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OLHOS DOURADOS
O andar inteiro do hospital estava interditado. Que se
danassem os pacientes, e que a UTI ficasse no mesmo andar. Que se
virassem os médicos e a direção para arranjar alternativas. A polícia
proibiu sumariamente a entrada de qualquer civil ou policial
desarmado naquele lugar. Isso baseado no estrago que havia sido
feito em apenas uma salinha dois por três onde guardavam
medicamentos controlados.
Havia uma mesa de um metro por oitenta centímetros, uma
única cadeira, um livro e uma parede inteira tomada por
medicamentos trancados em um armário com portas de vidro.
Tudo sempre foi branco e rigidamente limpo. Mas não
naquele dia. Desde as três da manhã, quando ouviram os gritos, os
médicos foram os primeiros a constatar que a sala estava agora suja
como nunca antes estivera. E não era culpa do faxineiro, mas do
farmacêutico que lá havia espalhado seu sangue e suas vísceras por
todo o chão, mesa, paredes e armário. Tudo estava de pernas para o
ar e nada em seu lugar, muito menos os órgãos do jovem que teve o
azar de pegar o plantão da madrugada naquela ocasião.
Teve seus intestinos arrancados e espalhados por toda a
extensão da sala. As pernas haviam desaparecido, assim como tudo
até o estômago. Da ausência da barriga, por todo o peitoral até perto
do pescoço, rasgos enormes sugeririam que teria sido atacado por um
leão ou animal igualmente feroz. Seu braço esquerdo também havia
desaparecido, apenas um toco de osso próximo ao ombro dava pistas
de que um dia o braço já teria existido naquele corpo.
O rosto estava intacto, mas exibia o verdadeiro terror nos
olhos enevoados e arregalados. A bochecha firmemente plantada na
poça de sangue que se estendia por todo chão.
O braço direito estava lá, esticado, mão segurando firme
uma chave enfiada num buraco de tomada. Ninguém soube dizer o
motivo dele ter enfiado a chave lá, mas notava-se claramente que
fora proposital. Talvez tivesse a esperança de que o choque afastaria
o animal que o atacava. E talvez o tenha feito, mas pode também tê-
3
lo matado. Não que todo aquele esquartejamento não o teria feito da
mesma forma, e pensando melhor, talvez o choque pudesse até ter
sido suicídio a fim de minimizar a dor que já sentia. Ouviram-se
muitas teorias desse tipo naquele dia, mas nenhuma história
concreta. Todas as câmeras do hospital pararam de funcionar
misteriosamente por alguns poucos minutos a partir das 3 da manhã.
O diretor Ferreira sempre foi muito supersticioso e manteve
aquelas salas fechadas desde então. Até mesmo quando passou seu
cargo para o doutor Sheldon, anos depois, o fez prometer que as
manteria assim pelo menos durante seu mandato. E este assim o fez,
mesmo sem saber a total gravidade do que acontecera, pois foi
mantido total e absoluto sigilo. E no fim das contas, sigilo seria a
melhor decisão para garantir a continuidade do hospital após aquela
terrível tragédia. Com os contatos certos e dinheiro na mão, nem
mesmo a imprensa noticiou o suficiente, um atirador até conseguiu
matar um São Bernardo com a boca suja de sangue para pôr a culpa e
tudo foi enterrado e esquecido por toda uma década.
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Theodoro Maximiliano da Silva. Conhecido por todos como
Téo. Sua vida tinha que ser escrita algum dia.
Ele tinha só dez anos quando assistiu pela primeira vez na
TV a um filme do “Mr. Bronson”. Acredito que muita gente decidiu
se tornar policial achando que seria destemido e justiceiro como um
personagem daqueles. Crianças, no entanto, não tem muita noção no
que ocorre na realidade do sistema de polícia brasileiro, e menos
ainda no carioca.
— Theodoro Maximiliano da Silva! — Chamou o
Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro ao microfone. Era
uma orgulhosa cerimônia de formatura para novos soldados. E Téo
deu orgulho a seus pais quando, fardado, subiu ao palanque, pegou
seu diploma e apertou mãos de importantes membros da sociedade,
como, por exemplo, o governador, que sempre estava presente
4
naquelas cerimônias. O aperto de mão ao governador mereceu até
uma pequena pausa para foto.
Téo não foi requisitado para as ruas como gostaria. Foi
levado a uma mesa onde faria alguns serviços administrativos. Ele
não se agradou disso, mas aceitou na esperança de que sairia daquela
mesa algum dia para ser o grande herói que sempre sonhou,
combatendo o crime com veemência, defendendo o cidadão dos
tiranos da sociedade.
— Bom dia, bom dia — vinha repetindo Téo desde sua
entrada na delegacia até a chegada ao segundo andar, onde ficavam
várias mesas separadas por paredes meio de madeira, meio de vidro.
A mesa dele era uma das últimas, e ele repetia seus cumprimentos
até sentar-se em sua cadeira.
Naquele dia havia menos papéis que o de costume, então ele
tratou de pegar sua caneta para resolver logo o que tinha para
resolver, mas ao abrir a gaveta da sua mesa e estender a mão para
encontrar a tal caneta, encontrou em seu lugar um envelope estranho,
com uma faixa vermelha pintada verticalmente. Ao abri-lo, uma
surpresa: pelo menos vinte notas de cem.
— Que porra é essa na minha mesa? — Perguntou
firmemente, levantando-se e batendo forte o pé direito no chão. Ele
já tinha assistido ao filme do Bope, lido livros sobre corrupção
policial, e a última coisa que ele desejava para si era ser desonesto
como tudo que via e lia na mídia. E por mais que a realidade cada
vez mais se mostrasse ainda pior do que noticiada, ele insistia
ferozmente em ser o mais honesto possível. — Vou perguntar de
novo, que porra é essa na minha mesa? — Os policiais do andar
fingiam que não ouviam, olhavam rapidamente de rabo-de-olho e
ignoravam.
— Soldado, o que está acontecendo? — Indagou o capitão
Baptista a Téo, que surpreendeu-se e imediatamente pôs-se em
posição de sentido.
— Senhor, este envelope com dinheiro estava na minha
mesa e não me pertence, senhor. Apenas queria devolvê-lo ao dono
5
— disse Téo com firmeza, tentando escolher as melhores palavras
para falar com seu superior.
— Deixa eu ver — pediu o capitão. Ao pegar o envelope,
abriu rapidamente e o analisou, devolvendo em seguida a Téo. —
Esse envelope só pode ter o senhor como dono, soldado. Se está em
sua posse é seu até que seja reclamado oficialmente. — Téo tentou
retrucar, mas antes que pudesse terminar de inspirar para falar, foi
sumariamente interrompido. — O dinheiro é seu, soldado, simples
assim. Apenas continue o seu trabalho e leve sua mulher para curtir a
noite mais tarde. E esqueça o que aconteceu aqui hoje. É uma ordem.
— Sim senhor — disse Téo, contra sua vontade.
— Continue seu serviço, e se acabar mais cedo pode tirar o
dia de folga. É uma ordem!
— Pois não, senhor.
O capitão se retirou e Téo retornou ao seu posto, pondo o
dinheiro de volta na mesa, não conseguindo disfarçar todo o ódio em
seu olhar.
Em menos de uma hora já havia terminado seu serviço e,
sem mais nada a fazer, tinha que cumprir a determinação de seu
capitão: ir embora. Ele levantou-se e empurrou sua cadeira de volta
ao lugar. Foi quando se aproximou o sargento Teixeira.
— Soldado, acaba de chegar mais uma solicitação, o capitão
Baptista pede que o autorize imediatamente — disse o sargento.
Téo pegou o envelope e percebeu que tinha uma faixa
avermelhada desenhada nele, exatamente como a desenhada no
envelope do dinheiro. Téo estranhou aquilo e ficou desconfiado. Mas
o sargento permaneceu ali e com rigor pediu que ele se apressasse.
Téo abriu o envelope e se deparou com uma dúzia de folhas
abarrotadas de letras pequenas, uma daquelas autorizações mais
demoradas de se fazer. Mas ao começar a ler, o sargento lhe entregou
a caneta de seu próprio bolso. Era uma caneta luxuosa, com detalhes
em ouro.
— Soldado, o capitão precisa disso assinado e com o
número do protocolo no sistema imediatamente — disse o sargento.
— Sim senhor, já comecei a ler — respondeu Téo.
6
— Soldado... para o capitão Baptista, “imediatamente”
significa “agora mesmo”. Sua equipe já o aguarda lá embaixo.
Téo entendeu o que estava acontecendo. O envelope com o
símbolo idêntico, a pressa do capitão, o dinheiro... ele não deveria
ler, só assinar e pôr o protocolo no sistema. Certamente documentar
alguma máscara para algum esquema corrupto.
Téo respirou fundo e encostou-se à cadeira. Ele pensou por
um instante, pegou os documentos e se levantou, caminhando até o
banheiro.
— Aonde vai soldado? — Perguntou o sargento.
— Até o banheiro, senhor. Infelizmente não posso esperar.
Téo foi até o banheiro e ficou lá por quinze minutos. Claro
que leu toda a documentação. E percebeu do que se tratava. Um tipo
de superfaturamento de salário de férias de oficiais, nada a ver com a
equipe estar aguardando, e não deveria ter urgência. Ele já ouvira
falar daquilo antes, mas nunca pensou que seria tão escrachado
assim, que passaria pelas mãos de pessoas tão grandes como o
governador e tão pequenas como ele e teria todas as aprovações.
Quando Téo voltou à sua mesa, o capitão e outros dois
policiais o estavam aguardando.
— Senhor! — Téo pôs-se em sentido na frente do capitão.
— Soldado, o senhor pode explicar agora ou diante da
comissão o que significa isso — o capitão apontou para o envelope
com dinheiro. Téo tentou dizer alguma coisa, mas acabou sendo
calado e preso. Resumindo um mês inteiro de processos e acordos,
acabou sendo absolvido de processo judicial, mas expulso da
corporação com desonra.
Téo viu sua vida desmoronando na sua frente. Só desejou de
coração que o ódio não o tomasse e não o tornasse uma pessoa pior.
E por sorte, quando isso estava perto de acontecer, quando a
depressão já batia em sua porta, seu melhor amigo, o enfermeiro
André Lima, o apresentou a um diretor de hospital que lhe ofereceu
um emprego em um renomado hospital particular. Téo seria
segurança de hospital, ganharia um salário compatível com o de
7
policial e prestaria serviços na mesma carga horária. Téo não teria
seus sonhos reavivados com isso, mas já era um recomeço.
Também foi André que apresentou Clara a ele. Téo se
apaixonou imediatamente pela linda morena que falava tão
mansamente e inspirava tanta simpatia. Téo e Clara se casaram um
ano depois, André foi o padrinho e a vida finalmente parecia estar
tomando algum rumo para Téo. Mesmo não tendo realizado seu
sonho de ser um herói, realizara o sonho de se tornar um pai de
família.
Oito anos depois e a depressão nunca mais batera a sua
porta. Os nascimentos de sua filha e, três anos depois, do seu filho
agravaram ainda mais sua satisfação com a vida. Já nem se lembrava
mais da época de revolta que passara antes. Sua vida financeira não
era boa, mas no fim das contas o que sempre importou mesmo foi a
felicidade, e isso ele encontrou abundante em sua família.
