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leituras de nós
ciberespaço e literatura
alckmar luiz dos santos
lleeiittuurraass ddee nnóóss
cc ii bb ee rr ee ss pp aa çç oo ee ll ii tt ee rr aa tt uu rr aa
aallcckkmmaarr lluuiizz ddooss ssaannttooss
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Catalogação Itaú Cultural
Santos, Alckmar Luiz dos.
Leituras de nós: ciberespaço e literatura. — São Paulo: Itaú Cultural, 2003.
148 p. : il. – (Rumos Itaú Cultural Transmídia).
Índice Onomástico
ISBN 85-85291-39-7
1. Arte e Tecnologia 2. Literatura e Tecnologia 3. Ciberespaço 4. Narrativa
5. I. Santos, Alckmar Luiz dos II. Título
CDD 700.105
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lleeiittuurraass ddee nnóóss
cc ii bb ee rr ee ss pp aa çç oo ee ll ii tt ee rr aa tt uu rr aa
aallcckkmmaarr lluuiizz ddooss ssaannttooss
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Para Daniel
Para Ana Luíza
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M.C. Escher Bond of Union c 2003 Cordon Art B.V. - Baarn - Holland. Todos os direitos reservados
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Uma das mais importantes ações do Itaú Cultural se evidencia no programa Rumos, de
apoio à produção artística brasileira, que contempla cada área com a qual a instituição
trabalha – artes visuais, cinema e vídeo, dança, literatura, mídia arte e música.
Fincado sobre o tripé formação, fomento e difusão, Rumos caracteriza-se pelo
mapeamento da nova produção em todo o território nacional.
Rumos é formação quando proporciona a artistas, curadores e pesquisadores a
possibilidade de participar de cursos, workshops e atividades que ampliem seus
horizontes intelectuais e profissionais.
Rumos é fomento porque abre espaço para a manifestação de novos artistas e
linguagens, fornecendo condições necessárias ao seu desenvolvimento.
Rumos é difusão, pois garante a circulação dessa produção – via exposições, exibições,
espetáculos, registros fonográficos e videográficos e publicações impressas e eletrônicas.
Formatado com base em editais de inscrição separados por área de expressão artística e
com características próprias que se coadunam com a política cultural da instituição,
Rumos já recebeu 7.007 projetos, dos quais 333 foram selecionados por equipes
compostas de profissionais especializados.
rumos itaú cultural transmídia
A primeira edição do Rumos Itaú Cultural Transmídia, ocorrida em 2002, baseou-se
no princípio de que arte tecnológica, arte eletrônica, arte digital e mídia arte são
conceitos, e não definições, de uma fronteira em contínuo movimento.
O programa privilegiou como campos de atuação ambientes imersivos, arte biológica,
arte telemática, computador como mídia, inteligência artificial, espetáculos multimídia
e instalações interativas. O objetivo do mapeamento foi detectar indícios da
incorporação dessas novas linguagens na produção artística. Entre 540 trabalhos
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inscritos, foram contempladas 13 produções e pesquisas sobre a convergência de
linguagens, mídias e tecnologias, de realizadores de São Paulo, Rio de Janeiro,
Pernambuco, Santa Catarina e Distrito Federal.
Os projetos foram selecionados por uma comissão independente, de acordo com três
modalidades: Produção, que apóia a execução de obras inéditas; Desenvolvimento
de Projeto, voltada à formatação de propostas; e Publicação de pesquisas já
realizadas. Nesta modalidade, foram contemplados Leituras de Nós: Ciberespaço e
Literatura, de Alckmar Luiz dos Santos; Arte Telemática: Dos Intercâmbios Pontuais aos
Ambientes Virtuais Multiusuário, de Gilbertto Prado; e A Dança dos Encéfalos Acesos,
de Maíra Spanghero.
A comissão foi formada por profissionais de renome nos campos de atuação acima
citados: André Lemos, professor da UFBA; Antonio Carlos Barbosa de Oliveira, diretor
executivo do Itaú Cultural; Arlindo Machado, professor do programa de pós-graduação
em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; Fernando Perez, diretor científico da
Fapesp; Jézio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp; Jimmy Leroy, diretor de
arte da MTV Brasil; Helena Katz, crítica de dança; Loop B, DJ e produtor de música
eletrônica; Lucia Santaella, professora do programa de pós-graduação em comunicação
e semiótica da PUC, São Paulo; e Suzete Venturelli, professora da UnB.
O ensaio Leituras de Nós: Ciberespaço e Literatura busca entender os caminhos da
criação poética em computadores e em redes, com base em um mapeamento dos
hipertextos, dos programas e das páginas que veiculavam poemas e criações
aparentemente literárias na internet. Acompanha o livro um poema a ser lido em
ambiente hipertextual de navegação e publicado em forma de CD-ROM.
Pós-doutorando na Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Alckmar Luiz dos
Santos é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, vencedor do Prêmio
Redescoberta da Literatura Brasileira (revista Cult), do Prêmio Nacional de Poesia Visual
Joan Brossa (Espanha), e obteve segundo lugar no Prêmio Scortecci de Poesia.
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Prólogo, à guisa de advertência
Este livro contém uma série de reflexões sobre a criação poética em meio digital. Elas foram organizadas
em forma de ensaios, a que se quis impingir certo arremedo de ordem argumentativa. Daí o apelo à
silogística das premissas e das conclusões, que vão dando fio condutor à leitura de cada ensaio. Contudo,
estaria faltando um elemento importante, se, ao exercício do campo teórico, não se somasse a prática da
criação. Como resultado, se encontra anexo um cederrom contendo versos que foram dados à leitura em
espaço digital, com ferramentas de navegação fornecidas pela informática. O mais é exercício de ousadias
que cada leitor irá tratando de construir a seu modo, ao longo dos espaços que deixo abertos a suas
investidas e investigações.
O autor
Ilha de Santa Catarina, setembro de 2003
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Sumário
Introdução, à vera
Premissa Maior: A Multiplicação dos Fragmentos
Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado
Texto Literário em Meio Eletrônico 19
Identidades e Subjetividades no Ciberespaço 24
Saber o/no/do Ciberespaço 34
Novas Estéticas Eletrônicas? 44
Premissa Menor: Espaços de Escritas
Uma Possível ou Pretensa Literariedade 59
O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor 67
Interferências e Dualidades 76
Conclusão Primeira: Novidade e Repetição 97
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Conclusão Segunda: Transbordos e
Reformações do Texto Eletrônico
Excesso e Excessivo 113
Variações em Torno de um Tema Mesmo 116
Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades 119
Anexos
Bibliografia 138
Índice Onomástico 144
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“A vida é muito discordada.
Tem partes.
Tem artes (...)
e as vertentes do viver.”
João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas
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i n t r o d u ç ã o , à v e r a
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Viver é de sempre, e muito, perigoso.
E, entre os vários perigos que espreitam
essa nossa empreita de percursos poéticos
em ciberespaços, acrescentem-se dois:
um primeiro, o refúgio no passado, na comodidade
das tradições e dos pensamentos já feitos e refeitos;
um segundo, o encanto desmesurado com as
técnicas, os processos e as ferramentas.
Para escapar a ambos, a única possibilidade que se
vislumbra, do ponto e da situação em que escrevo,
é a de enveredar por um percurso de conhecimento:
conhecimento do ciberespaço através do poético,
do poético através do ciberespaço.
Lembrando sempre que “poético”, aqui, quer indicar
preferencialmente a poesia eletrônica.
Ou digital. Ou telemática.
Ou qualquer outro nome, que eles são legião.
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p r e m i s s a m a i o r
a m u l t i p l i c a ç ã o
d o s f r a g m e n t o s
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“Ours is essentially a tragic age,
so we refuse to take it tragically.
The cataclysm has happened, we are among
the ruins, we start to build up new little
habitats, to have new little hopes.
It is rather hard work:
there is now no smooth road into the future:
but we go round, or scramble over the
obstacles. We’ve got to live,
no matter how many skies have fallen.”1
D. H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love
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Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado
Texto Literário em Meio Eletrônico
Primeira cena: diante de uma tela, alguém imerso, o mais completamente que pode, em um ciberespaço
imenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos de raio infinito;
descrição de um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, podemos dizer: são tempos de deriva, estes
que vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um dia
inteiro de estafante imobilidade, retornamos ainda mais enclausurados de uma jornada aos confins do
mesmo. Tempos de deriva e de vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualiza
e nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – cedeu lugar e palco à vertigem de ser, essa
voragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama de encenação
que pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo dessa cena fechada
que é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais de discussão pela
internete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, na
busca de arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias de sentidos,
nesses restos de significados, nesses vestígios de idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelo
mundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final de cada dia, sem que tragam resquícios
ou interferências relevantes de outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando como
um Osíris que pudesse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem aprender nada com isso, sem
avançar, nem mesmo um pouco que seja, para além dessa nossa tragediazinha cotidiana de aparecer-
desaparecer-reaparecer para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do descaso.
Segunda cena: diante de uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço indefinidamente
aberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial de dados, pelo elencar de datas, projetando
percursos de sentido incerto, mas definidos passos; narrativa de uma opera philosophorum dos tempos
atuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos de deriva estes nossos, em que temos de improvisar
instrumentos com que esboçar rotas, com que evitar demasiados desvios, com que propor caminhos. Não
mais serviçais da fragmentação e do descaso, mas mestres da pluralidade e artífices do acaso. Tempos em
que podemos passear à volta de nosso quarto sem repetir o percurso de sempre, levando até mesmo esse
nosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outro
e que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem de ser é pretexto e motivo para
resgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aos
nossos, uma alteridade, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos de ficar presos à rigidez de sermos
indefinidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio,
ao fim de cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências de outros, como
essas frases epigramáticas deixadas em rodapés de imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, e
que podem um dia ou outro apresentar-se diante de nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um
“Recado do Morro”, em muito semelhante ao de João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosse
recolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pudesse ser vislumbrado de diferentes modos, em
diferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção.
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* * *
É assim então que, entre a fragmentação e a pluralidade, se joga o sentido destes nossos tempos. Aliás, de
quaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética de estranha fatura: escolher uma
pluralidade sem fragmentação comprometeria a própria pluralidade, pois ela não saberia nem poderia ser
multíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que nos
cercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralidade domine
a cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez não
convencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construção
de uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia!
Imaginemos um oceano coalhado de ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada um
deles largando à deriva incontáveis garrafas, todas levando mensagens dentro. Mas seriam mensagens de
especial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado de papel (ou de outro material qualquer que
sirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocando
cada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas,
fatigadas e fartas de tanto oceano, carregadas de cracas e de marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmo
precariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outros
escreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago de uma dada ilha enviou,
ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como entender o que os dias,
os sóis, as tempestades, as rochas, as umidades e os detritos modificaram nessas mensagens? Falei, não por
acaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O deus despedaçado, que se torna senhor do reino dos
mortos, pode ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido e
espalhado, mostra como ele pode ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era.
Daí se poder afirmar que ele aponta, nessa perspectiva de agora, não para uma fragmentação insuperável e
inelutável, mas para uma pluralização de nós que nos resgata dessa primeira e necessária fragmentação.
Como se, para chegarmos à pluralidade, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie de morte
alquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dado
a tal leitor mítico, capaz de resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nem
estivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes de ser fragmentada.
Mas há um detalhe importante a ser explorado: na tentativa de recompor alguma história, qualquer um
desses náufragos pode hesitar indefinidamente entre reescrever a própria história ou retomar a de outros.
Em outras palavras, ele pode escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria ou
a de outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a de seu fracasso, pois, como já
admitia Bentinho, de D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é
igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das
pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagem
primeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão de seu paraíso particular. Ou a totalidade das mensagens
escritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir como
um outro Adão, terá de admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos,
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substituir. O que sobra, então? Apenas um tartamudeio insolente, a encenação de um arremedo de
sabedoria, o contar de uma história, a única que ele considera possível ainda tecer, essa narrativa de como
foi incapaz de sair de seu círculo de idéias e métodos, de tentativas de leituras, de perspectivas de
interpretação. A narrativa de como ele, não tendo como voltar à origem das mensagens e dos tempos,
encerrou-se na contemplação narcísica de si próprio, justamente para não ver seu fracasso. Talvez, uns poucos
desses náufragos, aqui e ali, consigam vislumbrar uma estratégia diversa. Se não é possível essa reconstrução
da originalidade para sempre perdida, se não se consegue mais, como os caçadores de sonhos do Dicionário
Kazar, recompor o corpo inteiro do Adão Kadmon, se as narrativas míticas não fornecem mais nenhum mapa
de como voltar à origem das mensagens, das escritas e dos seres, o caminho a trilhar, então, é esse de tramar
uma mitologia do aqui e do agora. Esses náufragos terão, assim, de apossar-se dessas partes das histórias de
outros, chegadas ao sabor e ao acaso das marés e dos ventos; fazer delas partes da sua história e fazer da sua
pedaços das histórias de outros; propor uma narrativa multiforme, plural, em movimento, que não apague
sua individualidade, e também não se resuma a ela apenas. A partir daí, sua vida inteira muda de sentido:
não mais os sentidos outorgados e contados por uma mensagem original e primeira, mas os sentidos que eles
são capazes de inventar com os materiais, imagens, idéias e histórias que outros lhes dão, que eles tiram de
sua precária memória, nessa trama de nós e pontos infindáveis, prenhes de sentidos possíveis.
Tal é a empreita que aqui se intenta: ler esse hipertexto eletrônico e telemático em que nos inserimos cada
vez mais, com os gestos e os processos do poético, para espreitar formas e fôrmas de impor a ele e/ou
desencavar dele sentidos e significações (precárias que sejam). Mas, para isso, é necessário recortar algum
caminho nessa selva selvaggia de significantes e de percursos. É necessário que aprendamos como nos
mover por entre ligações e sítios, como prever percursos de um provedor a outro, de uma URL a outra. E
contamos talvez com alguns mapas, parciais sempre: a literatura, que se esgueirou, freqüentemente, por
vizinhanças próximas à ciência e à técnica, compondo e recompondo textualidades sem o conforto do
esperado e do reconhecido; especificamente a poesia, useira e vezeira em pluralidades e percursos nunca
definitivos de leitura. Daí nossa escolha em andar pelos caminhos da poesia eletrônica, essa que é feita,
desfeita e refeita no ciberespaço, apreendendo deste as nuanças da interatividade (homem-máquina,
homem-homem, máquina-máquina) e da iteravidade (essa retomada incessante de dados e rotinas que
deve exaurir o processo antes de cansar o usuário). Em outras palavras, propomos utilizar a perspectiva
literária para delimitar um objeto – a Rede – inserido em um novo campo de sentidos e de possibilidades –
o ciberespaço –, mapeando um objeto cultural não mais limitado necessariamente ao campo literário.
* * *
Jamais a literatura, a boa literatura ao menos, apostou na univocidade. Isso quer dizer que, entre
pluralidade e fragmentação, a criação literária sempre soube escolher uma ou outra, às vezes uma e outra.
A bem da verdade, o texto literário nunca fincou pé na permanência e na linearidade, ao contrário do que
muita gente tem afirmado (fruto, talvez, de leituras apressadas do S/Z, de Roland Barthes). Tal equívoco
parece decorrer de certa confusão entre texto literário e livro. Este tem sido, nos últimos séculos, o meio de
veiculação, a base material do texto, como já o foram a voz na literatura de tradição oral e os papiros,
pergaminhos e códices nos primórdios da tradição escrita. E o sucesso dessa base material – o livro – se
21
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explica por ela ter conseguido associar maneabilidade2
a permanência. O texto literário nunca saberia
permanecer idêntico a si próprio, já que sua objetividade não se confunde com uma materialidade que na
tradição impressa se assenta no livro. Assim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificação
em nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo não pode ser dito do texto,
qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O que ocorre com a mudança da base material, da página
impressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar
pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto.
Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de
percursos e na heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.).
Uma possibilidade de ler essa multiplicidade de materiais, de significantes e de significações, estaria na provável
utilização de modelos combinatórios,3
que tenderiam a delimitar as inúmeras aproximações intratextuais assim
como a multiplicidade de referências e interferências entre um texto a ler e textos outros que compartilham
todos um mesmo campo de leitura. Mas essa tentativa encontra logo seus limites, sobretudo nos livros
impressos que apostam na multiplicação das intratextualidades.4
De fato, como trabalhar, por exemplo, com
alguma lógica de mundos possíveis (como propõe Umberto Eco), se é a própria possibilidade de mundos que se
encontra também em discussão? Nesses casos, a tática combinatória esbarra na impossibilidade de manipular
diretamente uma massa de significantes que escapa totalmente ao controle da leitura e até mesmo ao crivo da
memória. Além disso, a atual mudança do sistema literário não é apenas quantitativa, como ocorreu quando
do abandono dos códices em favor da imprensa. Ela é também qualitativa: o que testemunhamos é semelhante
ao ocorrido na passagem da tradição oral para a escrita, com uma significativa e radical alteração dos modos
de organização, de estruturação e de consulta do suporte da obra literária.5
Daí essa atração pelas ciências do caos e dos fractais que observamos não apenas entre os literatos, mas nas
ciências humanas em geral. À aparente desordem dos materiais e dos significantes, tenta-se responder com
ordens de nível superior, que descubram e esbocem um determinismo sem nenhuma previsibilidade.
6
Isso parece ser útil quando associado a qualquer obra, mas também, e sobretudo, aos livros eletrônicos.
Nestes, se tentamos desvendar certa sistematização em suas articulações de sentidos e significações, é
preciso que, de um lado, se fuja do impressionismo das interpretações disparatadas e das navegações
disparadas; e, de outro, deve-se cultivar e apreciar o plural7
de que é feito esse livro eletrônico tanto quanto
o texto que dele se faz derivar. No caso, trata-se de articular uma correspondência de geometria variável
entre três elementos: um espaço de construção de sentidos – o ciberespaço –; uma base material – o livro
eletrônico –; e o próprio texto. Utilizar, então, essa aproximação fractalista da obra digital significa colocar
objetos n-dimensionais sob a batuta de operadores lógicos capazes de inseri-los numa ordem plural de
escritas e de leituras, em que os sentidos de ambas são sempre reversíveis. E que operadores seriam esses?
Como circunscrever e delimitar seu espaço de atuação? E, ainda, como estabelecer determinismos
cambiantes que, sem apontar para uma apreensão teleológica ou essencialista do texto, dêem conta das
aparências e das materialidades proteiformes do livro eletrônico? Questões, todas, que ao longo deste
ensaio, se não respondidas, deverão ser ao menos mais bem enunciadas. Questões que apontam certamente
para os saberes que se vão delineando, esboçando, construindo, colocando em dúvida, superando, dentro
dessas redes de nós e de todos nós, que é o ciberespaço.
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Albrecht Dürer Melancolia l, 1514 Rosenwald Collection, Image c 2003 Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington
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Identidades e Subjetividades no Ciberespaço8
Talvez não seja inútil insistir que, neste espaço de escrita que aqui se desenha e se emenda, entende-se
ciberespaço como hipertexto ou texto eletrônico, que as diferenças entre eles não são, por vezes, mais do
que filigranas finórias e não muita profundidade acrescentariam à discussão. E, no caso de texto, temos
muito a dizer com base em uma experiência que, alçando o literário à ribalta, pode nos dar o direito de
resvalar para espaços outros de significações. Com isso, é a própria cena telemática do (hiper)texto que se
pode dar a (re)conhecer, partindo de um espaço que se quer literário, mas que permite ver rastros, vestígios
e contornos das subjetividades nele envolvidas. Há também uma suspeita de que do telemático pode-se
passar ao dramático, percebendo no ciberespaço uma instância que é produção textual, que é enunciação
significante e, ao mesmo tempo, encenação de seres e de linguagens. Mas isso é linha a ser tricotada mais
adiante e não vamos meter carros à frente de bois. No momento, concentremo-nos na maneira como se
pode ler (n)esse espaço habitado por sujeitos e processos telemáticos, aparentemente compartilhado por
pessoas e dispositivos informáticos.
Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que podemos ter dos textos eletrônicos ocorre
justamente quando desligamos o computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrás
eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia, um pálido reflexo que somente se
mostra a partir do monitor desligado. Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida,
é então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando, talvez, o incômodo de uma
posição em que nos surpreendemos inquirindo subjetividades e perturbando identidades. É como se se
reproduzisse a difícil posição do indivíduo que na Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, se
vê colocado diante da palavra, que “te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhe
deres: / Trouxeste a chave?”. Contudo, o que perturba e incomoda é que o inquisidor não é palavra alguma,
ele se parece muito conosco!
E o que essa imagem pediria, instigaria, exigiria, possibilitaria? De um lado, a busca de si, esse percurso que
aponta para o conhecer, mais ou menos exato, de quem ou de que seria tal reflexo precário, essa
individualidade que se vislumbra na tela do computador desligado. De fato, apresenta-se diante de nós a
possibilidade de reconstruir, ainda que parcialmente, nossa própria imagem, de recortá-la contra um fundo
indistinto e indiferente de vidro neutro e de recuperar a capacidade de uma reflexão primeira ou
primordial, quer dizer, recuperar um nosso olhar voltado para nós mesmos e para nosso próprio olhar (ou
para os traços e vestígios que de nós sobraram, uma vez suspensa a viagem pelo ciberespaço, terminada a
navegação dos hipertextos, esgotado o reconhecimento dos programas e dos aplicativos). Temos aí o
mesmo tipo de reflexão das mãos que se tocam tocando, do pensamento que se pensa pensando, em suma,
uma reversibilidade que não é necessariamente dialética e possibilita uma significação que vai além dos
discursos, das falas e das obras já envelhecidos e, portanto, reconhecíveis e manipuláveis. O que se presencia
é a primordialidade que está por trás de todo gesto significante, de toda expressão e, em síntese, de toda
linguagem. Mas é importante ressaltar que se trata de um trabalho de Sísifo (que, já se disse, é também
trabalho decisivo, ou incontornável), de perscrutar traços e vestígios à cata de fragmentos de nós que
24
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2525
formem uma cadeia de precária coerência (mas, mesmo assim, de coerência). É inevitável trabalho e ao
mesmo tempo interminável, pois, sendo religado o computador, a interface gráfica do Windows® ou do
Macintosh® vem novamente justapor uma máscara de cores e de movimentos, escondendo nossos gestos e
intenções sob os deslocamentos céleres ou morosos do cursor sobre ícones, imagens e palavras, e sob as
transformações e as rotações das imagens. Daí a percepção de que nos perdemos no ciberespaço, de que
nossos vestígios e fragmentos se isolam, se desgarram e não nos entregam nada além de uma identidade
difusa e para sempre desfigurada. No entanto, se insistíssemos na lembrança de nossa fisionomia
perscrutando o fundo vítreo da tela desligada, poderíamos talvez justapor outro percurso aos rumos das
imagens, das ligações e dos sítios desfilando diante de nós, poderíamos impor outro ritmo à celeridade de
processamento de máquinas e redes.
