Esta dissertação analisa os significados construídos por militantes estudantis da Faculdade de Medicina da UFRJ sobre recentes transformações na Universidade e políticas públicas de ensino superior e saúde. A pesquisa utilizou entrevistas com militantes do Centro Acadêmico Carlos Chagas e observação de suas atividades. Os resultados apontaram tensões entre defesa de propostas democratizantes e interesses da medicina, influenciados pela construção social da profissão como saber legítimo. A militância parece enfraquecida pela fragilidade nas "bande
Livro juventudes contemporâneas um mosaico de possibilidades jubra puc mg 2011
Militância Médica e Transformações na Educação
1. UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO
Adriana Arrigoni
UNIVERSIDADE, POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO MÉDICA:
CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS PELA MILITÂNCIA ESTUDANTIL DA
FACULDADE DE MEDICINA DA UFRJ
Rio de Janeiro
2012
2. Adriana Arrigoni
UNIVERSIDADE, POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO MÉDICA:
CONSTRUÇÃO DE SIGNIFICADOS PELA MILITÂNCIA ESTUDANTIL DA
FACULDADE DE MEDICINA DA UFRJ
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Educação em
Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia
Educacional para a Saúde, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Educação em
Ciências e Saúde.
Orientadora: Profª Drª Vera Helena Ferraz de Siqueira
Rio de Janeiro
Ano: 2012
3. Adriana Arrigoni
UNIVERSIDADE, POLÍTICAS PÚBLICAS E FORMAÇÃO MÉDICA: construção de
significados pela militância estudantil da Faculdade de Medicina da UFRJ
Dissertação de Mestrado apresentada ao
Programa de Pós-Graduação Educação em
Ciências e Saúde, Núcleo de Tecnologia
Educacional para a Saúde, Universidade Federal
do Rio de Janeiro, como requisito parcial à
obtenção do Título de Mestre em Educação em
Ciências e Saúde.
Aprovado em __________________________________
______________________________________________________
Profa. Dra. Vera Helena Ferraz de Siqueira – UFRJ
______________________________________________________
Profa. Dra. Vera Lucia Rabello de Castro Halfoun – UFRJ
______________________________________________________
Prof. Dr. Alexandre Brasil Carvalho da Fonseca – UFRJ
4. Dedico este trabalho a todos aqueles que
acreditam no ser humano e lutam, em cada dia de
suas vidas, por uma sociedade mais justa e
fraterna.
5. Agradecimentos
A Deus, que, ao colocar em meu caminho a oportunidade de cursar esse mestrado, me apresentou
mais uma oportunidade de superar a mim mesma;
Ao meu pai Mario (em memória), meu primeiro "herói";
À eterna compreensão e apoio incondicional de minha mãe, Maria Lúcia, durante todo o percurso
do mestrado - sem seu apoio, este trabalho não poderia existir;
À minha irmã, Glória Walkyria, por ter me apresentado ao "mundo acadêmico", me incentivado a
cursar o mestrado e acreditado na minha capacidade;
Ao meu querido companheiro Thiago, namorado e amigo, pela paciência e carinho durante esse
período, e a toda sua família, que me acolhem como um dos seus;
À minha orientadora, profª Vera Helena, pela inspiração e atenção proporcionadas durante o
mestrado;
À minha família espiritual, o Grupo Espírita de Arte Maria Angélica, pelos encontros, sorrisos,
alegrias e desafios, recheados de aprendizados, que dividimos juntos nessa jornada na Terra;
Aos militantes do centro acadêmico de medicina da UFRJ, por terem gentilmente me concedido as
entrevistas necessárias para esse estudo. À Jussara, secretária do CACC, por toda ajuda prestada
durante a pesquisa;
A todos os colegas e funcionários do NUTES com quem convivi durante esses dois anos, em
especial à minha turma de mestrado, pelos ótimos momentos vivenciados nessa caminhada;
Às colegas do grupo Gênese, em especial a Marcia, Ana Cláudia, Ana Cristina, Andréa, Marina,
Luciana e Imira, pelos encontros e conselhos valiosos;
Aos amigos da espiritualidade, que me guiaram pacientemente durante todo o "solitário" trabalho
do mestrado;
A Jesus, o maior educador que já pisou na Terra, que me inspira a um dia conquistar a honra de ser
verdadeiramente uma educadora de almas.
6. De tudo, ficaram três coisas:
A certeza de que estamos sempre começando.
A certeza de que precisamos continuar.
A certeza de que seremos
interrompidos antes de terminar.
Portanto devemos:
Fazer da interrupção um caminho novo.
Da queda um passo de dança.
Do medo, uma escada.
Do sonho, uma ponte.
Da procura, um encontro.
Fernando Pessoa.
7. Resumo
ARRIGONI, Adriana. Universidade, políticas públicas e formação médica: construção de
significados pela militância estudantil da Faculdade de Medicina da UFRJ. Rio de Janeiro, 2012.
Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional
para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
Esta pesquisa buscou analisar significados construídos por militantes estudantis da
Faculdade de Medicina da UFRJ a respeito das recentes transformações que estão ocorrendo na
Universidade. Foram investigados seus posicionamentos sobre as políticas públicas de ensino
superior (especificamente o Enem, o Reuni e o Sistema de Reserva de Vagas) e sobre as políticas
públicas de saúde, em suas repercussões sobre a formação médica promovida pela UFRJ. Trata-se
de estudo qualitativo, cujos dados foram obtidos através de seis entrevistas semi-estruturadas com
militantes atuais e recentes do Centro Acadêmico Carlos Chagas da Faculdade de Medicina da
UFRJ, bem como por observações de suas atividades e levantamento fotográfico de imagens e
textos de sua autoria, produzidos no decorrer de campanha eleitoral; como aporte teóricometodológico foram utilizadas noções dos estudos culturais e a noção de "poder" conforme
formulações foucaultianas. Como uma das contribuições do estudo, traçamos breve trajetória sobre
o movimento estudantil brasileiro e levantamento sobre as políticas públicas do ensino superior
(Enem, Reuni e Sistema de Reserva de Vagas) e sobre as políticas públicas de saúde no âmbito da
formação médica. Os resultados da pesquisa evidenciaram que apesar de fazer parte da pauta do
movimento estudantil médico discussões a respeito da defesa do SUS e a abertura da universidade
a segmentos exteriormente excluídos da mesma, nota-se nos posicionamentos dos sujeitos
pesquisados um tensionamento entre, por um lado, a defesa de propostas democratizantes, e por
outro, posturas internalistas voltadas à defesa dos próprios interesses da medicina. Temos por
hipótese que a construção histórica e social da Medicina como um saber científico e legitimado é
internalizado nos posicionamentos e nas práticas desses estudantes, por exemplo, na medida em
que se constroem como superiores a outros profissionais, o que é inclusive reforçado por alguns
setores da própria Faculdade de Medicina. É possível afirmar que a militância parece enfraquecida
pela fragilidade e certo tensionamento na defesa das “bandeiras”; pela distância entre os militantes
e os demais estudantes, pouco identificados com a política estudantil; e pela segmentação do
próprio movimento estudantil em geral, onde a pluralidade dos grupos acaba dificultando a atuação
desses militantes. Esperamos que este estudo venha a contribuir no sentido de que o movimento
estudantil se organize de modo a se aproximar dos estudantes não militantes, buscando se construir
8. de forma menos excludente; para que a Faculdade de Medicina da UFRJ reflita sobre as relações
de poder que perpassam a profissão médica e a própria Faculdade e suas implicações na formação
médica; e para que a Universidade acolha as experiências da militância estudantil como parte
importante da formação universitária para a cidadania.
PALAVRAS-CHAVE: Movimento Estudantil Médico; Políticas Públicas de Saúde; Políticas
Públicas de Ensino Superior; Identidade; Cidadania.
9. Abstract
ARRIGONI, Adriana. Universidade, políticas públicas e formação médica: construção de
significados pela militância estudantil da Faculdade de Medicina da UFRJ. Rio de Janeiro, 2012.
Dissertação (Mestrado em Educação em Ciências e Saúde) - Núcleo de Tecnologia Educacional
para a Saúde, Universidade Federal do Rio de Janeiro, Rio de Janeiro, 2012.
This research aimed at analyzing the meanings constructed by militant students from
the School of Medicine at the Federal University of Rio de Janeiro (UFRJ) concerning the
recent changes that have been occurring at the University. Their opinions on higher education
public policies (specifically Enem, Reuni and the System for Reserving Positions) and health
policies were investigated, taking into account their repercussion on the medical course at
UFRJ. In this qualitative study, six semi-structured interviews were performed with currently
enrolled or recently graduated students from Carlos Chagas Academic Center (CACC) at
UFRJ. Data was also collected through the observation of their activities and an analysis of
photographic images and texts produced by them during the election campaign. The
theoretical and methodological framework was based on Michel Foucault’s concept of
“power” and notions from cultural studies. One of the contributions brought by this study was
a brief historical account of the Brazilian student movement and an investigation of higher
education policies (specifically Enem, Reuni and the System for Reserving Positions) and
health policies within the medical undergraduate course. The results showed that the debates
on the protection of the national health system (SUS) and the accessibility of the university to
those who are excluded from it were part of the student movement’s agenda. However, it was
possible to observe in the students’ opinions a tension between the advocacy of democratizing
proposals and, on the other hand, a disposition to defend the interests of medicine. Our
hypothesis is that the historical and social construction of medicine as scientific and
legitimate knowledge is embedded in the students’ opinions and attitudes. An example can be
seen in how they create the perception of being superior to other professionals, which is also
reinforced by some sectors of the School of Medicine. Militancy seems to be weakened by the
fragile and sometimes tense advocacy of different causes; by the distance between the
militants and other students that are not interested in university politics; and by the divisions
within the student movement, where the diversity of the groups raises difficulties to the
militants’ actions. We hope that this study may encourage the student movement to
restructure their organization in a way that includes non-militant students, creating a less
10. excluding environment. Also, that the School of Medicine may consider the relations of
power present in the medical profession and within the university, as well as their
implications to the medical undergraduate course. Finally, that the university may welcome
the experiences of the students’ militancy as part of the university experience and a path to
citizenship.
KEYWORDS: Medical Student Movement; Public Policies on Health; Public Policies on
Higher Education; Identity; Citizenship.
11. Lista de Ilustrações
Figura 1: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Mural do CCS com propaganda
das chapas.
86
Figura 2: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Cartazes das chapas concorrentes.
87
Figura 3: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Lembrete da data da eleição.
89
Figura 4: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Propaganda da chapa 1 na janela
da xerox próxima ao CACC.
90
Figura 5: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Banner da chapa 1.
91
Processo eleitoral do CACC, 2010 - Folder de campanha da chapa 1 (parte
externa).
92
Processo eleitoral do CACC, 2010 - Folder de campanha da chapa 1 (parte
interna).
93
Figura 6: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Panfleto da chapa Cuidar é Preciso.
98
Figura 7: Processo eleitoral do CACC, 2010 - Banner chapa 3.
100
Processo eleitoral do CACC, 2010 - Folder de campanha da chapa 3 (parte
externa).
101
Processo eleitoral do CACC, 2010 - Folder de campanha da chapa 3 (parte
interna).
102
Figura 8: Processo eleitoral do CACC, 2011 - Panfleto da chapa "Lutar é
Preciso".
