois de dar adeus
aos anciãos e de recomendar que, mesmo “em meio a desgraças, alegrem-se na
fruição do mundo... a Sombra de Dario esfuma-se no túmulo”.

(13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill
Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990.




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Anisotropias nos fluxos

  • 1. Capítulo 4 | Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos AUGUSTO DE FRANCO Vida humana e convivência social nos novos mundos altamente conectados do terceiro milênio 1
  • 2. 2
  • 3. 4 Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos Os deuses eram ventos. Arturjotaef em Numância (2010) Ama-gi é uma palavra suméria para expressar alforria... Traduzida literalmente significa “retorno à mãe” - na medida em que os ex-escravos eram “devolvidos às suas mães (i. e., libertados)”. Acredita-se ser a primeira expressão escrita do conceito de liberdade. Wikipedia (2010) Vulcanos têm “sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos e um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a presença de distúrbio em campos magnéticos”. Walter Robinson (Ritoku, pessoa-zen) citando Gene Roddemberry (1979) em Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana (2008) 3
  • 4. Não há nada a fazer. Deixem fluzz soprar para ver o que acontece. (Na verdade, dizer ‘deixem fluzz soprar’ é apenas uma maneira de dizer, pois fluzz já é o sopro). Quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para que Estado? Oh! É claro que todas essas instituições perdurarão: como remanescências. Não serão mais prevalecentes. Aliás, como já se prenuncia, elas se contaminarão mutuamente: nações serão religiões, escolas serão igrejas, Estados serão corporações... e tudo será, afinal, o que é – sempre a mesma coisa: programas verticalizadores que “rodam” na rede social instalando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. O cordobés Lucius Annaeus Sêneca (c. 3 a. E. C. – 65) escreveu que “se um homem não sabe a que porto se dirige, nenhum vento lhe será favorável” (1). Mas é o contrário. Pouco importa onde está Ítaca. É o vento, soprando livre sobre a superfície das águas, que constitui o não-caminho (ou desconstitui todos os caminhos). Como cantou Konstantinos Kaváfis, “se partires um dia rumo a Ítaca, faz votos de que o caminho seja longo, repleto de aventuras... Melhor muitos anos levares de jornada e fundeares na ilha, velho enfim, rico de quanto ganhaste no caminho, sem esperar riquezas que Ítaca te desse. Uma bela viagem deu-te Ítaca... Tu te tornaste sábio, um homem de experiência, e agora sabes o que significam Ítacas” (2). Manobrando o leme para seguir uma rota já traçada não há como viver em processo de Ítaca. É preciso deixar-se ao sabor do vento. 4
  • 5. Quando o sopro não percorre livremente os mundos é porque houve direcionamento de fluxo. Pré-cursos foram estabelecidos. Velas foram orientadas para capturar e condicionar o vento. Em geral isso é feito por essas intervenções antrópicas resultantes do congelamento de fluxos que chamamos de instituições: escolas, ensino, religiões, igrejas, corporações, partidos, nações, Estados. São artifícios para exercer a Força, ou seja, para impor caminhos. A pergunta é: quando fluzz soprar, para que forçar? Por isso se diz: não há nada a fazer (quando fluzz soprar). Não há nada a fazer significa que é preciso deixar-ir. Ter um comportamento fluzz é deixar-ir. Fluzz não é a força. Fluzz é o curso. Impor caminhos é deformar um tecido, perturbar um campo. Se pessoas interagindo com pessoas são redes, o tecido deformado é sempre uma rede que se tornou mais centralizada ou menos distribuída. Se o campo social é composto pelo emaranhado de conexões, a perturbação é sempre um desemaranhar, de sorte que alguns mundos perderão contato com outros; ou melhor, deixarão de estar sujeitos às mesmas interações. Se isso acontece é porque interworlds foram aniquilados. Quando forçamos um caminho exterminamos mundos (para nós, é claro – mas o que dá no mesmo, se não podemos mais interagir com eles). Perdemos então as oportunidades – de que fala o belo poema de Kaváfis – de “entrar pela primeira vez um porto para correr as lojas dos fenícios e belas mercancias adquirir” ou de peregrinar naquelas “muitas cidades do Egito... para aprender” (3). 5