###
Por melhor que sejam suas relações no trabalho, sempre
chega uma hora que, talvez por desgaste, as relações entre colegas
começam a ficar mais pesadas e incolores. Como um desses
repetitivos “Reality Shows”, você acaba acumulando aliados e rivais
ainda que de forma não intencional. Algumas relações negativas não
passam de rivalidade adolescente, nada mais que homens querendo
mostrar quem tem o maior membro, mas vez ou outra essas
inimizades acabam por tornarem-se perigosas e com tendências
descontroladas, temperadas por ações que podem levar a
consequências irrevogáveis como uma demissão ou agressão, ou
coisas mais sérias e impensáveis.
Téo e André adentraram o refeitório como cotidianamente e
caminharam até as bandejas. Pegaram as suas e seguiram até a
cantina, a fim de escolher o que comer no almoço.
— O que aquela maldita enfermeira tem contra mim,
André? Eu sempre fiz o meu trabalho corretamente e nunca tive
8
nenhum problema pessoal com ela — reclamava Téo com seu amigo
sobre a enfermeira Valquíria.
— Ah Téo, você sabe que tem mulher que tem queda por
homem de uniforme, né? — Sorria André enquanto explicava. —
Pois é, a vagabunda transava com o Linhares, agora tá com ódio de
você.
— Eu peguei o Linhares roubando medicamento, meu
trabalho é evitar que isso aconteça.
— Ele era seu superior na segurança, isso fica parecendo
conflito de interesse. E agora tão dizendo que você vai ser indicado a
substituir o Jarbas quando ele se aposentar, tomando o cargo que ia
ser do Linhares — explicava André enquanto já sentavam à mesa
com suas bandejas já contendo o almoço do dia.
— Aí a vagabunda da Valquíria tá pensando que eu armei
pra demitir “a transa” dela só pra tomar o lugar dele na chefia?
— Tudo se explica agora, né?
— E o que eu faço? — Perguntou Téo com sinceridade. —
Peço desculpas a ela e tento explicar?
— Tá ficando maluco? — André o repreendeu. — Mas tu é
muito inocente mesmo. Cara, se você falar com ela vai piorar a
situação, vai ser como assumir de vez que teve tudo a ver com isso.
— Mas não como ela pensa — replicou Téo. — Não com
intenção de fazer mal a alguém, só sempre quis fazer o que é certo
sem prejudicar ninguém.
— Cara, isso não vai colar, sai dessa — instruiu André. —
Simplesmente deixa quieto e fique de olhos abertos, ela não pode
fazer nada, só tentar te pegar na infração, o que nunca vai acontecer.
Acho que eu nunca vi alguém tão honesto quanto você, dá quase pra
te chamar de trouxa.
— Ei! — reclamou Téo, sorrindo.
— Desculpa cara, mas é verdade, você é tão honesto e
bondoso que chega a ser trouxa — reafirmou André. — Olha só,
nem come carne.
— Ah, eu como frango. Só não sou a favor da forma que os
matadouros agem com os bovinos, não matam com respeito, aquilo é
9
sadismo. E comer isso aí também é — Téo apontou para o filé no
prato de André.
— Desculpa se eu não mando flores para as vacas quando
como os bois — brincou André, fazendo Téo sorrir discretamente,
como de costume no trabalho.
No bar, entretanto, era diferente. Téo ria alto e sem pudor, e
mesmo antes de tomar a primeira cerveja. E digo isso da forma mais
honesta possível, pois nunca se ouvira falar que Theodoro
Maximiliano da Silva teria passado de meia dúzia de cervejas, pois
era o que ele aguentava sem sentir-se embriagado. E lá estava ele, ao
lado de André, alguns médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras,
além de Carlão, um velho faxineiro que sempre os acompanhava nas
noites de sexta-feira. E não importava quando sábado era plantão,
naquele hospital sexta a noite era a happy hour para quem não
estivesse de plantão naquele instante.
— O cara matou o amante da mulher, o cachorro dela, tacou
fogo na casa, mas tirou a mulher de lá e se entregou — dizia Téo,
contando uma história que vira na televisão na hora do almoço. —
Agora estava pedindo perdão e queria a mulher de volta. Caralho! O
cara é um matador sanguinário e ao mesmo tempo um corno manso e
conformado, como é que pode?
Todos riam alto e faziam algazarra com a forma que Téo
contava essas histórias, fazendo até o mais trágico parecer não mais
que uma piada de bar.
— Eu acredito que todo mundo pode se tornar um
assassino, é só ter o motivo e a oportunidade — disse o doutor
Fargas, já meio bêbado. — Lembram daquele moleque da escola? O
cara foi vítima de bulling e ficou sempre na dele, foi só ter uma arma
na mão que se vingou. Motivo e oportunidade.
— Discordo categoricamente, meu bom doutor — disse
André. — Eu conheço muito bem todos aqui nessa mesa. E posso
garantir que metade de nós não seria capaz de fazer tal coisa não
importa o motivo e não importa a oportunidade.
— Metade? — Reclamou o faxineiro Carlão — a coisa é tão
feia assim?
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— O senhor não faz ideia — respondeu André. — Na sua
época talvez não fosse assim, velho, mas hoje em dia tudo se resolve
no gatilho. É o velho oeste americano de volta e em pleno Rio de
Janeiro. Mas continuando o raciocínio: vejam o Téo, por exemplo.
Esse aqui foi policial, é guarda agora, tem uma arma no armário a
disposição, e perguntem a ele quantas vezes ele já disparou contra
um ser vivo na vida! E digo mais, um cidadão que só come frango, e
assim mesmo envia condolências à galinha, não merece crédito de
nenhum matador, por mais esdrúxulo que seja, no mundo todo.
Todos aplaudiram apontando as palmas para Téo.
— Muito obrigado, André, agora todo mundo sabe o quanto
o guarda é “frouxo”, isso vai ajudar muito na minha promoção —
disse Téo, rindo e brincando com tudo que os bêbados diziam.
E no fim da noite Téo era sempre o último a chegar em casa
entre todos os que ali no bar estavam, pois era o “sóbrio” que sempre
levava um grupo pra casa. Com a “lei seca” ainda era perigoso ser
parado, mesmo se achando sóbrio, pois não se pode ultimamente
nem beber meia dúzia de cervejas sem ser considerado bêbado no
trânsito. Mas como a maioria do povo brasileiro, Téo não estava
muito interessado nas consequências disso. E naquela noite, como na
maioria, chegou bem em casa.
— Oi amor, como foi no trabalho hoje? — Perguntou Clara
com seu costumeiro tom macio de voz. — E no bar, como foi a
farra? — Perguntava ela sinceramente, sem repreensões, já
acostumada com a merecida confraternização de seu marido com os
colegas nas sextas-feiras. E agradecida por ele jamais ter chegado
bêbado em casa como fazia o pai dela durante sua infância.
— Foi tudo como de costume, a mesma coisa de sempre. E
aqui em casa, tudo bem? — Perguntava enquanto tirava as botas. —
E as crianças, dormiram cedo?
Como de costume, a conversa mole de marido e mulher
levou-os para cama. E como de costume, pelo menos duas horas de
sexo ininterrupto. E como de costume, conversaram na cama,
olhando para o teto, enquanto os corações se acalmavam.
11
— Amor, eu já estou nesse emprego há oito anos. Acho que
já é hora de progredir — disse Téo.
— O que tem em mente? — Perguntou Clara.
— Tenho uma boa relação com a administração, acho que
se eu fosse formado poderia ganhar uma oportunidade. O salário é
quase seis vezes maior.
— Fazer faculdade agora? — Disse clara, sentando-se e
continuando com seu tom de voz costumeiro, sem alterações mesmo
na discordância. — Amor, no começo você me dava presentes quase
todo mês. Depois que a Marina nasceu, passou a ser duas vezes por
ano, aniversário e dia das mães. Já tem dois anos, depois que o
Marcos nasceu, que não ganho nada mais que um abraço e um
parabéns...
— Amor... — Téo tentou dizer algo, mas ela só levantou a
palma da mão, pedindo para ele deixa-la concluir.
— Eu não estou te cobrando, sei que você não teve nenhum
aumento acima da inflação... sei que eu não trabalho fora pra ajudar.
Não ligo de não ganhar peças de roupas ou joias há anos. Mas as
crianças não podem perder o pouco que tem.
— Eu pensei em transferir a Marina para uma escola
pública, só por quatro anos, afinal ela tá só começando. E quando eu
me formar a gente sobe o padrão de vida.
Clara se jogou com força no travesseiro, como forma de
protesto e encerrou a discussão imaturamente, como sempre fazia,
dizendo para Téo fazer o que quisesse. Sim, Clara não era perfeita, à
despeita do que poderiam os vizinhos e amigos do casal pensarem,
ela era caprichosa e birrenta. E com seu jeitinho “faça como achar
melhor”, sempre convencia a Téo a fazer o que ela achasse melhor.
Aquela foi a primeira de pelo menos uma dezena de
discussões sobre dinheiro. E nem sempre a pauta foi a desejada
graduação de Téo. Ao contrário, a desinteressada Clara começou a
mostrar-se de repente muito interessada em peças de roupa e
decoração, mesmo sabendo que seu marido não podia arcar com seus
planos. Era como se fosse uma forma de pressioná-lo a esquecer de
seus planos, para que eles não precisassem descer ainda mais o
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padrão de vida para que ele se graduasse. A única chance para os
planos de Téo era a possibilidade de ser promovido a encarregado,
cargo agora ocupado por um velho amigo que estava prestes a se
aposentar.
###
— Mas que merda é essa? — Téo praguejou e bateu a mão
na mesa do diretor do hospital.
— Entenda Theodoro, são as necessidades do hospital
agora. Precisamos de alguém tão dedicado quanto você no turno da
noite — explicava o diretor.
— O senhor sabe que eu estou prestes a ser promovido, não
sabe? Tudo indica que eu serei indicado para o lugar do meu
encarregado — disse Téo, com tom firme, mas agora mais calmo.
— Isso nunca aconteceu. Ele acabou de indicar o substituto,
e não é você, Téo.
Téo sentou-se, olhando para o nada, perdido em sua
decepção.
— Téo — disse o diretor Sheldon —, preste atenção: lhe
transferindo para o turno da noite, estarei lhe dando uma
oportunidade de mostrar a mesma excelência do serviço que
mostrava aqui de dia. E o encarregado da noite se aposenta em três,
quatro anos no máximo. Será sua chance, com certeza, eu mesmo
farei a indicação.
Téo preferiu não responder nem dizer mais nada. Não tinha
jeito mesmo. E antes que alguma ideia maldosa surgisse em seu
coração, ele simplesmente preferiu se levantar e sair. Foi ao vestiário
e começou a trocar de roupa. Estava indo para casa descansar, pois
iria assumir em algumas horas o turno da noite.
Após trocar de roupa, seguiu até a enfermaria a fim de se
despedir de André e depois pedir ao seu médico, o doutor Fargas
mais alguns comprimidos como o de costume, para mantê-lo calmo e
centrado. Ele já reclamara antes desses comprimidos, dizendo que o
estavam engordando e a esposa já estava reclamando, mas Fargas
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sempre dizia que era o único que faria o efeito desejado. E fazia. A
mente de Téo sempre funcionava focada e calculista.
Pensou estar com alguma sorte ao encontrar o Dr. Fargas
em uma sala antes mesmo da enfermaria. Já pensou em entrar, pedir
licença e então pedir os comprimidos, mas ouviu a voz da enfermeira
a qual chamava de vagabunda, a enfermeira Valquíria. Ele apenas
escondeu-se e acabou escutando a conversa pela porta entreaberta.