111
12. Lista de Abreviaturas e Siglas
ABEM
ADUFRJ
ANEL
ANDES
ANDIFES
CA
CACC
CCMN
CCS
CEBES
CFM
CREMERJ
COBREM
CONSUNI
CT
DA
DCE
DENEM
ECEM
ENADE
ENEM
FM
HUCFF
IFES
INEP
IPPMG
LLM
ME
MEC
MEM
MR-8
NUTES
OREM
PCdoB
PCI
PDE
Associação Brasileira de Educação Médica
Associação dos Docentes da UFRJ
Associação Nacional de Estudantes - Livre
Sindicato Nacional dos Docentes das Instituições de Ensino
Superior
Associação Nacional dos Dirigentes das Instituições Federais de
Ensino Superior
Centro Acadêmico
Centro Acadêmico Carlos Chagas (UFRJ)
Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (UFRJ)
Centro de Ciências da Saúde (UFRJ)
Centro Brasileiro de Estudos de Saúde
Conselho Federal de Medicina
Conselho Regional de Medicina do Estado do Rio de Janeiro
Congresso Brasileiro dos Estudantes de Medicina
Conselho Universitário da UFRJ
Centro de Tecnologia (UFRJ)
Diretório Acadêmico
Diretório Central dos Estudantes
Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina
Encontro Científico dos Estudantes de Medicina
Exame Nacional de Desempenho de Estudantes
Exame Nacional do Ensino Médio
Faculdade de Medicina (UFRJ)
Hospital Universitário Clementino Fraga Filho
Instituições Federais de Ensino Superior
Instituto Nacional de Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira
Instituto de Puericultura e Pediatria Martagão Gesteira
Laboratório de Linguagens e Mediações (NUTES/UFRJ)
Movimento Estudantil
Ministério da Educação
Movimento Estudantil de Medicina
Movimento Revolucionário 8 de Outubro
Núcleo de Tecnologia Educacional para a Saúde (UFRJ)
Olimpíada Regional dos Estudantes de Medicina
Partido Comunista do Brasil
Programa Curricular Interdepartamental (FM/UFRJ)
Plano de Desenvolvimento da Educação
13. PDI
PDUFRJ 2020
PEM
PSOL
PSTU
PT
PRE
REUNI
SESACs
SINTUFRJ
SISU
SUS
UJS
UFBA
UFRJ
UnB
UNE
UNEM
USP
Plano de Desenvolvimento Institucional da UFRJ
Plano Diretor 2020 da UFRJ (ou somente Plano diretor da UFRJ)
Programa de Educação Médica (FM/UFRJ)
Partido Socialismo e Liberdade
Partido Socialista dos Trabalhadores Unificado
Partido dos Trabalhadores
Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ
Programa de Apoio a Expansão e Reestruturação das
Universidades Federais
Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária
Sindicato dos Trabalhadores da UFRJ
Sistema de Seleção Unificado
Sistema Único de Saúde
União da Juventude Socialista. Tendência do PCdoB.
Universidade Federal da Bahia
Universidade Federal do Rio de Janeiro
Universidade de Brasília
União Nacional dos Estudantes
União Nacional de Estudantes de Medicina
Universidade Estadual de São Paulo
14. Sumário
INTRODUÇÃO
16
1 MOVIMENTO ESTUDANTIL: A ATUALIDADE DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR E DE SAÚDE PARA PENSAR SOBRE A
FORMAÇÃO MÉDICA
21
1.1 A trajetória do Movimento Estudantil no Brasil
23
1.1.1 O Movimento Estudantil Médico e a criação da DENEM
31
1.2 As políticas públicas de ensino superior na universidade pública: situando o
Reuni, o Sistema de Reserva de Vagas (cotas) e o Enem
37
1.2.1 O Reuni e o Plano Diretor da UFRJ
37
1.2.2 Sistema de Reserva de Vagas: a questão das cotas sociais e raciais
43
1.2.3 O Enem como forma de ingresso na UFRJ
50
1.3 Relações entre políticas públicas de saúde e formação médica
54
1.3.1 Formação médica promovida pela Faculdade de Medicina da UFRJ
64
2 REFERENCIAL TEÓRICO-METODOLÓGICO
67
2.1 Questões de identidade, cidadania e ativismo estudantil no contexto universitário
69
2.2 A questão do “poder” para Foucault
71
2.3 Utilizando noções de semiótica
75
2.4 Procedimentos metodológicos
76
3 ELEIÇÕES PARA O CACC, 2010: UMA ANÁLISE DO PROCESSO
ELEITORAL E DA MILITÂNCIA ESTUDANTIL
83
15. 3.1 O Centro Acadêmico Carlos Chagas e sua campanha eleitoral de 2010
84
3.2 Identidade política dos militantes e articulações do movimento estudantil
112
4 AS POLÍTICAS DE ENSINO SUPERIOR E A FORMAÇÃO MÉDICA
PROMOVIDA PELA UFRJ NA VISÃO DOS MILITANTES DA MEDICINA
120
4.1 O Enem como forma de ingresso
121
4.2 Sobre o Sistema de Reserva de Vagas como forma de ingresso
124
4.3 Sobre a adoção do Reuni na UFRJ
132
4.4 Sobre a formação médica promovida pela UFRJ
138
5 CONSIDERAÇÕES FINAIS
160
REFERÊNCIAS
167
APÊNDICE A - ROTEIRO DAS ENTREVISTAS
178
APÊNDICE B - TERMO DE CONSENTIMENTO LIVRE E ESCLARECIDO
179
17. 17
Nasci no Rio de Janeiro, em 1986, e me graduei em Desenho Industrial - Programação
Visual pela Universidade Estácio de Sá, em 2007. Escolhi o Desenho Industrial como curso de
graduação por identificação com as disciplinas de arte e fotografia. No último ano do curso,
estagiei na área de criação em uma agência publicitária produzindo anúncios voltados
principalmente para o setor automobilístico, sendo efetivada como diretora de arte algum tempo
depois.
Na execução dos projetos de publicidade, tive a oportunidade de aplicar alguns conceitos
de semiótica adquiridos em meus estudos. Comecei então a perceber como as imagens e os
discursos são produzidos nesse contexto e, após algum tempo, o trabalho no campo da publicidade
passou a não me satisfazer mais profissionalmente devido a seu caráter estritamente comercial, o
que me levou a buscar uma maior aproximação entre a minha formação de designer e de
programadora visual com o campo da educação.
Além dessas atividades no campo da publicidade, já vinha há cerca de cinco anos
desenvolvendo práticas educativas em uma instituição espírita cristã localizada em uma
comunidade de Vargem Grande. Nessa experiência educativa, tive oportunidade de perceber as
relações existentes entre as condições materiais de vida, a educação e a saúde, ao acompanhar de
perto crianças muito pobres, doentes e com vários outros problemas derivados dessa condição
social, como a violência, o uso de drogas, etc.
Para aprofundar meus conhecimentos em educação na área da saúde, em 2009, comecei a
frequentar o grupo de pesquisa Gênese sob a coordenação da professora Vera Helena Ferraz de
Siqueira, do Laboratório de Linguagens e Mediações do Núcleo de Tecnologia Educacional para a
Saúde da Universidade Federal do Rio de Janeiro (LLM, NUTES/UFRJ), onde tomei contato com
questões relacionadas a deslocamentos culturais, saúde e educação, a partir de variados "textos"
(filmes, vídeos educativos, sites, materiais de campanha, obras literárias, etc.) compreendidos
como formas empíricas do discurso, particularmente sobre questões concernentes a processos
sociais de exclusão relacionados a questões de gênero, sexualidade e etnia, e, em outra vertente,
voltada ao entendimento dos significados construídos por comunidades específicas de sujeitos em
contextos educativos formais e não formais, principalmente no que se refere à construção de suas
identidades como homens, mulheres, alunos, profissionais e cidadãos (SIQUEIRA, 2001).
A frequência ao grupo de estudos me permitiu entrar em contato com projetos nos quais
pude então perceber mais claramente as conexões existentes entre as diversas tecnologias de
informação trabalhadas teoricamente no LLM / NUTES e minha formação em programação
visual, onde as inovações tecnológicas se fazem presentes a todo o momento, e a relação destas
com a minha insatisfação diante do discurso consumista que circula no campo publicitário.
18. 18
A escolha do meu objeto de estudo guarda relação com uma das pesquisas do grupo
Gênese do LLM, um estudo de ROCHA et. al. (2010) sobre as semióticas de cartazes, panfletos e
banners expostas nas áreas de convivência do Centro de Ciências da Saúde (CCS) da UFRJ por
ocasião das eleições do Diretório Central dos Estudantes (DCE) desta universidade, em 2009. Na
ocasião deste processo eleitoral, travei contato com integrantes de algumas das chapas que estavam
concorrendo, além de observar a circulação desses jovens distribuindo o material de propaganda e
interagindo com outros estudantes da área da saúde.
Os textos que se destacaram na análise de discurso desse material de propaganda eleitoral
manifestavam principalmente: 1. Apoio ou repulsa à proposta de reforma universitária (Reuni) e ao
Plano Diretor da UFRJ; 2. Críticas à abertura de novos cursos de graduação; 3. Críticas às
condições materiais de estudo e de deslocamento, tanto no campus da Praia Vermelha como no da
Ilha do Fundão, relativas a alimentação, transportes, alojamentos e creches; 4. Reivindicação pela
manutenção da meia-entrada em eventos culturais da cidade e 5. Apoio ou repulsa à União
Nacional dos Estudantes (UNE) (ROCHA et. al., 2010).
As seguintes palavras de ordem foram produzidas, distribuídas e consumidas em um
espaço de tempo relativamente curto, de cerca de quinze dias de campanha eleitoral: “Não ao
monopólio das carteirinhas da UNE”; “Não vou me adaptar”; “A UFRJ não vai pagar pela crise!”;
“A Praia Vermelha é nossa! E não está à venda!”; “Não ao REUNI de LULA”; “Expansão com
QUALIDADE, UFRJ em todos os lugares!”; “Por um DCE COMBATIVO e que integre os
estudantes!”; “Na luta pelo BANDEJÃO1 do CT-CCMN2!”; “Enfrentar a crise com o novo
movimento estudantil”; “Rumo ao Congresso Nacional dos Estudantes”; “Contra as cotas: ainda há
tempo!”. Segundo Rocha et al (2010), com exceção a críticas a abertura de novos cursos, não
foram encontradas nessas semióticas das eleições para o DCE outros questionamentos à formação
profissional promovida pela UFRJ.
Sabe-se que historicamente a militância estudantil tem exercido um papel importante na
universidade, não só reivindicando os direitos dos estudantes, como também lutando por reformas
da própria universidade. Foi inclusive, como afirma Cunha (1983), a partir da luta do movimento
estudantil pela modernização do ensino, que nasceu o projeto de reforma do ensino superior de
1968, como veremos mais adiante neste trabalho.
Para Veiga Neto (2002), a universidade, como outras instituições educacionais modernas, é
um dos lugares privilegiados para a formação da cidadania, tendo como um de seus projetos
centrais a imposição de uma visão de mundo coerente ao jovem, enfatizando a racionalidade, o
1
2
Restaurante Universitário.
Centro de Tecnologia (UFRJ) - Centro de Ciências Matemáticas e da Natureza (UFRJ).
19. 19
progresso e a autonomia individual e, segundo Siqueira (2007), no Brasil as universidades públicas
são consideradas, de uma forma geral, instituições de excelência, onde a indissociabilidade do
ensino, pesquisa e extensão podem garantir uma formação privilegiada aos estudantes que
conseguem acesso às suas disputadas vagas.
Atualmente encontra-se em ebulição a discussão das políticas públicas de ensino superior
na universidade pública, como o Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), o Sistema de Reserva
de Vagas para negros, indígenas e estudantes egressos do ensino público, conhecido também como
"cotas", e o Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni). Essas políticas têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país, e de um
modo geral, dar maior oportunidade às camadas excluídas da sociedade, a fim de que tenham
acesso ao ensino superior. Inclusive, já estão presentes na UFRJ - contexto do presente estudo provocando diversos posicionamentos na comunidade acadêmica, no movimento estudantil e na
sociedade em geral.
Parto do pressuposto que essas políticas terão repercussão na formação dos estudantes de
medicina, uma vez que é plausível supor que o poder historicamente conferido à profissão médica
através de uma complexa construção social, como mostra Foucault (1979), se relaciona ao estatuto
conferido ao curso de Medicina, marcado pelo ingresso altamente seletivo de alunos
majoritariamente de classes privilegiadas, e que tal cenário, bastante evidente nos cursos de
Medicina da UFRJ, guarda relação com a construção identitária dos futuros médicos no decorrer
do seu processo formativo, influindo nas perspectivas assumidas pelos estudantes a respeito das
políticas públicas de ensino superior e de formação médica.
O objetivo geral desta pesquisa foi analisar como os militantes estudantes de medicina da
UFRJ significam as transformações que estão ocorrendo na Universidade, a partir de seus
posicionamentos sobre as políticas públicas de ensino superior e sobre as políticas públicas de
saúde, em suas repercussões sobre a formação médica promovida pela UFRJ.