  • 6. Deformando a rede-mãe Na ausência do poder as redes tendem a permanecer distribuídas A investigação das redes sociais leva-nos a uma nova hipótese antropológica: uma outra visão da natureza humana (seja lá o que isso for), que se afasta do que foi concebido como Homo economicus, para se aproximar – como sugeriram Christakis e Fowler – do que eles chamaram de Homo dictyous (do latim homo, “humano”, e do grego dicty, “rede”) (4). Indivíduos biológicos da espécie humana se tornam Homo dictyous (seres humanos), quando interagem. Mas quando interagem constituem rede. Logo, sem essa rede não podemos ser humanos. Em outras palavras: se, como pessoas, já somos rede – do contrário não poderia haver a realidade biológico-cultural que chamamos de ‘ser humano’ – então, para nós, humanos, no princípio era a rede. Isso significa que somos “filhos” da rede. Logo, podemos dizer que a rede é a nossa “mãe”. Ou seja, que existe uma rede-mãe. A interpretação que revela tal sentido é alegórica ou metafórica. Mas a metáfora da rede-mãe pode revelar mais coisas do que imaginamos. Ela sugere que, deixados a si mesmos, os humanos farão (ou melhor, serão) redes em vez de se engalfinharem em uma guerra de todos contra todos transformando sua vida em uma realidade “solitária, miserável, sórdida, brutal e curta”, como queria o agourento Hobbes (1651) (5). Os pensadores e os economistas que cunharam e trabalharam com a concepção do homo economicus simplesmente partiram desse fundamento hobbesiano para reificar a existência da abstração chamada indivíduo. Trata-se de uma visão da natureza humana – na verdade quase uma tara – baseada no egoísmo, para a qual, como escreveu Hobbes, na ausência de “um poder que domestique os homens... não há sociedade; e o que é pior do que tudo, [há] um medo contínuo e perigo de morte violenta” (6). Vivendo nesse “mundo cão brutal em que a preocupação com o bem-estar dos outros não existe” (7) existiria, entretanto, paradoxalmente, o indivíduo enquanto unidade isolada dos outros indivíduos. Evidentemente, diante de tantos atos gratuitos de colaboração que praticamos e presenciamos no dia- a-dia, essa construção intelectual só pode se revelar uma perversão. Daí a tara individualista, tão freqüente e inadequadamente denominada de liberalismo (econômico). 6
  • 7. Não há nenhuma evidência científica de que os seres humanos abandonados à sua própria sorte (como se pudesse haver outra sorte...) poriam fim à sua convivência. As evidências apontam justamente o contrário. Não havendo motivo para guerrear, as pessoas – seguindo o fluxo da vida – viveriam sua convivência – ou seja, viveriam em rede. Como disse Lynn Margulis (1986): “A vida não se apossa do globo pelo combate, mas sim pela formação de redes” (8). A alegação de Hobbes de que é o poder que evita a destruição coletiva deve ser invertida. Quando há poder, aí sim, é porque houve motivo para guerrear e a convivência fica ameaçada. Na ausência de um poder que as domestique (para insistir na expressão de Hobbes), pessoas interagindo com pessoas tendem a configurar redes distribuídas em pequenos grupos, só não o fazendo, em grupos maiores, em virtude da falta de condições biológicas ou tecnológicas de interatividade ampliada e à distância. Não haveria motivo para obstruírem fluxos, separarem clusters ou excluírem nodos dessas redes (que é, exatamente, o que faz o poder), a menos que queiramos lançar mão de uma hipótese religiosa para vaticinar que o homem é inerentemente competitivo (ou em parte competitivo, por sua própria natureza – seja lá o que isso for). Tal hipótese é absurda neste contexto porque pressupõe que possam existir