— Ouvi dizer que o salafrário vai pro turno da noite, saiu
melhor que a encomenda — dizia Valquíria.
— E eu ouvi dizer que a esposa dele está incomodada com o
fato de ele estar ganhando peso. Depois que o trouxa começou a
tomar o calmante que eu receitei, já engordou uns vinte quilos — ria
o doutor Fargas, gozando Téo com todo gosto.
— E o que acha? Já chega de avacalhar o canalha? —
Perguntou Valquíria.
— Claro que não — respondeu Fargas com um sorriso
sacana no rosto. — Ele vai pra noite, nosso objetivo é a demissão
dele, não é?
— Nossa, é isso que me dá mais tesão em você, sabia? —
Ao dizer isso, Valquíria beijou Fargas ardente, mas rapidamente. Em
seguida olhou para a porta. — Alguém vai acabar nos vendo um dia.
— Que se dane! — Disse Fargas, a puxando de volta contra
seu corpo e a apertando ferozmente enquanto tascava mais um beijo.
Ela os separou novamente e foi saindo, andando de costas e sorrindo
para ele, mandando beijinhos pelo ar. Téo já não estava mais lá
quando ela saiu.
— Desgraçados! — Dizia André após ter escutado a história
da boca de Téo.
— E o que eu faço agora, André? Esse merda ia me
engordar até acabar com o meu casamento.
— Você tem que processar. Processo neles! — Disse André
com aparente indignação.
— Mas eles são colegas aqui do hospital e eu já passei por
isso... — disse Téo com relutância.
14
— Leva o caso ao diretor, ele não vai te proibir de processá-
los, vai até te instruir a processar os dois sem envolver o hospital, um
processo civil independente, já aconteceu antes, eu sei o que estou
dizendo, vai lá e fala com o diretor.
— Claro que não! — Disse o diretor Sheldon firmemente
em resposta ao pedido de Téo.
— Mas senhor, o que aconteceu foi muito sério — indagava
Téo, com lágrimas nos olhos, sentado diante do diretor.
— Theodoro, você já teve problemas ao delatar colegas,
acho que foi por isso que o Jarbas não te indicou. Agora quer fazer
isso de novo? Olha aqui, vou te fazer um favor. Não só vou te proibir
de abrir qualquer processo contra o doutor Fargas como também não
vou tomar nenhuma providência. Assim você evita essa imagem de
dedo-duro, o que é péssimo para sua posição no hospital.
Téo fez exatamente o que fizera da vez anterior. Perdeu-se
em suas decepções e dirigiu-se ao vestiário, quase que
mecanicamente. Pegou o frasco de comprimidos, pôs o último
comprimido na mão e quase o levou à boca. Mas por sorte saiu do
automático e arremessou o comprimido contra a porta, junto com o
frasco vazio e começou a chorar no vestiário. André entrou pela
porta coincidentemente e somente o abraçou, sem dizer nada, já
imaginando o que teria acontecido.
###
O turno da noite não era mais tranquilo do que o do dia,
diferente do que Téo poderia ter imaginado. Era a mesma correria,
doentes e acidentados não tem hora para se apresentar. E nem os
ladrões em potencial. Jovens viciados e pacientes terminais eram os
mais comuns, mas todo tipo de gente tentava roubar medicamentos,
agredir médicos e enfermeiros, e até mesmo fugir do hospital. Eram
todos os tipos de problemas, e o encarregado da noite parecia uma
lesma, na opinião de Téo. Por fim, todo o trabalho acabou mais uma
vez nas costas de Téo.
15
Já eram duas horas da madrugada quando Téo conseguiu
encostar por um instante numa cadeira e apoiar sua cabeça numa
mesa. Pensou em ficar ali só por uns cinco minutos. Era uma
pequena sala desativada pela diretoria após um incidente com um
funcionário há uns dez anos atrás, antes de Téo começar a trabalhar
no hospital. E ele não sabia bem o que acontecera. Só que esteve
fechada, desde então, até aquela noite quando um guarda novato do
turno da noite arrombara a porta a fim de se esconder só um pouco
da loucura do hospital. Mal sabia ele que a própria loucura era o que
encontraria naquele lugar.
Os cinco minutos que ele intencionava se tornaram dez, e
depois vinte. Quando deu por si já eram três da manhã. Ele havia
pegado no sono e acordara de repente. Olhou rápido no relógio, as
luzes todas da sala estavam apagadas. Apertou o botão de acender a
luz do relógio, mas não conseguiu ver a hora, pois a visão estava
toda embaçada. Forçou um pouco a vista para ver a sala. Procurou o
interruptor e o encontrou rapidamente. Foi até ele e clicou, mas a luz
não acendeu. Tentou de novo e nada. Pensando bem, ele teve certeza
de que todas as luzes estavam acesas quando dormiu... merda,
alguém provavelmente o teria visto e talvez entregue ao superior.
Com tal pensamento ele deu um passo até a porta e girou a
maçaneta, mas estava trancada. Esta sala não tinha janelinha para ver
o exterior. Ele pensou em bater, mas e se estava enganado e alguém
fechara ali por engano? Bater seria como se entregar ao encarregado
e pedir por uma demissão. E no momento delicado que estava
passando com sua esposa, não seria nada interessante perder seu
emprego.
De repente escutou um som estranho na sala. Parecia uma
respiração forte, mas ao mesmo tempo se esforçando para ficar
escondida. Ele se virou lentamente e não viu nada naquela escuridão.
Pegou seu spray de pimenta, pois ainda escutava a respiração. Estava
bem escuro, mas a luz que entrava por baixo da fina fresta em baixo
da porta para o corredor ajudava bastante. Mesmo assim, três metros
à frente ainda era difícil de enxergar. Não se pode dizer que Téo
estava assustado, parecia mais um estado de prontidão. Afinal
16
poderia ser um paciente da ala psiquiátrica escondido na salinha em
anexo.
Téo foi de vagar até a porta que dava para a outra salinha ao
lado, do mesmo tamanho dessa, e a abriu bruscamente, apontando
seu spray. Não viu nada na hora. Esta sala estava escura também,
mas era diferente. Era um escuro absoluto, simplesmente preto,
simplesmente a imagem do nada, como se a fraca luz da fresta da
porta só chegasse até esta segunda porta e não passasse por ali. E
olhando para o chão com mais cuidado, pôde comprovar isso. A luz
chegava exatamente ali e parecia bloqueada bruscamente na porta.
Téo escutou novamente a respiração e voltou seus olhos
mais uma vez para o breu, e foi neste momento que os avistou! Eram
olhos. Ele forçou a vista mais um pouco para ter certeza. Pareciam
duas pequenas lanternas, mas o formato era exatamente o de olhos
humanos, só que maiores, o dobro do tamanho de olhos comuns.
Mas ao invés de escleróticas brancas, eram douradas. A retina em si
era preta, contrastava bastante com o dourado luminoso que emanava
naquela escuridão. Apesar de parecerem lanternas douradas, não
iluminavam de verdade, parecia que a iluminação própria dos olhos
dourados serviam somente para iluminar a si mesmos.
Téo aproximou-se com cuidado, mas tinha certeza que era
somente uma brincadeira ou alguma coisa posta ali para assustar a
pacientes psiquiátricos. Na verdade os olhos eram tão profundos que
facilmente assustariam qualquer tipo de pessoa mais frágil.
Téo então deu um passo atrás e se lembrou que tinha uma
lanterna no cinto. Claro, idiota, ele sempre andou com tal lanterna.
Mas tinha acabado de acordar e ainda estava atordoado do sono,
então deu-se um desconto e simplesmente pegou a lanterna. Só que
no momento que ele apontou a lanterna para frente e tocou no botão
de ligar, algo monstruoso avançou ferozmente para cima dele. Não
pôde identificar o que era a fera, pois era negro como a própria
escuridão. A lanterna caiu para um lado e o spray para outro. Ele
começou a gritar desesperado, mas não parecia que alguém o
escutava. Téo pensou rápido e pegou o “taser” em seu cinto, uma
arma de choque não-letal, e aplicou em algum lugar na pele do
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bicho, apertando em seguida. Escutou um grito estranho, animalesco,
como o grunhido de um porco sendo abatido. E não percebeu o ser
de olhos dourados se afastando, apenas deixou de sentir o peso dele
sobre si, teve a impressão de que este desaparecera no ar, como se
tivesse esfumaçado e dissolvido.
Téo levantou-se lentamente, recuperou sua lanterna e a
ligou. Ele estava na primeira sala, que dava acesso ao corredor. A
porta para a segunda sala estava fechada. Ele não teve coragem de
abrir. Pegou seu spray de pimenta, guardou junto com seu taser e
sentou mais um instante. Na mesma hora a luz voltou, quase como se
a cadeira fosse o interruptor. Ele olhou em volta e prestou mais
atenção na sala. Era só uma sala vazia. Havia um armário de vidro na
parede, estava tudo perfeitamente limpo, só algumas portas de vidro
do armário estavam quebradas. Mas não havia cacos e nem mesmo
poeira, parecia limpa recentemente. Ele pensou bem no que
acontecera. Aquilo não podia ser real. Um monstro numa salinha
abandonada de hospital. Então lembrou-se de que não tinha tomado
seu remédio, que jogou fora o último comprimido e não queria mais
pedir ao canalha do Dr. Fargas.
Téo esfregou o rosto com as duas mãos, como se o estivesse
lavando e se levantou. Dessa vez se a porta para o corredor não
abrisse ele bateria. Até pensou antes em dar mais uma olhada na sala
em anexo pra provar a si mesmo que era tudo alucinação pela
abstinência do remédio, mas preferiu não arriscar acabar tendo outra
visão ainda mais assustadora. Ouvira falar horrores de alucinações
durante abstinência de drogas. E surpreendeu-se quando conseguiu
girar a maçaneta e a porta abriu normalmente. Será que até isso fora
alucinação?
Seis da manhã. Téo correu ao vestiário apenas para lavar o
rosto, foi pra casa de uniforme mesmo, como fazia às vezes, quando
tinha pressa para alguma coisa ou quando queria chegar em casa
uniformizado para dar um sinal à esposa de que ela poderia ajuda-lo
a tirar todo aquele pesado uniforme e aproveitar-se dele no chuveiro.
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Mas não naquele dia, ele só não queria ficar mais que um minuto do
que o obrigatório naquele hospital.
Chegou em casa dez minutos antes do previsto e quando
preparou para pôr a chave na fechadura, a porta abriu-se por dentro.
Era sua esposa. Estava levando André até a porta. Téo surpreendeu-
se com aquilo, não era de costume André vir até sua casa em sua
ausência. Mas aos maldosos de plantão, aviso logo que André até
então sempre fora acima de qualquer suspeita, não precisaria nem
explicar nada naquele dia que o próprio Téo era capaz de inventar
uma desculpa por ele, de tanto que André era confiável.
— Oi amor, bom dia — disse Clara, recebendo Téo com um
beijo, sorridente e levando tudo como se fosse absolutamente
normal.
— E aí Téo, como foi no hospital de noite? — Perguntou
André, no mesmo tom natural.
— Ah, amor — já foi dizendo Clara —, André acabou de
chegar, queria conversar com você antes que você pegasse no sono,
ouvimos a chave na porta e viemos te receber.