Como objetivos específicos, procurei:
- Traçar breve trajetória do movimento estudantil brasileiro e levantamento sobre as
políticas públicas do ensino superior (especificamente o Enem, o Reuni e o Sistema de Reserva de
Vagas) e sobre as políticas públicas de saúde no âmbito da formação médica;
- Identificar de que modo a construção histórica e social da Medicina como um saber
científico e legitimado se reflete nos posicionamentos e nas práticas dos estudantes de medicina
militantes do Centro Acadêmico Carlos Chagas (CACC) da UFRJ;
- Analisar a construção identitária desses estudantes como militantes a partir dos
significados que atribuem às políticas de ensino superior e à formação médica, relacionando-os a
20. 20
outros discursos que circulam na sociedade - mais especificamente de docentes, reitores,
pesquisadores de universidades públicas, lideranças de movimentos sociais e do movimento
estudantil em geral.
Considerando que os discursos têm implicações nos processos de construção de identidade
e cidadania do estudante de medicina, interessa neste estudo refletir a respeito dos valores que
permeiam as práticas desses futuros profissionais da saúde.
O estudo está organizado em:
Introdução - apresentação do objeto, contexto do estudo, justificativa e objetivos.
Capítulo 1 - revisão bibliográfica com vistas a contextualizar o movimento estudantil em
geral e em particular o movimento estudantil médico, as políticas públicas de ensino superior na
universidade pública, assim como as de saúde, em sua relação com a formação médica promovida
pela UFRJ.
Capítulo 2 - referencial teórico-metodológico.
Capítulos 3 e 4 - resultados e discussão. No capítulo 3, trato da identidade política dos
militantes entrevistados, além de analisar a campanha eleitoral para o CACC, em 2010. No 4 são
discutidos os resultados referentes à visão destes estudantes a respeito das políticas de ensino
superior, das políticas de saúde e da formação médica.
Capítulo 5 - apresentação das considerações finais e, por último, as referências
bibliográficas e o apêndice.
21. 21
1 O MOVIMENTO ESTUDANTIL E A ATUALIDADE DAS POLÍTICAS
PÚBLICAS DE ENSINO SUPERIOR E DE SAÚDE PARA PENSAR SOBRE A
FORMAÇÃO MÉDICA
22. 22
Em pesquisa bibliográfica a respeito do movimento estudantil, foram encontrados trabalhos
que contribuíram especialmente para a organização deste estudo - destaco aqui as teses de Paula
(2004) e de Mesquita (2006) e a dissertação de Carvalho (2006). A tese de Paula (2004) tratou do
movimento estudantil organizado da UFRuralRJ, dirigido pelo DCE, nos últimos vinte e cinco
anos; a tese de Mesquita (2006) estudou a participação de militantes estudantis a partir de quatro
grupos que expressam a atual diversificação do movimento: o movimento estudantil clássico, as
executivas de curso, os coletivos de gênero e os coletivos de cultura; a dissertação de Carvalho
(2006) analisou a prática educativa do movimento estudantil universitário, através da relação entre
estudantes militantes e estudantes não-militantes, no contexto do neoliberalismo.
A tese de Araújo (2006) e as dissertações de Castilho (2002) e Lopes (2004) 3, embora não
tenham sido consideradas neste estudo, também contribuíram para conhecer como a temática do
movimento estudantil vem sendo abordada em pesquisas na área da Educação.
O livro "O poder jovem", de Poerner (2004), publicação citada na maioria das referências
bibliográficas de trabalhos referentes ao movimento estudantil, foi importante para a construção da
primeira seção deste capítulo, pois oferece uma perspectiva do movimento estudantil desde o
Brasil Colônia até o governo de Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2010), apontando algumas das
principais lutas e conquistas do movimento.
Foram de grande valia nesta pesquisa os trabalhos de Cunha (1989; 1983; 1988), que
versam a respeito da universidade brasileira desde sua criação até os dias de hoje. O autor
contextualiza politicamente o percurso da universidade, ampliando desse modo o entendimento a
respeito da sua construção e desafios impostos ao longo dos anos à instituição universitária.
Realizando uma busca a respeito do movimento estudantil médico, a partir do material de
movimento estudantil levantado, foram encontrados somente dois estudos que abordavam essa
temática: o trabalho de conclusão de curso de Ballarotti (2010) e a já mencionada tese de Mesquita
(2006). Ressalto que esta busca não foi exaustiva, sendo possível, portanto, que existam outros
trabalhos a respeito dessa temática que não foram contemplados neste estudo.
Sobre a revisão bibliográfica a respeito das políticas públicas de ensino superior, entendo
que esta tenha sido fundamental para conhecer os objetivos de cada uma dessas políticas e ainda
traçar um panorama dos principais posicionamentos da comunidade acadêmica - docentes, reitores,
pesquisadores e diferentes correntes do movimento estudantil.
Destaco aqui as buscas no portal da UFRJ a respeito dessas políticas na referida
universidade e a consulta a algumas publicações da UFRJ, tais como os jornais da UFRJ, da
3
As teses de Paula (2004), e Araújo (2006); e as dissertações de Carvalho (2006), Castilho (2002) e Lopes
(2004) são na área da Educação. A tese de Mesquita é na área da Psicologia Social.
23. 23
Associação dos Docentes da UFRJ (ADUFRJ) e do Sindicato dos Trabalhadores da UFRJ
(SINTUFRJ). A busca em artigos e periódicos que tratam das políticas públicas de ensino superior,
embora não tenha sido exaustiva, revelou que a temática das cotas é bastante ampla, ultrapassando
os limites da universidade e das políticas de ensino superior. Desse modo, busquei selecionar
somente o material que viesse ao encontro do foco do presente trabalho.
Destaco ainda a importância da consulta a alguns jornais disponíveis online, como p. ex. a
Folha de São Paulo e O Estado de São Paulo, bem como a sites, como o da Associação Nacional
dos Dirigentes das Instituições Federais de Ensino Superior (ANDIFES), que complementaram a
pesquisa e contribuíram com a construção de um panorama, ainda que limitado, sobre as políticas
de ensino superior.
Na revisão bibliográfica a respeito das políticas públicas de saúde e de formação médica,
destaco o trabalho de Oliveira et al (2008), que pontuou algumas das principais políticas públicas
em saúde no âmbito da formação médica, e a série de artigos a respeito da temática do Ato
Médico, promovida pelo periódico Ciência e Saúde Coletiva. Dou relevo também à busca no portal
do Ministério da Saúde, a fim de obter informações sobre as políticas de saúde que se
relacionavam com a formação médica.
No âmbito da formação médica promovida pela UFRJ, foi de grande importância o
trabalho de Rocha (2003), permitindo conhecer as principais mudanças curriculares na Faculdade
de Medicina da UFRJ nos últimos anos, bem como as falas esclarecedoras da profª Vera Halfoun4
e do prof Sérgio Zaidhaft5, haja vista a escassez de publicações acessíveis que tratassem dessa
temática.
1.1 A trajetória do Movimento Estudantil no Brasil
O movimento estudantil sempre teve como uma de suas principais bandeiras a melhoria da
educação devido a sua composição de estudantes que vivenciavam em seus cotidianos os
4
Vera Lucia Rabello de Castro Halfoun é professora titular da Faculdade de Medicina da UFRJ. Foi diretora da
Faculdade de Medicina da UFRJ (1990-1997); decana do Centro de Ciências da Saúde da UFRJ (1994-1998);
coordenadora do núcleo macro-regional RJ/ES da Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM) (19941998); representante das Universidades no Conselho Municipal de Saúde (1994-1998) - conforme consta em seu
currículo Lattes. Disponível em: http://lattes.cnpq.br/7365168014580291. Acesso em: 25 jan. 2012.
5
Sergio Zaidhaft é diretor adjunto da graduação da Faculdade de Medicina da UFRJ; docente do departamento
de Psiquiatria e Medicina Legal da UFRJ; coordenador do Programa de Educação Médica (PEM) da Faculdade
de Medicina da UFRJ. Além disso, participa da Comissão de Bioética do Hospital Clementino Fraga Filho
(HUCFF) e do Programa de Apoio ao Estudante da Faculdade de Medicina - na ocasião da entrevista
(ZAIDHAFT, 2010).
24. 24
problemas educacionais. Foi a partir das lutas do movimento estudantil em Córdoba6, na
Argentina, em 1918, que a reivindicação por uma reforma universitária destacou-se nas pautas do
movimento estudantil brasileiro.
Pode-se também relacionar o movimento estudantil às lutas políticas de cada época, como
p. ex. às reivindicações por políticas públicas para a juventude, por maior participação do
movimento em instâncias governamentais, etc. Destaca-se ainda, na história do movimento
estudantil, a relação de cumplicidade deste com os demais movimentos sociais, como p. ex.
movimentos de trabalhadores camponeses, sem terras, negros, indígenas, mulheres, homossexuais,
etc. (MESQUITA, 2006).
Segundo Poerner (2004), a atuação do movimento estudantil vem de longe no Brasil e foi
marcada por diferentes lutas. O autor afirma que a primeira manifestação estudantil que se tem
conhecimento em nosso país deu-se em 1710, quando ocorreu uma invasão de soldados franceses
liderados por Jean François Duclerc no Rio de Janeiro. Também houve participação estudantil na
Inconfidência Mineira, como p. ex. do jovem mineiro aristocrata, recém-formado em Portugal,
José Álvares Maciel, que foi um dos ideólogos do movimento, junto aos inconfidentes. Além
destes, houve ainda outros episódios em que o movimento estudantil esteve envolvido na época,
como a Conjuração Baiana ou dos Alfaiates, de 1798, e na Revolução Republicana de 1817.
Poerner (2004) destaca neste período a participação dos estudantes no "plano ideológico
dos movimentos revolucionários brasileiros anteriores à independência" (p. 60), pois foram os
estudantes que saíram do país para estudar na Europa que trouxeram as idéias de filósofos como
Voltaire, Rousseau e Montesquieu para o Brasil.
Cabe lembrar aqui que, nesse período, de acordo com Cunha (1989), o ensino no Brasil era
ministrado nos colégios jesuítas, que funcionaram no país de 1550 até 1759. O ensino superior
iniciou-se somente em 1808, com as cadeiras de anatomia (no Rio de Janeiro) e de cirurgia (no Rio
de Janeiro e na Bahia), fundadas por D. João VI. Em 1810 foi criada a Academia Real Militar,
onde eram ministrados conhecimentos de engenharia - posteriormente a engenharia viria a ganhar
curso próprio, independente da Academia, em 1874, com a criação da Escola Politécnica. Em
1827, foram criados os cursos jurídicos, em Olinda e São Paulo, mantendo-se durante um longo
período de tempo a existência de somente três áreas no ensino superior brasileiro: medicina, direito
e engenharia.
6
Refiro-me aqui à Carta Magna da Reforma Universitária, documento elaborado no primeiro Congresso
realizado em Córdoba por ocasião do nascimento da Federação Universitária Argentina, em 1918 (CUNHA,
1983, p. 210).
25. 25
Em 1832, as Academias de Medicina de ambos os estados (RJ e BA) foram transformadas
em Faculdades, abrangendo também os cursos de farmácia e obstetrícia. Os jovens que passaram a
frequentar tais cursos logo se engajaram em "campanhas estudantis" pela abolição da escravatura e
pela proclamação da república, o que na opinião de Poerner (2004) foi mais um passo para a
sistematização do movimento estudantil. Ainda há indícios da participação estudantil individual na
Revolução Farroupilha e na Sabinada, sendo esta última protagonizada pelo docente da Faculdade
de Medicina da Bahia Francisco Sabino Vieira. Alguns anos depois, em 1852, um grupo de
acadêmicos da mesma faculdade baiana viria a fundar "a primeira associação estudantil destinada a
alforriar escravos, a Sociedade Dois de Julho" (POERNER, 2004, p. 63).
Na Primeira República, no início do século XX, a participação dos estudantes nos conflitos
sociais se dava de diversas formas, "desde manifestações de rua contra aumentos dos preços dos
bondes, até aquelas que diziam respeito à própria dominação das oligarquias, como a campanha
pelo voto secreto" (CUNHA, 1989, p. 192). Nesta fase, destacam-se a fundação da Federação de
Estudantes Brasileiros, em 1901 - que não durou muito tempo - e as ações da juventude militar
estudantil na Revolta da Vacina, na Revolta dos 18 do Forte e na Revolução de 1930.