seres humanos (entes biológico-culturais) como entes (biológicos) isolados. Mas não existe no ser humano nenhum atributo cultural (comportamental) que se possa dizer inerente. A “natureza” do Homo dictyous – se é que se pode afirmar que exista uma ‘natureza da cultura’ – é relacional. Todo poder acarreta anisotropias no espaço-tempo dos fluxos (verticalizando a rede). E é por isso que o poder se define como uma medida de não-rede (em termos de rede distribuída) (9). Na ausência do poder (centralização) a rede tende a permanecer distribuída. Podemos dizer que o bios (Basic Input-Output System) pré-gravado lá no firmware da rede-mãe não é um programa verticalizador (centralizador) pelo simples motivo de que não há qualquer razão para sê-lo. Nesse caso, o que precisa ser explicado é o processo de centralização, não o estado de distribuição. São os obstáculos colocados à livre convivência que precisam ser justificados, não a convivência. Por certo a rede-mãe não permanece com topologia distribuída na presença de programas verticalizadores. Aqui é um daqueles casos – mais comuns do que se pensa – em que o software modifica o hardware (como quando 7
  • 8. aprendemos uma língua e alteramos para tanto nossas conexões neuronais). Programas verticalizadores deformam a rede-mãe, sejam programas meméticos (como os que chamamos de deuses – quando lhes atribuímos atributos super-humanos), sejam programas organizacionais (que rodam comandos de ordem, hierarquia, disciplina e obediência – como escolas, igrejas, partidos, corporações, Estados e outras instituições assemelhadas com todos os seus aparatos). No interior e no entorno dessas organizações hierárquicas o campo social é profundamente perturbado. O espaço-tempo dos fluxos é deformado obrigando as fluições a percorrerem caminhos estranhos. A interação é disciplinada sem qualquer outra razão que a de manter tais estruturas monstruosas funcionando e se reproduzindo. A imagem da Fig. 2 é aterrorizante. Lembra à primeira vista aquelas naves de alienígenas predadores do filme de Roland Emmerich (1996) Independence Day. Talvez não por acaso: organizações hierárquicas de seres humanos geram seres não-humanos. Mas se trata apenas de uma outra maneira de representar o diagrama (B) de Paul Baran (1964) já exposto aqui na Fig. 1. Fig. 2 | Organograma de uma organização hierárquica Se o fluxo deixar de ser aprisionado, orientado, conduzido, compelido a escorrer pelas valetas cavadas para pré-traçar caminhos (eliminando outros 8
  • 9. caminhos), a rede-mãe volta à sua topologia distribuída. É curioso que a primeira expressão escrita do conceito de liberdade – a palavra suméria Ama-gi – signifique literalmente “retorno à mãe”. Por isso se diz: quando fluzz soprar, prá que ensino, prá que escola? Quando fluzz soprar, para que religião, para que igreja? Quando fluzz soprar, para que corporação, para que partido? Quando fluzz soprar, para que nação, para que Estado? Um sinal de que fluzz está soprando é que tais instituições estão se misturando e se confundindo, quer dizer, está ficando cada vez mais claro que elas são aspectos das mesmas deformações ou do mesmo tronco de programas verticalizadores que “rodam” na rede social provocando anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. É assim que as perturbações no campo social que geram religiões revelam- se as mesmas que geram nações. De sorte que, nos múltiplos mundos altamente conectados que estão emergindo, os nômades optarão por essa ou aquela nação por mera preferência individual, como há bastante tempo já fazemos com as religiões que professamos quando nos convertemos depois de adultos. Alguém preferirá ser brasileiro por simpatia ou por outras razões afetivas, empáticas ou culturais; outro, por razões análogas, preferirá se identificar com uma região ou cidade: será californiano ou cidadão-cultural de Lyon. Da mesma forma, ao renunciar a igrejas muitas pessoas retirarão também seus filhos das escolas (compreendendo que as