Porém, essa não é a única possibilidade: nossa tênue imagem ao fundo do monitor desligado pode resultar
em outro percurso, em que não se vai além da reafirmação do mesmo, ou seja, de nós próprios. Como
resultado, não temos nada além do que o retorno a uma imagem nossa, tão plana e tão insignificante como
a tela do computador apagado. Em outras palavras, teríamos a concretização de um solipsismo que está
sempre rondando nossas navegações, do mesmo modo como espreita nossas reflexões e nossos projetos. E,
nesse caso, que conhecimento teríamos de nós? O que veríamos de nós, senão a confirmação de nossa
própria fisionomia inapelavelmente sobreposta às coisas e aos outros? De fato, em tudo e em todos
veríamos a mesma marca, os mesmos traços, a mesma feição. E que conhecimento poderia vir dessa
operação intelectual que, com efeito, seria apenas um arremedo de auto-reconhecimento? E como fundar
aí nossa identidade, pois entre nós e o mundo exterior não haveria justamente essa distinção originária e
fundadora que nos dá um mundo vivido e uma vida para habitá-lo? Parece que se retoma assim aquela
experiência de repetir uma palavra à exaustão até que ela se torne, pouco a pouco, estranha, impenetrável
e até mesmo hostil; por ser tantas vezes enunciada, ela deixa, aos poucos, de ser familiar e conhecida, ela
deixa de significar. Ao se tornar como que a única palavra a sobrar em um léxico esvaziado, ela perde toda
significação, justamente por ter-se afastado das outras palavras, por não ter mais como construir sua
significação na diferença recíproca que guarda com elas. Quando nos vemos reduzidos a nossa própria e
única contingência, nada podemos tirar senão a pobreza da análise, aquilo que não nos dá nada além do
que já havíamos aí colocado. Daí a sensação de que nossa imagem imposta à tela do computador pode
resultar em uma espécie de ausência nossa diante de nós mesmos, uma ausência sentida paradoxalmente
como presença, como uma volta melancólica a nós através de rastros, traços, vestígios e sinais que parecem
ser evidentemente nossos, mas que trazem a marca do estranhamento e da distância, do aparente
apagamento de nossas singularidades pelo desligar da máquina. E, se fôssemos apenas nós próprios e nossa
condição, nesse caso, nossa condição seria um papel frouxo e molhado em que tentaríamos manter
indeléveis os elementos e os vestígios de nossa presença, mas submetidos a uma perda de profundidade e
de perspectiva que os devolveria não mais como presença constante de nós no mundo, como dito acima,
mas como presença gasta e, assim, esvaziada de sentido e de qualquer identidade possível.
No outro lado desse espectro, está o computador ligado permanentemente à rede, está a saciedade
excessiva, o fastio cibernético de que, por vezes, não nos damos conta, senão depois de muito ter navegado
pelos mais diferentes sítios e endereços, entregues à volúpia de buscar um ícone, uma informação, um dado
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que sempre estarão, segundo se faz crer, no próximo percurso, que pretensamente se mostrarão disponíveis
no endereço que ainda aparecerá na tela. Mas eles não chegam nunca até nós, ou talvez até cheguem, mas
nos encontramos tão entorpecidos que já nem mesmo sabemos reconhecê-los, nem conseguimos reagir a eles.
No caso, as imagens, os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons acabam se empanturrando de
possibilidades de significações, que se tornam, então, inúteis e impenetráveis. Trata-se de uma espécie de
presença ausente, de uma perda de sentido dos objetos dentro de seus próprios detalhes e vestígios. Mas, até
mesmo aí, não escapamos à fatal atração dessa contemplação melancólica de nós próprios, pois as imagens,
os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons, ao se fartarem e se esvaziarem de sentidos, acabam por
se tornar inúteis, impenetráveis e vazios. E, nesse movimento, deslocam a contemplação para um outro vazio,
isto é, para a ausência de nós próprios, dotando-nos da mesma inutilidade e da mesma impenetrabilidade que
se exibem sobre a tela, à imagem dos belíssimos versos com que Mário de Sá-Carneiro fala de sua Dispersão:
“Perdi-me dentro de mim, / Porque eu era labirinto / E, hoje, quando me sinto, / É com saudade de mim”.
Estando ligado o computador, corremos sempre o risco de nos entregar ao desenfreado e ao desmesurado das
conexões multidirecionais, dos saltos abruptos e incessantes, das vizinhanças forjadas à força, experimentando
uma saciedade excessiva que guarda inesperada similaridade com aquela descrita acima, em que nos escondemos
atrás de um solipsismo fechado e redutor. Nos dois casos, há como que um estrangulamento das significações, já
que tanto a privação quanto o excesso terminam por nos fazer cair num vazio ou numa inutilidade dos
significantes. E ambos nos enredam em uma melancolia da significação, que é nossa e é também dos
significantes, melancolia que talvez somente possa ser superada por uma busca, por uma reafirmação, por uma
retomada, por uma recostura – extremamente trabalhosas, mas inevitáveis – da própria identidade. De fato, as
duas experiências – seja a da navegação descomedida e sem amarras; seja a do fechamento em sua própria
imagem – evocam um Narciso colocado diante de uma imagem de si que já não guarda mais unidade, que já não
lhe garante nem mesmo o eco de sua voz ou o reflexo do que conseguiria identificar como sendo seus próprios
traços ou vestígios espalhados pelo mundo que ele ainda pode ver diante de si.
No entanto, melancolia pode remeter a referências demasiadas, pode permitir ou exigir comentários infindos,
com o que praticamente cairíamos na situação descrita, indo da melancolia como assunto à melancolia como
situação. É assim que, para escapar a essa ditadura do melancólico (que, no caso, resultaria de uma angústia
do excesso de interpretação), vou-me permitir uma abordagem mais leve (sem que ela seja, por isso, leviana
ou superficial), tentando articular uma leitura do ciberespaço que seja também o esboço de uma saída dessa
situação de melancolia. No caso, uma das referências minhas preferidas está na gravura de Dürer justamente
intitulada Melancolia I, que acabei tomando como possível fio condutor de uma compreensão desses
mecanismos de significação, de subjetivações e de construção de identidades no ciberespaço. Vamos a ela!
Como se deu essa transposição da gravura de Dürer para o ambiente telemático? Utilizei-a como ponto de
partida, como inspiração, como catalisador de uma compreensão dessa melancolia do ciberespaço, talvez
agindo à maneira dos leitores do I-Ching, que se servem do casual para pretensamente chegar ao essencial.
Aos poucos, traços de semelhança e possibilidades foram surgindo e permitindo que eu me desvencilhasse
da gravura e entrasse mais e mais profundamente nas entranhas dos textos eletrônicos e do ciberespaço. O
que vou tentar fazer aqui, por conseguinte, é apenas um resumo desse percurso que partiu de uma visão
alegórica da gravura, passando por um trajeto exegético de seus elementos para chegar, finalmente, a uma
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compreensão direta e mais acurada de meu objeto de reflexão. Alguns poderiam, com todo o direito,
argumentar que a escolha de tal perspectiva de investigação – no caso, essa dada gravura – é tão (i)legítima
e (não) convincente quanto qualquer outra. O que apresento, então, como argumento é apenas um pedido
para que julguem essa escolha com base nos resultados da discussão, não condenando a priori os postulados
de onde parti. O que interessa não é o que a média das pessoas poderia associar à obra de Dürer, mas o que
eu quero ou pretendo ver como apoio a minha leitura do ciberespaço. De fato, é a coerência e a capacidade
de convencimento desta última que servirão para indicar o acerto (ou o fracasso) de minha estratégia.
Tomando então a gravura, podemos perceber nela uma multiplicidade de elementos que se acumulam
numa ordem que inicialmente dá a impressão de fugir a toda tentativa de sistematização: figuras
geométricas, objetos de uso diário, imagens carregadas de possíveis alegorizações, referências muito
provavelmente bíblicas etc. Todavia, essa multiplicidade parece escapar ao anjo – pretenso elemento central
a partir do qual seriam endereçados os olhares para os outros elementos. Ao menos a gravura se organiza
de modo a dar a impressão de que vários objetos e seres estão dispostos a sua volta, sem que ele consiga
apreender o sentido (ou os sentidos) dessa multiplicidade de coisas. Esta – a multiplicidade – torna-se para
ele legião (no sentido da legião de demônios que, no Novo Testamento, Jesus expulsava de um
energúmeno), e não pluralidade ou variedade do mundo vivido. Diante disso, não seria absurdo ou
despropositado falar de um anjo caído, de uma criatura divina, mas perdida na materialidade múltipla das
coisas. Ele não consegue apreender essa legião de existentes e de diversidades, já que se encontra
totalmente preso à busca de um princípio único causador (o vértice do compasso, o centro da eventual
circunferência a ser desenhada por ele, um centro tão excêntrico quanto o ponto de luz que, ao fundo, não
consegue ser foco nem origem do círculo que se recorta contra o horizonte). E esse princípio mostra-se
totalmente desvinculado da pluralidade efetiva e direta das coisas e dos seres.
Nesse sentido, a angústia da situação do anjo nasce do mesmo motivo primeiro que levou ao
desenvolvimento do pensamento grego, a oposição entre o uno e o múltiplo. Porém, o que, para os gregos,
foi impulso e incentivo para o conhecimento, para o anjo, mostra ser, ao contrário, peso e desalento: a
pluralidade de elementos não parece entrar no desenho que ele tenta esboçar, pois o olhar perdido ao
longe afasta do traço e do compasso a diversidade, sem chegar a encarar essa luz que ao fundo aponta para
as coisas, as ilumina e dá-lhes possibilidades de sentidos e de coerências. De fato, ele parece estar
concentrado unicamente na busca de uma totalidade inútil e distante, de uma totalidade que, com efeito,
obscurece e escamoteia o conjunto e a variedade dos objetos e dos seres. Entre essa luz que vem do fundo
(e que, na nossa leitura, não pode deixar de remeter a luzes e a cintilâncias de telas e de monitores) e o
olhar do anjo, situa-se toda uma coorte de coisas, uma materialidade múltipla que acaba, de fato, por se
esconder a ele e por esconder dele a própria totalidade (não revelada, mas que poderia ser encontrada,
reconhecida, aprendida nas coisas e em suas disposições, estivesse o anjo em outra posição). Em
conseqüência, é a visão de si próprio que fica escondida, ou perdida em meio à barafunda de uma variedade
tão sem sentido – para ele – quanto esse olhar melancólico e falto de perspectivas. E que variedade de
elementos seria essa, segundo a perspectiva do anjo? Uma escada que dá em nada ou lugar nenhum, inútil
escada em que a base terrena parece ter perdido o pé e desaparecido, escondida entre restos e ruínas, e em
que o topo não leva nem a transcendência, nem a entendimento, nem a paraíso algum, inútil escada de
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Jacó sem o menor traço da luta deste com um anjo (outro, claro!), esboçando na verdade e na aparência
(ou na verdade da aparência) uma inútil luta consigo mesmo.
Temos ainda figuras geométricas misturadas a figuras naturais (como o animal situado entre um poliedro e
uma esfera), acompanhadas de produtos artesanais (tecidos, balanças, sinos etc.), numa provável proposta
de conciliação entre as três esferas (abstração, criação e construção), ou num possível acordo entre espírito
de geometria e espírito de finesse. Trata-se de conciliação e de acordo que não são mesmo percebidos ou
compreendidos pelo anjo, perdido em meio ao que ele poderia considerar apenas despojos de si próprio. À
direita dele, encontra-se uma criança, ou melhor, um pequeno anjo de aparência infantil e despido de
auréola (a não ser pela circularidade de um dos pratos da balança que, acima de sua cabeça, proporciona
um arremedo de auréola; já o anjo, ele próprio, está ao menos coroado de louros). Logo abaixo dessa
criança-anjo, está um animal, repousando indiferente ao olhar e à atenção que ela parece dirigir-lhe. E o
conjunto de ambos, quando os destacamos em meio aos demais elementos, poderia indicar uma progressão
do animal ao anímico, mas, novamente, um conjunto e uma progressão que não se dão senão a nós que
estamos postados fora das perspectivas do anjo, que a ele nada disso se dá, nada disso se deixa ver. Temos,
talvez alegorizados, a origem temporal e o encaminhamento para o telúrico desse anjo, mas que, para ele,
não passam de fragmentos de uma identidade que parecem escapar a sua leitura, a seu entendimento. Ao
chão, encontra-se ainda o que pode ser visto como restos de uma construção iniciada mas não terminada,
como se fossem ruínas de si próprio, exposto que está a uma multiplicidade que ele não entende, não
percebe, não controla e não organiza.
E o que seria, então, esse anjo e esse espaço, essa disposição de coisas e essa balbúrdia de sentidos e de
significados possíveis? Muita coisa, possivelmente, mas todas elas, se propostas ou construídas a partir da
perspectiva intradesenho do anjo, remeteriam inapelavelmente a um centro de significações falho ou vazio.
Tendo a percepção embotada pela multiplicidade incompreensível (para ele!) das coisas do mundo, o anjo
afunda-se numa queda, que é busca inútil de uma ordem única para o mundo e, a fortiori, de uma
identidade absoluta para si próprio. Não há entre os objetos um espelho que lhe devolva, como imagem
coerente dele próprio, essa busca por sentidos e ordens. Como resultado, ele não percebe nem a unidade
de si, nem a real extensão da pluralidade das coisas, pois sua percepção se encontra embotada por uma
variedade de que ele não consegue dar conta. Se ele fosse apenas anjo, ainda guardaria a unicidade do
cosmos; se se tornasse tão-somente humano e material, seria capaz ao menos de perceber ou sentir ou,
mesmo, de viver a pluralidade da existência; sendo anjo e (de)caído, perdeu a primeira condição, sem
ganhar a segunda. Assim, é sua identidade que fica perdida em meio à multiplicidade de coisas, de
significantes, de possibilidades de sentidos. Algo parecido ao que pode ocorrer também com os leitores
desse texto-gravura: afinal, seu tom fortemente alegórico leva a uma acumulação de possibilidades
exegéticas, em tudo semelhante ao acúmulo de objetos cercando o anjo, o que pode causar um certo
cansaço de ler, de escrutinar e recensear significações possíveis e coerentes. Em decorrência, é a fadiga de
ler-se a si próprio que se instala, numa busca incessante, mas infrutífera pela própria identidade, partida e
repartida, esta, pela multiplicidade de coisas, de leituras, de possibilidades de significações e de desvãos
interpretativos em que se pode perder tanto o uno de si quanto o plural do mundo, ou vice-versa, a unidade
das coisas e a variabilidade de si.
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Essa busca pela própria identidade, em meio a fragmentos e ruínas e multiplicidades, não precisa ser
necessariamente melancólica. Assim como a exploração do ciberespaço não tem necessariamente que cair
nas duas formas de melancolia acima descritas: a da multiplicação indiscriminada e incontrolada de
informações e a do solipsismo e do fechamento individualista em si mesmo. De fato, há vários processos de
construção de identidades e de subjetividades no ciberespaço e nem todos devem levar necessariamente a
essa lacuna de si e a essa ausência de sentidos (seja pelo acúmulo indefinido e indiscriminado de
significantes, seja pela imposição de uma fisionomia única e redutora a todo e qualquer elemento
significante). Mas mesmo essas duas devem fazer parte de uma tipologia mais geral e mais abrangente que
tente dar conta das diferentes maneiras de o sujeito colocar-se diante de si e dessa teia de elementos
significantes que estamos chamando de ciberespaço. Em resumo, podem-se propor três tipos básicos de
processo de subjetivação: 1) uma identidade absoluta e além do sujeito; 2) uma identidade relativizada e
aquém do sujeito; 3) uma identidade provisória e não programática. E é claro que estaremos, de ora em
diante, fazendo pender discussões e pontos de vista para esta última, pois ela parece ser, diante das duas
outras, a única possibilidade de escapar à melancolia que vem da proliferação descontrolada do múltiplo
ou que resulta da repetição de si mesmo.
Tomemos então, primeiramente, essa identidade absoluta e além do sujeito. Ela parece se manifestar,
por exemplo, pelas próteses tecnológicas e/ou cibernéticas com que se dotam os corpos (e, em decorrência,
as próprias atividades humanas implicadas). Vale dizer que, quando nos referimos a humano, estamos
pensando naquilo que se encontra ainda aquém dos gestos e das intenções significantes e lhes serve de
ponto de partida: por trás da atitude de indicar um objeto ou uma direção, está o dedo que aponta, a mão
que o contém, o braço que o sustenta, o ombro que o ampara, o tronco de onde ele nasce, em suma, está
o corpo inteiro flexionado e fletido para dar a si e entregar ao mundo certa significação. Quando
escondemos nosso corpo com aparatos com que ele não nasceu, quando outorgamos a nossos gestos uma
origem externa ao espaço e ao alcance de nossos corpos, estamos naquela situação, criticada por Virilio, de
nos dotarmos de uma virtualidade realizada às expensas de nossa própria circunstância corpórea. Estamos,
também, na posição descrita (e exaltada) por Pierre Lévy, quando se refere ao duo pensante homem-
máquina. No caso do ciberespaço, trata-se da impressão de que nossa identidade não passaria mais pelo
reencontro de nós em nossos próprios gestos, no reconhecimento de nossa fisionomia no que fazemos e nas
significações que propomos às coisas e aos fatos, na maneira como visamos a um mundo de significações
que se instala a nossa volta. Nossa identidade estaria, dessa forma, não na extensão de nossos gestos e de
nossos corpos em direção a algum elemento significante que eventualmente construiríamos ou
perceberíamos ou para o qual apontaríamos, mas apenas e tão-somente no além de uma extensão
maquínica, de um processo cujo sentido e cujo alcance nunca tivessem feito parte de nossas intenções e
percepções diretas, de um processo, em suma, que viria até nós sem ser por nós produzido ou percebido.
Trata-se de uma identidade que poderíamos classificar como místico-tecnológica, pois consiste no
esvaziamento de nossa própria singularidade em proveito da exterioridade de uma tela, de um dado
endereço eletrônico, de ligações a endereços eletrônicos outros, de interações impostas por uma lógica de
leitura e de navegação estranhas a nossas expectativas e experiências, em resumo, de elementos
significantes que parecem surgir de uma exterioridade absoluta e além do sujeito. E por que místico?
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Porque ela exige uma negação de sua própria singularidade, com a conseqüente aceitação de uma
exterioridade absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nos
dotamos de um mundo que existe antes de nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilidade
entre corpo e mundo), mas em como deixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar como
seres deles dependentes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certas
regiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha dessa percepção
encontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exterioridade absoluta a que somos –
paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, dentro dela. Não seria absurdo afirmar que se trata
de uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-se
numa experiência em que se busca justamente uma dualidade (o sagrado e o profano) em que esses dois
campos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam a
ver. No caso desse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualidade, uma dualidade que não
resiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essa
duplicidade à simplicidade e à exterioridade de um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, o
humano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos).
Como conseqüência, a identidade de si (ou um arremedo dela) passaria forçosamente por uma identificação
com instrumentos e com os processos de que se dispõe, abrindo mão de qualquer autonomia ou
espontaneidade próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da identificação de si próprio com uma
eficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão de eficácia (assim como de identidade), pois a
performance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestos
humanos. A conseqüência direta dessa busca de identidade, através do além do tecnológico, não traz como
resultado senão exterioridade e platitude (ou, dito de outro modo, nada além de uma tecnomelancolia). Bem
diferente, em todo caso, de experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou de San Juan
de la Cruz, que, de uma aniquilação de si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado.
O segundo tipo de identidade que se pode propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamos
como relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processo
em que, devido a um transbordamento de significantes, toda informação, todo dado, todo significado
inevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações desfilam e se desfiam na tela
do computador, demasiadamente rápido diante de nós, sem deixar nenhuma possibilidade de esboçarmos
certa fisionomia de organização, algum esforço de racionalidade, mesmo provisório e localizado, que
pudéssemos associar aos objetos significantes desfilando pela tela. É o caso em que o excesso de informação
deixa de ser informação para tornar-se ruído, perdendo totalmente qualquer conteúdo informativo. Mas
isso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhe
a ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilude) de que é ele quem está por trás de toda construção de
objetos significantes, que todo percurso de significação se submete ao arbitrário e ao relativo de suas
posições e gostos e disposições e gestos.
Assim, esse sujeito instala-se num ponto de enunciação falto de sentidos e sem horizonte de significações
possíveis tendo a impressão de que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se de todos esses
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processos. Não lhe restaria outra posição senão a de instalar-se decididamente na ribalta dos significantes e
estabelecer-se, solitariamente, como horizonte de sentidos e de possibilidades de significação. Mas é aí,
justamente, que o processo se inverte e essa hipertrofia inicial (e, dizíamos, paradoxal) do sujeito se
transforma em atrofia. Ele não percebe que está, na verdade, limitando-se a pontos de vista passivos (e eles
se multiplicam, acentuando o esvaziamento de sua subjetividade) diante de uma celeridade de significantes
cada vez mais esvaziados. Com o que ele se reduz, afinal de contas, de forma gradual e inapelável a uma
lacuna num espaço então tornado definitivamente lacunar. Há como que uma homogeneidade entre o
vazio da informação multiplicada à exaustão e às raias da inutilidade e um sujeito rareificado que nem
mesmo percebe estar sendo excluído da cena dos objetos significantes.