Poerner classifica a atuação dos jovens nesse período como "dispersa" e "caótica", devido à
falta de organização do movimento estudantil e "ausência de plataformas de luta" que motivassem
os estudantes. Segundo o autor, todas as ações anteriores à UNE tinham caráter transitório,
"visando apenas a problemas específicos e determinados, em função de cuja duração nasciam e
morriam" (p. 119).
O mencionado autor acrescenta que o outro problema das organizações que precederam a
UNE era o da regionalidade, o que pode ser exemplificado pela existência da Federação de
Estudantes Brasileiros, da Sociedade Filomática Paulista, do Centro de Acadêmicos Carioca, da
Liga Acadêmica de São Paulo e da Liga Paulista Pró-Constituinte. Sem uma entidade que os
representasse, os estudantes participavam individualmente de entidades como a Liga Nacionalista
de Olavo Bilac, a Liga do Voto Secreto, de Monteiro Lobato, a Aliança Nacional Libertadora,
dentre outras.
Percebendo a necessidade de ter uma representação discente que agregasse seus ideais de
maneira orgânica e que não fosse marcada pelas características da transitoriedade, da regionalidade
e da especificidade, em 1937, no governo de Getúlio Vargas, os estudantes organizam o 1º
Conselho Nacional dos Estudantes, realizado na Casa do Estudante do Brasil, nascendo na ocasião
a União Nacional dos Estudantes (UNE) (POERNER, 2004).
O Conselho foi instalado pelo ministro da educação e, na ocasião, foi aprovada uma
proposta do Diretório Central de Estudantes de Minas Gerais para vedar a discussão política na
26. 26
entidade recém-criada - o que durou pouco tempo, pois, alguns anos depois, o caráter político da
entidade já era percebido nitidamente em suas lutas e reivindicações.
Em 1938, houve novamente reunião do conselho, porém desta vez já denominado 2º
Congresso Nacional dos Estudantes. Foi apresentada uma proposta - posteriormente aprovada que:
Continha todo um projeto político educacional que em nada coincidia com o da política
autoritária, pois defendia a universidade aberta a todos; a diminuição das 'elevadíssimas e
proibitivas' taxas de exame e de matrícula, as quais faziam a seleção pelo nível de renda e
'não pelas capacidades comprovadas cientificamente'; a vigência nas universidades do
'exercício das liberdades de pensamento, de cátedra, de imprensa, de crítica e de tribuna'; o
rompimento da dependência da universidade diante do Estado, propondo a eleição do
reitor e dos diretores das escolas pelos corpos docente e discente, representados no
conselho universitário; a livre associação dos estudantes dentro da universidade, com
representação paritária nos conselhos universitário e técnico-administrativo; a elaboração
dos currículos por comissões de professores especializados e representantes estudantis; o
aproveitamento dos estudantes mais capazes em cargos de monitores e estagiários, a
serem criados (CUNHA, 1989, p. 323).
Vale lembrar que no início da era Vargas, em 1930, havia três universidades no país: a
Universidade do Rio de Janeiro, criada em 1920; a Universidade de Minas Gerais, criada em 1927;
e a Escola de Engenharia de Porto Alegre, criada em 1896. No final da era Vargas, em 45, eram
cinco as universidades: a Universidade do Brasil (antiga Universidade do Rio de Janeiro); a
Universidade de Porto Alegre (antiga Escola de Engenharia de Porto Alegre); a Universidade de
São Paulo, criada em 1934; as Faculdades Católicas, criadas em 1940 (mais tarde esta passaria a se
chamar Universidade Católica e depois Pontifícia Universidade Católica); Universidade do Distrito
Federal, criada em 1935 e depois absorvida pela Universidade do Brasil. Esta última, em 1937,
abrangia quinze escolas superiores e catorze institutos. Segundo Cunha (1989, p. 307), "suas
escolas passaram a ter maior prestígio, todas elas qualificadas de nacionais".
Em 1945, com o fim da Guerra, a deposição de Vargas e a instauração do regime liberaldemocrático no país, as entidades estudantis constituíram uma força política crescente,
desenvolvendo um "projeto de reforma universitária, expressão surgida pela primeira vez na
proposta mesma da criação da UNE, em 1938, e que viria a se ampliar nas três décadas
subsequentes" (CUNHA, 1989, p. 328).
Para Mesquita (2006), os anos 60 foram marcados pela atuação do movimento estudantil
por uma universidade mais justa. O autor enfatiza que as discussões referentes à problemática da
universidade estavam presentes no cotidiano dos estudantes:
A vida universitária em si era parte constitutiva da vida destes, permitindo, assim, que a
identidade estudantil fosse cada vez mais forte. A universidade, portanto, era um lugar de
intensa socialização política: a formação e luta pela reforma universitária uniam-se às
lutas mais amplas, à visão de um projeto nacionalista e desenvolvimentista, à experiência
do poder nas mãos das camadas de esquerda com Goulart. Nessa conjuntura, os
27. 27
estudantes, de fato, se colocavam como sujeitos protagonistas, como sujeitos históricos
importantes (MESQUITA, 2006, p. 71).
Conforme disse anteriormente, Cunha (1983) aponta o movimento estudantil como
responsável pelo nascimento do projeto de reforma no ensino superior. Segundo o autor, somente
mais tarde alguns professores integraram o movimento e, na medida em que ele se intensificava, "o
Estado passou a incorporar essa bandeira, acabando, depois de 1964, por arrebatá-la
completamente, redefinindo o seu sentido para torná-lo mero apoio à modernização do ensino
superior" (p. 207).
Em 1960, a UNE promoveu o 1º Seminário Nacional de Reforma Universitária. O
regimento do seminário foi aprovado com os seguintes tópicos de discussão: (1) o exame
vestibular; o programa e o currículo; sistema de aprovação; (2) administração da universidade;
participação do corpo discente na administração da universidade; a autonomia da universidade; (3)
condições de funcionamento: instalações, salas de aula, etc.; pesquisa; (4) realidade brasileira;
mercado de trabalho; (5) corpo docente; cátedra vitalícia; tempo integral; (6) função da
universidade. Estes temas foram votados em plenária e somente o número 3 não foi aprovado.
Posteriormente, os estudantes entenderiam que a autonomia universitária somente seria positiva
quando a universidade estivesse democratizada, ou seja, contasse com a participação estudantil,
pois, caso contrário, o reitor teria plenos poderes de decisão sobre a universidade (CUNHA, 1983).
Da discussão a respeito dos cinco temas restantes, nasceu a "Carta da Bahia" 7, contendo
segundo Poerner (2004) três títulos básicos: "A realidade brasileira"; "A universidade no Brasil"; e
"A reforma universitária". O documento propunha uma "luta pela democratização do ensino, com
acesso de todos à educação, em todos os graus; a abertura da universidade ao povo, mediante a
criação de cursos acessíveis a todos"; e "a condução dos universitários a uma atuação política em
defesa dos direitos operários" (p. 176).
Em 1962, ocorre o II Seminário Nacional de Reforma Universitária, em Curitiba, Paraná.
O tema do seminário era a "análise da universidade": (1) do ponto de vista estrutural; (2) do ponto
de vista regional; (3) do ponto de vista cultural; (4) do ponto de vista político-social; (5) da
teorização da universidade. Os relatórios produzidos a partir desses temas, juntos, formavam a
"Carta do Paraná" (CUNHA, 1983).
Como a Carta da Bahia, a Carta do Paraná se dividiu em três partes: "Fundamentação
teórica da reforma universitária”; “Análise crítica da universidade brasileira"; e "Síntese final:
7
Cunha (1983) destaca aqui a influência da Carta de Córdoba no movimento estudantil, o que pode ser notado
inclusive pela adoção do termo "carta" seguido do nome do local onde foi realizado o seminário - no caso o
1º Seminário de Reforma Universitária foi realizado em Salvador, BA.
28. 28
esquema tático de luta pela reforma universitária", aprofundando, segundo Poerner (2004), as
propostas da Carta da Bahia.
Nesse período, as ações estudantis concentravam-se principalmente na UNE. Em 1964,
com o golpe militar, o governo de João Goulart foi derrubado e a sede da UNE, invadida, saqueada
e incendiada. Com o Brasil tomado pelos militares, as Forças Armadas utilizavam a opressão para
rebater qualquer pensamento e ação contrários ao regime autoritário e, dentre as primeiras medidas
tomadas pelo novo governo, destaca-se a Lei nº 4.464, ou Lei Suplicy de Lacerda, que substituía a
UNE pela Direção Nacional dos Estudantes e as Uniões Estaduais pelos Diretórios Estaduais8.
Essa lei, segundo Poerner (2004), visava "a extinção da UNE", pois tirava a autonomia do
movimento, tornando-o um mero "apêndice" do Ministério da Educação, dependente do órgão para
verbas e orientação.
Em 1966 a Faculdade Nacional de Medicina da UFRJ é invadida pelos militares,
acontecimento que ficou conhecido como o "Massacre da Praia Vermelha". No momento da
invasão, estudantes de diversos cursos da Universidade do Brasil encontravam-se reunidos na
Faculdade, discutindo as implicações que a Lei Suplicy de Lacerda acarretaria ao movimento
estudantil e à sociedade (UFRJ, 2006b).
O ano de 1968 foi marcado no mundo todo por rebeliões estudantis que colocaram em
cheque a ordem constituída (PAULA, 2004). Destaco aqui a rebelião que ocorreu na França, em
maio de 1968, onde o movimento estudantil francês iniciou um protesto, que resultou na
"paralisação da França" e na mobilização de seis milhões de grevistas (PIACENTINI, 2008).
No Brasil, os estudantes eram o setor popular mais organizado e com “maior poder de
mobilização”, o que fez com que o governo investisse contra o movimento estudantil. Ainda em
68, os estudantes que participavam do 30º Congresso da UNE, clandestinamente em Ibiúna, São
Paulo, foram presos (PAULA, 2004). Neste mesmo ano, houve a Reforma Universitária no Brasil,
que, no entendimento de Martins (2009), de certa maneira modernizou uma parte significativa das
universidades públicas, criando-se condições para articulação do ensino e da pesquisa; abolição das
cátedras vitalícias; introdução do regime departamental; e institucionalização da carreira
acadêmica. Segundo o referido autor, "para atender a esse dispositivo, criou-se uma política
nacional de pós-graduação, expressa nos planos nacionais de pós-graduação e conduzida de forma
eficiente pelas agências de fomento do governo federal" (p. 16). Por outro lado, a Reforma
contribuiu para um ensino privado "estruturado nos moldes de empresas educacionais voltadas
8
Em 1967, Castelo Branco, através do decreto-lei 228, viria a extinguir todas as organizações estudantis,
inclusive a que tinha sido criada através da lei Suplicy, o Diretório Nacional dos Estudantes.
29. 29
para a obtenção de lucro econômico e para o rápido atendimento de demandas do mercado
educacional" (p. 17).
Uma das mudanças decorrentes da Reforma Universitária de 1968 foi a transferência da
Escola de Medicina da Praia Vermelha para a Ilha do Fundão no início da década de 70 (ROCHA,
2003). A Faculdade de Medicina da UFRJ teve seu prédio neoclássico na Praia Vermelha
demolido em 1976 e, em 1978, houve a implantação do Hospital Universitário Clementino Fraga
Filho na Ilha do Fundão.
Voltando a 1968, outro importante fato ocorrido neste ano foi o Ato Institucional nº 5.
Segundo Paula (2004), o AI-5 esgotou as possibilidades de organização do movimento estudantil
no Brasil. As principais lideranças do movimento foram presas ou optaram pela luta armada. Entre
1969 e 1974, a tortura foi prática comum de controle político, procurando inibir e intimidar a
população.
No final dos anos 1970, o movimento estudantil retornou às ruas, depois de quase uma
década de ausência. Segundo Mesquita (2006, p. 82), em um primeiro momento, as manifestações
se limitavam "ao campus e às reivindicações de questões internas, como a melhoria da
infraestrutura universitária, o fim do autoritarismo no interior da universidade, etc.". Depois,
passaram à luta pela democracia e pela "reorganização do próprio movimento estudantil". Os
estudantes começam a se organizar juntamente com outros grupos, outros segmentos da sociedade,
por elementos que permitissem essa abertura democrática e fim da ditadura, como a anistia de
presos políticos e a realização de eleições para a escolha de representantes. Mesquita (2006) relata
que é dessa maneira que "o movimento estudantil assume a bandeira do movimento das 'Diretas
Já!', que comunicava à sociedade seu desejo de eleições livres" (p. 82).