— Então vamos entrar — disse Téo, abrindo um sincero
sorriso. — Me diz durante o café.
— Eu conversei com o diretor Sheldon sobre sua situação
— dizia André enquanto tomavam café na mesa de jantar —, e ele
disse que é possível que o encarregado da noite troque de hospital, o
que abriria uma vaga para o cargo.
— Sério? Nossa, isso seria minha salvação para poder
estudar e tentar sair desse hospital.
— Téo, só peço que você não fale nada pra ninguém ainda,
nem comenta com o diretor que tivemos essa conversa, porque ele
pediu sigilo pra evitar de te dar falsas esperanças, caso não aconteça
a transferência... mas é quase certo.
— Claro amigo, fica tranquilo. E obrigado por vir me dizer.
Sem aquela merda de comprimido calmante, eu preciso de boas
notícias pra dormir bem.
19
— Por isso eu vim aqui tão cedo, amigo. E veja se conversa
com outro médico pra te passar outro calmante.
— André... — Téo mudou o tom de voz. — Já ouviu falar
de alguém que teve uma alucinação por abstinência apenas algumas
horas sem usar a droga?
— Você teve uma alucinação? — Estranhou André.
— Mais ou menos — respondeu Téo, sussurrando e olhando
para os lados para ver se sua esposa não estaria por perto, tentando
ao mesmo tempo amenizar a história do que acontecera na
madrugada. — Vi uns olhos me observando no escuro. Só que eram
dourados. Apertei a visão pra tentar enxergar melhor e eles se
aproximaram, então me afastei e acabou, evaporou no ar.
— Que sinistro, cara — disse André, sorrindo com um leve
deboche. — Faz o seguinte, procura o Dr. Pierre hoje, dizem que ele
é muito bom, e entende especialmente desses efeitos colaterais. Pode
te indicar um calmante bom que não vai te engordar.
Téo suspirou preocupado, mas em seguida sorriu para o
amigo.
André não demorou mais, e assim que saiu, Téo tomou um
banho, beijou sua mulher, que lia um livro na sala, beijou seus filhos
que ainda dormiam e foi para cama. Dormiu até quatro da tarde, sem
pesadelos, o que até contrariou suas expectativas.
Trabalhou por mais vinte dias e chegou o último dia do mês.
Neste meio tempo, ele nunca mais pôs os pés na estranha sala. Ele
acreditava mesmo que teria sido apenas uma alucinação, mas
também tinha medo de tê-las novamente.
Assim que chegou, às 19 horas, foi até o Departamento de
Recursos Humanos buscar seu cheque. Só que ao abrir seu envelope,
constatou que não havia sido cogitado o adicional noturno que ele
tinha direito, pelo menos da metade do mês que trabalhou a noite.
Ele se voltou pra fazer uma reclamação, mas Aline, a responsável
pelas contas e única funcionária de plantão naquele momento, fechou
a porta de supetão.
— Aline, por favor... — tentou dizer Téo.
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— Reclamações só amanhã entre dez e meio dia como todo
mundo, Téo, a essa hora só fiquei pra pagar o pessoal da noite —
interrompeu Aline.
— Eu não posso vir aqui amanhã a essa hora, eu trabalho de
noite. Resolve isso pra mim, por favor — quase implorava Téo. Ele
sabia que precisava daquele adicional, que estava numa fase
financeira delicada e numa fase ainda mais delicada com sua esposa.
E já tinha prometido a levar para sair, contando com o adicional.
— Escuta, Téo — explicou Aline. — Esse tipo de problema
não tem pressa, essa diferença você não tem como receber este mês,
só no próximo.
— Mas Aline... — tentou argumentar Téo.
— Sem mais, vem no horário de atendimento que eu
conserto e adiciono no seu próximo pagamento — disse Aline
demonstrando soberba e superioridade com seu tom de voz, como se
estivesse fazendo um favor a Téo.
Téo não estava mais tomando seu comprimido havia 21
dias. Isso mesmo, ele não procurou o outro médico, simplesmente
achou que podia superar sua ansiedade por si só, como nunca
conseguira por vinte cinco anos desde que o primeiro surto de raiva
ocorrera. Talvez só por isso ele pôs a mão no portal que dava acesso
ao corredor, formando uma barreira para Aline não passar.
— Me dá licença, por favor — disse Aline com um ar ainda
maior de soberba.
— A incompetência foi só sua, Aline — disse Téo com uma
voz diferente, como com mais ódio. — Conserta teu erro agora e a
gente fica numa boa.
— Tá me ameaçando, guardinha?
Téo cerrou os lábios e os pulsos. Aline deu um passo para
trás, agora acreditando na sinceridade dos atos de Téo. E antes que
Téo pudesse tomar qualquer outra atitude, Aline pediu o
contracheque e o levou para a salinha do RH, a reabrindo e digitando
em seu computador a correção. Em seguida devolveu os papéis e
disse, um pouco preocupada, que fez a correção, mas que realmente
a única forma seria ele receber no próximo pagamento, não teria
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jeito. Ele não discutiu, apenas tomou seu documento e foi embora
em silêncio. A face de Aline mudou de medo para raiva em um
instante, observando Téo pelas costas.
Quando Téo chegou em casa, teve uma áspera discussão
com Clara. Ela já não parecia aquela mulher compreensiva e meiga
com quem tinha casado. Aquela que passaria até fome ao seu lado.
Agora discutia porque passariam um mês sem comer em um
restaurante no shopping.
A discussão acabou acordando os filhos, o que pôs um fim à
mesma. Ele abraçou sua filha com força. Esta adorava o pai, e muitas
vezes ele achava que era sua pedra fundamental, como se vê-la todo
dia o mantivesse centrado e sóbrio, mesmo sem o calmante. O filho
veio em seguida. Um menino lindo de dois aninhos. Téo ouviu vez
ou outra falarem sobre uma ou outra semelhança, mas ele mesmo
nunca achou seu filho Marcos parecido consigo. Tinha cabelos loiros
e lisos, Clara disse que eram como os da avó dela, alguns parentes
confirmaram. Téo não teve nem ideia do por que, mas naquele
momento veio em sua mente que aquele cabelo parecia cada vez
mais com o cabelo de André. E coincidentemente, até o corte de
André agora lembrava Marcos. Mas que coincidência, não? E que
bom que ele se pareça com alguém que goste tanto. Foi só o que veio
em seguida na mente de Téo. A desconfiança havia brotado por um
segundo, mas era extremamente infundada. E se ele já era incapaz
absurdamente de pensar que sua mulher seria capaz de traí-lo, que
diria pensar que sua mulher e seu amigo de maior confiança o
trairiam juntos. E assim, o pensamento desapareceu por completo da
mente perturbada do abstêmio. E porra, como ele precisava da droga
naquele momento.
Trabalhou na madrugada seguinte, de quinta para sexta-feira
e na noite seguinte, de sexta para sábado, logo no começo do
expediente, fora chamado na sala do diretor Sheldon.
— O que é isso? — Perguntou Téo, segurando um
envelope.
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— Sinto muito, Theodoro — respondeu Sheldon. —
Infelizmente seus serviços não serão mais necessários aqui. Este é
seu aviso prévio, você terá que nos prestar mais quinze dias de
serviço somente até arranjarmos um substituto.
— Senhor, eu não entendo... eu estive prestes a ser
promovido.
— Desculpa Theodoro, mas achamos que você precisa
passar por uma avaliação psicológica e...
Téo deu um soco forte na mesa do diretor, o assustando.
— Aquela puta desgraçada! — Praguejou Téo, se referindo
a Aline.
— Controle-se Theodoro — ordenou Sheldon com firmeza,
ocultando o medo da reação dele. — Por favor, volte ao serviço.
Téo lhe lançou um olhar de ódio e saiu, batendo a porta com
força. Pensou em ir até o RH para arrumar alguma briga com Aline,
mas lembrou que ela não estaria ali naquela hora. E também não
faria isso de manhã, não iria adiantar mesmo, o que estava feito,
estava feito. E ainda vinha a pior parte: contar para Clara.
— Merda Téo — disse André, na enfermaria, de frente para
o amigo, logo que soube da notícia. — Aquele desgraçado. Ele
prometeu...
— Mas a Aline tem muita influência sobre ele, eu devia ter
imaginado — disse Téo, cabisbaixo.
— Como uma funcionária de RH tem influência sobre o
diretor do hospital, Téo?
— Ela mais do que ninguém, André — explicou Téo. —
Por quem passa toda a documentação de funcionários? Eu sei como
funciona, fui mandado embora da polícia por não querer participar
de um esquema assim. É superfaturamento salarial. Eu já tinha visto
aqui no hospital algumas coisas que me levavam a crer nisso, mas
não é meu trabalho investigar, então deixei pra lá. Agora tudo fez
sentido.
— Bota pra foder, Téo — disse André enfurecido. — Bota
na justiça pelo menos o salafrário do médico te enganando com os
remédios. E pensando melhor, põe logo o hospital na justiça por isso.
23
— Não estou preocupado com isso agora... tenho algo muito
mais sério com que me preocupar.
E não era exagero. Téo estava sentado em sua cama olhando
para o chão, ouvindo a pior frase que um homem que ama sua esposa
poderia ouvir: “quero que você vá embora”. Quase um minuto de
silêncio após isso.
— Clara... — Téo tentava argumentar. — As coisas vão
melhorar.
— Nossos filhos não merecem passar necessidade de novo.
Lembra aquela época que você se endividou?
— Me endividei com as contas que você fez, Clara —
começava Téo a se enfurecer, falando agora em tom mais firme.
— Os móveis da casa. Precisávamos mobilhar a casa,
dormimos no chão por quase um ano. As crianças não podiam passar
pelo mesmo — dizia Clara fortemente, quase gritando. Nem parecia
mais aquela mulher calma e compreensiva de pouco tempo atrás.
— Eu trabalhei por todos esses anos para nos sustentar e dar
o melhor possível pra você e as crianças e você vai me deixar agora
por causa de uma dificuldade? — Disse Téo, com a voz mais calma.
— Preciso de um tempo. Só eu e as crianças por um tempo.
É só pra pensar, pra organizar minhas ideias. Nem precisa levar suas
coisas, só algumas roupas. Passa um tempo fora daqui e depois a
gente conversa.
E acreditando nisso, Téo se despediu dos filhos, prometendo
voltar na próxima semana para vê-los.
Foi a semana mais longa na vida de Téo. Naquela semana
ele quase não viu André, pois diferente da semana anterior, nesta
André fora escalado apenas para um plantão de 24 horas. E a
conversa neste dia não fora muito produtiva. Apenas alguns abraços,
choro e palavras de esperança.
Téo estava dormindo no hospital secretamente, em um
quarto na oncologia. Não fora descoberto a semana toda.
Sexta-feira chegou e ele estava animado, pois veria os filhos
pessoalmente no dia seguinte. Até então só havia falado com eles
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pelo telefone no único dia que conseguira, na quarta-feira. E
trabalhar à noite não ajudava.