duas coisas são – na condição de centros de deformação da rede-mãe ou de fontes de perturbação no campo social – basicamente a mesma coisa). O movimento do homeschooling já começou e avançará para o communityschooling (na linha do unschooling). Comunidades de aprendizagem em rede tendem a florescer e se multiplicar nos Highly Connected Worlds substituindo as atuais burocracias do ensinamento (chamadas de escolas). Ainda: Estados (nacionais) dividirão com corporações (transnacionais) o controle dos fluxos econômicos e políticos mundiais globalizados e essa pulverização (dos 193 exemplares atuais do modelo europeu de Estado- nação – um anacrônico fruto da guerra, da paz de Westfalia – para milhares de centros com autonomia crescente), dará margem à configuração de novos modelos glocais de governança baseados no localismo cosmopolita de miríades de cidades como redes de comunidades interdependentes. 9
  • 10. É claro que todas as velhas instituições perdurarão vestigialmente, como remanescências do mundo único. Não serão destruídas, simplesmente se tornarão inadequadas por não suportarem a fluição de alta intensidade que atravessará os interworlds dos mundos altamente conectados do terceiro milênio. 10
  • 11. Perturbações no campo social A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo social Walter Robinson (2008), também conhecido por Ritoku – um zen-budista que dá aulas de filosofia na Universidade de Indiana – escrevendo “Morte e Renascimento de uma Mente Vulcana” (10), observa que “Vulcanos têm “sete sentidos”, que incluem os cinco sentidos conhecidos pelos humanos e um sexto sentido animal, que é “a habilidade de sentir a presença de distúrbio em campos magnéticos” (11). A metáfora, se não cai como uma luva, serve aos propósitos da presente digressão. Por certo, admitir a hipótese e trabalhar com o modelo de perturbações no campo social pode ser mais fácil do que sentir essas perturbações. Não é preciso ir muito longe para saber se um campo social foi deformado: basta entrar em uma organização hierárquica; por exemplo, basta visitar uma instituição estatal ou uma grande empresa para constatar com que intensidade o “campo gravitacional” em torno dos chefes modifica a estrutura do espaço (no caso, do espaço-tempo dos fluxos). Os fluxos se abismam nesses buracos negros. Eles são sumidouros, engolidouros, alçapões de fluxos. Tão forte às vezes é a gravitatem dos hierarcas que a deformação do campo social sob sua influência alcança até mesmo os stakeholders externos da organização, transbordando para seu entorno. É por isso que uma grande empresa ou corporação, em uma pequena localidade na qual não existam outras organizações de mesmo porte, em vez de – como se acreditava – impulsionar seu desenvolvimento, faz o contrário: extermina o capital social local (quer dizer, centraliza a rede social). Existem exemplos à farta. Nas organizações altamente centralizadas, as pessoas perdem a capacidade de ser elas mesmas (à medida que cresce sua porção-borg diminui a sua dimensão de pessoa, quer dizer, sua porção ghola-social). Vestem sempre uma espécie de farda; mesmo nas organizações civis que não usam uniformes elas se uniformizam interiormente. E até exteriormente: não raro preferem roupas que escondem o corpo e os tons de cinza para o vestuário. No exercício continuado da servidão voluntária, autolimitam suas potencialidades escondendo-se na penumbra das rotinas e optando por não se aventurar na claridade do ato inédito. Fazem tudo – sobretudo o que 11