O mencionado autor ressalta a capacidade do movimento estudantil de amplo diálogo e
interlocução com os mais variados segmentos sociais. Entende que sempre existiu uma articulação
de projetos comuns entre o movimento estudantil e setores populares da sociedade, mas destaca o
impulso que a abertura democrática dá nas relações entre os movimentos sociais e o movimento
estudantil. Mais fortalecidos, ambos conseguem "criar uma grande correlação de forças frente às
questões colocadas para o conjunto da sociedade que desenhava um cenário propício para a
construção de um novo projeto de desenvolvimento para o país" (MESQUITA, 2006, p. 83).
Hoje o movimento estudantil configura-se de outro modo, como a atual sociedade também,
diferentemente da época da ditadura e das lutas que mobilizaram os estudantes até meados dos
anos 80. Abramo (1997) relata a insatisfação de alguns atores políticos, que se queixam da
distância dos jovens da política, o que para a autora "reflete, em primeiro plano, uma preocupação
30. 30
com a renovação de quadros no interior dessas organizações, mais do que em tratar e incorporar
temas levantados pelos próprios jovens." Acrescenta ainda que:
Essa preocupação vem acompanhada de um diagnóstico que identifica nos jovens um
desinteresse pela política e de um modo mais geral pelas questões sociais, como resultado
da acentuação do individualismo e do pragmatismo que se afirmam como tendências
sociais crescentes, tornando-os “pré-políticos” ou quase que inevitavelmente “a-políticos”
(p. 27).
Mesquita (2008) percebe o movimento estudantil hoje ora em sua forma mais "tradicional"
- como p. ex. a UNE e as Executivas de Curso9 - ora "realizando um movimento de incorporação
de novas temáticas e pautas em seu interior", abrindo-se para o que o "cotidiano estudantil" traz de
novo. Porém essas pautas só surgem quando reivindicadas pelos próprios estudantes interessados
nas mesmas, pois, segundo o autor, "as entidades por si só já não conseguem ser espaços onde as
expressões das demandas estudantis sejam discutidas e pautadas" (p. 106). O autor refere-se aqui às
pautas levantadas por determinados segmentos da sociedade, como p. ex. mulheres (coletivos
feministas) e gays/lésbicas/bissexuais/transgêneros (coletivos GLBTs), dentre outros.
Uma das conclusões do trabalho de Paula (2004) apontou no sentido dessa nova articulação
do movimento estudantil, destacando "a multiplicidade das organizações estudantis que emergem
no panorama da Universidade e da sociedade mais ampla e que apontam para mudanças
significativas na participação social desse segmento juvenil" (p. 302). Na opinião de Groppo et al
(2008), "boa parte das mobilizações e ações estudantis e juvenis não passa mais pelos partidos e
pela política institucional, mas sim pelo voluntariado, movimentos culturais e artísticos, revoltas
sócio-políticas contra problemas sócio-econômicos pontuais" (p. 25).
Consideremos, portanto, que o movimento estudantil atua não somente no âmbito da União
Nacional dos Estudantes, mas também em outros espaços de atuação desses estudantes, como os
Diretórios Centrais Acadêmicos10 (DCEs), os Centros ou Diretórios Acadêmicos11 (CAs / DAs) que podem ser independentes da UNE; a Assembléia Nacional dos Estudantes - Livre12 (ANEL);
os coletivos, ligas e organizações em geral (partidárias ou não), nas quais militam grupos
estudantis; as executivas de curso; os diversos encontros científicos, congressos, etc., dos cursos
superiores; as associações e sindicatos como p. ex. a ANDIFES e o Sindicato Nacional dos
9
Executiva de curso é a entidade estudantil responsável por organizar encontros e atividades de interesse de um
determinado curso superior. A executiva do curso médico é denominada Direção Executiva Nacional de
Medicina (DENEM).
10
Diretório Central Acadêmico é a entidade representativa dos estudantes de graduação de uma universidade.
11
Diretório Acadêmico ou Centro Acadêmico é a entidade representativa de um curso de graduação de uma
universidade.
12
A ANEL é uma entidade fundada em 2009, por estudantes brasileiros, com o intuito de ser uma alternativa à
UNE: "a ANEL é um acúmulo de um setor do movimento que desde 2003 rompe com a União Nacional dos
Estudantes e declara-se independente dos governos, de suas políticas e de seu dinheiro" (MAGALHÃES, s/d).
31. 31
Docentes das Instituições de Ensino Superior (ANDES); e conforme aponta Mesquita (2006), os
movimentos sociais diversos, como p. ex. movimentos ligados à lutas étnico-raciais; de gênero;
sem-terras; etc.
No âmbito da UFRJ, os principais espaços de atuação do movimento estudantil são o DCE
Mário Prata e os Centros Acadêmicos de cada curso de graduação. O CACC da Medicina está
incluído nesse contexto, e, na sessão a seguir, poderemos compreender melhor o cenário em que
atua ao contextualizar o movimento estudantil médico - lembrando que existem outros espaços na
UFRJ onde nota-se a participação desses estudantes, como p. ex. em fóruns e conselhos
deliberativos das faculdades e da universidade, ADUFRJ e SINTUFRJ, dentre outras organizações.
1.1.1 O Movimento Estudantil Médico e a criação da DENEM
Busco nesta seção traçar um panorama das principais ações do movimento estudantil
médico, destacando a importância da Direção Executiva Nacional dos Estudantes de Medicina
(DENEM) para o movimento estudantil médico. Poucos indícios de atuação do movimento
estudantil médico foram encontrados anteriormente ao período da DENEM, embora entenda que
estes esforços existiram, pois, como visto na seção anterior, a Medicina foi o primeiro curso
superior do país.
A DENEM é a executiva do curso de medicina e atualmente é o espaço de atuação mais
expressiva dos estudantes militantes da área médica. Foi criada em 1986, mesmo ano da
8ª Conferência Nacional em Saúde. De acordo com Ballarotti (2010), embora somente em 1986
tenha sido inaugurado esse espaço oficial do movimento estudantil médico, desde a década de 40
já havia debates entre os estudantes de medicina para a criação de uma entidade representativa da
categoria. Em 1950, na Semana Brasileira de Debates Científicos, tal desejo foi concretizado com a
formação da União Nacional de Estudantes de Medicina (UNEM). Devido à ditadura, em 1960 a
UNEM foi extinta.
Após quase dez anos da extinção da UNEM, em 1969 é realizado o primeiro Encontro
Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM), controlado pelo MEC. Mais adiante, o ECEM se
tornaria independente do MEC e seria palco de importantes discussões do movimento estudantil
médico (BALLAROTTI, 2010).
Segundo Ballarotti (2010), na década de 70, reprimido pela ditadura, o movimento
estudantil médico articulava-se basicamente nas Semanas de Estudos sobre Saúde Comunitária
(SESACs), onde ocorriam discussões a respeito da democratização do país e contra a privatização
da saúde. Em meados da década de 1970, se organiza o Movimento de Reforma Sanitária,
articulado ao Centro Brasileiro de Estudos de Saúde (CEBES). Inspirados na Reforma Sanitária
32. 32
Italiana, profissionais, intelectuais e lideranças políticas da área da saúde buscavam democratizar a
saúde. Segundo a autora, em 1976, os SESACs se esvaziam por conta da criação de outros espaços
como o CEBES, sindicatos, Associação Nacional dos Médicos Residentes, e ainda o ECEM. Neste
mesmo ano, o ECEM já é realizado pelos estudantes e não mais pelo MEC. No encontro ocorrem
debates sobre os determinantes sociais em saúde, necessidades de mudanças na estrutura social e
econômica da época, dentre outras, acabando por se consolidar o ECEM como o "maior encontro
anual dos estudantes de medicina".
Nos anos 1980, o movimento estudantil médico começa a participar de movimentos que
levaram posteriormente às Ações Integradas de Saúde (AIS) em 1984, e que mais adiante levaram
ao desenvolvimento do Sistema Unificado e Descentralizado de Saúde (SUDS). No período de
transição final da ditadura para república, o movimento estudantil médico se aproxima cada vez
mais dos ideais da Reforma Sanitária, através da participação em núcleos de estudos sobre
educação médica e saúde pública (BALLAROTTI, 2010, p. 21).
Como já foi dito, em 1986 ocorreu a histórica 8ª Conferência Nacional em Saúde. Houve
eleição na UNE, para ser decidido quem seriam os estudantes delegados para a 8ª Conferência
Nacional em Saúde, e foram escolhidos 5 estudantes de medicina, que representaram a categoria na
conferência. Ainda nesse ano, no Congresso da UNE, os militantes de medicina perceberam que
não tinham o espaço de discussão que gostariam na entidade (liderada pelo PC do B), decidindo
assim elaborar uma proposta de criação de uma Federação Nacional dos Estudantes de Medicina.
A proposta foi levada ao ECEM, em 1986, onde foi aprovada a DENEM. Grande parte do
movimento estudantil entendeu que esse tinha sido um rompimento do movimento estudantil
médico com a UNE, porém os militantes de medicina afirmam que não era essa a intenção
(BALLAROTTI, 2010, p. 31).
Segundo um militante da DENEM, a relação da Executiva com a UNE "é de crítica, de
disputa; às vezes, de parceria" (apud Mesquita, 2006). Para o estudante, a DENEM entende a UNE
como um "movimento de juventudes partidárias", que trazem as questões dos grandes partidos
políticos do Brasil para dentro da entidade. Já na DENEM, embora os estudantes possuam filiação
partidária, não trazem a lógica do partido para dentro da DENEM. Mesquita (2006) comenta que a
tensão entre a UNE e algumas executivas de curso já resultou em rompimentos com a entidade,
como foi o caso da Executiva Nacional dos Estudantes do curso de Comunicação Social
(ENECOS).
Ao questionar-se a respeito da organização no movimento estudantil, Barbosa (2008)
aponta o "movimento de área" como uma possível forma de reorganização do movimento
estudantil, "uma vez que vem conseguindo congregar estudantes por áreas de estudo para sustentar
33. 33
discussões relativas às suas áreas, além de discussões mais gerais em uma estrutura possível e não
em uma estrutura gigante que acabe inviabilizando o aprofundamento das discussões" (p. 64).
Mesquita (2006) lembra que as executivas de curso
Têm revelado um importante papel na construção de novos espaços de participação no
movimento estudantil, rearticulando-o e agregando estudantes que, de outra forma, não se
organizariam. Assim o faz quando realiza seus encontros de área trazendo um número
significativo de estudantes; assim o faz, quando se torna um espaço para que outros
grupos e coletivos se articulem, como foi o caso dos coletivos feministas. Desta forma,
como o movimento estudantil clássico, quando interessa, as executivas servem de apoio
para que outras expressões estudantis apareçam, articulando também cultura e política (p.
363).
Para Brandão (2008), o distanciamento entre estudantes e lideranças estudantis e a
partidarização do movimento impuseram a necessidade de reorganização do movimento,
procurando solucionar o problema da falta de unidade do movimento estudantil "através de
encontros regionais de área para discussão sobre os projetos de ação e tomadas de decisões sobre
estes, de modo horizontalizado, independente do posicionamento da entidade maior estudantil UNE" (p. 77). O movimento de área, ou a executiva de curso como também é conhecido o
movimento de área, desenvolve-se, portanto, como uma nova forma de organização, que pode
atender mais amplamente os interesses específicos dos estudantes, por se tratar de uma estrutura
menor.
Mion (2010) explica que a DENEM estrutura-se atualmente em oito regionais, tendo cada
regional uma coordenação para dialogar com os centros acadêmicos de uma determinada região do
Brasil. Além das oito regionais, a DENEM coordena o Centro de Pesquisas e Estudos em
Educação e Saúde (CENEPES), que é composto das coordenações de área. Segundo o autor, a
executiva de Medicina é ainda responsável pela organização e estruturação dos encontros regionais
e científicos da área, sendo eles: as Reuniões de Regionais (RR); o Encontro Regional dos
Estudantes de Medicina (EREM); o Seminário de Problematização Política (SPP); as Olimpíadas
Regionais dos Estudantes de Medicina (OREM); o Congresso Brasileiro dos Estudantes de
Medicina (COBREM); o Encontro Científico dos Estudantes de Medicina (ECEM); a Reunião de
Órgãos Executivos (ROEX) e o Seminário do CENEPES.