Na madrugada, foi chamado para imobilizar um velho que
estava agredindo a enfermeira e negando medicamentos. Após tudo
resolvido, continuou sua ronda. E foi só por ter atendido a este caso
que acabou passando em frente à saleta novamente. Aquela saleta da
alucinação. Durante todo aquele tempo, nunca mais tivera outra
alucinação. Nada mesmo. Continuava sem tomar seu calmante, mas
não vira mais nada. Ele então sorriu e debochou de si mesmo. Foi até
a sala e a abriu. Não entrou logo de cara, observou bem. Acendeu a
luz e deu tudo certo. Caminhou até a segunda porta, que dava para a
salinha sem saída e sem janelas e a abriu. Agora a luz atravessava a
porta e iluminava tudo lá dentro. Era ainda mais vazia do que a
primeira, sem mesa e com armário totalmente sem vidros. Ele riu de
si mesmo e fechou a porta. Em seguida, por que não? Sentou-se à
mesinha, fechou a outra porta e resolveu tirar outro cochilo. Que se
danasse tudo, a vida já estava uma merda mesmo, o que de pior
aconteceria? Que viessem as alucinações, o taser estaria pronto para
ajudar a destilar todo o ódio que Téo tinha naquele momento por seu
emprego.
O relógio marcava duas e meia da manhã. Dessa vez ele não
conseguiu dormir. Não conseguia parar de pensar nos seus filhos, em
especial na sua filha. Não sabia o motivo do “em especial”, mas era
verdade, pensou muito mais nela naquela noite, como se no caso de
um divórcio, ela fosse sentir muito mais do que o menino. Ele ficou
nesses pensamentos por mais meia hora. E exatamente quando deu
três da manhã e seu relógio apitou, a luz da salinha se apagou. Ele
imediatamente puxou seu taser e a lanterna. A acendeu e a
posicionou no centro da mesa, de forma a iluminar toda a salinha
facilmente. Ele deu um sorrisinho maroto e foi até a porta que dava
para o corredor. Mas ao girar a maçaneta, o mesmo do outro dia, ela
não destrancou. Ele começou a ficar assustado, mas se lembrou de
seus pensamentos de momentos atrás... que se danasse a alucinação.
Pegou a lanterna de volta e partiu para a outra porta. Girou a
25
maçaneta com cuidado e empurrou lentamente para dentro da outra
sala.
Ah se pudéssemos explicar em palavras a profundidade do
medo que o ser humano é capaz de ter no limite da capacidade de
enfrenta-lo... pois lá estavam novamente os olhos dourados o
observando. Se aquilo fosse um monstro, porque os olhos eram tão
humanizados? Eram perfeitos olhos humanos, e meio femininos. Só
que dourados. Agora, mesmo diante de tanto medo, podia perceber
mais detalhes. A outra sala também tinha três metros de
profundidade, mas os olhos aparentavam estar mais longe, tipo a uns
cinco metros. Como isso seria possível?
— Uma alucinação, soldado Theodoro — disse Téo a si
mesmo — assim que é possível!
Téo deu passos para trás. Os olhos se aproximaram até
passar para a sala onde Téo estava. Este pegou a lanterna, que até
então iluminava só o chão, e apontou para os olhos dourados. O
espanto foi estrondoso, seus nervos entraram em colapso. O monstro
parecia um enorme cachorro, algo como um Rottweiler, só que muito
mais largo, com músculos enormes e humanizados, o rosto também
não era totalmente canino, tinha algo, além dos olhos, de humano
nele. E tinha expressão facial, como animal nenhum poderia ter. E
foi só por um segundo que pôde perceber todos esses detalhes, pois a
besta avançou sobre ele novamente. Téo conseguiu se desviar, a
besta passou totalmente para o cômodo onde Téo estava, derrubando
a mesa e se chocando contra a porta do corredor, o que não foi
suficiente para abri-la.
Téo puxou seu taser e apontou para dar o choque na besta,
mas esta agarrou sua mão com a mesma precisão que um ser humano
agarra a mão de outro. Eram mãos caninas e humanas ao mesmo
tempo. Com um forte impulso, arremessou Téo sobre a parede de
armários e quebrou alguns vidros, o que cortou Téo nos braços que
usou para proteger o rosto.
A besta rosnou e em seguida deu um tipo de grito
estrondoso, que parecia um rugido de leão. Foi ensurdecedor, fez
Téo se ajoelhar e pôr as mãos nos ouvidos.
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A respiração de Téo estava acelerada, ele nem tinha noção
do quanto sua adrenalina estava acima do máximo suportado. Foi
ficando zonzo e quase não percebeu quando o monstro agarrou seu
pescoço e abriu a boca a fim de mordê-lo. Sim, o monstro estava de
pé nas patas traseiras, tinha, em pé, uns três metros de altura. Téo já
sentia o bafo de carniça na boca do monstro. E no exato momento
em que o monstro preparou para abocanhar o rosto de Téo, acabou
pisando no taser e o esmagando, mas tomando um último choque, o
que foi o suficiente para dissolvê-lo como fumaça no ar. Os olhos
dourados sumiram por último, esvaecendo-se no ar ainda fixos em
Téo, e este caiu com violência no chão.
A luz voltou como um raio cortando a noite, mas
permaneceu. Téo levantou e correu até a porta, tossindo e cuspindo
muito, quase vomitando. Pôs a mão na maçaneta e a porta abriu
facilmente. Os poucos pacientes e enfermeiros que o viram sair
daquela forma da saleta não entenderam nada daquela situação. Um
enfermeiro ofereceu ajuda, mas ele simplesmente fechou a porta e
correu para o banheiro, vomitando tão logo chegou lá.
O dia amanheceu e Téo estava saindo do vestiário usando
sua melhor roupa. André encontrou Téo quanto este saía da farmácia
do hospital, tomando um comprimido.
— Nossa como está elegante o homem! — Espantou-se
André.
— Sobrevivi mais uma noite e vou ver meus filhos agora —
respondeu Téo, fechando o frasco de comprimidos.
— Vejo que foi ao médico.
— Não, meu amigo, são os mesmos comprimidos que me
engordam. Tudo bem, é só por hoje. Na segunda procuro um médico
pra trocar, prometo. Só não quero estar alterado em casa hoje.
— Claro amigo, tá certo. Boa sorte então, e não se
preocupa, você é um homem bom e íntegro, no final vai dar tudo
certo pra você — disse André e em seguida deu um abraço amigável
em Téo. — Ah, não esquece de ver a escala, você está neste fim de
semana todo.
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— Meu amigo, nem essa merda vai me fazer ficar triste
hoje, vou passar o dia com meus filhos e, se eu estiver disposto, a
noite eu venho trabalhar. O que eles vão fazer se eu não vier? Me
demitir?
André riu, não do humor negro de Téo, mas feliz por pelo
menos bom-humor ainda fazer parte da vida dele.
###
Téo chegou em casa e pôs a chave na fechadura. A chave
não abriu. Ele começou a sentir-se mal imediatamente. Bateu na
porta. Nada. Continuou batendo e apertando a campainha. Nem
sinal. Deus, o que estaria acontecendo? Téo subitamente deu com o
pé na porta, como foi treinado pra fazer na polícia, e a arrombou no
primeiro chute. Entrou apressado e percebeu que a casa estava vazia,
sem mais nenhum móvel, nada, absolutamente nada. Ele se ajoelhou
no chão e ficou imóvel por um tempo, o qual ele nem soube dizer
quanto foi. Podem ter sido dez minutos, podem ter sido duas horas.
Ele só ficou olhando para o nada. A mente estava absolutamente
vazia, como há muito tempo não ficava, desde que tivera o primeiro
surto, ainda na adolescência. Vazio. Apenas o vazio. Olhos quase
anuviados. Alguém teria dúvida se aquele ser estaria vivo ou morto
ou em coma. O rosto estava cada vez mais pálido, e quando a atitude
voltou foi só para se levantar e caminhar feito um zumbi para o
ponto de ônibus.
Chegou ao hospital e caminhou até a sala o qual dormira
durante a semana. Valquíria o viu no corredor e se aproximou.
— O que está fazendo aqui a essa hora? O diretor sabe que
está aqui fora do seu horário?
Téo olhou para ela com uma cara de puro ódio. A impressão
que dava era que toda a vida havia sido sugada de dentro daquele
invólucro e somente o ódio permaneceu para se multiplicar. Se ela
quisesse desenhar uma caricatura da face que viu de Téo naquele
instante, poderia acrescentar sangue ou fogo nos olhos. Valquíria
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simplesmente se afastou com uns passos para trás e depois correu
para a sala do namoradinho, o Dr. Fargas.
Téo continuou andando. Mas ao invés de se instalar no
quarto onde dormia costumeiramente, mudou seu rumo e caminhou
até a saleta da incursão com a besta de olhos dourados. Abriu a
primeira porta, entrou e viu que a mesa e os cacos de vidro estavam
ainda no chão. Seguiu até a segunda sala e sentou-se, encostando na
parede. A luz elétrica agora funcionava nesta segunda sala, e ele a
acendeu.
Ficou ali até meia hora depois do seu horário para trabalhar.
Se atrasou mesmo estando já no hospital desde cedo. Esqueceu tudo.
E só despertou quando a suave voz que chama por médicos o
chamou no alto-falante pedindo que se apresentasse caso estivesse
no hospital. Ele teve um pequeno despertar. Então correu para o
vestiário e se fardou prontamente. Em dez minutos estava na
recepção batendo seu ponto e justificando-se com seu encarregado
dizendo que tinha esquecido de bater no horário, mas já estava
rondando o hospital antes. O encarregado não acreditou, mas não
discutiu, sabia que estava falando com um homem que só cumpria o
aviso prévio.
Téo não sabia o que fazer. Agora que estava consciente
novamente, pegou o telefone da recepção e tentou ligar para um
monte de parentes da Clara, mas ninguém sabia dela. Fazia uma
considerável pausa entre uma ligação e outra para não levantar
suspeitas de fofoqueiros como um médico traidor ou uma enfermeira
vagabunda. Aproveitou uma dessas pausas para trocar os curativos
nos cortes dos braços, mesmo nem tendo ligado para eles durante
todo o dia, só um pretexto para fugir de sua função. Téo levou quase
sete horas para ligar pra todo mundo. E repetiu muitas ligações, no
meio tempo, como esperança de que Clara pudesse ter chegado
depois em algum lugar. Uma tia dela que morava em Arraial do
Cabo foi a única a não atender o telefone. Ela tinha bina, sabia que
era do hospital. Neste pensamento, Téo caminhou na direção de um
médico próximo na esperança de pedir o celular emprestado, mas no
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meio do caminho foi abordado por um homem de idade, de terno e
gravata, muito elegante e bem afeiçoado.
— Bom dia, o senhor é Theodoro Maximiliano da Silva? —
Perguntou o velho elegante.
— Sim, o que você quer? — Respondeu Téo secamente.
— Eu sou o advogado de sua esposa, e preciso lhe entregar
isso — entregou um envelope a Téo.
— E o que é isso?
— Os papéis do divórcio. Sabe, senhor Theodoro, hoje em
dia a lei facilitou muito esse tipo de situação, se o senhor assinar
agora, ela promete que não haverá uma batalha judicial, vocês
dividem os bens e ela deixa você ver seus filhos uma vez por
semana.
— E de que bens o senhor está falando? — Perguntou Téo,
caminhando lentamente na direção do advogado, como se fosse
brigar com ele. — Ela levou tudo que nós tínhamos.
— Ela deixou a casa, que só falta pagar a metade. A
fechadura foi trocada para evitar que o senhor voltasse lá antes da
hora e a visse arrumando as coisas, mas ela tinha deixado uma cópia
com o vizinho.
— O senhor quer que eu assine o divórcio aqui e agora? —
Téo continuava com a pior cara de ódio que conseguia.