Finalmente, resta discutir o terceiro tipo, a identidade provisória e não programática, em que a busca
de sentidos e de significações não se dirige nem para uma mistificação do tecnológico (além do eu), nem
para um transbordamento vazio de informações (aquém do eu). Essa terceira identidade se fundamenta no
que poderíamos descrever como uma costura de identidades (assim mesmo, no plural!) e de significantes,
em que internos e externos se conjugam, se entrelaçam, resultando num gesto expressivo que parece
lembrar o que Merleau-Ponty chama de quiasma ou reversibilidade.9
Em certo sentido, o que se propõe é
como que a busca de um apoio ou de complementaridade no outro, no que é provisoriamente diverso,
oposto ou externo. É, por exemplo, descobrir um outro lado no espaço e nos objetos da tecnologia,
rastreando neles a sedimentação do toque humano que revela o horizonte cultural de qualquer
instrumento, por mais eficiente que ele pretenda ser, de qualquer processo, por mais poderoso que ele
pareça. Na verdade, é justamente esse fundo de cultura que pode revelar o horizonte de sentidos e de
significados possíveis de qualquer instrumento ou processo. Com o que podemos mostrar, com toda a
evidência, que a finalidade do espaço tecnológico não está nele mesmo (como pareceria mostrar a primeira
identidade falha aqui discutida) nem num locus esvaziado de sentidos e de subjetividades (para onde
apontaria a segunda tentativa de identidade), mas na maneira como acomodamos ou alteramos seus
significantes e seus significados em direção ao sentido que queremos e podemos dar a ele. De fato, não há
nenhum sentido do tecnológico que se esgote nele mesmo, em sua própria instância. É o sujeito que lhe dá
o toque final e o sentido sempre provisoriamente definitivos.
Do mesmo modo, somente o olhar externo à gravura (portanto, não reduzido às limitações e aos limites da
perspectiva do anjo) é capaz de perceber algum sentido que vá além da melancolia daquele anjo perdido em
meio à multiplicidade do mundo e das coisas, e à ausência dele próprio. Daí esse percurso de reconhecimento
de si, que passa pela busca de uma interioridade do tecnológico e pela reafirmação de uma exterioridade do
eu diante da multiplicidade de significantes. Há aí, implícito, um projeto de sentido e de significações que
não se reduz a uma mera reafirmação da imagem mística do tecnológico. Trata-se da busca de uma
interioridade do tecnológico, da busca de teias e tramas de sentido que escapem à exterioridade absoluta, à
platitude constante e teçam, nesse tecnológico, significações além daquelas que vêm da perspectiva
(neo)positivista. E esse projeto de sentido e de significações também não poderia se reduzir à euforia cegante
e quase irreversível da hiperinflação informativa (cujo correlato é o esvaziamento eufórico do espaço da
subjetividade). É através dele que podemos escapar das duas formas melancólicas de subjetivação,
construindo uma identidade que se dê como percurso de si próprio, que se faça à custa e a despeito dos
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aparatos, dos aparelhos e dos processos (e também, claro, sobre eles todos). Uma das melhores imagens que
conheço para dar conta disso é a do personagem de uma charge que, em um monociclo sobre a corda bamba,
vai desenhando a lápis, logo à frente, a continuação da linha onde se equilibra precária e provisoriamente.
O centro de significações (ou a direção coerente tomada pelo artista mambembe e cartunista) está
justamente depositado nesse esforço de traçar uma linha que ainda não chegou a ponto algum, mas que não
deixa de se apoiar numa exterioridade projetada solidariamente pelo corpo e pelo gesto do equilibrista.
Uma conseqüência do que discutimos nos parágrafos anteriores refere-se ao tipo de leitura que se pode
propor no/do hipertexto, uma leitura que se coloca também como gesto e, conseqüentemente, como
expressão, empreendida com base na posição singular de um sujeito movente, de posições provisórias –
efêmeras, talvez –, mas construindo o possível de um percurso por entre fragmentos e multiplicidades
várias. E, no caso, voltamos ao papel das teorias do texto literário na compreensão do ciberespaço. É que,
se há texto, se há então leitura desse texto, se há um posição focal que cria (sempre) regiões de clareza
provisória e sombras passageiras nesse espaço de telemática opacidade, é possível propor a esse sujeito
leitor um percurso de leitura como marcas e bases de sua identidade, como testemunhos de sua
subjetividade. E tal leitura guarda uma especificidade, a de fundar e traçar significações, instalando-se tal
qual o equilibrista na solidez precária de uma linha que se apóia no quase nada para apontar, a partir daí,
para o muito, para a pluralidade das coisas e dos objetos significantes. O que procuro aqui, na verdade, é
levar adiante uma intuição, a de tomar a leitura do/no ciberespaço como uma espécie de performance que
realizamos às expensas de nossas limitações e das condições de contorno da tela do computador. Trata-se,
aparentemente, de um ato de criação e de tomada de posição diante de uma cena gerada desde o exterior
de imagens, ícones, movimentos e processos interativos, deslocamentos e cortes, acréscimos e
multiplicações, mas permitindo que nossa interioridade venha habitá-los todos com a compulsão dos
significados e a contenção dos sentidos.
Dizer que essa leitura é uma performance implica dizer que nos colocamos como hiperleitores, isto é, como
ativos organizadores do hipertexto, mas organizadores que se colocam bem em meio aos objetos
significantes, de forma que o processo de significação desses objetos acompanhe e circunde nosso processo
de subjetivação, em que nos explicitamos como leitores (de significantes, do ciberespaço onde estes se
desvelam, e de nós mesmos). Apresentamo-nos como atores de uma espetacularidade, mas que sabem
também postar-se do outro lado da cena, no aquém do palco (da tela) e no além de nossos próprios
movimentos e tomadas de decisão, tecendo uma identidade que nos coloca como subjetividade encenada
e dada à leitura de outros. E essa identidade telematicamente colocada, construída e, sobretudo, encenada
exibe-se como fingimento. Nessa via transversa, ela busca dar voz e vez a um verdadeiro dizer do real, por
meio desse fingimento que se pode exibir como máscara reveladora (e que é sempre uma possibilidade que
compete a cada um de nós efetivar ou não, sendo-nos dado a escolha do melancólico ou do sábio). Trata-
se de capturar na provisoriedade e na dramatização de falas, gestos, movimentos, comandos, aparências,
rastros e restos de ícones e de endereços, na tecedura movente e mole de significantes uma fisionomia de
efêmera permanência; ou também de propor uma possibilidade de espacializar reflexos e percursos em
cima dos quais balizamos a visão de nós mesmos e desse texto-mundo tecido em raias intermináveis e
circunferências de raio infinito.
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Essa leitura de nós, de nossa inserção no ciberespaço (que é também leitura do próprio ciberespaço) pode
ser assim descrita como uma provisória mentira, uma encenação que permite expor honesta e abertamente
entranhas e hesitações de (ciber)espaços, de leitores e de leituras. É claro que há aí um paradoxo lógico em
que a sinceridade consiste em dizer que se está mentindo. Todavia, tal situação de “incômodo lógico” está
presente em qualquer forma de literatura, ou, para ser mais geral, em qualquer arte, em toda época. E não
é por causa da intensa tecnologização do ciberespaço que vamos escapar a esse gênero de contradição que
é base de qualquer experiência artística que se possa imaginar. Tanto quanto a voz poética da
Autopsicografia, de Fernando Pessoa, o hiperleitor finge que não sente o que na verdade está sentindo, e
os que lêem sua leitura vão sentir, ainda, outra coisa que nada tem a ver com o que esse hiperleitor chegou,
primeiramente, a sentir e, depois, a encenar.
Em outras palavras, o leitor do hipertexto assume a função de produtor ou organizador de uma
espetacularidade, de uma encenação, de uma topologização de significantes e de significações de que ele
não pode deixar de participar. De fato, não podemos ficar presos a uma mera especularidade do hipertexto
hiperinflacionado, nos colocando irremediavelmente presos a reflexos sem reflexões e que resultam de uma
algaravia de restos de idéias, de fragmentos de princípios, de vestígios de saber. Também não podemos
propor apenas um espetáculo que se contente em celebrar a ausência de nós próprios, o que seria o
resultado melancólico dos simulacros e das mistificações tecnologizantes.
De outro lado, é preciso levar ainda em conta a presença de uma platéia, de companheiros de rota e de
significações (de resto, nenhuma linguagem, por mais fundada em elementos estritamente tecnológicos,
pode existir sem essa armação intersubjetiva que sustenta e permite todo ato expressivo). Essa platéia (de
que fazemos parte, mesmo nos colocando à parte para poder falar dela), ainda que virtual, não deixa de
traçar vestígios, de possibilitar ornamentos e filigranas de significações ao (hiper)texto construído por nós,
leitores de nós de conexões, leitores de nós próprios, leitores do hipertexto e de outros leitores. E essa
platéia se faz presente e atuante não na indiferença das posições distantes e distintas do palco, mas
colocando-se em cena, bem ao lado dos percursos que assumimos e esboçamos, trazendo, aliás, para a
cena a posição e a cumplicidade de compartilhar um gesto expressivo comum. Em resumo, esse esboço de
leitor do ciberespaço mostra-nos como atores/organizadores que lêem, representam, atormentam,
desfocam, deformam e tocam adiante um texto que, vindo de outros leitores e loci, recebe inflexões e
significações de que talvez nem suspeitássemos. Construímos um texto tramado e tecido em um espaço
coletivo, um texto dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplaude, vaia, contesta,
aceita, recolhe, mas participa sempre, evidentemente, dessa construção coletiva de significações e de
textos. A navegação pelo ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização de nós próprios, do
hipertexto e de outros leitores/atores, poderá mostrar um caminho efetivo em que, definitivamente, não
precisaremos mais nos curvar a essa melancolia de significações excessivas ou de mistificações
tecnológicas. Quem viver (e ler) verá (lerá).
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Saber o/no/do Ciberespaço
Como pode ser possível alguma construção de saberes no ciberespaço baseada nas condições de contorno de
uma tradição de pensamento ainda fortemente ancorada no meio impresso? Para responder a isso talvez seja
útil discutir primeiro como vem ocorrendo a passagem de obras originalmente destinadas ao suporte
impresso para o meio eletrônico. Essa alteração envolve uma série de elementos que dizem respeito não
apenas à produção e à disseminação de textos. Ela é produzida num espaço híbrido de circulação de objetos
culturais – implicando um diálogo entre o meio telemático e o meio impresso – e está ligada, afinal de contas,
à estruturação de um saber que, na falta de melhor denominação, podemos já chamar internético, termo
que designaria a produção do conhecimento em redes telemáticas. De toda maneira, se ao final não ficar
convencido do acerto e validade desse arremedo de conceito – internético –, o leitor poderá ainda aproveitar
a inesperada sonoridade da palavra, que ao menos agradará, mesmo sem ter plenamente convencido.
Primeiramente, é importante explicitar os contextos e as referências da questão colocada para podermos
ver alguma coerência nesse saber internético. Nos últimos anos, o Núcleo de Pesquisas em Informática,
Literatura e Lingüística, Nupill, da Universidade Federal de Santa Catarina tem disponibilizado na rede
obras clássicas da literatura brasileira. E, diga-se de passagem, não é o único: projetos desse tipo têm
pululado e, entre eles, podemos destacar o trabalho desenvolvido pela Biblioteca Nacional. Em linhas
gerais, o que se tem pretendido, desde o início, é trazer para o meio eletrônico obras que foram concebidas
inicialmente para o meio impresso. Porém, o espaço das mediações e das trocas culturais é um sistema de
vasos comunicantes, e, claro, uma obra disponibilizada em formato eletrônico não teria como ficar
totalmente presa ao meio em que é inserida: é assim que textos eletrônicos, vindos do meio impresso, têm
retornado a ele; caso, por exemplo, da Carta de Pero Vaz de Caminha, que nos meses que antecederam a
comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 2000, foi amplamente
divulgada e, mais, publicada e impressa, em alguns casos, com base na versão eletrônica disponibilizada
pelo Nupill. Com isso, uma obra difundida durante séculos no meio impresso entra no espaço telemático
para, em seguida, ser levada de volta a seu leito original. É claro que nada ligaria a atual edição impressa
a sua origem eletrônica se não fosse a informação, mencionada pelos responsáveis das novas edições, de
que o Nupill era o responsável pela versão eletrônica da Carta.
No que se refere ao meio eletrônico, ainda quando disponibiliza obras originalmente concebidas para o
meio impresso, ele propõe outras ferramentas e, por conseguinte, outros paradigmas de leitura. Sem nos
alongarmos em demasia, basta pensar no comando localizar (find, nessa salada linguageira que assola a
rede), disponível tanto nos editores de texto quanto nos navegadores. Ele representa uma economia de
tempo considerável na localização de palavras ou expressões que, em caso contrário, seriam dificilmente
reencontradas pelo leitor. Com isso, é o tempo, o ritmo e mesmo a ordem de leitura que se podem
modificar, conforme ritmos e velocidades que resultam de um novo acordo, não mais entre nossas
contingências físicas e uma folha de papel impressa e dando-se apenas ao olhar, mas de uma combinação
entre as mesmas contingências físicas nossas e instrumentos de navegação e de leitura informáticos (que
são propostos e intermediados por um aparato eletrônico que inclui elementos como mouses e teclados,
imagens de cursores e de ícones, gestos e movimentos como cliques e ações de cortar/colar). Mas tudo isso,
34
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claro, não impedirá nenhum leitor mais obstinado (e cioso de seus direitos de aferrar-se a práticas e espaços
já sobejamente conhecidos) de continuar lendo como sempre o fez e de percorrer com os olhos o espaço da
tela do computador como se estivesse diante de uma folha de papel impressa. Quero afirmar que, grosso
modo, os diferentes paradigmas de leitura continuam confluindo e o que hoje poderíamos chamar de
leitura eletrônica ainda se resolve e se desenvolve, mesmo parcialmente, segundo hábitos e preceitos
aprendidos e apreendidos com as práticas trazidas pelo meio impresso. Da mesma maneira, é legítimo
pensar que durante algum tempo, mesmo com o avanço da alfabetização, uma considerável quantidade de
leitores ainda percorriam seus caminhos de leitura carregados pelos ritmos e pelas imagens aprendidas (e
também apreendidas) por séculos e séculos de “leitura” oral, em que eram os ouvidos e não ainda os olhos
os responsáveis pela produção do texto.
Todavia, quanto mais insistirmos na leitura em meio eletrônico, mesmo aos trambolhões, trancos e
barrancos (como, aliás, parece ocorrer sempre que passamos por alterações mais bruscas nos paradigmas de
circulação de objetos culturais), mais estaremos aprendendo os ritmos e as restrições do espaço telemático
e também forçando-o a acomodar-se a nossos projetos, desejos, pensamentos e ao que acima chamei de
contingências físicas (como a acuidade visual, por exemplo). Em outras palavras, o que estou propondo é
discutir a necessidade e as estratégias de utilização de ferramentas informatizadas no armazenamento, na
manipulação e na leitura de obras (e não nos restringimos, claro, apenas às literárias, que todo tipo delas
suscita questões e possibilita reflexões semelhantes). Percebam bem que associei necessidade a
estratégias, buscando chamar a atenção para a importância de utilizarmos esse instrumental tecnológico
de modo a estabelecer com ele um diálogo em condições de igualdade. Dito de outra maneira, temos que
mapear os procedimentos informatizados e os processos telemáticos disponíveis antes de utilizá-los
intensiva e extensivamente, de forma que sejamos nós a nos servir da tecnologia e não a tecnologia (ou a
tecnocracia por trás dela) a se servir de nós.
Creio ser possível escapar, assim, a algumas das derivas do texto eletrônico, àquilo que tenho chamado há
algum tempo, e mesmo neste ensaio, de hiperinflação informativa. Explico melhor (talvez melhor do que o
fiz antes): um processo hiperinflacionário em economia corresponde à situação em que a moeda circula a
velocidade tão alta que os agentes econômicos já não têm nenhum controle sobre ela; em conseqüência,
ela acaba perdendo todo seu valor. O mesmo ocorre atualmente (e cada vez mais!) quando deixamos as
informações desfilarem, céleres, diante de nós e ao longo da tela do computador, sem nenhum percurso que
vá desenhando uma certa fisionomia, um esboço de racionalidade pontual que poderíamos impor às buscas
e aos hipertextos trazidos pelos cliques no mouse. No mais das vezes, ocorre de as pontas dos dedos estarem
mais ávidas de toques excitados do que a mente ansiosa por idéias passíveis de alguma orquestração. Como
conseqüência podemos, por exemplo, começar uma busca por pintura impressionista e, quando nos damos
conta, em algum raro momento de tomada de consciência, estamos diante de um improvável sítio de
torturas sexuais no Hindustão medieval. Aparentemente, seria um processo semelhante àquele descrito por
Paul Valéry em Poésie et Pensée Abstraite, em que a entrada em um universo poético tira-nos, sem que
percebamos, da consciência imediata do dia-a-dia, das noções e reflexões da cotidianidade. Assim, a entrada
nesse universo poético corresponderia à entrada em uma região de ritmos e de sons estrangeiros,
inesperados, correspondendo, de fato, a uma tomada de posse da palavra pelo revés da significação e do
35
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discurso. Todavia, a entrada nessa hiperinflação informativa desenfreada não traz revés algum, já que o seu
contrário é ela mesma. O trágico desse processo é que seu lado escondido é rigorosamente idêntico a si
próprio, isto é, uma região neutra e sem diferenças, o que vale dizer, sem significação alguma. De fato, o
excesso de informação, exatamente por ser excessivo, deixa de ser informação e torna-se ruído, perde seu
valor como no caso da hiperinflação monetária. Mas, à diferença desta, que é um processo coletivo, a
hiperinflação informativa é um fenômeno individual, podendo ser desligado a qualquer momento por uma
flexão no campo de interesses e de significações posto em movimento pelo leitor/navegador.
Dessa forma, antes de colocar em movimento um saber dentro do ciberespaço, esse saber que chamei de
internético, é preciso fazer o reconhecimento desse espaço e estabelecer como podemos, considerando suas
condições de contorno e de nossas contingências, construir algo como um percurso cognitivo. De início,
nunca é demais lembrar a etimologia de cibernética, termo cunhado com base no grego kybernetiké, que
remete por sua vez ao timoneiro, ao ato de dar um curso à navegação em meio às intempéries e às calmarias
(tanto quanto, hoje, nos movemos nesse ciberespaço chamado web, em meio a acúmulos de informações e
perdas de conexão com os servidores atacados de todo lado por vírus e piratas de variado jaez e feitio).
Trata-se não de buscar ou de encontrar, mas de construir uma orientação ao mesmo tempo que se avança
nesse processo cognitivo, e, se nada mais de útil pode vir dessa metaforização espacializante, ao menos ela
nos servirá para pensar o pensamento de uma maneira não habitual, associando a ele (e, em conseqüência,
ao próprio ciberespaço onde ele pode se desenvolver) os elementos e os procedimentos da topologia. Em
outras palavras, parece ser importante saber como orientar o pensamento em um espaço onde a cognição
ainda tateia, onde hipóteses ou outras formas de retórica argumentativa devem encontrar novos elementos
e novas axiomatizações. A esse respeito, algo interessante se encontra em um opúsculo publicado por Kant
no Berlinishe Monatsschrift, em outubro de 1786. Ele advertia que:
S’orienter signifie au sens propre du mot: d’après une contrée du ciel donnée (nous divisons
l’espace en quatre contrées de cette sorte), trouver les autres, notamment le levant. (...) Enfin, il
m’est possible d’élargir encore ce concept, du moment où il consisterait dans le pouvoir de
s’orienter non seulement dans l’espace, c’est-à-dire mathématiquement, mais dans la pensée, c’est-
à-dire logiquement.10
Importa, no caso, resgatar, segundo o filósofo alemão, a mesma operação de direcionamento para o que já
chamávamos a atenção quando apresentamos o termo cibernética. Kant fala dessa espacialização do
pensamento através das operações geométricas do espaço cartesiano, ainda submetido às injunções da
geometria de Euclides. Se quisermos estabelecer uma diferença com o que hoje, por meio do ciberespaço,
chamamos de topologização do pensamento, teremos talvez que apelar para as geometrias de Riemann ou
de Lobatchevski. E, se essa tal topologização pode ter algum interesse para nós, ele reside justamente na
possibilidade de nos fazer olhar e perceber o pensamento não como formas geometrificáveis provenientes
de alguma ordenação gestáltica, mas em termos de espaços e de vizinhanças n-dimensionais, traduzindo
justamente essa precariedade de domínios de validades e de imagens, chegando até as dimensões
fracionárias dos fractais. Assim, esse pensamento que se exercita no ciberespaço pode aparecer não como
uma atividade preestabelecida em caminhos sobejamente conhecidos, em rotas traçadas na direção
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unilateral de uma Grande Razão travestida de dogma ou de preconceito, mas como uma retomada
constante e provisória de uma racionalidade vivida corporalmente. Trata-se, em suma, de uma racionalidade
em movimento, capaz de estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e deduções, ao ponto de umas
não mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva de Moebius retórica e argumentativa em
que interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, de uma
racionalidade não mais debitada à conta de um eu puro pretensamente encarregado de pôr uma ordem
transcendental na poeira de fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia.
E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja um
dos primeiros elementos dignos de nota. Essa propriedade, que pode ser descrita como a característica que
nos permite partir de qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira delas
é a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) de que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmo
homogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria definitivamente descartada, uma vez
que só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz de opor diferenças
relativas (e nunca absolutas) num horizonte de sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esse
esquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva,
afinal de contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas de
Baudrillard). A segunda conseqüência dessa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a de que, ao
contrário da homogeneidade a-significante (já descrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total,
completo, todo-poderoso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização de todos os
otimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão de que a extensão ilimitada e
a variedade das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialidades do pensamento. Não mais
um pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes de próteses maquínicas que
dariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, mas
um corpo-e-máquina (que faz o horror de Paul Virilio e as delícias de um Pierre Lévy).
Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances de entender como pode o pensamento
se inserir de maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço.
Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre os
nós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada um
desses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneidade redutora e simplista. Em segundo lugar, isso
tudo implica, de certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num
(ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia ocidental vem-se
construindo justamente na tentativa de desenhar os limites do saber, desde os pré-socráticos, passando por
Sócrates, pelo ceticismo de Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e desesperada
tentativa de mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo de um mestre anterior,
Montaigne), a Kant (que buscava delimitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl,
assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.).