Pude perceber nesse breve levantamento a respeito da trajetória do movimento estudantil
médico e da DENEM que a executiva é um espaço importante na organização do movimento
médico. Lembro também da interlocução do movimento estudantil médico com outras instâncias
da área médica, como p. ex. a Associação Brasileira de Educação Médica (ABEM), o Conselho
Federal de Medicina (CFM), dentre outras.
34. 34
Acredito que o Centro Acadêmico Carlos Chagas da UFRJ seja subordinado a DENEM,
assim como outros centros e diretórios acadêmicos dos cursos superiores de Medicina do Brasil.
Pareceu-me que a vinculação do Centro Acadêmico com a Executiva de curso, bem como com
qualquer outra entidade representativa de estudantes, é opcional, porém seria necessária uma
investigação mais aprofundada para compreender exatamente como essas relações se estabelecem.
O CACC relaciona-se com outras organizações estudantis dentro da UFRJ - o DCE Mário
Prata e os outros centros acadêmicos - e dentro da Faculdade de Medicina da UFRJ, com as Ligas
Acadêmicas13; a Associação Atlética Acadêmica Carlos Chagas14; a Comissão de Trote15; o
Esquadrão de Bombas16; e a Bateria Vanguarda Medicina UFRJ17.
Apresento a seguir o Quadro sinóptico I com a síntese dos eventos nos quais o Movimento
estudantil brasileiro e o Movimento estudantil médico participaram ao longo de sua existência e
suas principais reivindicações.
13
As Ligas Acadêmicas a que me refiro aqui são formadas por alunos que tem um interesse comum, em uma
determinada área da saúde. Os mesmos reúnem-se para realizar atividades práticas e teóricas sobre este tema,
supervisionados por um ou mais profissionais da área. Existem, atualmente, 12 ligas acadêmicas da área de
saúde na Universidade Federal do Rio de Janeiro: Liga Acadêmica de Neurologia (LAN), Liga Acadêmica de
Medicina Intensiva (LAMI), Liga Acadêmica de Trauma e Emergência (LATE), Liga Acadêmica de
Ginecologia e Obstetrícia (LAGO), Liga Acadêmica de Otorrinolaringologia (LAOTO), Liga Acadêmica de
Clínica Médica (LACM), Liga Acadêmica de Pediatria (LAPed), Liga Acadêmica de Dermatologia (LAD), Liga
Acadêmica da Dor (LADor), Liga Acadêmica de Gastroenterologia (LAGE), Liga Acadêmica de Cirurgia
(LiAC), Liga Acadêmica de Radiologia e Diagnóstico por Imagem (LARDI) (CACC, 2010b).
14
A Associação Atlética Acadêmica Carlos Chagas é responsável pela organização dos eventos esportivos entre
os graduandos da Faculdade de Medicina da UFRJ.
15
Grupo de alunos responsáveis pela organização do trote no curso de graduação de Medicina da UFRJ.
Geralmente é composto pelos estudantes do 2º período do curso médico.
16
Grupo de alunos que participa da organização de festas do curso médico da UFRJ.
17
A Bateria Vanguarda Medicina UFRJ ou, como também é conhecida, Bateria Med UFRJ, corresponde a uma
banda formada por estudantes de Medicina da UFRJ. Participa de eventos organizados pelo curso, como
chopadas e eventos esportivos.
35. 35
QUADRO SINÓPTICO I - TRAJETÓRIA DO ME E DO MEM: PRINCIPAIS EVENTOS
PERÍODO HISTÓRICO
Invasão de soldados
franceses
- Primeira participação estudantil que se tem
notícia.
1789
1798
1817
1852
Inconfidência Mineira;
Conjuração Baiana;
Revolução Republicana.
Lutas pela
abolição da escravatura
Campos Sales (1898-1902)
- Participação no plano ideológico desses
movimentos.
1901
1904
República
Velha
(1889-1930)
MOVIMENTO ESTUDANTIL
1710
Imperial
(1822-1889)
EVENTOS IMPORTANTES NA TRAJETÓRIA DO
HISTÓRICOS
Colonial
(1530-1815)
GOVERNANTES / EVENTOS
Revolta da Vacina;
1922
Revolta dos 18 do Forte;
1918
Elaboração da "Carta de
Córdoba", pelo ME
argentino.
Revolução de 1930.
1930
Era Vargas
(1930-1945)
1937
1938
Populista
(1946-1964)
Getúlio Vargas (1930-1945)
1945
EVENTOS IMPORTANTES NA
TRAJETÓRIA DO MEM
- Engajamento nas lutas pela Abolição
- Fundação da Federação dos Estudantes
Brasileiros
- Ações da juventude militar estudantil
nesses movimentos.
- Início das reivindicações específicas do ME
a respeito de uma reforma universitária,
inspiradas na "Carta de Córdoba"
- Ações da juventude militar estudantil nesse
movimento.
- I Conselho Nacional dos Estudantes:
criação da UNE;
- II Congresso Nacional dos Estudantes:
apresentada proposta de reforma
universitária;
- Entidades estudantis: força política
crescente de projeto de reforma universitária.
1950
Gaspar Dutra (1946-1951)
1960
Juscelino Kubischek (19561961)
- UNE promove o I Seminário Nacional de
Reforma Universitária ("Carta da Bahia").
1962
João Goulart (1961-1964)
1964
- Golpe militar;
- Lei Suplicy de Lacerda
1966
1967
Invasão da FM da UFRJ
Decreto-lei 228
1968
- Intensa repressão a
movimentos sociais, em
especial, estudantis.
Criação do AI-5.
- "Maio de 68" na França.
- UNE promove o II Seminário Nacional de
Reforma Universitária ("Carta do Paraná").
- Sede da UNE saqueada, invadida e
incendiada;
- UNE transforma-se em Direção Nacional
dos Estudantes.
- Discussão da Lei Suplicy de Lacerda no ME
- Extinção de todas as organizações
estudantis.
- Estudantes que participavam do 30º
Congresso da UNE são presos;
Ditadura
militar
(1964-1985)
- Formação da UNEM
1969
- UNEM é extinta pela ditadura
(década de 60)
- "Massacre da Praia Vermelha"
- Realização do primeiro ECEM,
controlado pelo MEC.
- MEM articula-se nas SESACs.
Anos
1970
1974
- Início da reconstrução da UNE.
1976
- Movimento da Reforma Sanitária
- Criação de outros espaços como
CEBES, Sindicatos, Associação de
Médicos Residentes, e o ECEM.
36. 36
Nova
República
(1985-atual)
1986
8ª Conferência Nacional de
Saúde
1990
Impeachment de Fernando
Collor de Mello (1990-1992)
Luis Inácio Lula da Silva
(2003-2010)
2003 2010
- Fim da ditadura - período de dispersão.
Reorganização em conjunto c/ movimentos
sociais.
- Rearticulação UNE-UBES
- Caras Pintadas
Composição da UNE com o governo Lula.
- Criação da DENEM, no espaço
do ECEM
37. 37
1.2 As políticas públicas de ensino superior na universidade pública: situando o
Reuni, o Sistema de Reserva de Vagas (cotas) e o Enem
Há aproximadamente 40 anos o ensino superior vem enfrentando desafios a fim de
desempenhar um papel universalizante. As políticas instituídas no bojo das universidades públicas,
desde o início do ano 2000, como o Reuni, o Sistema de Reserva de Vagas - ou "cotas", como é
popularmente conhecido - e o Enem, são algumas das tentativas por parte do governo de
democratizar o espaço universitário.
1.2.1 O Reuni e o Plano Diretor da UFRJ
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais
(Reuni) foi instituído pelo Decreto nº 6.096, de 24 de abril de 2007, e é uma das ações que
integram o Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE). Tem por objetivo ampliar o acesso e
permanência na educação superior (graduação) e aproveitar a estrutura física e de recursos
humanos das Instituições Federais de Ensino Superior (IFES).
As ações do programa contemplam o "aumento de vagas nos cursos de graduação, a
ampliação da oferta de cursos noturnos, a promoção de inovações pedagógicas e o combate à
evasão, entre outras metas que têm o propósito de diminuir as desigualdades sociais no país" (O
QUE..., 2010).
O Reuni tem como diretrizes: a redução da evasão; ocupação das vagas ociosas; aumento
de vagas (principalmente nos cursos noturnos); ampliação da mobilidade estudantil, que possibilite
aproveitar créditos e mudança de cursos e instituições; reorganização dos cursos da graduação;
ampliação de políticas de inclusão e assistência ao estudante; articulação da graduação com a pósgraduação e da educação superior com a educação básica (BRASIL, 2007). É um programa de
adesão voluntária por parte de cada instituição federal, e possui como meta global alcançar, ao final
de cinco anos após seu início, uma taxa de conclusão média de noventa por cento nos cursos de
graduação presenciais e uma relação de dezoito alunos de graduação por professor em cursos
presenciais (BRASIL, 2007).
No decorrer das buscas sobre o Reuni, foi percebida uma aproximação do projeto de
reforma da estrutura curricular da UFBA reavivado por Naomar Monteiro de Almeida Filho18 e o
Reuni, e dos dois com o projeto Universidade Nova, delineado por Anísio Teixeira (ALMEIDA
FILHO, 2006).
18
Naomar Monteiro de Almeida Filho é médico, ex-reitor da Universidade Federal da Bahia - UFBA, e
participou como membro do grupo assessor para elaboração do Reuni (BRASIL, 2007).
38. 38
Baseado nos ideais de Anísio Teixeira que deram origem, na década de 1930, à então
Universidade do Distrito Federal e, na década de 1960, à Universidade de Brasília (UnB), Naomar
Monteiro defende em seu projeto que os estudantes entrem nas universidades sem vestibular para
fazerem um ciclo básico de formação que duraria três anos e teria o nome de Bacharelado
Interdisciplinar. Depois os graduados seguiriam para os níveis de formação Profissional,
Licenciatura e para as pós-graduações acadêmicas (mestrado e doutorado) e profissionais
(mestrado acadêmico, que assumiria o atual papel desempenhado pelos cursos de especialização
lato sensu) (ALMEIDA FILHO, 2006).
Embora tenham sido percebidas semelhanças entre o Reuni, a Universidade Nova de
Anísio Teixeira e o projeto de Naomar Monteiro, entendo que seria preciso uma busca mais
minuciosa para embasar a afirmação de que o Reuni foi inspirado no projeto Universidade Nova,
de Anísio Teixeira.
Voltando à estruturação do Reuni, de acordo com o relatório de seu primeiro ano de
implantação (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR, 2009), de 54 universidades federais
em funcionamento no Brasil, todas aderiram ao programa - sendo que algumas foram criadas
posteriormente ao Reuni, portanto já dentro do programa.
A adesão da totalidade das universidades existentes no ano de criação do Reuni atesta o
forte interesse despertado pelo Programa, que preconiza, em seu conceito fundador, a
idéia da expansão com reestruturação das instituições federais de ensino superior, abrindo
espaço para oportunidades de inovação e de aumento da qualidade da educação superior
pública (SECRETARIA DE EDUCAÇÃO SUPERIOR, 2009).
A UFRJ decidiu participar do Reuni a partir da primeira chamada, que se deu em 2007, a
qual estabelecia que o programa se iniciasse na universidade no primeiro semestre de 2008.
Anteriormente ao Reuni, a UFRJ já havia passado por algumas tentativas de reestruturação e
expansão, como se observa a seguir:
1. Plano Quinquenal de Desenvolvimento para a UFRJ / Plano de Desenvolvimento
Institucional (PDI) (UFRJ, 2006a), com críticas à falta de autonomia da Universidade, seu modo de
organização, seu caráter “elitista e profissionalizante de ensino” e inadequação do currículo, dentre
outros fatores problemáticos.
2. Plano de Reestruturação e Expansão da UFRJ (PRE) (UFRJ, 2007a), que visava
principalmente à expansão da Universidade com ampliação de vagas, redução dos índices de
evasão, integração entre as áreas do conhecimento e aumento do comprometimento social da
Universidade.