— Ela pediu que eu viesse aqui na madrugada durante seu
expediente, seria a melhor forma de encontra-lo.
Téo novamente se viu próximo a entrar no seu estado de
paralização mental. Chegou a ver a realidade se afastando um pouco,
quase como se o chão estivesse pronto a fugir. Mas fez um esforço e
conseguiu agarrar um pouco da realidade ainda. Seus sentimentos,
por outro lado, ele não tinha muita certeza. Nem mesmo ódio parecia
estar sentindo, apenas um grande vazio. E com este mesmo vazio,
expressado até mesmo no seu falar, convidou o advogado a um lugar
mais reservado para que pudesse ler com calma o documento. O
advogado achou natural e o acompanhou até uma certa salinha de
três metros por dois que tinha uma porta em cada extremidade, uma
para o corredor, outra para outra salinha quase idêntica. Téo trouxe
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um banquinho pequeno de um quarto próximo e encontrou o
advogado lá na salinha, sentado à mesa com os documentos já
organizados para leitura. Téo sentou-se ali e começou a ler. Ah, que
nada, leu nada. Só fingiu por longos 37 minutos que estava lendo
aquela maldita papelada. O advogado não estranhou, essas coisas se
lêem com calma mesmo. E já eram quase três da manhã quando o
fingimento acabou e Téo virou a última página.
— E então, senhor Theodoro, alguma dúvida? — Perguntou
o advogado.
Téo olhou para ele com um sorriso no rosto, mas não um
sorriso feliz. Nem triste. Um sorriso vazio, como seus olhos. Vazios.
Então a luz se apagou abruptamente. O advogado se espantou, mas
não temeu de imediato.
— Oh droga — disse o advogado. — Se o senhor tiver a
bondade de assinar lá na mesa da recepção será excelente. Sem mais
delongas, de preferência.
— O senhor veio até aqui me entregar o documento que irá
arruinar toda a minha vida e a vida de duas crianças — disse Téo, o
mais friamente possível —, e me diz tudo isso com essa frieza?
Como se fosse uma solicitação qualquer?
— Senhor, entenda... — o advogado começou a ficar
preocupado. — Eu sou pago por hora, e tenho outros clientes
amanhã, preciso ir descansar.
Téo se levantou brusca e rapidamente, derrubando o banco.
O advogado correu para porta assustado, mas esta não abriu. Ele
então correu para a outra, contando os passos naquela escuridão. E
logo que a abriu, viu-se diante dos olhos dourados observando
famintos. Téo nem pensou. Apenas deu um chute forte na coluna do
advogado, o que o arremessou para cima dos olhos dourados. Os
gritos não duraram nem cinco segundos, foram substituídos pelo som
dos ossos quebrando, sangue jorrando e carne sendo mastigada. Téo
simplesmente fechou a porta e sorriu, sentando-se à mesa e
aguardando o pior.
Mas o pior não aconteceu. Pouco depois as luzes se
acenderam.
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Téo não sentiu remorso nem por um instante. Ele já não
conseguia sentir mais nada. A única coisa que fez a seguir foi abrir a
porta da sala dos olhos dourados novamente para ver o que precisaria
limpar. Mas estranhamente não havia nada lá. Era como se o
advogado também tivesse sido uma alucinação. A não ser pelo fato
da maleta e documentos ainda estarem sobre a mesa. Maleta e
documentos estes que Téo apenas misturou no lixo hospitalar no
fundo do hospital.
O dia amanheceu e Téo pegou no sono dentro desta mesma
saleta, sem nem ter o trabalho de se dirigir ao quarto que vinha
dormindo antes, e nem mesmo de tirar a roupa de vigilante. E passou
o dia dormindo, até quase às 19 horas. Seu celular chamou algumas
vezes, mas não o suficiente para acordá-lo ou alertar alguém fora da
sala. Ele dormiu como uma pedra.
Quando bateu seu ponto no horário correto, seu olhar ainda
era um profundo vazio. Não há de se saber se ele pensava alguma
coisa, mesmo que vagamente, ou se era totalmente um robô em
curto-circuito caminhando pelos corredores brancos e lotados de
gente. E as várias horas de sono não foram suficientes nem de perto
para reaver alguma humanidade naquele saco de carne e ossos. Ele
sabia que tinha alimentado a besta com um ser humano, mas saber
não quer dizer pensar a respeito, nem mesmo sentir algo a respeito.
A não ser talvez a vontade de fazer de novo. E esse pensamento
sinistro e vago veio em sua mente quando ele avistou Valquíria
caminhando ao lado do Dr. Fargas no corredor da recepção. E ela
ainda olhou para ele com desprezo. Fargas por sua vez o
cumprimentou de longe, com um aceno, como se estivesse tudo mais
que normal. Então finalmente um sentimento pareceu ter brotado no
mais profundo do ser de Theodoro Maximiliano da Silva. E esse
sentimento qualquer traduziu-se em um sorrisinho maroto em meio
àquela face vazia.
###
32
Eram duas da manhã quando Dr. Fargas foi chamado no
quarto andar. Meia hora depois anunciaram o nome da enfermeira
Valquíria na sala 401. Dez para as três anunciaram o nome do diretor
Sheldon para resolver uma emergência na saleta selada no quarto
andar. Era plantão de Fargas e Valquíria, e o diretor Sheldon sempre
ficava madrugada adentro nos domingos, para resolver qualquer
problema recorrente pela escassez de médicos aos fins de semana.
Sheldon saiu rapidamente de sua sala e correu para a saleta,
imaginando o que poderia estar acontecendo. Nunca teve problemas
com aquela sala, mas lembrou-se de quando seu antecessor lhe fez
prometer que nunca a abriria. Naquela altura pensava que alguma
lenda urbana envolvendo aquele lugar poderia despertar algum
lunático ou desencadear uma reação na ala psiquiátrica toda, talvez
algo até pior, então preferiu manter sua promessa e esquecer aquele
lugar e qualquer lenda que pudesse o envolver.
Assim que chegou, Sheldon abriu a porta subitamente, sem
pensar nem refugar. E foi aí que teve o baque. Valquíria estava
amarrada na mesa, amordaçada. Fargas ao lado na cadeira, todo
amordaçado também. Diante da outra porta estava Téo, segurando
uma arma que não usava corriqueiramente no expediente, mas que
ficava em um armário da segurança, e todo guarda tinha a chave.
Téo apontou ameaçadoramente a arma para o diretor.
— Theodoro, o que vai fazer? — Perguntou o diretor
Sheldon, com as mãos para cima, após fechar a porta a mando de
Téo.
— O senhor chegou bem na hora. E a vantagem é que nem
mesmo vou precisar te amarrar. O senhor vai ser o primeiro — disse
Téo com um ar de satisfeito, mesmo misturado ao vazio que era sua
cara.
— Téo, não faça nenhuma besteira — implorava Sheldon
— você não tem como sair daqui impune.
— Eu tenho como sair impune de qualquer coisa, eu tenho a
arma perfeita para o crime perfeito. Se não houver corpo nem
suspeitas, como iriam acusar alguém?
— Sem corpos, como assim?
33
Valquíria não tinha parado de chorar nem um instante, mas
ao ouvir a última declaração de Téo, danou-se a chorar ainda mais.
Até mesmo Dr. Fargas, sempre tão centrado e paciente, agora
chorava como uma moça, quase tanto quanto Valquíria.
E Sheldon não teve tempo de tentar dizer mais nada. As
luzes se apagaram todas de uma vez, como de costume. Sheldon
pensou que seria sua chance de escapar e tentou abrir a porta, sem
sucesso. Téo abaixou a arma, a pôs na cintura e pegou o taser.
— Calma, Theodoro — ainda implorava Sheldon.
— Eu estou calmo como nunca estive na vida — disse Téo
ainda mais friamente. — Mas ele está faminto!
Téo finalmente abriu a porta e dessa vez mal pôde se ver os
olhos da besta, pois esta saiu feroz já saltando com tudo que tinha e
abocanhando toda a cabeça de Sheldon, batendo seu corpo
violentamente contra a porta. Respingou um pouco de sangue, mas
antes mesmo que pudessem espalhar-se vísceras ou algo assim, a
besta pulou de volta para sua escuridão na outra sala, com Sheldon
ainda na boca, e desapareceu sombra adentro, como se houvesse um
longo caminho após os 3 metros. Como se as sombras fossem o
portal para uma estrada no infinito nada.
Valquíria e Fargas tentavam berrar e esbanjavam lágrimas
enquanto escutavam os ossos e a carne se destrinchando na outra
sala. Téo considerou-se bondoso ao tirar as mordaças de ambos e
ouvir gritos de misericórdia misturados com gritos de fúria,
palavrões e rogo de praga. Téo não sentiu nem uma centelha de
remorso, ele só sentou-se no chão e começou a rir da desgraça que
ambos passavam.
Dois minutos depois a besta passou pela porta, agora
andando lentamente, exibindo seus arregalados e assustadores olhos
dourados. Valquíria e Fargas berravam com tudo que tinham. Então
Fargas começou a vomitar e se engasgar com o vômito. E deve ter
sido o critério de escolha da besta, que o agarrou com suas enormes
garras, cravando as grandes e duras unhas nos músculos mal
trabalhados de seus braços, o que fez espirrar mais sangue, mas
como da vez anterior, sem tempo para espalhar, pois o monstro o
34
levou para a escuridão em um segundo, deixando só a cadeira e as
cordas partidas para trás.
Valquíria parou de gritar enquanto escutava seu amante ser
devorado.
— Você não vai tirar minha dignidade, nem na hora da
minha morte — disse ela, erguendo a cabeça. — Vou morrer como
vivi, de cabeça erguida.
Téo levantou e se aproximou, pondo seu rosto tão perto do
dela que os narizes se tocaram.
— Você nunca teve nenhuma dignidade, sua piranha
desalmada... eu tinha uma família que você ajudou a destruir.
Conviva enquanto pode com isso e responda no inferno por tudo que
você fez.
E tão logo Téo tirou a cara dali, saindo da frente, os olhos
de Valquíria puderam contemplar a besta, agora andando como
bípede e se aproximando lentamente dela.
— O que foi, “Olhos Dourados”? — Perguntou Téo como
se tivesse toda a intimidade com a besta. — Comeu o prato principal
e agora vai querer esnobar a sobremesa? Ela é fêmea, a carne mais
macia, devia ter provado primeiro. — E danou-se a rir enquanto o
monstro agarrou e levou Valquíria para as sombras lentamente, com
mesa e tudo, sem nem desamarrá-la. Valquíria manteve-se firme,
cabeça erguida e sem chorar mais. Mesmo quando ouviu-se o som de
seus ossos quebrando, nenhum grito. Téo supôs que o primeiro osso
a se partir deva ter sido o pescoço.
E após esses preciosos minutos, as luzes se acenderam de
uma vez. Tudo em seu devido lugar, menos a mesa, que
desaparecera. Téo chegou a olhar na sala ao lado, mas nem sinal da
mesa, de qualquer vestígio dos corpos ou da existência da besta.
Ele só levantou a cadeira onde esteve sentado Fargas e
começou a rir histericamente. Riu e se satisfez como se não houvesse
amanhã. Reviveu mais e mais vezes as cenas em sua memória até
cair no sono, sentado só na cadeira. Acordou na hora certa,
momentos antes do horário de bater o ponto e começar o expediente.