Voltando ao ciberespaço, podemos dizer que, se suas possibilidades de conexão são praticamente infinitas
(e apenas a tentativa de esclarecer como seria essa infinitude das conexões já faria correr muita tinta) e se
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pode não haver um limite concreto e definitivo para esse desfilar de informações, há, certamente, um limite
para o saber. Aliás, saber sem limites está mais para desrazão (ou sua contrapartida, o irracionalismo) do
que para conhecimento. Como no caso do excesso de informação que se reduz a ruído, a não informação,
um saber pretensamente infinito, dotado de potências e possibilidades divinas, não seria jamais um saber.
Aparentemente, parece não haver lugar para Deus, mesmo no ciberespaço; ele se reduziria, aí, a um não
saber. Na verdade, sem querer propor um ateísmo tecnológico, o que pretendo é entender como o
conhecimento no ciberespaço só pode se construir com base nas precariedades dos indivíduos, da
provisoriedade de seus esquemas de racionalização, da efemeridade e, ao mesmo tempo, da necessidade
(da urgência, diria) de suas certezas. Isso talvez possa ser mais bem entendido se analisarmos o modo como
o tempo se insere e se insinua no ciberespaço e em suas navegações.
O ciberespaço parece proporcionar uma espécie de justaposição de várias temporalidades (resultando, em
parte, na efemeridade mencionada). Ele nos permite, por exemplo, num só golpe, perscrutar formas e
funções de telescópios direcionados para o fundo do universo (pensando nos sítios que oferecem imagens
de astros longínquos à comunidade científica e a quem mais se interessar). Com isso, consegue-se uma
curiosa conjunção de dois movimentos: o primeiro é esse que aponta para o futuro, que nos coloca no
vértice e no vórtice de uma máquina amplificadora do olhar e de sua imensa capacidade de processamento
de dados e de imagens; o segundo é o revés do primeiro, colocando diante de nós um passado absoluto, o
instante do big bang, nosso passado inaugural. Mas o efeito dessa conjunção pode ser perverso, eliminando
a diferença entre o direito e seu revés, na medida em que um e outro se homogeneizam, em que se reduz
um a outro, e se faz, imediatamente, do passado absoluto o futuro que permite vê-lo (o passado) através
de olhos e sensores de uma máquina das mais modernas. Com isso, passado e futuro igualam-se, perdem
suas diferenças recíprocas e reduzem ao absoluto de um presente que esteve no passado e estará no futuro
simplesmente por que está por trás de tudo.
Sempre vivemos em várias temporalidades; em qualquer época, essas diferentes temporalidades se tocam,
às vezes se confundem e se misturam. Nos diversos ritmos das sociedades agrárias, conviviam os diferentes
tempos das várias culturas, justapostos aos tempos das diferentes criações animais (incluídos os ritmos das
gestações e das gerações humanas). No entanto, nunca tivemos a experiência de reduzir as diferentes
percepções de cada uma dessas temporalidades a um presente homogêneo, absoluto e onipresente. Aí
parece residir a diferença desse tempo esboçado no/pelo ciberespaço. De fato, sempre nos espalhamos pelas
várias temporalidades, mas sempre nos foi dado, também, residir e resistir em uma delas. E foi justamente
isso que se esvaneceu, em parte, com a telematização dos espaços que habitamos e fazemos significar. A
escolha de uma dada temporalidade parece ter-se reduzido drasticamente a uma única escolha. Ao menos,
é essa a aparência da temporalidade homogênea que muitos associam ao ciberespaço. Ela vem a substituir
outras figuras que, ao longo dos séculos, caracterizaram a cultura ocidental: primeiramente, o tempo
circular das sociedades míticas, em que presente e futuro estavam sempre conjugados no passado, já que
retornavam incessantemente a um já-ocorrido; em segundo lugar, o tempo linear da ciência moderna, em
que passado e presente reduziam-se a um percurso que só encontrava sentido e explicação no futuro para
o qual apontavam, sempre e invariavelmente.
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A essas duas temporalidades opõe-se, assim, o eterno presente da contemporaneidade telemática, que não
aposta mais no passado mítico e tampouco no determinismo futurista das ciências modernas e positivistas.
Trata-se de um tempo espacializado, absoluto, marcando todo o território e, mais, toda possibilidade de des
e de reterritorialização. Aliás, a poesia de Alberto Caeiro acaba sendo uma das melhores figuras poéticas
desse tempo. E ainda: através dela é possível não apenas mapear (ver e habitar) esse presente espacializado,
mas encontrar uma maneira de escapar a suas limitações. Isso parece se dar por uma temporalização do
espaço, propiciada pelo próprio trabalho de poetização da escrita (processos que Caeiro desencadeia tão
bem em seu O Guardador de Rebanhos). Em conseqüência, se, por sobre esse presente absoluto e
espacializado do ciberespaço, não tentarmos ver um espaço temporalizado, vamos acabar nos submetendo
a uma ditadura do aqui e do agora, do circunstancial e do efêmero, do simulacro e do esvaziamento. Assim,
ao encarar o tempo apenas como espaço (com o que contribuem as lógicas conectivistas do ciberespaço),
corremos o risco de cair na tentação fácil dos espaços telematizados, perdendo toda perspectiva de
historicidade e chegando a um tempo que é enganação, subterfúgio, simulacro. Ao contrário, é justamente
essa des-absolutização do espacial que nos torna capazes de fugir ao relativismo e ao irracionalismo,
propondo um tempo que se dá a ver como espaço e, concomitantemente, um espaço que deve se dar a ver
como tempo (ou, talvez, como ritmização do espaço).
Em suma, fugir do presente absoluto do ciberespaço implica encontrar outros sentidos para essa sua
interconectividade intrínseca. Significa produzir o conhecimento também como um texto em rede, como
resultado da natureza essencialmente intersubjetiva de todo gesto, de todo pensamento, de toda
linguagem e, sobretudo, de toda linguagem que se textualiza num espaço telemático de n-dimensões. Em
outra ocasião, talvez possamos abordar mais de perto algumas das estratégias para a construção desse
conhecimento em/na rede. Por ora, é preciso deixar claro que se trata de um segundo estágio,
obrigatoriamente precedido por um primeiro, que consiste em despir-se de algumas das ilusões muito
freqüentes no ciberespaço. Entre elas – e que talvez seja a mais presente e ameaçadora de todas –, está a
que nos entrega um (ciber)espaço de que toda centralidade ou racionalização teria fugido. Junto com o
logocentrismo, com as metafísicas de essência, toda forma de racionalidade pareceria ter-se esvaído,
reduzindo toda significação e todo conhecimento a uma reacomodação ou a um mero jogo de significantes
vazios. No caso, saber equivaleria a discurso, o que reduziria todo percurso cognitivo a uma construção
sofística cuja complexidade já seria, imediatamente, seu valor de verdade. Em decorrência, qualquer
construção de sentidos e qualquer saber que se associassem ao ciberespaço pareceriam ser produzidos quase
que autonomamente, sem a intervenção de uma vontade operante, de uma racionalidade circunscrita a
certo domínio de validade e posta a funcionar pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem.
Não parece ser outro o sentido dos conceitos de “ecologia cognitiva” e de “duo pensante homem-
máquina”, ou ainda o de “conhecimento por simulação”, de Pierre Lévy.11
Como todo espaço de sentidos,
em que objetos culturais se dão à produção e ao (re)conhecimento, o ciberespaço é um locus onde se
manifestam e se dão a (re)conhecer significações e subjetividades. Como espaço, ele não tem autonomia
nem para impor processos de produção de significações, nem espontaneidade para se fazer artífice solitário
de novas textualidades. Daí a necessidade de ele ser despido dessa máscara de operacionalidade
autocrática, dessa aparente capacidade de autonomia ou de espontaneidade que, distraída ou
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irresponsavelmente, lhe atribuem alguns de seus estudiosos. Por isso defendo uma posição diversa dessa do
sociólogo francês, em que justamente o saber seja produto de uma racionalidade circunscrita a certo
domínio de validade e posta a funcionar e a se articular pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí
aparecem, pelo trabalho de significação de leitores. Quero dizer que o ciberespaço só vai adquirir
significações (sempre precárias e provisórias, nunca é demais lembrar) na medida em que nós, usuários,
leitores, (hiper)escritores, o fizermos repleto de sentido por uma decisão nossa, isto é, uma decisão de cada
um, mas que saiba buscar a presença dos outros, por meio dessa fímbria de alteridade que nos dá nossa
identidade, ao mesmo tempo que nos coloca em meio a outros, nos instala num centro que se desloca
constantemente para as margens, buscando incessantemente o aporte dos outros, que conferem
radicalidade e sentido a qualquer de nossos gestos e significados individuais.
Isso que descrevo é como uma fuga para a frente, quer dizer, uma marcha em que se avança sem que o ponto
de chegada esteja definido, uma navegação a que nos lançamos resolutamente, sem que o destino nos seja
dado. Na verdade, tanto ponto de chegada quanto destino acabam constituindo uma nova forma de
centralidade, não mais aquele centro das metafísicas ontológicas, mas um centro funcional que começou a se
esboçar desde as metafísicas gnoseológicas (a partir de Kant). E, no caso, uma das imagens mais felizes para
esse centro está na charge (de cuja autoria não me recordo e a quem, infelizmente, não posso dar os créditos)
do equilibrista de circo montado sobre um monociclo, desse saltimbanco que é também um desenhista e vai
rabiscando a linha sobre a qual se equilibra, com o lápis que ele segura e, à frente, vai traçando seu arame
bambo e seu caminho precário. Temos, então, um centro que se dispõe não ao meio da travessia,12
mas sempre
à frente, nunca alcançado, o que vale dizer que é como se ele estivesse servindo de fundo ou de horizonte a
todo o percurso sem que, por isso, tenha que determiná-lo inteiramente. Derrida insiste na importância do
centro não como um Ser, certo, mas como uma função que se torna absolutamente primordial:
“I didn’t say that there was no center, that we could get along without center. I believe that the center is a
function, not a being – a reality, but a function. And this function is absolutely indispensable”.13
E essa distinção é capital, sobretudo quando se trata de pensar o ciberespaço: entre o centro como essência
e o centro como função, é evidente que apenas esta última é capaz de descrever o modo consciente e
produtivo de nos apropriarmos do ciberespaço, de fazer dele uma região onde novos sentidos se somem
aos sentidos já sedimentados em forma de cultura e daí extraiam novos percursos e novas perspectivas
(mesmo indiretas) do mundo vivido. Com isso, evita-se a fossilização das percepções, o que constitui a pior
das mortes que se pode dar ao sujeito. Dessa maneira, tornamo-nos capazes de associar um sentido (mesmo
provisório) ao mundo, ainda que ele assuma essa precária aparência de cenários passageiros: paisagens,
elementos, objetos lingüísticos, memórias, imagens, tudo desfilando com maior ou menor celeridade diante
de nós, mas sem que percamos a capacidade de manter acesa sua espetacularidade, quer dizer, a
possibilidade de estarmos diante de suas significações e de as percebermos sem que, ao contrário, nos
tornemos um espetáculo vazio diante da tela do computador.14
Outras ilusões do ciberespaço parecem derivar, de uma forma ou outra, dessa primeira. Uma delas diz
respeito ao individualismo, que é uma das respostas possíveis ao espontaneísmo discutido (esse que propõe
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um ciberespaço homogêneo em que toda significação brotaria tão-somente de acentricidades e
desterritorializações, sem interferências de nenhuma subjetividade). Trata-se, na verdade, de tendência
ligeiramente oposta, em que justamente se tenta entender e estender toda significação como resultante de
uma decisão individual, produto de um voluntarismo que se confunde com o nó a que se reduz, nesses
casos, a subjetividade do leitor (e por trás de que ele se esconde). Ora, não se pode deixar de chamar a
atenção para as conseqüências algo desastrosas dessa atitude solipsista. Ela instaura um relativismo fechado
e redutor de que não se sai senão ao custo de uma negação de qualquer possibilidade de significação
intersubjetiva, o que corresponderia, na verdade, à negação de qualquer possibilidade de linguagem. Ela é,
aliás, parente próxima do solipsismo que marcou algumas das vertentes do cartesianismo, pois, afinal de
contas, quando se investigam os bastidores desse cogito fundado apenas no “Penso, logo existo”, toda a
certeza do conhecimento pareceria centrar-se numa identidade absoluta de si consigo mesmo, esquecendo
que ela não tem como alicerçar-se a não ser na existência do mundo vivido. Toda a certeza do conhecimento
só se estabeleceria, assim, a partir da arbitrariedade de uma consciência individual cuja substância é de
natureza diversa daquela que ela quer conhecer, o que, em decorrência, negaria qualquer possibilidade de
conhecimento. Esse individualismo, em suma, leva no limite à negação de qualquer linguagem e, por
extensão, também à de qualquer saber.
Essas ilusões todas que afetam e transtornam a presença do sujeito diante do ciberespaço não são
outra coisa senão um possível predomínio dos simulacros de que fala insistentemente Jean
Baudrillard. Eles aparecem, por exemplo, nessas erudições de puro exibicionismo,15
que permitem que
algumas pessoas se comprazam em multiplicar referências inesperadas e obscuras, impossíveis de
serem retomadas, reencontradas ou mesmo utilizadas sem ser por meio de sua orientação privilegiada
e de sua posição de saber de pretensos eruditos. E, quando se armam de informações a mancheias,
multiplicam referências cruzadas e arquitetam complexas figuras de percursos cognitivos,16
eles não
fazem, na verdade, mais do que produzir a hiperinflação informativa que já comentei. Um outro
simulacro liga-se ao tempo, ou melhor, à aparência de temporalidade que parece, então, esvaziada
pela celeridade desmedida das informações que não desfilam, mas escorrem pela tela, diante de nós.
E esse desenrolar frenético não possibilitaria nenhuma construção significativa, pois tudo se reduz à
homogeneidade de um presente talvez nem mesmo eterno, porém obsessivo, opressor, reduzindo
toda diferença significativa à platitude homogênea de sua onipresente figura fácil, em uma tela cheia
de pixels e vazia de significações.
Como resultado, temos um tempo espacializado, essa tentação fácil dos espaços telematizados em que se
perde toda perspectiva de historicidade. Chega-se a um tempo que é definitivamente enganação,
subterfúgio ou mesmo dissimulação. E, ainda, um último simulacro, que finge carregar a presença do outro
no rastro de seus gestos expressivos, como se o encontro de discursos verbais ou icônicos em chats ou ICQs
fosse capaz de resultar automaticamente na fundação de uma subjetividade transcendental (que, como diz
Husserl, é sempre intersubjetividade). Todavia, ao contrário da intersubjetividade, o que mais
freqüentemente se encontra na ponta do cursor, operado pelo mouse, quando se contrapõem discursos uns
a discursos outros, não é uma aproximação telemática que venceria distâncias e traria a presença do outro
até o sujeito de um dado discurso, mas sim a instauração de uma distância tecnológica tão terrível e
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opressora por se dar justamente no espaço limitado de uma tela de 15 polegadas. Com isso, confundem-se,
talvez até ingenuamente, metafísicas de aparência e metafísicas de essência, produzindo um platonismo às
avessas em que as presenças ideais (ou avatares) é que seriam capazes de produzir, a distância, as essências
do mundo exterior e as subjetividades dos outros.
* * *
Com base em tudo o que se afirmou anteriormente, podemos, talvez, fazer uma imagem desse saber
internético. Ele só se torna possível quando conseguimos escapar às ilusões e aos simulacros do ciberespaço.
Nesse caso, temos um conhecimento que se dá em rede ou, ainda, que se dá como rede textual (ou como texto
em rede), derivando diretamente da natureza intersubjetiva de todo gesto significativo, de todo projeto de
significação, de todo objeto significante. Somente esse saber pode dar à multiplicidade dos espaços telemáticos
n-dimensionais um sentido não unívoco, mas capaz de sedimentar e de possibilitar aquisições e doações de
significações. Daí, em princípio, a necessidade de assentar esse saber internético em alguns pressupostos:
1) Ele deve ter por trás o esforço constante de expandir a taxa de circulação motivada e bem-sucedida das
informações. Com isso, pode-se reduzir drasticamente o risco de uma hiperinflação informativa, seja pelo
modo como disponibilizamos na rede informações, conceitos, idéias, processos etc., seja pelo modo como nos
utilizamos das ferramentas telemáticas e das manipulações interativas e iterativas (vale dizer, repetitivas, a
grande velocidade). Nesse sentido, tal esforço retoma, ainda que parcialmente, o projeto iluminista de
democratizar o acesso a certos bens culturais, pela criação de aristocracias pontuais que, com base na intensa
mobilidade inerente à rede, podem espraiar-se incessantemente por outros nós e regiões outras. Com efeito,
trata-se de um saber que não se subordina mais a qualquer centralidade previamente instituída, mas faz de
seu movimento (ou percurso) de cognição a própria centralidade funcional de que falava Derrida.
2) Esse saber internético, por meio da interconectividade inerente ao ciberespaço, deve ser aquele capaz de
fazer-se concreta e verdadeiramente inter e transdisciplinar (de que tanto se tem falado, mas, de fato,
pouco viabilizado). Todavia, isso somente se obtém quando deixamos aflorar, explicitamente, a
intersubjetividade inerente a toda forma de linguagem, e fazemos dela a mediatriz de nossos percursos e
mapeamentos cognitivos do ciberespaço (quando aí produzimos e lemos objetos significantes). Em certo
sentido, trata-se de revestir de linguagem o exterior do ciberespaço, o que significa dar a ele uma
exterioridade, tirando-o do pedestal de forma absoluta e definitiva em que exterior e interior se
confundiriam. Entre muitos dos teóricos contemporâneos que se debruçaram sobre a internete, é comum
que a descrevam como um labirinto ou ainda como uma curva de Moebius, perdendo de vista que, na
verdade, apenas a linguagem pode ser metaforizada dessa forma com justeza e acerto. Em suma, se o
ciberespaço por vezes se finge de infindo ou interminável, compete a nós não cairmos nesse engodo e dar
a ele a medida e o alcance que lhe cabem e, sobretudo, não nos iludirmos com isso que é apenas aparência
ou simulacro (e pensar que podemos tudo conhecer instantaneamente). Entre a aparência e o
conhecimento verdadeiro há uma diferença fundamental, aquela mesma que podemos encontrar entre o
diletantismo e a erudição. Os primeiros (aparência e dilentatismo) não passam de admiração infértil e
narcísica por si mesmos; os segundos (conhecimento verdadeiro e erudição) apontam para uma
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Fragmentos Digitais

  • 1. leituras de nós ciberespaço e literatura alckmar luiz dos santos
  • 2.