  • 12. delas não é explicitamente exigido, eis o ponto! – para se submeter ao sistema e aos seus chefes. E há uma reverência indevida, uma espécie de sujeição, quase uma genuflexão psicológica quando alguém se dirige a algumas dessas encarnações de Dario (aquele monstro Darayavahush, um rei-borg que, após perpetrar um golpe de Estado, dominou os persas entre 521 e 486 a. E. C. exigindo-lhes prosternação física à sua passagem). Ésquilo (427 a. E. C.), em Os Persas – talvez a primeira obra escrita em que se menciona a democracia dos atenienses como realidade oposta a daqueles povos que têm um senhor – descreve bem a deformação do campo social sob o domínio da sombra de Dario (12). O regime monstruoso não tinha, ao contrário do que se propagou, grandes vantagens militares. Os persas foram rechaçados pelos irreverentes, insolentes e mais livres atenienses e seus aliados na planície de Maratona (em 490). Sim, mas o que é realmente monstruoso é que tal programa (que poderia ser chamado, em homenagem a Ésquilo, de A Sombra de Dario) – instalado quase três milênios antes de Dario – continue a rodar... quase três milênios depois! Todavia, essas deformações já começam a ser sentidas. Um sexto sentido humano-social está surgindo nos Highly Connected Worlds. Não é propriamente um sentido individual. A nuvem que envolve-e-se-move-com uma pessoa conectada tem a capacidade de “sentir” perturbações no campo social. Uma rede altamente distribuída rechaçará de pronto, mesmo que seus membros não tenham consciência disso, quaisquer tentativas de comando-e-controle. Eis porque burocratas sacerdotais do conhecimento ou ensinadores, codificadores de doutrinas, aprisionadores de corpos, construtores de pirâmides, fabricantes de guerras e condutores de rebanhos não se dão muito bem em redes sociais distribuídas e, nem mesmo, nas mídias sociais, quer dizer, nas plataformas interativas que são utilizadas como ferramentas de netweaving dessas redes. Porque são, todos, netavoids. Esta é uma das razões – até agora muito pouco compreendida – pelas quais o comando-e-controle, além de não poder se exercer, também não se faz necessário em uma rede distribuída (na medida, é claro, do seu grau de distribuição). Dizer que o emaranhado “sente” quer dizer que ele detecta distorções. Mais do que isso: primeiro ele encapsula e depois acaba metabolizando as fontes de perturbações que causam anisotropias no espaço-tempo dos fluxos. E são esses incríveis seres sociais que chamamos de pessoas que sentem isso: ainda quando não saibam explicar os motivos dessa sensação, elas (as pessoas) percebem que “alguma coisa está 12
  • 13. errada” quando aparece um daqueles netavoids, ou um arrivista (ou mesmo um troll, nas mídias sociais). É a rede-mãe se defendendo. Mas ela nem sempre consegue fazer isso. 13
  • 14. Destruidores de mundos Persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe Darayavahush é um destruidor de mundos. Joseph Campbell diria que ele representa “uma força monstruosa, a força do Império, que se baseia na intenção de conquistar e comandar” (13). Como aquele Darth Vader do primeiro episódio da série que veio à luz – Uma Nova Esperança (1977) –, na decifração de Joseph Campbell (1988), ele não é uma pessoa. É um programa malicioso que se instalou na rede. Um programa verticalizador. Não, não estamos tratando propriamente da figura histórica de Dario, o homem que governou a Pérsia. Todos os hierarcas – inclusive o próprio Dario – replicam o mesmo padrão Darth Vader porque estão emaranhados em configurações deformadas da rede-mãe, com deformações semelhantes. Qualquer um, inserido em sistemas com tais configurações, manifestará – em alguma medida – características de Darayavahush. E será em alguma medida destruidor de mundos. Na verdade, aniquilará interfaces (interworlds) estreitando o fluxo das interações, impedindo que pessoas se conectem livremente com pessoas. É por isso que organizações hierárquicas têm tanta dificuldade de gerar pessoas. Sim, gerar pessoa é um processo contínuo que não se dá no nascimento e nem apenas logo após o nascimento, mas prossegue por toda a vida (a com-vida, quer dizer, aquela ‘vida social’ que se realiza quando vivemos a convivência). É algo assim como o que certas tradições espirituais chamaram de formação da alma humana: um veículo para “atravessar a morte” (em vez de tentar evitá-la, querendo ser imortal: o motivo da criação dos deuses à imagem e semelhança dos hierarcas) aceitando o fluxo transformador da vida. Para continuar com o paralelo, se a alma humana é formada com a energia da compaixão, obtida nos atos gratuitos de valorizar a vida, compartilhar o alimento, aliviar os sofrimentos e promover a liberdade, Darth Vader não tem alma porque, ao invés de formá-la, criou um veículo-substituto para escapar de fluzz: sua nave-simulacro é feita com a energia da violência, obtida nos atos instrumentais de tirar a vida, se apoderar dos recursos vitais, infligir sofrimentos e, sobretudo, eliminar caminhos (pela imposição da ordem). 14