Na época de elaboração do PRE (UFRJ, 2007a), houve espaço para a manifestação dos
Centros e Unidades, Conselhos Superiores – Conselho de Ensino de Graduação (CEG) e Conselho
39. 39
de Ensino de Pós-graduação (CEPG); entidades de representação dos três segmentos, quais sejam:
o DCE, a Associação de Pós-graduação (APG), a ADUFRJ; e o SINTUFRJ, quanto ao anteprojeto
do PRE.
A Faculdade de Medicina também se pronunciou em relação ao PRE, apresentando um
documento específico (UFRJ, 2007b) que reunia comentários, críticas e sugestões para a
implementação do então Programa de Reestruturação e Expansão da UFRJ, dentre as quais destaco
as seguintes:
a. Interiorização do curso de Medicina com criação de uma nova turma em Macaé; b.
Criação do curso Terapia Ocupacional; c. Expansão de vagas nos cursos de Fisioterapia e
Fonoaudiologia; d. Instituição de um projeto pedagógico inovador para a turma de Macaé e para o
curso novo de Terapia Ocupacional, com utilização de novas tecnologias educacionais como a
Telemedicina e a Telesaúde; e. Participação ampliada do corpo social da Faculdade; f. Manutenção
e aprimoramento da identidade acadêmica da Faculdade de Medicina; g. Concretização da busca
de sua SEDE própria (UFRJ, 2007b).
3. Plano Diretor - PDUFRJ 2020 (UFRJ, 2009). Para se adequar às propostas do Reuni e
dar continuidade ao antigo Plano de Desenvolvimento Institucional, o Conselho Universitário da
UFRJ (CONSUNI) colocou à comunidade acadêmica a necessidade da (re)elaboração do
Programa de Reestruturação e Expansão, dando origem finalmente ao Plano Diretor.
Em 15 de janeiro de 2008, o reitor constituiu uma comissão técnica com o objetivo de
elaborar as diretrizes para a execução do Plano Diretor da UFRJ. A proposta apresentada por esta
Comissão Técnica tinha por diretrizes gerais:
1. O princípio da dupla integração, “segundo o qual a integração interna da UFRJ é
inseparável da integração da UFRJ à cidade (e também ao Estado e ao país)”; 2. O princípio da
administração “integrada dos espaços e edificações, contemplando uma visão de conjunto de nosso
patrimônio fundiário e edificado, preservando sua integridade e inalienabilidade” e 3. O princípio
do planejamento de longo prazo, “definido como horizonte o ano de 2020, com dois momentos
intermediários: 2012 e 2016” (UFRJ, 2009).
A dupla integração concentraria os cursos da Praia Vermelha e demais campi na Ilha do
Fundão e integraria a Universidade à sociedade, transformando a UFRJ em um “bairro acadêmico,
com prédios acadêmicos, residências universitárias, instalações dos restaurantes, serviços de
comércio” (LEVI, 2009, p. 13).
40. 40
Passados dois anos, Levi19 (LAURO NETO, 2011) afirma que no médio e longo prazo, vai
"buscar criar as condições para transferir as unidades que assim decidirem através de suas
congregações, porque essa é a decisão do nosso Consuni" (p. 16). O reitor explica que, por conta
dos recursos do Reuni, a UFRJ está em condições de construir mais alguns prédios no Fundão: "as
obras da Faculdade de Educação, que já se decidiu pela sua transferência para cá, estão licitadas e
devem ficar prontas em dois anos. A Faculdade de Administração e Ciências Contábeis também
tomou essa decisão, bem como a Decania do Centro de Ciências Jurídicas e Econômicas" (p. 16).
Caso toda a comunidade acadêmica da Praia Vermelha decida pela transferência para o Fundão, o
terreno será utilizado para construir um "centro cultural, de convenções e de eventos, ao qual o
Canecão seria provavelmente incorporado", mas, segundo o reitor, essa decisão está ainda em
discussão (p. 17).
O docente Corrêa e Castro20 (2010), em entrevista ao Jornal da UFRJ, na série especial de
reportagens intitulada "Qual UFRJ queremos ser?", criticou a integração entre Praia Vermelha e
Fundão, pois, em seu entendimento, a integração física não garante que haja uma integração
verdadeira entre as unidades acadêmicas. Oliveira Neto21 (2010) também se posicionou contrário à
medida do Reuni de mudar os cursos da Praia Vermelha para o Fundão, pois entende a Praia
Vermelha como um terreno histórico, de luta contra a ditadura militar. Enfatizou que o Plano
Diretor deve ser valorizado e reavaliado, ao criticar a integração universidade-cidade como se
apresenta no plano diretor e afirmando que a discussão do PDUFRJ2020 ainda "não está madura".
Ressalto aqui que a série de reportagens "Qual UFRJ queremos ser?", foi publicada no
Jornal da UFRJ em período de eleições para o cargo de reitor da UFRJ, na qual alguns docentes da
UFRJ posicionaram-se em relação às políticas inclusivas, dentre elas, o Reuni. Os pesquisadores
entrevistados na série estavam diretamente ligados à campanha eleitoral para reitor da
universidade, concorrendo a cargos de pró-reitores e reitor. Portanto deve-se lembrar que as
opiniões expressas a respeito dessas políticas universitárias não são descoladas da realidade em que
esses docentes atuam dentro da instância universitária. No meu entendimento, as mesmas traduzem
a identificação (ou a oposição) dos depoentes em relação ao atual governo do Brasil.
19
Carlos Levi da Conceição foi membro do Comitê Técnico do Plano Diretor e pró-reitor de Planejamento e
Desenvolvimento da UFRJ. Foi eleito reitor da UFRJ em abril de 2011.
20
Marcelo Macedo Corrêa e Castro é professor associado da Faculdade de Educação da UFRJ e decano do
Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da UFRJ.
21
Godofredo de Oliveira Neto é professor associado do Departamento de Letras Vernáculas da Faculdade de
Letras (FL) da UFRJ e já exerceu cargos na hierarquia na UFRJ e no Ministério da Educação. Concorreu ao
cargo de reitor da UFRJ na eleição de 2010/2011.
41. 41
Nessa série de reportagens, Santos22 (2010b) e Foguel23 (2010) mostraram-se favoráveis ao
Reuni. Na opinião de Santos, o Reuni é ainda um esforço tímido para tornar a UFRJ menos
"elitista". Em seu entendimento, a educação básica não é igual para todos, portanto os candidatos
às vagas na UFRJ também não estão em situação igualitária. Para a docente, a expansão trata
"simplesmente de novas vagas em cursos já existentes, e a criação de cursos novos no formato
tradicional".
A docente Foguel compreende o Reuni como o ponto de partida para ampliação de vagas
nas universidades públicas, tanto em termos de crescimento do país, como em termos de cidadania.
Considera que, “sendo a UFRJ uma das mais importantes universidades federais do país, não
poderia jamais ficar de fora como expectadora desse virtuoso processo que ora se inicia no país. O
Reuni, em seu bojo, tornará o Ensino Superior menos elitista no Brasil” (FOGUEL, 2010, p. 19 e
20).
Em seu entendimento, deve ser levado em conta na discussão do Reuni o fato de que o
Brasil ainda é um país pobre e com muitas desigualdades, onde somente a Educação pode reverter
esse quadro. E deve ser lembrado também que passamos atualmente no Brasil por um "momento
de crescimento econômico acelerado, no qual ir para uma universidade deveria fazer parte da
formação de todo cidadão" (FOGUEL, 2010).
Para Chaves & Araújo (2011), o Reuni foi instituído de modo autoritário pelo Poder
Executivo, "sinalizando a unilateralidade na tomada de decisão e na iniciativa para implantação do
Programa, considerando que o Decreto dispensa apreciação e aprovação no Congresso Nacional."
As autoras relatam que a implantação do Programa:
Tem sido objeto de polêmicas e movimentos de resistência, particularmente dos
movimentos estudantis e docentes, que denunciam a desconfiguração da universidade
pública por meio da criação de dois modelos institucionais distintos – a universidade do
ensino e a universidade da pesquisa; a intensificação e precarização do trabalho docente e
prejuízos à garantia de padrões de qualidade e excelência acadêmica, na medida em que a
expansão de vagas ocorrerá sem a necessária proporcionalidade de investimentos
financeiros (CHAVES & ARAÚJO, 2011, p.67).
Segundo as mencionadas autoras, aqueles que são contrários às propostas do Programa
entendem que ocorre uma priorização do ensino em detrimento da pesquisa, na medida em que se
estabelece como meta principal a elevação na taxa de conclusão da graduação para 90% e o
aumento na proporção de alunos por professor, na razão de 18/1, e que, dessa maneira, esses
22
Ângela Rocha dos Santos é professora associada do Instituto de Matemática da UFRJ e docente do Programa
de Pós-graduação em Ensino de Matemática do IM/ UFRJ. É também ex-decana do Centro de Ciências
Matemáticas e da Natureza (CCMN) da UFRJ. Na época da reportagem estava concorrendo ao cargo de Próreitora de Graduação, na chapa do atual reitor Carlos Levi, que veio a tomar posse em meados de 2011.
23
Débora Foguel é professora associada da Faculdade de Medicina da UFRJ e ex-diretora do Instituto de
Bioquímica Médica da UFRJ e Pró-Reitora de Pós-graduação e Pesquisa da UFRJ, na ocasião deste estudo.
42. 42
indicadores poderiam implicar a desconfiguração da tríade ensino, pesquisa e extensão, bem como
"a desqualificação da atividade de ensino e precarização da atividade docente". Enfatizam que
assim o Reuni coloca em questão a identidade da universidade e a "preservação da sua tradição",
uma vez que o ensino de graduação é privilegiado (CHAVES & ARAÚJO, 2011, p. 69).
No âmbito do movimento estudantil, o Reuni causou intensa polêmica. Os estudantes
assumiram posicionamentos de apoio ou repulsa à UNE - que apóia o Reuni - e ao governo de Luís
Inácio Lula da Silva. Destaco a seguir o discurso de um estudante militante do PSTU,
exemplificando a repulsa de algumas organizações no movimento estudantil em relação ao Reuni e
ao apoio dado pela UNE ao Programa:
Após muita mobilização, o Reuni foi, finalmente, retirado da pauta de discussão do
Conselho Universitário da Universidade Federal Fluminense (UFF). Esta foi uma vitória
política fundamental para o movimento. Foram inúmeras as atividades: um abaixoassinado com mais de quatro mil assinaturas dizendo “não” ao Reuni; uma assembléia
geral de estudantes, com cerca de 500 presentes, que também rechaçou o projeto; uma
assembléia comunitária, com 400 estudantes e trabalhadores, na última ocupação da
reitoria, que votou, por aclamação, posição contrária ao Reuni; duas ocupações da reitoria
da UFF; atos que alcançaram as marcas de 400 a 500 estudantes. A força da mobilização
levou, inclusive, ao aprofundamento de divisões e disputas no interior da reitoria. [...] A
UNE já mostrou de que lado está: foi a quinta coluna do governo e das reitorias em todos
os processos, chegando ao cúmulo de, na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ),
fazer um cordão de proteção para o reitor Aloisio Teixeira, se enfrentando com um ato de
600 estudantes. Tudo isso para que fosse aprovado arbitrariamente o Reuni naquela
universidade. Sua derrota humilhante nas urnas nas eleições do DCE da UFRJ foi a prova
de que a entidade governista não fala mais em nome dos estudantes (ROSSI, 2007).
Do mesmo modo posiciona-se a tendência Liberdade Socialismo e Revolução (LSR),
ligada ao Partido Socialismo e Liberdade (PSol):
Desde a apresentação do modelo de expansão universitária do governo Lula, o Reuni, o
movimento estudantil entrou em ação como há muito tempo não se via. Esta recuperação
vem após um período de dificuldade do movimento estudantil. Há mais de 16 anos na
direção majoritária da UNE, a UJS (PC do B) mantém a entidade como arena de
interesses meramente institucionais, desgarrada das lutas dos estudantes, trocando verbas
e cargos no governo por apoio acrítico ao governo Lula. A construção da Frente de Luta
Contra a Reforma Universitária foi um passo importante que construiu uma forte coesão
entre todos os segmentos da universidade para consolidar a resistência contra os agentes
do governo Lula nas universidades do país. [...] Apesar das versões preconceituosas e
mentirosas da mídia burguesa, o movimento estudantil retomou nacionalmente uma
visibilidade expressiva, mesmo com ausência da direção majoritária da UNE (COSTA,
2007).