  • 3. lleeiittuurraass ddee nnóóss cc ii bb ee rr ee ss pp aa çç oo ee ll ii tt ee rr aa tt uu rr aa aallcckkmmaarr lluuiizz ddooss ssaannttooss miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 1
  • 4. Catalogação Itaú Cultural Santos, Alckmar Luiz dos. Leituras de nós: ciberespaço e literatura. — São Paulo: Itaú Cultural, 2003. 148 p. : il. – (Rumos Itaú Cultural Transmídia). Índice Onomástico ISBN 85-85291-39-7 1. Arte e Tecnologia 2. Literatura e Tecnologia 3. Ciberespaço 4. Narrativa 5. I. Santos, Alckmar Luiz dos II. Título CDD 700.105 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 2
  • 5. lleeiittuurraass ddee nnóóss cc ii bb ee rr ee ss pp aa çç oo ee ll ii tt ee rr aa tt uu rr aa aallcckkmmaarr lluuiizz ddooss ssaannttooss miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 3
  • 6. Para Daniel Para Ana Luíza miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 4
  • 7. M.C. Escher Bond of Union c 2003 Cordon Art B.V. - Baarn - Holland. Todos os direitos reservados miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 5
  • 8. Uma das mais importantes ações do Itaú Cultural se evidencia no programa Rumos, de apoio à produção artística brasileira, que contempla cada área com a qual a instituição trabalha – artes visuais, cinema e vídeo, dança, literatura, mídia arte e música. Fincado sobre o tripé formação, fomento e difusão, Rumos caracteriza-se pelo mapeamento da nova produção em todo o território nacional. Rumos é formação quando proporciona a artistas, curadores e pesquisadores a possibilidade de participar de cursos, workshops e atividades que ampliem seus horizontes intelectuais e profissionais. Rumos é fomento porque abre espaço para a manifestação de novos artistas e linguagens, fornecendo condições necessárias ao seu desenvolvimento. Rumos é difusão, pois garante a circulação dessa produção – via exposições, exibições, espetáculos, registros fonográficos e videográficos e publicações impressas e eletrônicas. Formatado com base em editais de inscrição separados por área de expressão artística e com características próprias que se coadunam com a política cultural da instituição, Rumos já recebeu 7.007 projetos, dos quais 333 foram selecionados por equipes compostas de profissionais especializados. rumos itaú cultural transmídia A primeira edição do Rumos Itaú Cultural Transmídia, ocorrida em 2002, baseou-se no princípio de que arte tecnológica, arte eletrônica, arte digital e mídia arte são conceitos, e não definições, de uma fronteira em contínuo movimento. O programa privilegiou como campos de atuação ambientes imersivos, arte biológica, arte telemática, computador como mídia, inteligência artificial, espetáculos multimídia e instalações interativas. O objetivo do mapeamento foi detectar indícios da incorporação dessas novas linguagens na produção artística. Entre 540 trabalhos miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 6
  • 9. inscritos, foram contempladas 13 produções e pesquisas sobre a convergência de linguagens, mídias e tecnologias, de realizadores de São Paulo, Rio de Janeiro, Pernambuco, Santa Catarina e Distrito Federal. Os projetos foram selecionados por uma comissão independente, de acordo com três modalidades: Produção, que apóia a execução de obras inéditas; Desenvolvimento de Projeto, voltada à formatação de propostas; e Publicação de pesquisas já realizadas. Nesta modalidade, foram contemplados Leituras de Nós: Ciberespaço e Literatura, de Alckmar Luiz dos Santos; Arte Telemática: Dos Intercâmbios Pontuais aos Ambientes Virtuais Multiusuário, de Gilbertto Prado; e A Dança dos Encéfalos Acesos, de Maíra Spanghero. A comissão foi formada por profissionais de renome nos campos de atuação acima citados: André Lemos, professor da UFBA; Antonio Carlos Barbosa de Oliveira, diretor executivo do Itaú Cultural; Arlindo Machado, professor do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; Fernando Perez, diretor científico da Fapesp; Jézio Gutierre, editor executivo da Editora da Unesp; Jimmy Leroy, diretor de arte da MTV Brasil; Helena Katz, crítica de dança; Loop B, DJ e produtor de música eletrônica; Lucia Santaella, professora do programa de pós-graduação em comunicação e semiótica da PUC, São Paulo; e Suzete Venturelli, professora da UnB. O ensaio Leituras de Nós: Ciberespaço e Literatura busca entender os caminhos da criação poética em computadores e em redes, com base em um mapeamento dos hipertextos, dos programas e das páginas que veiculavam poemas e criações aparentemente literárias na internet. Acompanha o livro um poema a ser lido em ambiente hipertextual de navegação e publicado em forma de CD-ROM. Pós-doutorando na Université de Paris III (Sorbonne-Nouvelle), Alckmar Luiz dos Santos é professor da Universidade Federal de Santa Catarina, vencedor do Prêmio Redescoberta da Literatura Brasileira (revista Cult), do Prêmio Nacional de Poesia Visual Joan Brossa (Espanha), e obteve segundo lugar no Prêmio Scortecci de Poesia. miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 7
  • 10. Prólogo, à guisa de advertência Este livro contém uma série de reflexões sobre a criação poética em meio digital. Elas foram organizadas em forma de ensaios, a que se quis impingir certo arremedo de ordem argumentativa. Daí o apelo à silogística das premissas e das conclusões, que vão dando fio condutor à leitura de cada ensaio. Contudo, estaria faltando um elemento importante, se, ao exercício do campo teórico, não se somasse a prática da criação. Como resultado, se encontra anexo um cederrom contendo versos que foram dados à leitura em espaço digital, com ferramentas de navegação fornecidas pela informática. O mais é exercício de ousadias que cada leitor irá tratando de construir a seu modo, ao longo dos espaços que deixo abertos a suas investidas e investigações. O autor Ilha de Santa Catarina, setembro de 2003 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 8
  • 12. Sumário Introdução, à vera Premissa Maior: A Multiplicação dos Fragmentos Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado Texto Literário em Meio Eletrônico 19 Identidades e Subjetividades no Ciberespaço 24 Saber o/no/do Ciberespaço 34 Novas Estéticas Eletrônicas? 44 Premissa Menor: Espaços de Escritas Uma Possível ou Pretensa Literariedade 59 O Texto Eletrônico como Produtividade, ou as Relações entre Autor e Leitor 67 Interferências e Dualidades 76 Conclusão Primeira: Novidade e Repetição 97 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 10
  • 13. Conclusão Segunda: Transbordos e Reformações do Texto Eletrônico Excesso e Excessivo 113 Variações em Torno de um Tema Mesmo 116 Resumindo: Dicotomias e Reversibilidades 119 Anexos Bibliografia 138 Índice Onomástico 144 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 11
  • 14. “A vida é muito discordada. Tem partes. Tem artes (...) e as vertentes do viver.” João Guimarães Rosa, Grande Sertão: Veredas miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 12
  • 15. i n t r o d u ç ã o , à v e r a miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 13
  • 16. Viver é de sempre, e muito, perigoso. E, entre os vários perigos que espreitam essa nossa empreita de percursos poéticos em ciberespaços, acrescentem-se dois: um primeiro, o refúgio no passado, na comodidade das tradições e dos pensamentos já feitos e refeitos; um segundo, o encanto desmesurado com as técnicas, os processos e as ferramentas. Para escapar a ambos, a única possibilidade que se vislumbra, do ponto e da situação em que escrevo, é a de enveredar por um percurso de conhecimento: conhecimento do ciberespaço através do poético, do poético através do ciberespaço. Lembrando sempre que “poético”, aqui, quer indicar preferencialmente a poesia eletrônica. Ou digital. Ou telemática. Ou qualquer outro nome, que eles são legião. miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 14
  • 19. p r e m i s s a m a i o r a m u l t i p l i c a ç ã o d o s f r a g m e n t o s miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 17
  • 20. “Ours is essentially a tragic age, so we refuse to take it tragically. The cataclysm has happened, we are among the ruins, we start to build up new little habitats, to have new little hopes. It is rather hard work: there is now no smooth road into the future: but we go round, or scramble over the obstacles. We’ve got to live, no matter how many skies have fallen.”1 D. H. Lawrence, Lady Chaterley’s Love miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 18
  • 21. Prolegômenos a uma Ciência do Assim Chamado Texto Literário em Meio Eletrônico Primeira cena: diante de uma tela, alguém imerso, o mais completamente que pode, em um ciberespaço imenso e falsamente reconhecível, teclando dados, apagando datas, andando em círculos de raio infinito; descrição de um apocalipse cotidiano e privado. Diante disso, podemos dizer: são tempos de deriva, estes que vivemos. Vagamos à volta do próprio quarto como que percorrendo mundos e espaços e, após um dia inteiro de estafante imobilidade, retornamos ainda mais enclausurados de uma jornada aos confins do mesmo. Tempos de deriva e de vertigem. Tempos em que a vertigem do ser – aquela que nos individualiza e nos funda como sujeitos ainda não intelectualizantes – cedeu lugar e palco à vertigem de ser, essa voragem que nos multiplica e nos afunda em mero espetáculo. Tornamo-nos trama e drama de encenação que pretensamente interessa a outros por interessar apenas a nós mesmos. Paradoxo dessa cena fechada que é o dia-a-dia fingindo ser aberto. Apenas fingindo, pois, nos chats, nos canais de discussão pela internete, nos imeios trocados e mal tocados, levemente roçados por alguma resposta mais consistente, na busca de arquivos e programas sem nomes, mas talvez com marcas registradas, nessas fímbrias de sentidos, nesses restos de significados, nesses vestígios de idéias, apenas catamos nossos pedaços espalhados pelo mundo virtual. Pedaços largados aqui e ali, mas recolhidos ao final de cada dia, sem que tragam resquícios ou interferências relevantes de outros. Passamos por cada dia, vivendo e morrendo e ressuscitando como um Osíris que pudesse reunir suas partes que ele mesmo espalhou, mas sem aprender nada com isso, sem avançar, nem mesmo um pouco que seja, para além dessa nossa tragediazinha cotidiana de aparecer- desaparecer-reaparecer para nós próprios. Estamos entregues ao reino da fragmentação e do descaso. Segunda cena: diante de uma tela, alguém imerso, nunca totalmente, em um ciberespaço indefinidamente aberto, mas localmente mapeável pelo teclar seqüencial de dados, pelo elencar de datas, projetando percursos de sentido incerto, mas definidos passos; narrativa de uma opera philosophorum dos tempos atuais. Isso nos permite dizer: são mesmo tempos de deriva estes nossos, em que temos de improvisar instrumentos com que esboçar rotas, com que evitar demasiados desvios, com que propor caminhos. Não mais serviçais da fragmentação e do descaso, mas mestres da pluralidade e artífices do acaso. Tempos em que podemos passear à volta de nosso quarto sem repetir o percurso de sempre, levando até mesmo esse nosso quarto a outras pessoas, resgatando um sentido plural da vida, esse que aponta sempre para o outro e que, em nós, é ausência e lacuna a suprir. Tempos em que a vertigem de ser é pretexto e motivo para resgatarmos a vertigem do ser, para buscarmos nos outros, em seus restos, confundidos e misturados aos nossos, uma alteridade, e mais uma, e ainda outra, impedindo-nos de ficar presos à rigidez de sermos indefinidamente iguais a nós mesmos. Não mais um Osíris a recompor-se obsessivamente, igual a si próprio, ao fim de cada dia, mas um Simorg reunindo em si cada vez mais presenças e ausências de outros, como essas frases epigramáticas deixadas em rodapés de imeios, e que são retomadas e retramadas por outros, e que podem um dia ou outro apresentar-se diante de nós, talvez até mesmo irreconhecíveis. Como um “Recado do Morro”, em muito semelhante ao de João Guimarães Rosa, mas em que cada frase fosse recolhida por uma pessoa diferente e cujo sentido total pudesse ser vislumbrado de diferentes modos, em diferentes instâncias por cada uma das pessoas que, em algum momento, ajudaram em sua construção. 19 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 19
  • 22. * * * É assim então que, entre a fragmentação e a pluralidade, se joga o sentido destes nossos tempos. Aliás, de quaisquer tempos. Mas parece que estamos inseridos numa dialética de estranha fatura: escolher uma pluralidade sem fragmentação comprometeria a própria pluralidade, pois ela não saberia nem poderia ser multíplice; conformar-se com a fragmentação significaria confortar-se com o singular e o limitado que nos cercam mas nada ensinam. Daí essa esdrúxula dialética sem síntese, em que, para que a pluralidade domine a cena, exige-se a presença e o risco da fragmentação. E, nesse caso, argumentos e silogismos talvez não convencessem ninguém, o que nos obriga a recorrer seja à covardia do exemplo empírico, seja à construção de uma mitologia contemporânea. Vamos, então, a essa mitologia! Imaginemos um oceano coalhado de ilhas, cada uma com seu náufrago habitando-a solitariamente; cada um deles largando à deriva incontáveis garrafas, todas levando mensagens dentro. Mas seriam mensagens de especial feitio, pois, tendo cada náufrago um estoque limitado de papel (ou de outro material qualquer que sirva à escrita), ele produziria uma só e única longa mensagem, rasgando-a, a seguir, em tiras e colocando cada pedaço em uma garrafa diferente. Nos anos que se seguissem, a cada ilhota chegariam velhas garrafas, fatigadas e fartas de tanto oceano, carregadas de cracas e de marcas, mas ainda trazendo no interior, mesmo precariamente, esses pedaços escritos. Como recompor, a partir disso, as mensagens inteiras que outros escreveram? Como retomar até mesmo a própria mensagem que algum náufrago de uma dada ilha enviou, ele mesmo, mas que com o passar dos dias acabou esquecendo em boa parte? E como entender o que os dias, os sóis, as tempestades, as rochas, as umidades e os detritos modificaram nessas mensagens? Falei, não por acaso, em Osíris (e, observem bem, não em Penteu). O deus despedaçado, que se torna senhor do reino dos mortos, pode ser também aquele que ensina os caminhos da ressurreição. Ao ter seu corpo repartido e espalhado, mostra como ele pode ser retramado e recosturado, tornando-se diferente e maior do que era. Daí se poder afirmar que ele aponta, nessa perspectiva de agora, não para uma fragmentação insuperável e inelutável, mas para uma pluralização de nós que nos resgata dessa primeira e necessária fragmentação. Como se, para chegarmos à pluralidade, tivéssemos que passar obrigatoriamente por uma espécie de morte alquímica, a obra a negro que é essa fragmentação. Osíris seria então, por outro viés, como que o texto dado a tal leitor mítico, capaz de resgatar nesses pedaços esparsos e casuais um sentido que talvez (ainda) nem estivesse na inteireza da mensagem quando ela foi feita, antes de ser fragmentada. Mas há um detalhe importante a ser explorado: na tentativa de recompor alguma história, qualquer um desses náufragos pode hesitar indefinidamente entre reescrever a própria história ou retomar a de outros. Em outras palavras, ele pode escolher retramar uma das mensagens originárias e primeiras, a sua própria ou a de outros. Nesse caso, ele só terá mesmo uma única história a contar: a de seu fracasso, pois, como já admitia Bentinho, de D. Casmurro, “não consegui recompor o que foi nem o que fui. Em tudo, se o rosto é igual, a fisionomia é diferente. Se só me faltassem os outros, vá um homem consola-se mais ou menos das pessoas que perde; mas falto eu mesmo, e esta lacuna é tudo”. E o que falta é justamente a mensagem primeira e primordial, perdida nessa auto-expulsão de seu paraíso particular. Ou a totalidade das mensagens escritas por outros, mas que também não chegam nunca, inteiras, a sua ilha. O náufrago vai se sentir como um outro Adão, terá de admitir uma queda que nenhuma narrativa mítica consegue, nem ao menos, 20 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 20
  • 23. substituir. O que sobra, então? Apenas um tartamudeio insolente, a encenação de um arremedo de sabedoria, o contar de uma história, a única que ele considera possível ainda tecer, essa narrativa de como foi incapaz de sair de seu círculo de idéias e métodos, de tentativas de leituras, de perspectivas de interpretação. A narrativa de como ele, não tendo como voltar à origem das mensagens e dos tempos, encerrou-se na contemplação narcísica de si próprio, justamente para não ver seu fracasso. Talvez, uns poucos desses náufragos, aqui e ali, consigam vislumbrar uma estratégia diversa. Se não é possível essa reconstrução da originalidade para sempre perdida, se não se consegue mais, como os caçadores de sonhos do Dicionário Kazar, recompor o corpo inteiro do Adão Kadmon, se as narrativas míticas não fornecem mais nenhum mapa de como voltar à origem das mensagens, das escritas e dos seres, o caminho a trilhar, então, é esse de tramar uma mitologia do aqui e do agora. Esses náufragos terão, assim, de apossar-se dessas partes das histórias de outros, chegadas ao sabor e ao acaso das marés e dos ventos; fazer delas partes da sua história e fazer da sua pedaços das histórias de outros; propor uma narrativa multiforme, plural, em movimento, que não apague sua individualidade, e também não se resuma a ela apenas. A partir daí, sua vida inteira muda de sentido: não mais os sentidos outorgados e contados por uma mensagem original e primeira, mas os sentidos que eles são capazes de inventar com os materiais, imagens, idéias e histórias que outros lhes dão, que eles tiram de sua precária memória, nessa trama de nós e pontos infindáveis, prenhes de sentidos possíveis. Tal é a empreita que aqui se intenta: ler esse hipertexto eletrônico e telemático em que nos inserimos cada vez mais, com os gestos e os processos do poético, para espreitar formas e fôrmas de impor a ele e/ou desencavar dele sentidos e significações (precárias que sejam). Mas, para isso, é necessário recortar algum caminho nessa selva selvaggia de significantes e de percursos. É necessário que aprendamos como nos mover por entre ligações e sítios, como prever percursos de um provedor a outro, de uma URL a outra. E contamos talvez com alguns mapas, parciais sempre: a literatura, que se esgueirou, freqüentemente, por vizinhanças próximas à ciência e à técnica, compondo e recompondo textualidades sem o conforto do esperado e do reconhecido; especificamente a poesia, useira e vezeira em pluralidades e percursos nunca definitivos de leitura. Daí nossa escolha em andar pelos caminhos da poesia eletrônica, essa que é feita, desfeita e refeita no ciberespaço, apreendendo deste as nuanças da interatividade (homem-máquina, homem-homem, máquina-máquina) e da iteravidade (essa retomada incessante de dados e rotinas que deve exaurir o processo antes de cansar o usuário). Em outras palavras, propomos utilizar a perspectiva literária para delimitar um objeto – a Rede – inserido em um novo campo de sentidos e de possibilidades – o ciberespaço –, mapeando um objeto cultural não mais limitado necessariamente ao campo literário. * * * Jamais a literatura, a boa literatura ao menos, apostou na univocidade. Isso quer dizer que, entre pluralidade e fragmentação, a criação literária sempre soube escolher uma ou outra, às vezes uma e outra. A bem da verdade, o texto literário nunca fincou pé na permanência e na linearidade, ao contrário do que muita gente tem afirmado (fruto, talvez, de leituras apressadas do S/Z, de Roland Barthes). Tal equívoco parece decorrer de certa confusão entre texto literário e livro. Este tem sido, nos últimos séculos, o meio de veiculação, a base material do texto, como já o foram a voz na literatura de tradição oral e os papiros, pergaminhos e códices nos primórdios da tradição escrita. E o sucesso dessa base material – o livro – se 21 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 21
  • 24. explica por ela ter conseguido associar maneabilidade2 a permanência. O texto literário nunca saberia permanecer idêntico a si próprio, já que sua objetividade não se confunde com uma materialidade que na tradição impressa se assenta no livro. Assim, se este é linear (nem todos os livros, mas aceite-se a simplificação em nome da imensa maioria), se o livro é então limitado e estável, o mesmo não pode ser dito do texto, qualquer que seja ele, sobretudo o literário. O que ocorre com a mudança da base material, da página impressa para o meio eletrônico, é que, em certo sentido, o livro se aproxima do texto, ele se deixa contaminar pela fluidez, por determinada imprevisibilidade, pela não-linearidade que foram, sempre, as do próprio texto. Aquilo que no texto é intertextualidade, no livro eletrônico encontra correspondência na pluralidade de percursos e na heterogeneidade de materiais (associações de matéria verbal, imagens, sons etc.). Uma possibilidade de ler essa multiplicidade de materiais, de significantes e de significações, estaria na provável utilização de modelos combinatórios,3 que tenderiam a delimitar as inúmeras aproximações intratextuais assim como a multiplicidade de referências e interferências entre um texto a ler e textos outros que compartilham todos um mesmo campo de leitura. Mas essa tentativa encontra logo seus limites, sobretudo nos livros impressos que apostam na multiplicação das intratextualidades.4 De fato, como trabalhar, por exemplo, com alguma lógica de mundos possíveis (como propõe Umberto Eco), se é a própria possibilidade de mundos que se encontra também em discussão? Nesses casos, a tática combinatória esbarra na impossibilidade de manipular diretamente uma massa de significantes que escapa totalmente ao controle da leitura e até mesmo ao crivo da memória. Além disso, a atual mudança do sistema literário não é apenas quantitativa, como ocorreu quando do abandono dos códices em favor da imprensa. Ela é também qualitativa: o que testemunhamos é semelhante ao ocorrido na passagem da tradição oral para a escrita, com uma significativa e radical alteração dos modos de organização, de estruturação e de consulta do suporte da obra literária.5 Daí essa atração pelas ciências do caos e dos fractais que observamos não apenas entre os literatos, mas nas ciências humanas em geral. À aparente desordem dos materiais e dos significantes, tenta-se responder com ordens de nível superior, que descubram e esbocem um determinismo sem nenhuma previsibilidade. 6 Isso parece ser útil quando associado a qualquer obra, mas também, e sobretudo, aos livros eletrônicos. Nestes, se tentamos desvendar certa sistematização em suas articulações de sentidos e significações, é preciso que, de um lado, se fuja do impressionismo das interpretações disparatadas e das navegações disparadas; e, de outro, deve-se cultivar e apreciar o plural7 de que é feito esse livro eletrônico tanto quanto o texto que dele se faz derivar. No caso, trata-se de articular uma correspondência de geometria variável entre três elementos: um espaço de construção de sentidos – o ciberespaço –; uma base material – o livro eletrônico –; e o próprio texto. Utilizar, então, essa aproximação fractalista da obra digital significa colocar objetos n-dimensionais sob a batuta de operadores lógicos capazes de inseri-los numa ordem plural de escritas e de leituras, em que os sentidos de ambas são sempre reversíveis. E que operadores seriam esses? Como circunscrever e delimitar seu espaço de atuação? E, ainda, como estabelecer determinismos cambiantes que, sem apontar para uma apreensão teleológica ou essencialista do texto, dêem conta das aparências e das materialidades proteiformes do livro eletrônico? Questões, todas, que ao longo deste ensaio, se não respondidas, deverão ser ao menos mais bem enunciadas. Questões que apontam certamente para os saberes que se vão delineando, esboçando, construindo, colocando em dúvida, superando, dentro dessas redes de nós e de todos nós, que é o ciberespaço. 22 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 22
  • 25. Albrecht Dürer Melancolia l, 1514 Rosenwald Collection, Image c 2003 Board of Trustees, National Gallery of Art, Washington miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 23