  • 15. Nas organizações hierárquicas, um processo intermitente de despersonalização é posto em marcha quando obstruímos fluxos, separamos clusters e excluímos nodos. O resultado de tal processo poderia ser interpretado, lançando-se mão de nossa metáfora, como uma perda de contato com a rede-mãe. É por isso que nossas organizações de todos os setores têm tanta dificuldade de contar com (a adesão voluntária das) pessoas. A reclamação geral é sempre a de que “as pessoas não participam”. Imaginam alguns que o motivo dessa dificuldade seria a visão, a missão, a causa da organização ou do movimento, avaliadas então como incapazes de empolgar mais gente, porém a verdadeira razão está na deformação da rede. As pessoas sentem – mesmo quando não conseguem explicitar racionalmente seus motivos – que não lhes cabe entrar em um espaço já configurado de uma determinada maneira. Não querem ‘participar’ (tornar-se partes ou partícipes de alguma coisa) nos termos estabelecidos por outrem, senão ‘interagir’ nos seus próprios termos. Mesmo assim, persistimos erigindo organizações que não são interfaces adequadas para conversar com a rede-mãe. Porque continuamos criando obstáculos à livre conversação entre pessoas. Pessoas conversam com pessoas. Redes conversam com redes. Organizações hierárquicas não podem conversar com redes. Organizações hierárquicas (ou com alto grau de centralização) têm imensas dificuldades de provocar mudanças sociais no ambiente onde estão imersas. A rede social que existe independentemente de nossos esforços conectivos – ou que existiria se tais esforços não fossem verticalizadores; quer dizer, o que chamamos aqui de rede-mãe – não recebe bem a influência dessas organizações e continua funcionando mais ou menos como se nada tivesse acontecido. É o que ocorre quando ouvimos relatos de organizações sociais profundamente dedicadas ao trabalho comunitário. Seus dirigentes reportam que estão lutando há anos, com grande afinco, em uma determinada localidade, mas a impressão que têm é a de que seus esforços não adiantam muito. O povo não reconhece o seu papel, as relações não mudam, parece que tudo continua como d’antes... Se formos analisar as circunstâncias da atuação dessas organizações de base, veremos que elas terão um alto grau de centralização (ou um grau de enredamento insuficiente). É um problema de comunicação. A rede social que existe de fato naquela localidade não está reconhecendo as mensagens emitidas pela organização. É muito provável que essa organização esteja estruturada e funcione como uma pequena fortaleza, um castelinho, uma 15
  • 16. igrejinha... É muito provável que ela faça parte da ‘nova burocracia das ONGs’, ou seja, que tenha dono, chefe, diretoria – às vezes até familiar – com baixíssimo grau de rotatividade (menor ainda do que o dos partidos e organizações corporativas). É muito provável que seus chefes queiram se eternizar no poder (no caso, um micro-poder, é verdade, mas todo poder hierárquico, vertical, seja grande ou pequeno, se comporta mais ou menos da mesma maneira, sempre a partir do poder de excluir o outro...) porque precisem (ou imaginem que precisem) auferir o crédito ou obter o reconhecimento social pela sua atuação. Se essa organização que não consegue boa comunicação com a rede-mãe for uma corporação ou partido, será bem pior. Ela estará estruturada a partir de um impulso privatizante, seja com base no