Percebe-se nas falas desses estudantes algumas críticas à UNE, o que foi frequentemente
observado também entre os informantes desta pesquisa, quando indagados a respeito do
movimento estudantil brasileiro.
Ao avaliar a adoção do Reuni nas universidades brasileiras, o atual presidente da UNE,
Daniel Iliescu, destaca que o Programa não atingiu o que propôs:
Foi o principal programa de injeção de recursos, contratação por concurso, ampliação de
vagas, interiorização das universidades, mas é um programa insuficiente, que não cumpriu
43. 43
a reestruturação e a expansão propostas. Valorizamos essa experiência, mas
compreendemos que está esgotado e que foi insuficiente para as transformações mais
profundas que a gente precisa. Agora é o momento de cobrar do Ministério da Educação
um novo programa, mais ousado e com mais verba, para levar a universidade brasileira
para outro patamar, que o Brasil e a juventude brasileira merecem (ILIESCU, 2011).
Destaquei esses trechos a fim de exemplificar a pluralidade de alinhamentos do movimento
estudantil, atentando para o posicionamento de apoio ou repúdio à UNE e ao atual governo. Como
explica Mesquita (2006 apud Mesquita 2001), "analisar o movimento estudantil hoje é, antes de
tudo, percebê-lo como um movimento plural, capaz de se manifestar através de vários grupos que
se potencializam no cotidiano da condição estudantil" (p. 355).
Diante desse breve panorama apresentado, me propus a investigar como os estudantes de
medicina, particularmente aqueles que participam do movimento estudantil no Centro Acadêmico
Carlos Chagas, significam o Reuni e outras políticas, como p. ex. o sistema de reserva de vagas sobre o qual discorro a seguir - para estudantes egressos de escolas públicas, negros e indígenas,
nas instituições públicas federais de educação superior; em outras palavras, interessou entender
como esses ativistas do CACC significam todas essas transformações que estão ocorrendo
atualmente na Universidade bem como suas possíveis repercussões sobre a formação médica
promovida pela UFRJ.
1.2.2 Sistema de Reserva de Vagas: a questão das cotas sociais e raciais
Sabe-se que atualmente, no Brasil, existe uma grande pressão dos movimentos sociais
organizados para a entrada de indivíduos previamente excluídos do ambiente acadêmico, como as
classes populares, negros e/ou alunos provenientes de escolas públicas, na universidade pública.
Tal pressão vem sendo materializada pela implantação de políticas de ação afirmativa, que,
conforme explica Oliven (2007), visam "remover barreiras, formais e informais, que impeçam o
acesso de certos grupos ao mercado de trabalho, universidades e posições de liderança" (p. 30),
dentre elas as cotas raciais e sociais.
Cabe ressaltar que as cotas são apenas um tipo de ação afirmativa; o termo "ação
afirmativa" é mais amplo, e existem inclusive outras formas de "políticas/ações afirmativas
destinadas a facilitar a entrada de determinados grupos no ensino superior público", como
explicam Sousa & Portes (2011, p. 518). Neste estudo, porém, trataremos das ações afirmativas
somente no âmbito das cotas sociais e raciais para o ingresso nas universidades públicas.
Alguns países adotaram anteriormente ao Brasil o sistema de cotas em suas universidades,
como p. ex. a Índia, que reserva um percentual de vagas nas universidades públicas a castas
consideradas inferiores, os dalits (OLIVEN, 2007).
44. 44
Nos EUA, o sistema de cotas foi introduzido nos anos 60, e ainda hoje é amplamente
debatido. A Universidade da Califórnia foi uma das primeiras a estabelecer cotas raciais como
forma de ingresso, a fim de aumentar a presença de minorias na instituição. Em 1994, notou-se um
aumento de alunos negros na universidade, que passaram a representar 21% dos estudantes
(OLIVEN, 2007). No ano seguinte, porém, os responsáveis pela universidade suspenderam os
programas de ação afirmativa baseados no critério racial, retrocedendo assim ao percentual de
alunos negros observado nos anos 60. No ano 2001, a Universidade passou então a admitir
automaticamente os melhores alunos das escolas públicas elevando assim o número de alunos
negros novamente (MOEHLECKE, 2004).
Segundo Oliven (2007), foi através das cotas que se acentuou a diversidade étnica no ensino
superior norte-americano, porém não sem dificuldades, pois, como se percebe no exemplo da
Universidade da Califórnia nos EUA, a adoção de ações afirmativas na universidade pública pode
suscitar debates e reações da comunidade acadêmica e da sociedade em geral, mesmo depois de
anos de implementação.
Em nosso país, o sistema de reserva de vagas, ou cotas, vigora em algumas universidades
somente desde 2003, apesar de sua discussão ser antiga no âmbito dos movimentos sociais, como
elucida Santos24 (2010a), e relaciona-se diretamente com outras políticas que pretendem ser
inclusivas, como o Enem e o Reuni. Siqueira (2010) entende que essas políticas que estão
transformando a universidade têm evidentes repercussões nas “posições de sujeito” ocupadas por
alunos e professores, provocando novos desafios à comunidade acadêmica, colocados pela
crescente diversidade do alunado nas instituições de ensino superior. Tais deslocamentos
provocam um debate social importante a respeito da questão dos direitos das “minorias”, trazendo
à discussão a questão dos processos de exclusão social relacionados à classe social e à raça/etnia.
A discussão sobre políticas para a "igualdade racial" iniciou-se no Brasil em 1968, quando
o Ministério do Trabalho manifestou interesse pela criação de uma lei que obrigasse o setor
privado a contratar uma determinada porcentagem de negros - não chegando de fato à elaboração
de tal lei. Em 1980, o deputado federal Abdias do Nascimento propôs em um projeto de lei uma
"ação compensatória" ao negro, devido aos séculos de discriminação racial. Porém, o debate só se
ampliou para além do movimento negro e de alguns intelectuais em meados dos anos 90, quando,
em 1995, o presidente da república Fernando Henrique Cardoso reconhece o Brasil como um país
24
Frei David Raimundo dos Santos, criador e diretor executivo da Educafro, é um militante negro que vem se
destacando há alguns anos na área da educação para carentes e afrodescendentes. É uma das principais figuras do
cenário nacional no debate sobre Políticas de Ações Afirmativas para negros nas universidades públicas, tendo
influenciado diretamente na adoção do sistema de cotas em diversas universidades do Brasil.
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racista, propondo a organização de um encontro em 1996 para se pensar ações que modificassem
essa situação (MOEHLECKE, 2004).
Em 2001, a delegação oficial brasileira encaminhou um relatório à III Conferência Mundial
das Nações Unidas de Combate ao Racismo, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em
Durban, na África do Sul, propondo ações afirmativas, onde figurava, entre as diversas propostas,
as cotas para negros nas universidades públicas (MAGGIE & FRY, 2004).
Logo após o evento, foi aprovada uma lei no Estado do Rio de Janeiro que instituiu "a cota
de até 40% (quarenta por cento) para as populações negras e pardas no acesso a Universidade do
Estado do Rio de Janeiro e à Universidade Estadual do Norte Fluminense" (RIO DE JANEIRO,
2001). A UERJ foi, portanto, a primeira universidade do país a criar um sistema de cotas em
processos seletivos para ingresso em seus cursos de graduação, a partir de 2003. No mesmo ano,
aderiram a Universidade Estadual do Norte Fluminense Darcy Ribeiro (UENF), a do Estado da
Bahia (Uneb) e a Estadual do Mato Grosso do Sul (UEMS) (FARIA, 2006).
Logo depois, em 2004, a UnB também aderiu às cotas, tornando-se a primeira universidade
federal a instituir o sistema - parte de seu Plano de Metas para Integração Social, Étnica e Racial.
Além das cotas raciais e sociais, a UnB firmou uma parceria com a FUNAI, possibilitando o
acesso de indígenas na universidade, variando de acordo com a disponibilidade de vagas na
instituição.
Desde 2004, diversas universidades já adotaram o critério de cotas. Segundo a carta aberta
sobre cotas, redigida por professores da UFRJ em favor das mesmas, atualmente no Brasil existem
cerca de 130 universidades públicas que utilizam o sistema de cotas no Brasil (CARTA, 2010).
Observa-se uma gama de modalidades: algumas universidades utilizam as cotas no bojo de outras
medidas, outras utilizam somente uma modalidade de cotas (como p. ex. somente cotas para
egressos do ensino público) ou várias modalidades de cotas. São inúmeras as possibilidades de
implantação das mesmas, que já se configuram como realidade em diversas universidades de todas
as regiões do país, bem como são inúmeros os discursos que circulam na sociedade
problematizando as cotas a partir de seu efeito democratizante, criticando ou apoiando as novas
modalidades de ingresso nas universidades públicas. Apresento alguns desses discursos,
observados em posicionamentos de professores, gestores, pesquisadores, lideranças de movimentos
sociais, bem como alguns posicionamentos do movimento estudantil a respeito.
Alguns pesquisadores, como Maggie & Fry (2004), entendem que o sistema de cotas
raciais separa as raças ao invés de misturá-las. Afirmam que "as raças de fato não existem
naturalmente" e que o sistema de cotas força a criação de "categorias raciais". Os referidos autores
argumentam também que não houve debate sobre as cotas antes de serem aprovadas no Congresso.
46. 46
Apontam que o fato de deixar que o próprio candidato se classifique como branco, negro ou pardo
é problemático e lembram ainda que uma política para todos é mais interessante que uma política
para alguns. Os autores apostam na melhora do ensino básico para aumentar o número de negros e
mulatos nas universidades, e se valem ainda do argumento de que os brancos pobres seriam
excluídos da oportunidade oferecida pelas cotas raciais:
Quem sofrerá as consequências da legislação são os 'brancos' das camadas mais pobres,
que serão aqueles a serem excluídos pela reserva de vagas. Será que os legisladores
imaginaram a vida social do subúrbio carioca, por exemplo, onde pessoas de diversas
aparências convivem nas mesmas ruas, escolas, botequins e famílias, compartilhando
também a mesma condição socioeconômica? (MAGGIE & FRY, 2004, p. 76).
Maggie & Fry (2004) comentam ainda que a medida das cotas raciais é vista por muitos
como sendo "paternalista", podendo humilhar os beneficiários. Mencionam que não se pode
resolver a questão da desigualdade de séculos com uma política de custo zero, argumentando que
uma medida mais inclusiva seria p. ex. colocar uma escola pública de melhor qualidade em um
bairro de periferia. Enfatizam ainda que o racismo seria reforçado com as cotas raciais, trazendo
impacto à sociedade em geral.
A respeito de tais argumentos, Kika Bessen (2010), diretora de política social da Oriashé25,
afirma em debate sobre a temática das cotas, promovido pelo programa Brasilianas.org, que o
Brasil é "racista" e que a universidade é um "espaço onde está toda a estrutura racista do país".
Lembra que o debate sobre as cotas sociais nasceu a partir da luta pelas cotas raciais, e só começou
a ser debatido "quando a população negra se organiza em movimento, a sociedade civil se
organiza, e sai em campo pra exigir do Estado brasileiro, que é racista por excelência, o direto à
educação, o direito ao conhecimento". Bessen recorda que a periferia onde cresceu, em São Paulo,
tem em sua totalidade quase 99% de população negra, e que o não negro, "ao estar na periferia ele
não está se distinguindo de ser negro ou não ser negro".
Osorio (2009) argumenta que, entre os que defendem somente as cotas sociais, é frequente
o argumento de que com essa medida seriam abarcados os que possuem baixa renda, estudam na
escola pública e são negros. Nessa perspectiva, as cotas raciais seriam uma ameaça ao branco
pobre, "logo, as quotas sociais resolveriam tanto a desigualdade de classe quanto a de raça no
acesso ao ensino superior, sem a criação de “divisões perigosas” que segregariam racialmente a
nação instilando o ódio entre grupos" (p. 876). Porém, segundo o autor, não há como saber de fato
se as cotas raciais trariam tais "divisões perigosas". Afirma ainda que, embora provavelmente
exista a relação entre estudar em escola pública e ter baixa renda, seria complicado estabelecer
25
A Oriashé - Sociedade Brasileira de Cultura e Arte Negra, é uma organização de mulheres negras que atua no
Cohab Cidade Tiradentes, com o objetivo de resgatar a cultura afro-brasileira através da arte.