  • 26. Identidades e Subjetividades no Ciberespaço8 Talvez não seja inútil insistir que, neste espaço de escrita que aqui se desenha e se emenda, entende-se ciberespaço como hipertexto ou texto eletrônico, que as diferenças entre eles não são, por vezes, mais do que filigranas finórias e não muita profundidade acrescentariam à discussão. E, no caso de texto, temos muito a dizer com base em uma experiência que, alçando o literário à ribalta, pode nos dar o direito de resvalar para espaços outros de significações. Com isso, é a própria cena telemática do (hiper)texto que se pode dar a (re)conhecer, partindo de um espaço que se quer literário, mas que permite ver rastros, vestígios e contornos das subjetividades nele envolvidas. Há também uma suspeita de que do telemático pode-se passar ao dramático, percebendo no ciberespaço uma instância que é produção textual, que é enunciação significante e, ao mesmo tempo, encenação de seres e de linguagens. Mas isso é linha a ser tricotada mais adiante e não vamos meter carros à frente de bois. No momento, concentremo-nos na maneira como se pode ler (n)esse espaço habitado por sujeitos e processos telemáticos, aparentemente compartilhado por pessoas e dispositivos informáticos. Por paradoxal que pareça, uma experiência importante que podemos ter dos textos eletrônicos ocorre justamente quando desligamos o computador e se apaga a tela. Nesse fundo opaco, que instantes atrás eram brilhos e pixels, aparece uma figura esvanecente, nossa fisionomia, um pálido reflexo que somente se mostra a partir do monitor desligado. Desligada a máquina, o que se vê ao fundo, precariamente refletida, é então essa nossa imagem diante da tela, trazendo à tona e explicitando, talvez, o incômodo de uma posição em que nos surpreendemos inquirindo subjetividades e perturbando identidades. É como se se reproduzisse a difícil posição do indivíduo que na Procura da Poesia, de Carlos Drummond de Andrade, se vê colocado diante da palavra, que “te pergunta, sem interesse pela resposta, / pobre ou terrível que lhe deres: / Trouxeste a chave?”. Contudo, o que perturba e incomoda é que o inquisidor não é palavra alguma, ele se parece muito conosco! E o que essa imagem pediria, instigaria, exigiria, possibilitaria? De um lado, a busca de si, esse percurso que aponta para o conhecer, mais ou menos exato, de quem ou de que seria tal reflexo precário, essa individualidade que se vislumbra na tela do computador desligado. De fato, apresenta-se diante de nós a possibilidade de reconstruir, ainda que parcialmente, nossa própria imagem, de recortá-la contra um fundo indistinto e indiferente de vidro neutro e de recuperar a capacidade de uma reflexão primeira ou primordial, quer dizer, recuperar um nosso olhar voltado para nós mesmos e para nosso próprio olhar (ou para os traços e vestígios que de nós sobraram, uma vez suspensa a viagem pelo ciberespaço, terminada a navegação dos hipertextos, esgotado o reconhecimento dos programas e dos aplicativos). Temos aí o mesmo tipo de reflexão das mãos que se tocam tocando, do pensamento que se pensa pensando, em suma, uma reversibilidade que não é necessariamente dialética e possibilita uma significação que vai além dos discursos, das falas e das obras já envelhecidos e, portanto, reconhecíveis e manipuláveis. O que se presencia é a primordialidade que está por trás de todo gesto significante, de toda expressão e, em síntese, de toda linguagem. Mas é importante ressaltar que se trata de um trabalho de Sísifo (que, já se disse, é também trabalho decisivo, ou incontornável), de perscrutar traços e vestígios à cata de fragmentos de nós que 24 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 24
  • 27. 2525 formem uma cadeia de precária coerência (mas, mesmo assim, de coerência). É inevitável trabalho e ao mesmo tempo interminável, pois, sendo religado o computador, a interface gráfica do Windows® ou do Macintosh® vem novamente justapor uma máscara de cores e de movimentos, escondendo nossos gestos e intenções sob os deslocamentos céleres ou morosos do cursor sobre ícones, imagens e palavras, e sob as transformações e as rotações das imagens. Daí a percepção de que nos perdemos no ciberespaço, de que nossos vestígios e fragmentos se isolam, se desgarram e não nos entregam nada além de uma identidade difusa e para sempre desfigurada. No entanto, se insistíssemos na lembrança de nossa fisionomia perscrutando o fundo vítreo da tela desligada, poderíamos talvez justapor outro percurso aos rumos das imagens, das ligações e dos sítios desfilando diante de nós, poderíamos impor outro ritmo à celeridade de processamento de máquinas e redes. Porém, essa não é a única possibilidade: nossa tênue imagem ao fundo do monitor desligado pode resultar em outro percurso, em que não se vai além da reafirmação do mesmo, ou seja, de nós próprios. Como resultado, não temos nada além do que o retorno a uma imagem nossa, tão plana e tão insignificante como a tela do computador apagado. Em outras palavras, teríamos a concretização de um solipsismo que está sempre rondando nossas navegações, do mesmo modo como espreita nossas reflexões e nossos projetos. E, nesse caso, que conhecimento teríamos de nós? O que veríamos de nós, senão a confirmação de nossa própria fisionomia inapelavelmente sobreposta às coisas e aos outros? De fato, em tudo e em todos veríamos a mesma marca, os mesmos traços, a mesma feição. E que conhecimento poderia vir dessa operação intelectual que, com efeito, seria apenas um arremedo de auto-reconhecimento? E como fundar aí nossa identidade, pois entre nós e o mundo exterior não haveria justamente essa distinção originária e fundadora que nos dá um mundo vivido e uma vida para habitá-lo? Parece que se retoma assim aquela experiência de repetir uma palavra à exaustão até que ela se torne, pouco a pouco, estranha, impenetrável e até mesmo hostil; por ser tantas vezes enunciada, ela deixa, aos poucos, de ser familiar e conhecida, ela deixa de significar. Ao se tornar como que a única palavra a sobrar em um léxico esvaziado, ela perde toda significação, justamente por ter-se afastado das outras palavras, por não ter mais como construir sua significação na diferença recíproca que guarda com elas. Quando nos vemos reduzidos a nossa própria e única contingência, nada podemos tirar senão a pobreza da análise, aquilo que não nos dá nada além do que já havíamos aí colocado. Daí a sensação de que nossa imagem imposta à tela do computador pode resultar em uma espécie de ausência nossa diante de nós mesmos, uma ausência sentida paradoxalmente como presença, como uma volta melancólica a nós através de rastros, traços, vestígios e sinais que parecem ser evidentemente nossos, mas que trazem a marca do estranhamento e da distância, do aparente apagamento de nossas singularidades pelo desligar da máquina. E, se fôssemos apenas nós próprios e nossa condição, nesse caso, nossa condição seria um papel frouxo e molhado em que tentaríamos manter indeléveis os elementos e os vestígios de nossa presença, mas submetidos a uma perda de profundidade e de perspectiva que os devolveria não mais como presença constante de nós no mundo, como dito acima, mas como presença gasta e, assim, esvaziada de sentido e de qualquer identidade possível. No outro lado desse espectro, está o computador ligado permanentemente à rede, está a saciedade excessiva, o fastio cibernético de que, por vezes, não nos damos conta, senão depois de muito ter navegado pelos mais diferentes sítios e endereços, entregues à volúpia de buscar um ícone, uma informação, um dado miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 25
  • 28. que sempre estarão, segundo se faz crer, no próximo percurso, que pretensamente se mostrarão disponíveis no endereço que ainda aparecerá na tela. Mas eles não chegam nunca até nós, ou talvez até cheguem, mas nos encontramos tão entorpecidos que já nem mesmo sabemos reconhecê-los, nem conseguimos reagir a eles. No caso, as imagens, os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons acabam se empanturrando de possibilidades de significações, que se tornam, então, inúteis e impenetráveis. Trata-se de uma espécie de presença ausente, de uma perda de sentido dos objetos dentro de seus próprios detalhes e vestígios. Mas, até mesmo aí, não escapamos à fatal atração dessa contemplação melancólica de nós próprios, pois as imagens, os gestos verbais, os ícones, os deslocamentos, os sons, ao se fartarem e se esvaziarem de sentidos, acabam por se tornar inúteis, impenetráveis e vazios. E, nesse movimento, deslocam a contemplação para um outro vazio, isto é, para a ausência de nós próprios, dotando-nos da mesma inutilidade e da mesma impenetrabilidade que se exibem sobre a tela, à imagem dos belíssimos versos com que Mário de Sá-Carneiro fala de sua Dispersão: “Perdi-me dentro de mim, / Porque eu era labirinto / E, hoje, quando me sinto, / É com saudade de mim”. Estando ligado o computador, corremos sempre o risco de nos entregar ao desenfreado e ao desmesurado das conexões multidirecionais, dos saltos abruptos e incessantes, das vizinhanças forjadas à força, experimentando uma saciedade excessiva que guarda inesperada similaridade com aquela descrita acima, em que nos escondemos atrás de um solipsismo fechado e redutor. Nos dois casos, há como que um estrangulamento das significações, já que tanto a privação quanto o excesso terminam por nos fazer cair num vazio ou numa inutilidade dos significantes. E ambos nos enredam em uma melancolia da significação, que é nossa e é também dos significantes, melancolia que talvez somente possa ser superada por uma busca, por uma reafirmação, por uma retomada, por uma recostura – extremamente trabalhosas, mas inevitáveis – da própria identidade. De fato, as duas experiências – seja a da navegação descomedida e sem amarras; seja a do fechamento em sua própria imagem – evocam um Narciso colocado diante de uma imagem de si que já não guarda mais unidade, que já não lhe garante nem mesmo o eco de sua voz ou o reflexo do que conseguiria identificar como sendo seus próprios traços ou vestígios espalhados pelo mundo que ele ainda pode ver diante de si. No entanto, melancolia pode remeter a referências demasiadas, pode permitir ou exigir comentários infindos, com o que praticamente cairíamos na situação descrita, indo da melancolia como assunto à melancolia como situação. É assim que, para escapar a essa ditadura do melancólico (que, no caso, resultaria de uma angústia do excesso de interpretação), vou-me permitir uma abordagem mais leve (sem que ela seja, por isso, leviana ou superficial), tentando articular uma leitura do ciberespaço que seja também o esboço de uma saída dessa situação de melancolia. No caso, uma das referências minhas preferidas está na gravura de Dürer justamente intitulada Melancolia I, que acabei tomando como possível fio condutor de uma compreensão desses mecanismos de significação, de subjetivações e de construção de identidades no ciberespaço. Vamos a ela! Como se deu essa transposição da gravura de Dürer para o ambiente telemático? Utilizei-a como ponto de partida, como inspiração, como catalisador de uma compreensão dessa melancolia do ciberespaço, talvez agindo à maneira dos leitores do I-Ching, que se servem do casual para pretensamente chegar ao essencial. Aos poucos, traços de semelhança e possibilidades foram surgindo e permitindo que eu me desvencilhasse da gravura e entrasse mais e mais profundamente nas entranhas dos textos eletrônicos e do ciberespaço. O que vou tentar fazer aqui, por conseguinte, é apenas um resumo desse percurso que partiu de uma visão alegórica da gravura, passando por um trajeto exegético de seus elementos para chegar, finalmente, a uma 26 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 26
  • 29. 27 compreensão direta e mais acurada de meu objeto de reflexão. Alguns poderiam, com todo o direito, argumentar que a escolha de tal perspectiva de investigação – no caso, essa dada gravura – é tão (i)legítima e (não) convincente quanto qualquer outra. O que apresento, então, como argumento é apenas um pedido para que julguem essa escolha com base nos resultados da discussão, não condenando a priori os postulados de onde parti. O que interessa não é o que a média das pessoas poderia associar à obra de Dürer, mas o que eu quero ou pretendo ver como apoio a minha leitura do ciberespaço. De fato, é a coerência e a capacidade de convencimento desta última que servirão para indicar o acerto (ou o fracasso) de minha estratégia. Tomando então a gravura, podemos perceber nela uma multiplicidade de elementos que se acumulam numa ordem que inicialmente dá a impressão de fugir a toda tentativa de sistematização: figuras geométricas, objetos de uso diário, imagens carregadas de possíveis alegorizações, referências muito provavelmente bíblicas etc. Todavia, essa multiplicidade parece escapar ao anjo – pretenso elemento central a partir do qual seriam endereçados os olhares para os outros elementos. Ao menos a gravura se organiza de modo a dar a impressão de que vários objetos e seres estão dispostos a sua volta, sem que ele consiga apreender o sentido (ou os sentidos) dessa multiplicidade de coisas. Esta – a multiplicidade – torna-se para ele legião (no sentido da legião de demônios que, no Novo Testamento, Jesus expulsava de um energúmeno), e não pluralidade ou variedade do mundo vivido. Diante disso, não seria absurdo ou despropositado falar de um anjo caído, de uma criatura divina, mas perdida na materialidade múltipla das coisas. Ele não consegue apreender essa legião de existentes e de diversidades, já que se encontra totalmente preso à busca de um princípio único causador (o vértice do compasso, o centro da eventual circunferência a ser desenhada por ele, um centro tão excêntrico quanto o ponto de luz que, ao fundo, não consegue ser foco nem origem do círculo que se recorta contra o horizonte). E esse princípio mostra-se totalmente desvinculado da pluralidade efetiva e direta das coisas e dos seres. Nesse sentido, a angústia da situação do anjo nasce do mesmo motivo primeiro que levou ao desenvolvimento do pensamento grego, a oposição entre o uno e o múltiplo. Porém, o que, para os gregos, foi impulso e incentivo para o conhecimento, para o anjo, mostra ser, ao contrário, peso e desalento: a pluralidade de elementos não parece entrar no desenho que ele tenta esboçar, pois o olhar perdido ao longe afasta do traço e do compasso a diversidade, sem chegar a encarar essa luz que ao fundo aponta para as coisas, as ilumina e dá-lhes possibilidades de sentidos e de coerências. De fato, ele parece estar concentrado unicamente na busca de uma totalidade inútil e distante, de uma totalidade que, com efeito, obscurece e escamoteia o conjunto e a variedade dos objetos e dos seres. Entre essa luz que vem do fundo (e que, na nossa leitura, não pode deixar de remeter a luzes e a cintilâncias de telas e de monitores) e o olhar do anjo, situa-se toda uma coorte de coisas, uma materialidade múltipla que acaba, de fato, por se esconder a ele e por esconder dele a própria totalidade (não revelada, mas que poderia ser encontrada, reconhecida, aprendida nas coisas e em suas disposições, estivesse o anjo em outra posição). Em conseqüência, é a visão de si próprio que fica escondida, ou perdida em meio à barafunda de uma variedade tão sem sentido – para ele – quanto esse olhar melancólico e falto de perspectivas. E que variedade de elementos seria essa, segundo a perspectiva do anjo? Uma escada que dá em nada ou lugar nenhum, inútil escada em que a base terrena parece ter perdido o pé e desaparecido, escondida entre restos e ruínas, e em que o topo não leva nem a transcendência, nem a entendimento, nem a paraíso algum, inútil escada de miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 27
  • 30. Jacó sem o menor traço da luta deste com um anjo (outro, claro!), esboçando na verdade e na aparência (ou na verdade da aparência) uma inútil luta consigo mesmo. Temos ainda figuras geométricas misturadas a figuras naturais (como o animal situado entre um poliedro e uma esfera), acompanhadas de produtos artesanais (tecidos, balanças, sinos etc.), numa provável proposta de conciliação entre as três esferas (abstração, criação e construção), ou num possível acordo entre espírito de geometria e espírito de finesse. Trata-se de conciliação e de acordo que não são mesmo percebidos ou compreendidos pelo anjo, perdido em meio ao que ele poderia considerar apenas despojos de si próprio. À direita dele, encontra-se uma criança, ou melhor, um pequeno anjo de aparência infantil e despido de auréola (a não ser pela circularidade de um dos pratos da balança que, acima de sua cabeça, proporciona um arremedo de auréola; já o anjo, ele próprio, está ao menos coroado de louros). Logo abaixo dessa criança-anjo, está um animal, repousando indiferente ao olhar e à atenção que ela parece dirigir-lhe. E o conjunto de ambos, quando os destacamos em meio aos demais elementos, poderia indicar uma progressão do animal ao anímico, mas, novamente, um conjunto e uma progressão que não se dão senão a nós que estamos postados fora das perspectivas do anjo, que a ele nada disso se dá, nada disso se deixa ver. Temos, talvez alegorizados, a origem temporal e o encaminhamento para o telúrico desse anjo, mas que, para ele, não passam de fragmentos de uma identidade que parecem escapar a sua leitura, a seu entendimento. Ao chão, encontra-se ainda o que pode ser visto como restos de uma construção iniciada mas não terminada, como se fossem ruínas de si próprio, exposto que está a uma multiplicidade que ele não entende, não percebe, não controla e não organiza. E o que seria, então, esse anjo e esse espaço, essa disposição de coisas e essa balbúrdia de sentidos e de significados possíveis? Muita coisa, possivelmente, mas todas elas, se propostas ou construídas a partir da perspectiva intradesenho do anjo, remeteriam inapelavelmente a um centro de significações falho ou vazio. Tendo a percepção embotada pela multiplicidade incompreensível (para ele!) das coisas do mundo, o anjo afunda-se numa queda, que é busca inútil de uma ordem única para o mundo e, a fortiori, de uma identidade absoluta para si próprio. Não há entre os objetos um espelho que lhe devolva, como imagem coerente dele próprio, essa busca por sentidos e ordens. Como resultado, ele não percebe nem a unidade de si, nem a real extensão da pluralidade das coisas, pois sua percepção se encontra embotada por uma variedade de que ele não consegue dar conta. Se ele fosse apenas anjo, ainda guardaria a unicidade do cosmos; se se tornasse tão-somente humano e material, seria capaz ao menos de perceber ou sentir ou, mesmo, de viver a pluralidade da existência; sendo anjo e (de)caído, perdeu a primeira condição, sem ganhar a segunda. Assim, é sua identidade que fica perdida em meio à multiplicidade de coisas, de significantes, de possibilidades de sentidos. Algo parecido ao que pode ocorrer também com os leitores desse texto-gravura: afinal, seu tom fortemente alegórico leva a uma acumulação de possibilidades exegéticas, em tudo semelhante ao acúmulo de objetos cercando o anjo, o que pode causar um certo cansaço de ler, de escrutinar e recensear significações possíveis e coerentes. Em decorrência, é a fadiga de ler-se a si próprio que se instala, numa busca incessante, mas infrutífera pela própria identidade, partida e repartida, esta, pela multiplicidade de coisas, de leituras, de possibilidades de significações e de desvãos interpretativos em que se pode perder tanto o uno de si quanto o plural do mundo, ou vice-versa, a unidade das coisas e a variabilidade de si. 28 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 28
  • 31. Essa busca pela própria identidade, em meio a fragmentos e ruínas e multiplicidades, não precisa ser necessariamente melancólica. Assim como a exploração do ciberespaço não tem necessariamente que cair nas duas formas de melancolia acima descritas: a da multiplicação indiscriminada e incontrolada de informações e a do solipsismo e do fechamento individualista em si mesmo. De fato, há vários processos de construção de identidades e de subjetividades no ciberespaço e nem todos devem levar necessariamente a essa lacuna de si e a essa ausência de sentidos (seja pelo acúmulo indefinido e indiscriminado de significantes, seja pela imposição de uma fisionomia única e redutora a todo e qualquer elemento significante). Mas mesmo essas duas devem fazer parte de uma tipologia mais geral e mais abrangente que tente dar conta das diferentes maneiras de o sujeito colocar-se diante de si e dessa teia de elementos significantes que estamos chamando de ciberespaço. Em resumo, podem-se propor três tipos básicos de processo de subjetivação: 1) uma identidade absoluta e além do sujeito; 2) uma identidade relativizada e aquém do sujeito; 3) uma identidade provisória e não programática. E é claro que estaremos, de ora em diante, fazendo pender discussões e pontos de vista para esta última, pois ela parece ser, diante das duas outras, a única possibilidade de escapar à melancolia que vem da proliferação descontrolada do múltiplo ou que resulta da repetição de si mesmo. Tomemos então, primeiramente, essa identidade absoluta e além do sujeito. Ela parece se manifestar, por exemplo, pelas próteses tecnológicas e/ou cibernéticas com que se dotam os corpos (e, em decorrência, as próprias atividades humanas implicadas). Vale dizer que, quando nos referimos a humano, estamos pensando naquilo que se encontra ainda aquém dos gestos e das intenções significantes e lhes serve de ponto de partida: por trás da atitude de indicar um objeto ou uma direção, está o dedo que aponta, a mão que o contém, o braço que o sustenta, o ombro que o ampara, o tronco de onde ele nasce, em suma, está o corpo inteiro flexionado e fletido para dar a si e entregar ao mundo certa significação. Quando escondemos nosso corpo com aparatos com que ele não nasceu, quando outorgamos a nossos gestos uma origem externa ao espaço e ao alcance de nossos corpos, estamos naquela situação, criticada por Virilio, de nos dotarmos de uma virtualidade realizada às expensas de nossa própria circunstância corpórea. Estamos, também, na posição descrita (e exaltada) por Pierre Lévy, quando se refere ao duo pensante homem- máquina. No caso do ciberespaço, trata-se da impressão de que nossa identidade não passaria mais pelo reencontro de nós em nossos próprios gestos, no reconhecimento de nossa fisionomia no que fazemos e nas significações que propomos às coisas e aos fatos, na maneira como visamos a um mundo de significações que se instala a nossa volta. Nossa identidade estaria, dessa forma, não na extensão de nossos gestos e de nossos corpos em direção a algum elemento significante que eventualmente construiríamos ou perceberíamos ou para o qual apontaríamos, mas apenas e tão-somente no além de uma extensão maquínica, de um processo cujo sentido e cujo alcance nunca tivessem feito parte de nossas intenções e percepções diretas, de um processo, em suma, que viria até nós sem ser por nós produzido ou percebido. Trata-se de uma identidade que poderíamos classificar como místico-tecnológica, pois consiste no esvaziamento de nossa própria singularidade em proveito da exterioridade de uma tela, de um dado endereço eletrônico, de ligações a endereços eletrônicos outros, de interações impostas por uma lógica de leitura e de navegação estranhas a nossas expectativas e experiências, em resumo, de elementos significantes que parecem surgir de uma exterioridade absoluta e além do sujeito. E por que místico? 29 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 29