interesse econômico, seja com base no interesse político de um grupo particular que quer manobrar o coletivo maior em prol de sua própria satisfação. A rede social não-deformada é sempre pública. Mas as interfaces hierárquicas que construímos para conversar com ela ou para tentar manipulá-la são sempre privadas, mesmo quando urdimos teorias estranhas para legitimar a privatização, como aquela velha crença de que existem interesses privados que, por obra de alguma lei sócio-histórica, teriam o condão de se universalizar, quer dizer, de universalizar o seu particularismo quando satisfeitos. Só há uma maneira de conseguir uma boa comunicação com “a matriz”. Copiando-a o mais fielmente que conseguirmos; ou seja, construindo interfaces – redes voluntárias – com o maior grau de distribuição que for possível. Quanto mais distribuídas forem as redes que construirmos para copiar a rede-mãe melhor será a comunicação com ela. Nos novos mundos altamente conectados que estão emergindo ficará cada vez mais difícil recrutar, arrebanhar, enquadrar ou aprisionar pessoas em organizações erigidas com base na seleção de caminhos válidos (ou na normatização de caminhos inválidos). Desde que tenham essa possibilidade, as pessoas perfurarão os muros, abrirão continuamente seus próprios caminhos mutantes e – na sua jornada para Ítaca – peregrinarão para aprender naquelas “muitas cidades do Egito...” 16
  • 17. Anisotropias no espaço-tempo dos fluxos | 4 (1) SENECA, Lucius Annaeus (c. 3 a. E. C. – 65). Cf. Wikiquote: <http://pt.wikiquote.org/wiki/S%C3%AAneca> Não foi possível determinar a localização desta citação. Cf. a bibliografia de SENECA: <http://www.egs.edu/library/lucius-annaeus-seneca/biography/> (2) KAVÁFIS, Konstantinos (1911). Ithaca. Kaváfis não publicou nenhum livro em vida. Estão disponíveis online as traduções de José Paulo Paes e Haroldo de Campos em: <http://www.org2.com.br/kavafis.htm> (3) KAVÁFIS: Op. cit. (4) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James (2009): Connected: o poder das conexões. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010. (5) HOBBES, Thomas (1651). Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2003. (6) HOBBES: Op. cit. (7) CHRISTAKIS, Nicholas e FOWLER, James: Op. cit. (8) MARGULIS, Lynn e SAGAN, Dorion (1986). Microcosmos: four billion years of microbial evolution. Los Angeles: University of California Press, 1997. (9) Cf. FRANCO, Augusto (2009). O poder nas redes sociais. Slideshare [1893 views em 23/01/2011] <http://www.slideshare.net/augustodefranco/o-poder-nas-redes-sociais-2a- versao> (10) ROBINSON, Walter (2008). “Morte e renascimento de uma mente vulcana” in EBERL, Jason & DECKER, Kevin (2008). Star Treck e a filosofia: a ira de Kant. São Paulo: Madras, 2010. (11) O sétimo sentido seria “o senso de unicidade com Tudo, isto é, Universo, a força criativa, ou o que alguns humanos poderiam chamar de Deus. Vulcanos não vêem, contudo, isso como uma crença, seja religiosa ou filosófica. Eles tratam isso como um simples fato que insistem não ser mais incomum ou difícil de entender do que a habilidade de ouvir ou ver” [como escreveu o criador da série Star Trek, Gene Roddenberry (1979)]. Vulcanos chamam essa filosofia de “Nome”, querendo 17
  • 18. dizer “uma combinação de uma diversidade de coisas para fazer com que a existência valha a pena” (Episódio “Por trás da cortina”: The Original Series)”. Cf. RODDENBERRY, Gene (1979). The Motion Picture. New York: Pocket Books, 1979. (12) Em Os Persas, Ésquilo descreve os reveses de Xerxes, filho de Dario. Já morto na ocasião, Dario vai então aparecer na peça como uma sombra para advertir aos persas que jamais movam novamente uma guerra aos gregos. Depois de dar adeus aos anciãos e de recomendar que, mesmo “em meio a desgraças, alegrem-se na fruição do mundo... a Sombra de Dario esfuma-se no túmulo”. (13) CAMPBELL, Joseph (1988). O poder do mito (entrevistas concedidas a Bill Moyers: 1985-1986). São Paulo: Palas Athena, 1990. 18