35
###
Segunda-feira. Normalmente é o dia da preguiça. Mas não
para o disposto e sempre vigoroso guarda Theodoro Maximiliano da
Silva. Mesmo estando à beira dos últimos dias no emprego, manteve-
se vigilante como um leão na selva. Resolveu sozinho um caso de
fuga da ala psiquiátrica, um outro de velhinho que revidava injeções,
sempre com maestria, sabendo ser gentil ou firme nas horas corretas.
Naquela noite o encarregado sentiu remorso de ter que perder o seu
melhor homem por causa de um miserável complô de RH.
E no meio de tanta vigilância ele acabou vigiando o que
almejava: a às da contabilidade, a chefia maior dos números, a
ameaça de qualquer um que ousasse se opor, a tirana ditadora de
todo o hospital, capaz de mandar até na diretoria, é ela mesma, a
temível Aline do RH. O mesmo RH que por acaso tinha sua sede no
quarto andar...
E já passava de meia noite quando a voz suave nas caixas de
som pediram a presença do segurança Theodoro na recepção. Ao
chegar lá ele observou que havia uma fila de funcionários de
diferentes cargos. Ao perguntar a um enfermeiro, este lhe disse que
havia um detetive para interrogar todos os funcionários que
trabalhavam exclusivamente à noite. Os residentes ficariam para o
dia seguinte. Téo sorrateiramente saiu da fila e seguiu para a saleta
do “Olhos Dourados”.
A voz suave o chamou mais umas cinco vezes, mas ele não
saiu da saleta. Até que o seu relógio marcou duas e meia e ele
resolveu ir até a recepção.
— Me desculpe, oficial — disse Téo, estendendo a mão em
cumprimento ao detetive Camargo. — Eu estive resolvendo um
problema sério. Eu sou Theodoro Silva. Do que se trata?
— O senhor deve ter ouvido falar que o diretor do hospital
não compareceu hoje ao trabalho — começou o detetive.
36
— Na verdade estou sabendo agora — Téo fez cara de
surpresa. — Ele não está em casa? — Perguntou o óbvio talvez para
parecer inocente ou estúpido.
— Sua esposa nos acionou quando ele não voltou pra casa e
nem atendeu no hospital. A recepcionista da noite disse que o
anunciou algumas vezes, mas não teve notícias concretas. Quando
foi a última vez que o senhor o viu?
Téo pensou a fundo e sorriu confiante para o detetive.
— Na verdade o vi hoje pela manhã na minha sala.
— Ora, então o senhor teria sido o último a vê-lo —
surpreendeu-se o detetive Camargo. — Posso dar uma olhada na sua
sala?
— Perfeitamente, oficial, venha comigo por favor.
Eles caminharam até o elevador e chegaram rapidamente ao
quarto andar. Ao passar pelo banheiro, Téo pediu para utilizá-lo
rapidamente e o detetive não tinha porque não permitir. Ele entrou e
saiu estrategicamente em alguns minutos. Ele então caminhou com o
detetive até a porta da sala e olhou o seu relógio.
— Por que tanto olha este relógio, senhor Theodoro? —
Perguntou o perspicaz detetive.
— Um vício de infância na verdade. Sempre que chega as
três da manhã fico ligado como um louco, aguardando o sininho
tocar. Quando criança acordava neste horário só pra ouvir o toque do
relógio e voltava a dormir.
— Que estranho.
— Sabia que de acordo com algumas culturas do mundo,
esta é a hora em que as trevas zombam da luz? E em outras culturas
é simplesmente considerada a hora mais escura da noite, claro que
isso varia de lugar para lugar no mundo, estações do ano e tudo mais.
Mas definitivamente três da manhã é uma hora especial.
— Podemos entrar então? — Perguntou Camargo, agora ele
olhando para o celular a fim de ver a hora.
— Dez segundos mais, dez segundos menos... — disse Téo,
olhando para o relógio uma última vez antes de girar a maçaneta. Ele
então empurrou a porta e sinalizou para Camargo entrar primeiro.
37
Camargo arregalou os olhos e o coração palpitou mais forte ao
avistar a estranhíssima cena no centro da salinha. Era Aline
amordaçada e amarrada na cadeira, bem no centro da sala, tentando
gritar e espernear, sem sucesso. A outra porta estava aberta.
Rapidamente Téo puxou o celular da mão de Camargo e o
empurrou porta adentro, fechando a porta em seguida. No momento
que Camargo correu para tentar abrir a porta, tudo se apagou.
Os enfermeiros, médicos, outros funcionários e pacientes
que porventura passassem em frente à porta da sala naquele instante
não poderiam de forma alguma escutar nenhum som vindo lá de
dentro, era como se nada estivesse acontecendo, como sempre, mas
naquela madrugada algo estava diferente: um guarda do hospital, um
competente homem chamado Theodoro Maximiliano da Silva estava
sentado diante da porta rindo histericamente, como se estivesse
assistindo ao melhor show de stand-up de sua vida. Mas bastava a
sua imaginação do que estaria acontecendo atrás da porta para deixá-
lo naquele estado de inabalável histeria.
###
Téo encontrava-se no vestiário esperando nada mais que o
amanhecer, uma hora conveniente para fazer uma ligação. O celular
de Camargo chamou duas vezes durante a noite e Téo simplesmente
não atendeu. O expediente acabou e ele não bateu o ponto de saída.
Apenas ficou ali aguardando. Considerou oito da manhã uma hora
conveniente, então ligou para a tia de sua esposa, a única que não
atendera ligações do hospital. O telefone chamou quatro vezes antes
da tia atender. Ele foi bem persuasivo no telefone. Não ameaçador de
qualquer forma, apenas persuasivo, foi ator, convenceu até que
estava chorando por saudades dos filhos, dizendo que ela não podia
fazer aquilo com ele. A tia meio que concordava com ele e acabou
dizendo que ela estava na casa de um cara que podia ser um tipo de
namorado. Ela disse isso como forma de prepara-lo para o que
poderia estar vindo. Eu não poderia dizer que o ódio em Téo
crescera, ele apenas ficou lá vazio como esteve nos últimos dias.
38
Ele ainda confirmou com ela que Clara estava lá sozinha,
sem as crianças. Fez a tia jurar que as crianças estavam com ela,
então desligou e ligou imediatamente para o número que a tia lhe
deu.
— Alô! — Ele simplesmente largou o telefone no chão. Ele
não podia conceber o que ouviu... ele não podia conviver com a
realidade do que escutou naquele simples “alô”. Era a voz do seu
melhor amigo André! Agora sim! Agora posso dizer que o ódio dele
veio com força total e cresceu até onde pôde, se é que há um limite.
###
André desligou o telefone e disse a Clara que não era
ninguém. Ela se preocupou, mas ele disse que ela devia se acalmar,
que Téo não desconfiaria nunca que ela estaria ali, que ficasse
tranquila. E que podia ficar o tempo que precisasse até o divórcio
sair, era mais seguro que na casa da tia, onde provavelmente Téo a
procuraria.
Eram cinco para as três da manhã quando André assistia
televisão, insone como de costume. Pouco depois, uma notícia o
chamou atenção por ser do hospital. Um incêndio na rede de energia
subterrânea havia causado um apagão geral no hospital e os
geradores do hospital estavam todos sabotados. Pacientes já haviam
morrido por falta dos equipamentos e os mais graves estavam sendo
transferidos às pressas para outros hospitais enquanto os especialistas
tentavam reaver a luz ou os geradores.
Cláudia saiu do quarto correndo e já encontrou André se
levantando.
— Eu vi na televisão do quarto. Precisam de você lá —
disse ela.
— Eu sei, cuida de tudo aqui, eu volto quando puder —
disse André e foi caminhando até a porta.
De repente um som alto de batida de carro e a luz apagou na
casa também. Eles se mostraram surpresos. Alguém derrubara um
39
poste na frente da casa com certeza! Luz e telefone já eram. Uma
única luz de emergência acendeu-se na sala.
André correu para a porta e assim que a abriu, tomou um
dos maiores sustos de sua vida, avistando seu melhor amigo Téo bem
na sua frente.
— Porra Téo! — Gritou André mais para alertar Clara do
que pelo enorme susto que realmente tomara.
— Desculpe, melhor amigo — disse Téo, com claro tom de
deboche e sarcasmo. — Eu já ia tocar a campainha.
— O que tá fazendo aqui? Tem uma crise no hospital,
vamos lá, anda! — André tentava tirá-lo dali.
— Só um instante, amigo, precisamos conversar — Téo
continuava no mesmo tom, adicionando até um sorriso cínico no
rosto.
— Conversamos no caminho — André já falava em tom
mais sério, como se já desconfiando que Téo soubesse que Clara
estaria ali.
— Conversamos agora! — Disse Téo, agora em tom
claramente ameaçador, apontando a arma para André, que levantou
as mãos imediatamente. Entraram em seguida.
— O que vai fazer, cara? — Perguntou André,
amedrontado.
— Clara, pode sair daí, vamos ter uma reunião familiar
aqui! — Ordenou Téo.
Clara nada podia fazer da posição em que estava no quarto,
apenas saiu e tomou o cuidado de fechar a porta calmamente.
— O que está fazendo, Téo? — Clara tentava manter a
calma. — Esse não é você, você nem come carne pra não participar
da morte de animais.
— Não estou matando bois aqui — disse Téo, calmamente.
— SENTA! — Gritou imperativamente.
Ela sentou-se ao lado de André, mantendo uma certa
distância respeitosa, o que fez Téo rachar de rir, como um lunático.
— Téo, se você fizer isso vão te pegar — disse André —,
você não quer ver seus filhos crescendo da cadeia.
40
Mais uma risada histérica.
— Eu não vou preso — dizia Téo em meio a risadas
descontroladas enlouquecidas. — Pra eu ser preso precisam
apresentar alguns corpos. E de vocês é provável que não sobre nada.
Vou matar vocês e dar de comer ao meu bichinho.
— Cara, para com isso, você tá vendo muita televisão, o
último cara que fez isso tá mofando na cadeia, e o cara era famoso e
rico, imagina... — interrompeu André suas próprias palavras.
— Diz, André — incentivou calmamente Téo. — Diz:
“imagina você que é pobre!” — Gritou.
Clara teve total certeza naquele momento que aquilo tudo
era mais um teatrinho do policial falido que sempre foi seu marido, e
se posicionou ereta na sua frente, desafiadoramente.
— Guarda já essa arma, Theodoro! — Disse imponente. —
E vai pra casa, conversamos pelos advogados! Vai agora! —
Ordenou.
Téo deu um sorrisinho cínico. Ela se irritou e com confiança
o empurrou seus ombros com as duas mãos. A reação foi imediata,
Téo simplesmente atirou nela, acertando bem no ombro.
André misturou o susto com a oportunidade e saiu correndo
como louco para a porta da frente. Téo fingiu não ter tido tempo para
protestar, se quisesse atirar teria conseguido, mas havia uma surpresa
na porta.