  • 32. Porque ela exige uma negação de sua própria singularidade, com a conseqüente aceitação de uma exterioridade absoluta e inelutável. Assim, o sentido do humano não estaria mais na maneira como nos dotamos de um mundo que existe antes de nós (ou seja, no modo como habitamos essa reversibilidade entre corpo e mundo), mas em como deixamos ferramentas e processos nos conduzir e nos instalar como seres deles dependentes. É como se o preexistente, o já dado, fosse não o mundo ele próprio, mas certas regiões dos objetos culturais, no caso, uma parte do espaço tecnológico. Ora, a falha dessa percepção encontra-se exatamente em tomar o tecnológico como exterioridade absoluta a que somos – paradoxalmente – convidados a entrar e a estar e a ser, dentro dela. Não seria absurdo afirmar que se trata de uma retomada falha e esvaziada do mítico e do religioso: o re-ligare das religiões tradicionais funda-se numa experiência em que se busca justamente uma dualidade (o sagrado e o profano) em que esses dois campos extremos (o aquém, pelo ser humano, e o além, através do divino) se encontrariam e se dariam a ver. No caso desse misticismo tecnificante, temos uma apenas aparente dualidade, uma dualidade que não resiste às primeiras investidas dos processos automatizantes, já que eles acabam sempre reduzindo essa duplicidade à simplicidade e à exterioridade de um mesmo campo (submetendo, no caso, o profano, o humano a lógicas e movimentos e ritmos exclusivamente externos). Como conseqüência, a identidade de si (ou um arremedo dela) passaria forçosamente por uma identificação com instrumentos e com os processos de que se dispõe, abrindo mão de qualquer autonomia ou espontaneidade próprias ao humano. Em suma, teríamos nada além da identificação de si próprio com uma eficácia externa, o que seria, no máximo, simulacro ou ilusão de eficácia (assim como de identidade), pois a performance do instrumento tecnológico não tem como ser totalmente assimilada a expressões ou gestos humanos. A conseqüência direta dessa busca de identidade, através do além do tecnológico, não traz como resultado senão exterioridade e platitude (ou, dito de outro modo, nada além de uma tecnomelancolia). Bem diferente, em todo caso, de experiências místicas como as dos quietistas espanhóis do século XVII ou de San Juan de la Cruz, que, de uma aniquilação de si próprios, insinuavam chegar a uma interiorização radical do sagrado. O segundo tipo de identidade que se pode propor com base no ciberespaço é aquela que caracterizamos como relativizada e aquém do sujeito. Ela está ligada diretamente à hiperinflação informativa, processo em que, devido a um transbordamento de significantes, toda informação, todo dado, todo significado inevitavelmente se transformam em ruído. Isso ocorre quando as informações desfilam e se desfiam na tela do computador, demasiadamente rápido diante de nós, sem deixar nenhuma possibilidade de esboçarmos certa fisionomia de organização, algum esforço de racionalidade, mesmo provisório e localizado, que pudéssemos associar aos objetos significantes desfilando pela tela. É o caso em que o excesso de informação deixa de ser informação para tornar-se ruído, perdendo totalmente qualquer conteúdo informativo. Mas isso não é tudo. Esse ruído parece propiciar, inicialmente, uma paradoxal hipertrofia do sujeito, dando-lhe a ilusão (ou é ele próprio quem assim se ilude) de que é ele quem está por trás de toda construção de objetos significantes, que todo percurso de significação se submete ao arbitrário e ao relativo de suas posições e gostos e disposições e gestos. Assim, esse sujeito instala-se num ponto de enunciação falto de sentidos e sem horizonte de significações possíveis tendo a impressão de que a ele compete ocupar todos esses espaços e ocupar-se de todos esses 30 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 30
  • 33. processos. Não lhe restaria outra posição senão a de instalar-se decididamente na ribalta dos significantes e estabelecer-se, solitariamente, como horizonte de sentidos e de possibilidades de significação. Mas é aí, justamente, que o processo se inverte e essa hipertrofia inicial (e, dizíamos, paradoxal) do sujeito se transforma em atrofia. Ele não percebe que está, na verdade, limitando-se a pontos de vista passivos (e eles se multiplicam, acentuando o esvaziamento de sua subjetividade) diante de uma celeridade de significantes cada vez mais esvaziados. Com o que ele se reduz, afinal de contas, de forma gradual e inapelável a uma lacuna num espaço então tornado definitivamente lacunar. Há como que uma homogeneidade entre o vazio da informação multiplicada à exaustão e às raias da inutilidade e um sujeito rareificado que nem mesmo percebe estar sendo excluído da cena dos objetos significantes. Finalmente, resta discutir o terceiro tipo, a identidade provisória e não programática, em que a busca de sentidos e de significações não se dirige nem para uma mistificação do tecnológico (além do eu), nem para um transbordamento vazio de informações (aquém do eu). Essa terceira identidade se fundamenta no que poderíamos descrever como uma costura de identidades (assim mesmo, no plural!) e de significantes, em que internos e externos se conjugam, se entrelaçam, resultando num gesto expressivo que parece lembrar o que Merleau-Ponty chama de quiasma ou reversibilidade.9 Em certo sentido, o que se propõe é como que a busca de um apoio ou de complementaridade no outro, no que é provisoriamente diverso, oposto ou externo. É, por exemplo, descobrir um outro lado no espaço e nos objetos da tecnologia, rastreando neles a sedimentação do toque humano que revela o horizonte cultural de qualquer instrumento, por mais eficiente que ele pretenda ser, de qualquer processo, por mais poderoso que ele pareça. Na verdade, é justamente esse fundo de cultura que pode revelar o horizonte de sentidos e de significados possíveis de qualquer instrumento ou processo. Com o que podemos mostrar, com toda a evidência, que a finalidade do espaço tecnológico não está nele mesmo (como pareceria mostrar a primeira identidade falha aqui discutida) nem num locus esvaziado de sentidos e de subjetividades (para onde apontaria a segunda tentativa de identidade), mas na maneira como acomodamos ou alteramos seus significantes e seus significados em direção ao sentido que queremos e podemos dar a ele. De fato, não há nenhum sentido do tecnológico que se esgote nele mesmo, em sua própria instância. É o sujeito que lhe dá o toque final e o sentido sempre provisoriamente definitivos. Do mesmo modo, somente o olhar externo à gravura (portanto, não reduzido às limitações e aos limites da perspectiva do anjo) é capaz de perceber algum sentido que vá além da melancolia daquele anjo perdido em meio à multiplicidade do mundo e das coisas, e à ausência dele próprio. Daí esse percurso de reconhecimento de si, que passa pela busca de uma interioridade do tecnológico e pela reafirmação de uma exterioridade do eu diante da multiplicidade de significantes. Há aí, implícito, um projeto de sentido e de significações que não se reduz a uma mera reafirmação da imagem mística do tecnológico. Trata-se da busca de uma interioridade do tecnológico, da busca de teias e tramas de sentido que escapem à exterioridade absoluta, à platitude constante e teçam, nesse tecnológico, significações além daquelas que vêm da perspectiva (neo)positivista. E esse projeto de sentido e de significações também não poderia se reduzir à euforia cegante e quase irreversível da hiperinflação informativa (cujo correlato é o esvaziamento eufórico do espaço da subjetividade). É através dele que podemos escapar das duas formas melancólicas de subjetivação, construindo uma identidade que se dê como percurso de si próprio, que se faça à custa e a despeito dos 31 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 31
  • 34. aparatos, dos aparelhos e dos processos (e também, claro, sobre eles todos). Uma das melhores imagens que conheço para dar conta disso é a do personagem de uma charge que, em um monociclo sobre a corda bamba, vai desenhando a lápis, logo à frente, a continuação da linha onde se equilibra precária e provisoriamente. O centro de significações (ou a direção coerente tomada pelo artista mambembe e cartunista) está justamente depositado nesse esforço de traçar uma linha que ainda não chegou a ponto algum, mas que não deixa de se apoiar numa exterioridade projetada solidariamente pelo corpo e pelo gesto do equilibrista. Uma conseqüência do que discutimos nos parágrafos anteriores refere-se ao tipo de leitura que se pode propor no/do hipertexto, uma leitura que se coloca também como gesto e, conseqüentemente, como expressão, empreendida com base na posição singular de um sujeito movente, de posições provisórias – efêmeras, talvez –, mas construindo o possível de um percurso por entre fragmentos e multiplicidades várias. E, no caso, voltamos ao papel das teorias do texto literário na compreensão do ciberespaço. É que, se há texto, se há então leitura desse texto, se há um posição focal que cria (sempre) regiões de clareza provisória e sombras passageiras nesse espaço de telemática opacidade, é possível propor a esse sujeito leitor um percurso de leitura como marcas e bases de sua identidade, como testemunhos de sua subjetividade. E tal leitura guarda uma especificidade, a de fundar e traçar significações, instalando-se tal qual o equilibrista na solidez precária de uma linha que se apóia no quase nada para apontar, a partir daí, para o muito, para a pluralidade das coisas e dos objetos significantes. O que procuro aqui, na verdade, é levar adiante uma intuição, a de tomar a leitura do/no ciberespaço como uma espécie de performance que realizamos às expensas de nossas limitações e das condições de contorno da tela do computador. Trata-se, aparentemente, de um ato de criação e de tomada de posição diante de uma cena gerada desde o exterior de imagens, ícones, movimentos e processos interativos, deslocamentos e cortes, acréscimos e multiplicações, mas permitindo que nossa interioridade venha habitá-los todos com a compulsão dos significados e a contenção dos sentidos. Dizer que essa leitura é uma performance implica dizer que nos colocamos como hiperleitores, isto é, como ativos organizadores do hipertexto, mas organizadores que se colocam bem em meio aos objetos significantes, de forma que o processo de significação desses objetos acompanhe e circunde nosso processo de subjetivação, em que nos explicitamos como leitores (de significantes, do ciberespaço onde estes se desvelam, e de nós mesmos). Apresentamo-nos como atores de uma espetacularidade, mas que sabem também postar-se do outro lado da cena, no aquém do palco (da tela) e no além de nossos próprios movimentos e tomadas de decisão, tecendo uma identidade que nos coloca como subjetividade encenada e dada à leitura de outros. E essa identidade telematicamente colocada, construída e, sobretudo, encenada exibe-se como fingimento. Nessa via transversa, ela busca dar voz e vez a um verdadeiro dizer do real, por meio desse fingimento que se pode exibir como máscara reveladora (e que é sempre uma possibilidade que compete a cada um de nós efetivar ou não, sendo-nos dado a escolha do melancólico ou do sábio). Trata- se de capturar na provisoriedade e na dramatização de falas, gestos, movimentos, comandos, aparências, rastros e restos de ícones e de endereços, na tecedura movente e mole de significantes uma fisionomia de efêmera permanência; ou também de propor uma possibilidade de espacializar reflexos e percursos em cima dos quais balizamos a visão de nós mesmos e desse texto-mundo tecido em raias intermináveis e circunferências de raio infinito. 32 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 32
  • 35. Essa leitura de nós, de nossa inserção no ciberespaço (que é também leitura do próprio ciberespaço) pode ser assim descrita como uma provisória mentira, uma encenação que permite expor honesta e abertamente entranhas e hesitações de (ciber)espaços, de leitores e de leituras. É claro que há aí um paradoxo lógico em que a sinceridade consiste em dizer que se está mentindo. Todavia, tal situação de “incômodo lógico” está presente em qualquer forma de literatura, ou, para ser mais geral, em qualquer arte, em toda época. E não é por causa da intensa tecnologização do ciberespaço que vamos escapar a esse gênero de contradição que é base de qualquer experiência artística que se possa imaginar. Tanto quanto a voz poética da Autopsicografia, de Fernando Pessoa, o hiperleitor finge que não sente o que na verdade está sentindo, e os que lêem sua leitura vão sentir, ainda, outra coisa que nada tem a ver com o que esse hiperleitor chegou, primeiramente, a sentir e, depois, a encenar. Em outras palavras, o leitor do hipertexto assume a função de produtor ou organizador de uma espetacularidade, de uma encenação, de uma topologização de significantes e de significações de que ele não pode deixar de participar. De fato, não podemos ficar presos a uma mera especularidade do hipertexto hiperinflacionado, nos colocando irremediavelmente presos a reflexos sem reflexões e que resultam de uma algaravia de restos de idéias, de fragmentos de princípios, de vestígios de saber. Também não podemos propor apenas um espetáculo que se contente em celebrar a ausência de nós próprios, o que seria o resultado melancólico dos simulacros e das mistificações tecnologizantes. De outro lado, é preciso levar ainda em conta a presença de uma platéia, de companheiros de rota e de significações (de resto, nenhuma linguagem, por mais fundada em elementos estritamente tecnológicos, pode existir sem essa armação intersubjetiva que sustenta e permite todo ato expressivo). Essa platéia (de que fazemos parte, mesmo nos colocando à parte para poder falar dela), ainda que virtual, não deixa de traçar vestígios, de possibilitar ornamentos e filigranas de significações ao (hiper)texto construído por nós, leitores de nós de conexões, leitores de nós próprios, leitores do hipertexto e de outros leitores. E essa platéia se faz presente e atuante não na indiferença das posições distantes e distintas do palco, mas colocando-se em cena, bem ao lado dos percursos que assumimos e esboçamos, trazendo, aliás, para a cena a posição e a cumplicidade de compartilhar um gesto expressivo comum. Em resumo, esse esboço de leitor do ciberespaço mostra-nos como atores/organizadores que lêem, representam, atormentam, desfocam, deformam e tocam adiante um texto que, vindo de outros leitores e loci, recebe inflexões e significações de que talvez nem suspeitássemos. Construímos um texto tramado e tecido em um espaço coletivo, um texto dado pela voz singular do ator/organizador à multidão que aplaude, vaia, contesta, aceita, recolhe, mas participa sempre, evidentemente, dessa construção coletiva de significações e de textos. A navegação pelo ciberespaço, vista como dramatização ou espetacularização de nós próprios, do hipertexto e de outros leitores/atores, poderá mostrar um caminho efetivo em que, definitivamente, não precisaremos mais nos curvar a essa melancolia de significações excessivas ou de mistificações tecnológicas. Quem viver (e ler) verá (lerá). 33 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 33
  • 36. Saber o/no/do Ciberespaço Como pode ser possível alguma construção de saberes no ciberespaço baseada nas condições de contorno de uma tradição de pensamento ainda fortemente ancorada no meio impresso? Para responder a isso talvez seja útil discutir primeiro como vem ocorrendo a passagem de obras originalmente destinadas ao suporte impresso para o meio eletrônico. Essa alteração envolve uma série de elementos que dizem respeito não apenas à produção e à disseminação de textos. Ela é produzida num espaço híbrido de circulação de objetos culturais – implicando um diálogo entre o meio telemático e o meio impresso – e está ligada, afinal de contas, à estruturação de um saber que, na falta de melhor denominação, podemos já chamar internético, termo que designaria a produção do conhecimento em redes telemáticas. De toda maneira, se ao final não ficar convencido do acerto e validade desse arremedo de conceito – internético –, o leitor poderá ainda aproveitar a inesperada sonoridade da palavra, que ao menos agradará, mesmo sem ter plenamente convencido. Primeiramente, é importante explicitar os contextos e as referências da questão colocada para podermos ver alguma coerência nesse saber internético. Nos últimos anos, o Núcleo de Pesquisas em Informática, Literatura e Lingüística, Nupill, da Universidade Federal de Santa Catarina tem disponibilizado na rede obras clássicas da literatura brasileira. E, diga-se de passagem, não é o único: projetos desse tipo têm pululado e, entre eles, podemos destacar o trabalho desenvolvido pela Biblioteca Nacional. Em linhas gerais, o que se tem pretendido, desde o início, é trazer para o meio eletrônico obras que foram concebidas inicialmente para o meio impresso. Porém, o espaço das mediações e das trocas culturais é um sistema de vasos comunicantes, e, claro, uma obra disponibilizada em formato eletrônico não teria como ficar totalmente presa ao meio em que é inserida: é assim que textos eletrônicos, vindos do meio impresso, têm retornado a ele; caso, por exemplo, da Carta de Pero Vaz de Caminha, que nos meses que antecederam a comemoração dos 500 anos da chegada dos portugueses ao Brasil, no ano de 2000, foi amplamente divulgada e, mais, publicada e impressa, em alguns casos, com base na versão eletrônica disponibilizada pelo Nupill. Com isso, uma obra difundida durante séculos no meio impresso entra no espaço telemático para, em seguida, ser levada de volta a seu leito original. É claro que nada ligaria a atual edição impressa a sua origem eletrônica se não fosse a informação, mencionada pelos responsáveis das novas edições, de que o Nupill era o responsável pela versão eletrônica da Carta. No que se refere ao meio eletrônico, ainda quando disponibiliza obras originalmente concebidas para o meio impresso, ele propõe outras ferramentas e, por conseguinte, outros paradigmas de leitura. Sem nos alongarmos em demasia, basta pensar no comando localizar (find, nessa salada linguageira que assola a rede), disponível tanto nos editores de texto quanto nos navegadores. Ele representa uma economia de tempo considerável na localização de palavras ou expressões que, em caso contrário, seriam dificilmente reencontradas pelo leitor. Com isso, é o tempo, o ritmo e mesmo a ordem de leitura que se podem modificar, conforme ritmos e velocidades que resultam de um novo acordo, não mais entre nossas contingências físicas e uma folha de papel impressa e dando-se apenas ao olhar, mas de uma combinação entre as mesmas contingências físicas nossas e instrumentos de navegação e de leitura informáticos (que são propostos e intermediados por um aparato eletrônico que inclui elementos como mouses e teclados, imagens de cursores e de ícones, gestos e movimentos como cliques e ações de cortar/colar). Mas tudo isso, 34 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 34
  • 37. claro, não impedirá nenhum leitor mais obstinado (e cioso de seus direitos de aferrar-se a práticas e espaços já sobejamente conhecidos) de continuar lendo como sempre o fez e de percorrer com os olhos o espaço da tela do computador como se estivesse diante de uma folha de papel impressa. Quero afirmar que, grosso modo, os diferentes paradigmas de leitura continuam confluindo e o que hoje poderíamos chamar de leitura eletrônica ainda se resolve e se desenvolve, mesmo parcialmente, segundo hábitos e preceitos aprendidos e apreendidos com as práticas trazidas pelo meio impresso. Da mesma maneira, é legítimo pensar que durante algum tempo, mesmo com o avanço da alfabetização, uma considerável quantidade de leitores ainda percorriam seus caminhos de leitura carregados pelos ritmos e pelas imagens aprendidas (e também apreendidas) por séculos e séculos de “leitura” oral, em que eram os ouvidos e não ainda os olhos os responsáveis pela produção do texto. Todavia, quanto mais insistirmos na leitura em meio eletrônico, mesmo aos trambolhões, trancos e barrancos (como, aliás, parece ocorrer sempre que passamos por alterações mais bruscas nos paradigmas de circulação de objetos culturais), mais estaremos aprendendo os ritmos e as restrições do espaço telemático e também forçando-o a acomodar-se a nossos projetos, desejos, pensamentos e ao que acima chamei de contingências físicas (como a acuidade visual, por exemplo). Em outras palavras, o que estou propondo é discutir a necessidade e as estratégias de utilização de ferramentas informatizadas no armazenamento, na manipulação e na leitura de obras (e não nos restringimos, claro, apenas às literárias, que todo tipo delas suscita questões e possibilita reflexões semelhantes). Percebam bem que associei necessidade a estratégias, buscando chamar a atenção para a importância de utilizarmos esse instrumental tecnológico de modo a estabelecer com ele um diálogo em condições de igualdade. Dito de outra maneira, temos que mapear os procedimentos informatizados e os processos telemáticos disponíveis antes de utilizá-los intensiva e extensivamente, de forma que sejamos nós a nos servir da tecnologia e não a tecnologia (ou a tecnocracia por trás dela) a se servir de nós. Creio ser possível escapar, assim, a algumas das derivas do texto eletrônico, àquilo que tenho chamado há algum tempo, e mesmo neste ensaio, de hiperinflação informativa. Explico melhor (talvez melhor do que o fiz antes): um processo hiperinflacionário em economia corresponde à situação em que a moeda circula a velocidade tão alta que os agentes econômicos já não têm nenhum controle sobre ela; em conseqüência, ela acaba perdendo todo seu valor. O mesmo ocorre atualmente (e cada vez mais!) quando deixamos as informações desfilarem, céleres, diante de nós e ao longo da tela do computador, sem nenhum percurso que vá desenhando uma certa fisionomia, um esboço de racionalidade pontual que poderíamos impor às buscas e aos hipertextos trazidos pelos cliques no mouse. No mais das vezes, ocorre de as pontas dos dedos estarem mais ávidas de toques excitados do que a mente ansiosa por idéias passíveis de alguma orquestração. Como conseqüência podemos, por exemplo, começar uma busca por pintura impressionista e, quando nos damos conta, em algum raro momento de tomada de consciência, estamos diante de um improvável sítio de torturas sexuais no Hindustão medieval. Aparentemente, seria um processo semelhante àquele descrito por Paul Valéry em Poésie et Pensée Abstraite, em que a entrada em um universo poético tira-nos, sem que percebamos, da consciência imediata do dia-a-dia, das noções e reflexões da cotidianidade. Assim, a entrada nesse universo poético corresponderia à entrada em uma região de ritmos e de sons estrangeiros, inesperados, correspondendo, de fato, a uma tomada de posse da palavra pelo revés da significação e do 35 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 35
  • 38. discurso. Todavia, a entrada nessa hiperinflação informativa desenfreada não traz revés algum, já que o seu contrário é ela mesma. O trágico desse processo é que seu lado escondido é rigorosamente idêntico a si próprio, isto é, uma região neutra e sem diferenças, o que vale dizer, sem significação alguma. De fato, o excesso de informação, exatamente por ser excessivo, deixa de ser informação e torna-se ruído, perde seu valor como no caso da hiperinflação monetária. Mas, à diferença desta, que é um processo coletivo, a hiperinflação informativa é um fenômeno individual, podendo ser desligado a qualquer momento por uma flexão no campo de interesses e de significações posto em movimento pelo leitor/navegador. Dessa forma, antes de colocar em movimento um saber dentro do ciberespaço, esse saber que chamei de internético, é preciso fazer o reconhecimento desse espaço e estabelecer como podemos, considerando suas condições de contorno e de nossas contingências, construir algo como um percurso cognitivo. De início, nunca é demais lembrar a etimologia de cibernética, termo cunhado com base no grego kybernetiké, que remete por sua vez ao timoneiro, ao ato de dar um curso à navegação em meio às intempéries e às calmarias (tanto quanto, hoje, nos movemos nesse ciberespaço chamado web, em meio a acúmulos de informações e perdas de conexão com os servidores atacados de todo lado por vírus e piratas de variado jaez e feitio). Trata-se não de buscar ou de encontrar, mas de construir uma orientação ao mesmo tempo que se avança nesse processo cognitivo, e, se nada mais de útil pode vir dessa metaforização espacializante, ao menos ela nos servirá para pensar o pensamento de uma maneira não habitual, associando a ele (e, em conseqüência, ao próprio ciberespaço onde ele pode se desenvolver) os elementos e os procedimentos da topologia. Em outras palavras, parece ser importante saber como orientar o pensamento em um espaço onde a cognição ainda tateia, onde hipóteses ou outras formas de retórica argumentativa devem encontrar novos elementos e novas axiomatizações. A esse respeito, algo interessante se encontra em um opúsculo publicado por Kant no Berlinishe Monatsschrift, em outubro de 1786. Ele advertia que: S’orienter signifie au sens propre du mot: d’après une contrée du ciel donnée (nous divisons l’espace en quatre contrées de cette sorte), trouver les autres, notamment le levant. (...) Enfin, il m’est possible d’élargir encore ce concept, du moment où il consisterait dans le pouvoir de s’orienter non seulement dans l’espace, c’est-à-dire mathématiquement, mais dans la pensée, c’est- à-dire logiquement.10 Importa, no caso, resgatar, segundo o filósofo alemão, a mesma operação de direcionamento para o que já chamávamos a atenção quando apresentamos o termo cibernética. Kant fala dessa espacialização do pensamento através das operações geométricas do espaço cartesiano, ainda submetido às injunções da geometria de Euclides. Se quisermos estabelecer uma diferença com o que hoje, por meio do ciberespaço, chamamos de topologização do pensamento, teremos talvez que apelar para as geometrias de Riemann ou de Lobatchevski. E, se essa tal topologização pode ter algum interesse para nós, ele reside justamente na possibilidade de nos fazer olhar e perceber o pensamento não como formas geometrificáveis provenientes de alguma ordenação gestáltica, mas em termos de espaços e de vizinhanças n-dimensionais, traduzindo justamente essa precariedade de domínios de validades e de imagens, chegando até as dimensões fracionárias dos fractais. Assim, esse pensamento que se exercita no ciberespaço pode aparecer não como uma atividade preestabelecida em caminhos sobejamente conhecidos, em rotas traçadas na direção 36 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 36
  • 39. 37 unilateral de uma Grande Razão travestida de dogma ou de preconceito, mas como uma retomada constante e provisória de uma racionalidade vivida corporalmente. Trata-se, em suma, de uma racionalidade em movimento, capaz de estabelecer conexões insuspeitas entre hipóteses e deduções, ao ponto de umas não mais se distinguirem facilmente das outras, como uma curva de Moebius retórica e argumentativa em que interior/anterior e exterior/posterior colocam-se no mesmo plano. Trata-se, enfim, de uma racionalidade não mais debitada à conta de um eu puro pretensamente encarregado de pôr uma ordem transcendental na poeira de fatos, palavras e gestos com que habitamos nosso dia-a-dia. E, no ciberespaço, a arquitetura conectivista pela qual ele se cristaliza e se dá à navegação talvez seja um dos primeiros elementos dignos de nota. Essa propriedade, que pode ser descrita como a característica que nos permite partir de qualquer nó e chegar a qualquer outro, acarreta duas conseqüências. A primeira delas é a ilusão (e insisto nessa palavra, ilusão) de que todos os nós seriam, então, equivalentes, ou mesmo homogêneos. Com isso, qualquer significação, no ciberespaço, seria definitivamente descartada, uma vez que só se chega a algum significado quando um sistema significante se torna capaz de opor diferenças relativas (e nunca absolutas) num horizonte de sentidos possíveis (esse, sim, o único absoluto em todo esse esquema). Opor nós intrinsecamente homogêneos seria, então, o mesmo que dizer que o ciberespaço leva, afinal de contas, a uma indistinção absoluta (e parece ser esse temor que está por trás das críticas de Baudrillard). A segunda conseqüência dessa arquitetura conectivista está em outra ilusão: a de que, ao contrário da homogeneidade a-significante (já descrita), o ciberespaço nos levaria a um saber total, completo, todo-poderoso, talvez até mesmo infinito, a um conhecimento que seria a realização de todos os otimismos tecnológicos dos dois últimos séculos. De fato, cria-se a impressão de que a extensão ilimitada e a variedade das leituras beiram o infinito e arrastam consigo as potencialidades do pensamento. Não mais um pensamento produto do espírito humano, mas pensamentos provenientes de próteses maquínicas que dariam origem a uma nova união substancial – não mais aquele corpo-e-alma proposto por Descartes, mas um corpo-e-máquina (que faz o horror de Paul Virilio e as delícias de um Pierre Lévy). Se conseguirmos escapar a essas duas ilusões, teremos boas chances de entender como pode o pensamento se inserir de maneira produtiva e não automatizante (ou até mesmo alienante) no ciberespaço. Primeiramente, é fundamental esclarecer que a arquitetura conectivista não reduz as diferenças entre os nós. E, no caso, é igualmente importante perceber o quão essenciais são essas diferenças entre cada um desses nós, evitando que as diluamos em uma homogeneidade redutora e simplista. Em segundo lugar, isso tudo implica, de certa forma, estabelecer limites para a razão, sobretudo para a razão que se exibe num (ciber)espaço fingindo-se vocacionado para o infinito. Ora, boa parte da filosofia ocidental vem-se construindo justamente na tentativa de desenhar os limites do saber, desde os pré-socráticos, passando por Sócrates, pelo ceticismo de Pirro, chegando a Descartes (a dúvida sistemática é uma última e desesperada tentativa de mapear as fronteiras possíveis do saber para escapar ao ceticismo de um mestre anterior, Montaigne), a Kant (que buscava delimitar a razão para salvar a fé), sem contar ainda Nietzsche, Husserl, assim como vários dos pensadores do século XX (Foucault, Derrida, Deleuze etc.). Voltando ao ciberespaço, podemos dizer que, se suas possibilidades de conexão são praticamente infinitas (e apenas a tentativa de esclarecer como seria essa infinitude das conexões já faria correr muita tinta) e se miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 37
  • 40. pode não haver um limite concreto e definitivo para esse desfilar de informações, há, certamente, um limite para o saber. Aliás, saber sem limites está mais para desrazão (ou sua contrapartida, o irracionalismo) do que para conhecimento. Como no caso do excesso de informação que se reduz a ruído, a não informação, um saber pretensamente infinito, dotado de potências e possibilidades divinas, não seria jamais um saber. Aparentemente, parece não haver lugar para Deus, mesmo no ciberespaço; ele se reduziria, aí, a um não saber. Na verdade, sem querer propor um ateísmo tecnológico, o que pretendo é entender como o conhecimento no ciberespaço só pode se construir com base nas precariedades dos indivíduos, da provisoriedade de seus esquemas de racionalização, da efemeridade e, ao mesmo tempo, da necessidade (da urgência, diria) de suas certezas. Isso talvez possa ser mais bem entendido se analisarmos o modo como o tempo se insere e se insinua no ciberespaço e em suas navegações. O ciberespaço parece proporcionar uma espécie de justaposição de várias temporalidades (resultando, em parte, na efemeridade mencionada). Ele nos permite, por exemplo, num só golpe, perscrutar formas e funções de telescópios direcionados para o fundo do universo (pensando nos sítios que oferecem imagens de astros longínquos à comunidade científica e a quem mais se interessar). Com isso, consegue-se uma curiosa conjunção de dois movimentos: o primeiro é esse que aponta para o futuro, que nos coloca no vértice e no vórtice de uma máquina amplificadora do olhar e de sua imensa capacidade de processamento de dados e de imagens; o segundo é o revés do primeiro, colocando diante de nós um passado absoluto, o instante do big bang, nosso passado inaugural. Mas o efeito dessa conjunção pode ser perverso, eliminando a diferença entre o direito e seu revés, na medida em que um e outro se homogeneizam, em que se reduz um a outro, e se faz, imediatamente, do passado absoluto o futuro que permite vê-lo (o passado) através de olhos e sensores de uma máquina das mais modernas. Com isso, passado e futuro igualam-se, perdem suas diferenças recíprocas e reduzem ao absoluto de um presente que esteve no passado e estará no futuro simplesmente por que está por trás de tudo. Sempre vivemos em várias temporalidades; em qualquer época, essas diferentes temporalidades se tocam, às vezes se confundem e se misturam. Nos diversos ritmos das sociedades agrárias, conviviam os diferentes tempos das várias culturas, justapostos aos tempos das diferentes criações animais (incluídos os ritmos das gestações e das gerações humanas). No entanto, nunca tivemos a experiência de reduzir as diferentes percepções de cada uma dessas temporalidades a um presente homogêneo, absoluto e onipresente. Aí parece residir a diferença desse tempo esboçado no/pelo ciberespaço. De fato, sempre nos espalhamos pelas várias temporalidades, mas sempre nos foi dado, também, residir e resistir em uma delas. E foi justamente isso que se esvaneceu, em parte, com a telematização dos espaços que habitamos e fazemos significar. A escolha de uma dada temporalidade parece ter-se reduzido drasticamente a uma única escolha. Ao menos, é essa a aparência da temporalidade homogênea que muitos associam ao ciberespaço. Ela vem a substituir outras figuras que, ao longo dos séculos, caracterizaram a cultura ocidental: primeiramente, o tempo circular das sociedades míticas, em que presente e futuro estavam sempre conjugados no passado, já que retornavam incessantemente a um já-ocorrido; em segundo lugar, o tempo linear da ciência moderna, em que passado e presente reduziam-se a um percurso que só encontrava sentido e explicação no futuro para o qual apontavam, sempre e invariavelmente. 38 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 38
  • 41. A essas duas temporalidades opõe-se, assim, o eterno presente da contemporaneidade telemática, que não aposta mais no passado mítico e tampouco no determinismo futurista das ciências modernas e positivistas. Trata-se de um tempo espacializado, absoluto, marcando todo o território e, mais, toda possibilidade de des e de reterritorialização. Aliás, a poesia de Alberto Caeiro acaba sendo uma das melhores figuras poéticas desse tempo. E ainda: através dela é possível não apenas mapear (ver e habitar) esse presente espacializado, mas encontrar uma maneira de escapar a suas limitações. Isso parece se dar por uma temporalização do espaço, propiciada pelo próprio trabalho de poetização da escrita (processos que Caeiro desencadeia tão bem em seu O Guardador de Rebanhos). Em conseqüência, se, por sobre esse presente absoluto e espacializado do ciberespaço, não tentarmos ver um espaço temporalizado, vamos acabar nos submetendo a uma ditadura do aqui e do agora, do circunstancial e do efêmero, do simulacro e do esvaziamento. Assim, ao encarar o tempo apenas como espaço (com o que contribuem as lógicas conectivistas do ciberespaço), corremos o risco de cair na tentação fácil dos espaços telematizados, perdendo toda perspectiva de historicidade e chegando a um tempo que é enganação, subterfúgio, simulacro. Ao contrário, é justamente essa des-absolutização do espacial que nos torna capazes de fugir ao relativismo e ao irracionalismo, propondo um tempo que se dá a ver como espaço e, concomitantemente, um espaço que deve se dar a ver como tempo (ou, talvez, como ritmização do espaço). Em suma, fugir do presente absoluto do ciberespaço implica encontrar outros sentidos para essa sua interconectividade intrínseca. Significa produzir o conhecimento também como um texto em rede, como resultado da natureza essencialmente intersubjetiva de todo gesto, de todo pensamento, de toda linguagem e, sobretudo, de toda linguagem que se textualiza num espaço telemático de n-dimensões. Em outra ocasião, talvez possamos abordar mais de perto algumas das estratégias para a construção desse conhecimento em/na rede. Por ora, é preciso deixar claro que se trata de um segundo estágio, obrigatoriamente precedido por um primeiro, que consiste em despir-se de algumas das ilusões muito freqüentes no ciberespaço. Entre elas – e que talvez seja a mais presente e ameaçadora de todas –, está a que nos entrega um (ciber)espaço de que toda centralidade ou racionalização teria fugido. Junto com o logocentrismo, com as metafísicas de essência, toda forma de racionalidade pareceria ter-se esvaído, reduzindo toda significação e todo conhecimento a uma reacomodação ou a um mero jogo de significantes vazios. No caso, saber equivaleria a discurso, o que reduziria todo percurso cognitivo a uma construção sofística cuja complexidade já seria, imediatamente, seu valor de verdade. Em decorrência, qualquer construção de sentidos e qualquer saber que se associassem ao ciberespaço pareceriam ser produzidos quase que autonomamente, sem a intervenção de uma vontade operante, de uma racionalidade circunscrita a certo domínio de validade e posta a funcionar pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem. Não parece ser outro o sentido dos conceitos de “ecologia cognitiva” e de “duo pensante homem- máquina”, ou ainda o de “conhecimento por simulação”, de Pierre Lévy.11 Como todo espaço de sentidos, em que objetos culturais se dão à produção e ao (re)conhecimento, o ciberespaço é um locus onde se manifestam e se dão a (re)conhecer significações e subjetividades. Como espaço, ele não tem autonomia nem para impor processos de produção de significações, nem espontaneidade para se fazer artífice solitário de novas textualidades. Daí a necessidade de ele ser despido dessa máscara de operacionalidade autocrática, dessa aparente capacidade de autonomia ou de espontaneidade que, distraída ou 39 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 39
  • 42. irresponsavelmente, lhe atribuem alguns de seus estudiosos. Por isso defendo uma posição diversa dessa do sociólogo francês, em que justamente o saber seja produto de uma racionalidade circunscrita a certo domínio de validade e posta a funcionar e a se articular pelas vizinhanças significantes dos objetos que aí aparecem, pelo trabalho de significação de leitores. Quero dizer que o ciberespaço só vai adquirir significações (sempre precárias e provisórias, nunca é demais lembrar) na medida em que nós, usuários, leitores, (hiper)escritores, o fizermos repleto de sentido por uma decisão nossa, isto é, uma decisão de cada um, mas que saiba buscar a presença dos outros, por meio dessa fímbria de alteridade que nos dá nossa identidade, ao mesmo tempo que nos coloca em meio a outros, nos instala num centro que se desloca constantemente para as margens, buscando incessantemente o aporte dos outros, que conferem radicalidade e sentido a qualquer de nossos gestos e significados individuais. Isso que descrevo é como uma fuga para a frente, quer dizer, uma marcha em que se avança sem que o ponto de chegada esteja definido, uma navegação a que nos lançamos resolutamente, sem que o destino nos seja dado. Na verdade, tanto ponto de chegada quanto destino acabam constituindo uma nova forma de centralidade, não mais aquele centro das metafísicas ontológicas, mas um centro funcional que começou a se esboçar desde as metafísicas gnoseológicas (a partir de Kant). E, no caso, uma das imagens mais felizes para esse centro está na charge (de cuja autoria não me recordo e a quem, infelizmente, não posso dar os créditos) do equilibrista de circo montado sobre um monociclo, desse saltimbanco que é também um desenhista e vai rabiscando a linha sobre a qual se equilibra, com o lápis que ele segura e, à frente, vai traçando seu arame bambo e seu caminho precário. Temos, então, um centro que se dispõe não ao meio da travessia,12 mas sempre à frente, nunca alcançado, o que vale dizer que é como se ele estivesse servindo de fundo ou de horizonte a todo o percurso sem que, por isso, tenha que determiná-lo inteiramente. Derrida insiste na importância do centro não como um Ser, certo, mas como uma função que se torna absolutamente primordial: “I didn’t say that there was no center, that we could get along without center. I believe that the center is a function, not a being – a reality, but a function. And this function is absolutely indispensable”.13 E essa distinção é capital, sobretudo quando se trata de pensar o ciberespaço: entre o centro como essência e o centro como função, é evidente que apenas esta última é capaz de descrever o modo consciente e produtivo de nos apropriarmos do ciberespaço, de fazer dele uma região onde novos sentidos se somem aos sentidos já sedimentados em forma de cultura e daí extraiam novos percursos e novas perspectivas (mesmo indiretas) do mundo vivido. Com isso, evita-se a fossilização das percepções, o que constitui a pior das mortes que se pode dar ao sujeito. Dessa maneira, tornamo-nos capazes de associar um sentido (mesmo provisório) ao mundo, ainda que ele assuma essa precária aparência de cenários passageiros: paisagens, elementos, objetos lingüísticos, memórias, imagens, tudo desfilando com maior ou menor celeridade diante de nós, mas sem que percamos a capacidade de manter acesa sua espetacularidade, quer dizer, a possibilidade de estarmos diante de suas significações e de as percebermos sem que, ao contrário, nos tornemos um espetáculo vazio diante da tela do computador.14 Outras ilusões do ciberespaço parecem derivar, de uma forma ou outra, dessa primeira. Uma delas diz respeito ao individualismo, que é uma das respostas possíveis ao espontaneísmo discutido (esse que propõe 40 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 40
  • 43. um ciberespaço homogêneo em que toda significação brotaria tão-somente de acentricidades e desterritorializações, sem interferências de nenhuma subjetividade). Trata-se, na verdade, de tendência ligeiramente oposta, em que justamente se tenta entender e estender toda significação como resultante de uma decisão individual, produto de um voluntarismo que se confunde com o nó a que se reduz, nesses casos, a subjetividade do leitor (e por trás de que ele se esconde). Ora, não se pode deixar de chamar a atenção para as conseqüências algo desastrosas dessa atitude solipsista. Ela instaura um relativismo fechado e redutor de que não se sai senão ao custo de uma negação de qualquer possibilidade de significação intersubjetiva, o que corresponderia, na verdade, à negação de qualquer possibilidade de linguagem. Ela é, aliás, parente próxima do solipsismo que marcou algumas das vertentes do cartesianismo, pois, afinal de contas, quando se investigam os bastidores desse cogito fundado apenas no “Penso, logo existo”, toda a certeza do conhecimento pareceria centrar-se numa identidade absoluta de si consigo mesmo, esquecendo que ela não tem como alicerçar-se a não ser na existência do mundo vivido. Toda a certeza do conhecimento só se estabeleceria, assim, a partir da arbitrariedade de uma consciência individual cuja substância é de natureza diversa daquela que ela quer conhecer, o que, em decorrência, negaria qualquer possibilidade de conhecimento. Esse individualismo, em suma, leva no limite à negação de qualquer linguagem e, por extensão, também à de qualquer saber. Essas ilusões todas que afetam e transtornam a presença do sujeito diante do ciberespaço não são outra coisa senão um possível predomínio dos simulacros de que fala insistentemente Jean Baudrillard. Eles aparecem, por exemplo, nessas erudições de puro exibicionismo,15 que permitem que algumas pessoas se comprazam em multiplicar referências inesperadas e obscuras, impossíveis de serem retomadas, reencontradas ou mesmo utilizadas sem ser por meio de sua orientação privilegiada e de sua posição de saber de pretensos eruditos. E, quando se armam de informações a mancheias, multiplicam referências cruzadas e arquitetam complexas figuras de percursos cognitivos,16 eles não fazem, na verdade, mais do que produzir a hiperinflação informativa que já comentei. Um outro simulacro liga-se ao tempo, ou melhor, à aparência de temporalidade que parece, então, esvaziada pela celeridade desmedida das informações que não desfilam, mas escorrem pela tela, diante de nós. E esse desenrolar frenético não possibilitaria nenhuma construção significativa, pois tudo se reduz à homogeneidade de um presente talvez nem mesmo eterno, porém obsessivo, opressor, reduzindo toda diferença significativa à platitude homogênea de sua onipresente figura fácil, em uma tela cheia de pixels e vazia de significações. Como resultado, temos um tempo espacializado, essa tentação fácil dos espaços telematizados em que se perde toda perspectiva de historicidade. Chega-se a um tempo que é definitivamente enganação, subterfúgio ou mesmo dissimulação. E, ainda, um último simulacro, que finge carregar a presença do outro no rastro de seus gestos expressivos, como se o encontro de discursos verbais ou icônicos em chats ou ICQs fosse capaz de resultar automaticamente na fundação de uma subjetividade transcendental (que, como diz Husserl, é sempre intersubjetividade). Todavia, ao contrário da intersubjetividade, o que mais freqüentemente se encontra na ponta do cursor, operado pelo mouse, quando se contrapõem discursos uns a discursos outros, não é uma aproximação telemática que venceria distâncias e traria a presença do outro até o sujeito de um dado discurso, mas sim a instauração de uma distância tecnológica tão terrível e 41 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 41
  • 44. opressora por se dar justamente no espaço limitado de uma tela de 15 polegadas. Com isso, confundem-se, talvez até ingenuamente, metafísicas de aparência e metafísicas de essência, produzindo um platonismo às avessas em que as presenças ideais (ou avatares) é que seriam capazes de produzir, a distância, as essências do mundo exterior e as subjetividades dos outros. * * * Com base em tudo o que se afirmou anteriormente, podemos, talvez, fazer uma imagem desse saber internético. Ele só se torna possível quando conseguimos escapar às ilusões e aos simulacros do ciberespaço. Nesse caso, temos um conhecimento que se dá em rede ou, ainda, que se dá como rede textual (ou como texto em rede), derivando diretamente da natureza intersubjetiva de todo gesto significativo, de todo projeto de significação, de todo objeto significante. Somente esse saber pode dar à multiplicidade dos espaços telemáticos n-dimensionais um sentido não unívoco, mas capaz de sedimentar e de possibilitar aquisições e doações de significações. Daí, em princípio, a necessidade de assentar esse saber internético em alguns pressupostos: 1) Ele deve ter por trás o esforço constante de expandir a taxa de circulação motivada e bem-sucedida das informações. Com isso, pode-se reduzir drasticamente o risco de uma hiperinflação informativa, seja pelo modo como disponibilizamos na rede informações, conceitos, idéias, processos etc., seja pelo modo como nos utilizamos das ferramentas telemáticas e das manipulações interativas e iterativas (vale dizer, repetitivas, a grande velocidade). Nesse sentido, tal esforço retoma, ainda que parcialmente, o projeto iluminista de democratizar o acesso a certos bens culturais, pela criação de aristocracias pontuais que, com base na intensa mobilidade inerente à rede, podem espraiar-se incessantemente por outros nós e regiões outras. Com efeito, trata-se de um saber que não se subordina mais a qualquer centralidade previamente instituída, mas faz de seu movimento (ou percurso) de cognição a própria centralidade funcional de que falava Derrida. 2) Esse saber internético, por meio da interconectividade inerente ao ciberespaço, deve ser aquele capaz de fazer-se concreta e verdadeiramente inter e transdisciplinar (de que tanto se tem falado, mas, de fato, pouco viabilizado). Todavia, isso somente se obtém quando deixamos aflorar, explicitamente, a intersubjetividade inerente a toda forma de linguagem, e fazemos dela a mediatriz de nossos percursos e mapeamentos cognitivos do ciberespaço (quando aí produzimos e lemos objetos significantes). Em certo sentido, trata-se de revestir de linguagem o exterior do ciberespaço, o que significa dar a ele uma exterioridade, tirando-o do pedestal de forma absoluta e definitiva em que exterior e interior se confundiriam. Entre muitos dos teóricos contemporâneos que se debruçaram sobre a internete, é comum que a descrevam como um labirinto ou ainda como uma curva de Moebius, perdendo de vista que, na verdade, apenas a linguagem pode ser metaforizada dessa forma com justeza e acerto. Em suma, se o ciberespaço por vezes se finge de infindo ou interminável, compete a nós não cairmos nesse engodo e dar a ele a medida e o alcance que lhe cabem e, sobretudo, não nos iludirmos com isso que é apenas aparência ou simulacro (e pensar que podemos tudo conhecer instantaneamente). Entre a aparência e o conhecimento verdadeiro há uma diferença fundamental, aquela mesma que podemos encontrar entre o diletantismo e a erudição. Os primeiros (aparência e dilentatismo) não passam de admiração infértil e narcísica por si mesmos; os segundos (conhecimento verdadeiro e erudição) apontam para uma 42 miolo_livro_alckmar.qxd 10/9/2003 8:45 PM Page 42