Quando André abriu a porta e mirou a rua, freou sua corrida
abruptamente, caindo e arrastando a bunda uns centímetros pelo
chão, ainda empurrado pela inércia. Ele parou com os olhos tão
próximos dos olhos da besta que aquela luz nos olhos dela quase o
cegara. Ainda assim ele não conseguiu tirar os olhos dos olhos
dourados. Nem mesmo o bafo de morte da besta o afastara naqueles
últimos três segundos de vida em que misteriosamente a besta
demorou para ataca-lo. Mas atacou. E foi uma única mordida, que
arrancou toda a cabeça e metade do peitoral, o sangue jorrou muito
mais que nas outras vítimas, provavelmente por não estar no
ambiente habitual da besta. O corpo de André caiu no chão e podia
se observar de perto os pulmões partidos ao meio pela mordida única
41
e mortal, e o coração ainda inteiro, metade pra dentro da carcaça,
metade pra fora, pulsando como se para abastecer um vivo.
O sorriso de Téo aconteceu juntamente com o berro de
Clara, que viu apenas uma pequena parte do ataque lá fora perto da
porta. Ela então começou a se arrastar para trás, para o corredor onde
ficavam as entradas dos dois quartos e do banheiro ao fundo. Téo
apontou a arma para ela.
A besta avançou casa adentro, mas ao tentar passar pela luz
de emergência no meio da sala, sua pele queimou e ela soltou o
monstruoso grunhido. Téo preocupou-se visivelmente com seu
animalzinho de estimação e prontamente atirou na lâmpada de
emergência, logicamente a apagando.
A besta passou por cima de sua cabeça num único e
longuíssimo salto, já caindo próximo a Clara, que parou de gritar um
instante e surpreendentemente rápido puxou o celular do bolso e
apertou um botão, iluminando os olhos da besta, a afastando
assustada a ponto de se desequilibrar e cair de cara no chão.
Téo viu a cena com ódio e atirou certeiro no celular, que
estourou-se. A bala pegou na mão dela também, arrancando dois
dedos e causando um grito de dor indizível, porém curto, visto que
sua cabeça imediatamente fora arrancada com uma só patada da
besta. E antes mesmo de tocar o chão, a besta a abocanhara. Téo
começou a rir enquanto a besta comia o restante do corpo, questão de
segundos, como uma cobra que nem mastiga, apenas engole. Só que
as vítimas desapareciam bem rápido no estômago, como se tivesse
um buraco negro lá dentro.
Em seguida a besta lambeu o sangue e uma enorme sombra
surgiu na escuridão, ainda mais negra que a escuridão e devorou todo
e qualquer átomo que pudesse ter existido de Cláudia, tal como
acontecera há alguns segundos com André. Estava tudo acabado.
A besta, satisfeita, caminhou um pouco e deitou-se,
apoiando a cabeça aos pés de Téo. Ela mesma nunca imaginara que
se tornaria fiel a um ser humano, mas este lhe alimentava e entendia
como nenhum outro em milênios de existência. E a sensação de
42
liberdade era tamanha que já passara muito da hora da besta se
recolher e esta simplesmente queria ficar ali com seu dono.
Mas um som surpreendeu a ambos naquela madrugada. A
maçaneta da porta do quarto, de onde antes saíra Clara, tentou girar.
Em seguida um som de trinco destrancando e a maçaneta girando. A
besta se levantou e se pôs em prontidão. A porta se abriu e de lá,
lentamente saiu ninguém menos que Marina, a filha de cinco anos de
Téo.
A besta rosnou e se pôs em posição para ataca-la. Téo gritou
que não desesperadamente, mas não adiantou. A besta saltou sobre
ela ferozmente. Mas Téo foi tão rápido quanto e agarrou no pescoço
da besta com um “mata-leão”. Esta levantava e voltava a ficar de
quatro, alternando entre bípede e quadrúpede, empurrando e batendo
com força o corpo de Téo contra as paredes e móveis da sala. Ele
sentia dores fortes, ossos foram quebrados, mas ele não desistiria de
sua filha.
E Téo mal começara a batalha, avistou seu filho saindo e se
juntando à irmã. O desespero foi dobrado, se é que isso pudesse ser
possível. Com toda aquela ação, outro taser acabou caindo no chão e
quebrando. Téo não tinha nenhum recurso a não ser segurar o
máximo possível a besta para que seus filhos corressem. E ele gritou
para que o fizessem por várias vezes, mas eles estavam imobilizados
pelo medo. Então a besta finalmente conseguiu se soltar de Téo, o
arremessando com força nos móveis da sala.
Agora não tinha mais jeito. A besta se aproximava
lentamente dos irmãos.
— São meus filhos... não mate meus filhos! — Implorou
Téo.
Surpreendentemente, a besta pareceu ter entendido o que ele
disse. E ainda mais surpreendente o som que saiu de seu focinho
meio humanizado em seguida: um som que parecia um latido, mas
que exprimia palavras em português. “Filhos”. Ela tinha acabado de
dizer, ou latir, a palavra “filhos”!
Téo sorriu e deitou-se no chão, arrasado de dor, mas feliz. A
visão de seus filhos em segurança mesmo diante da besta começava
43
a trazer sua humanidade de volta. E com isso ele começou a lembrar
do que tinha feito nos últimos dias.
Uma lágrima sincera desceu de seus olhos. E mais lágrimas
sinceras para cada vítima e para seus filhos que teriam que crescer
sem a mãe. Mas naqueles vinte segundos de pausa, tomou a decisão
de se recuperar e seguir em frente pelo bem dos filhos. Desistiria de
sua vida própria em prol do melhor para eles e quando não
precisassem mais dele, ele se entregaria e pagaria por seus crimes.
Eu cheguei a dizer que a pausa fora de vinte segundos
somente, não disse? Pois é, foi o tempo que a besta levou cheirando
as crianças. Dez segundos para Marina e um sorriso animalesco,
seguido novamente da palavra “filho”.
Mais dez segundos para Marcos... só que foi um rugido e a
palavra foi “mentira”!
Téo arregalou os olhos em profundo horror ao ver aquela
besta devorar seu filho com uma única bocada, sem nem mesmo
mastigar, apenas engoli-lo inteiro e depois ficar em duas patas
uivando para o teto, como que para a lua.
Marina desmaiara antes que pudesse testemunhar qualquer
outra coisa, como o que Téo pôde ver enquanto a besta uivava: a
barriga da besta se mexia, e por uns segundos eram claros os
membros e rosto de Marcos tentando sair da barriga, ainda vivo e
desesperado para sair de lá.
— Nããããããããããããããããããããããããããããoooooooooooooo!!! —
Gritou Téo desesperado. Mesmo com alguns ossos quebrados por
todo o corpo, reuniu todas as forças que pôde e correu na direção da
besta, mas imediatamente as luzes se reestabeleceram na sala e no
corredor e a besta começou a queimar e queimar. Em cinco segundos
de agonia desapareceu, esfumaçando-se no ar.
Téo caiu no chão chorando. Ele gritava e rosnava,
inconformado, chorando e rangendo os dentes, passando pelo maior
sofrimento que jamais imaginou passar na vida.
###
44
Alguns meses se passaram. O pouco que se sabe do que
aconteceu depois é que Marina foi entregue pelo pai a avó e estaria
morando com ela até então.
Téo desapareceu no tempo, sendo considerado mais uma
vítima dos misteriosos desaparecimentos dos funcionários do
hospital. Jamais ninguém soube da verdade. E depois da noite dos
blecautes misteriosos, nunca mais ninguém desapareceu no hospital.
Nem mesmo Marina soube dar algum depoimento
consistente para o caso, só falava no monstro que levou seu
irmãozinho, e como seu pai tentou lutar com ele.
E na delegacia, o agora tenente Teixeira, arquivava o caso
dos desaparecidos junto com o montante de casos sem solução que já
quase tomavam todo o espaço nos depósitos da policia militar.
O trabalho administrativo foi tão árduo naquele dia que o
tenente Teixeira nem percebeu que a tarde se fôra e a noite
começara.
Teixeira tinha recebido um recado para comparecer na
residência do agora coronel Baptista naquela noite e partiu pra lá em
um carro civil, saindo da delegacia já sem farda e de banho tomado.
Provavelmente havia planos para algum serviço extraoficial para
levantar “um extra” naquela noite. O que mais se poderia esperar de
uma convocação do coronel Baptista?
Assim que chegou, estacionou em uma distância
considerável, a fim de não levantar suspeitas, caminhou até a
residência do coronel e apertou a campainha.
O coronel demonstrou surpresa ao ver o amigo em sua
porta.
— Teixeira, que houve?
— Às ordens, coronel! — Teixeira prestou continência.
— Tá falando de quê? Tá fazendo o que aqui?
— Vim pelo recado que o senhor deixou pra eu comparecer
aqui.
— Eu não deixei recado nenhum!
E enquanto essa dúvida pairava na prosa dos oficiais, ouviu-
se um som forte de explosão em um lugar próximo e a luz se
45
ausentou imediatamente. Ambos puxaram suas armas e se puseram
em prontidão. Quando o coronel estava prestes a convidar o tenente
para entrar, por segurança, ouviram no meio da escuridão uma
conhecida voz.
— E aí corruptos?
Forçaram a visão e avistaram a uns dez metros de distância,
numa área até bem iluminada só pela lua, ninguém menos que o
desaparecido ex-colega: Theodoro Maximiliano da Silva. E não
estava sozinho, tinha em mãos uma coleira que emanava faíscas
elétricas segurando com força a enorme besta que babava diante
deles como se fossem a mais suculenta refeição.
— Será que a rua tá pra negócio hoje? — Debochou Téo.
Eles apontaram as armas.
— Vai garoto! — Disse Téo. E quando apertou o botão de
soltar a coleira, a besta praticamente voou pra cima dos dois, e foi
tão rápido que a reação deles nem foi a natural, de puxar o gatilho,
apenas de gritar desesperados naquele pequeno segundo antes da voz
cessar para sempre.
E a última imagem que irão levar para o inferno deste
mundo cruel que eles tanto contribuíram para que continuasse assim,
é a imagem de um par de olhos dourados fixos nos seus olhos. Olhos
dourados famintos e prontos para deliciar-se com a cota de carne
corrupta fresca daquela noite, ao som da verdadeira loucura que
exprimia a histérica risada do algoz.
FIM

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Olhos dourados

  • 1. 1
  • 2. 2 OLHOS DOURADOS O andar inteiro do hospital estava interditado. Que se danassem os pacientes, e que a UTI ficasse no mesmo andar. Que se virassem os médicos e a direção para arranjar alternativas. A polícia proibiu sumariamente a entrada de qualquer civil ou policial desarmado naquele lugar. Isso baseado no estrago que havia sido feito em apenas uma salinha dois por três onde guardavam medicamentos controlados. Havia uma mesa de um metro por oitenta centímetros, uma única cadeira, um livro e uma parede inteira tomada por medicamentos trancados em um armário com portas de vidro. Tudo sempre foi branco e rigidamente limpo. Mas não naquele dia. Desde as três da manhã, quando ouviram os gritos, os médicos foram os primeiros a constatar que a sala estava agora suja como nunca antes estivera. E não era culpa do faxineiro, mas do farmacêutico que lá havia espalhado seu sangue e suas vísceras por todo o chão, mesa, paredes e armário. Tudo estava de pernas para o ar e nada em seu lugar, muito menos os órgãos do jovem que teve o azar de pegar o plantão da madrugada naquela ocasião. Teve seus intestinos arrancados e espalhados por toda a extensão da sala. As pernas haviam desaparecido, assim como tudo até o estômago. Da ausência da barriga, por todo o peitoral até perto do pescoço, rasgos enormes sugeririam que teria sido atacado por um leão ou animal igualmente feroz. Seu braço esquerdo também havia desaparecido, apenas um toco de osso próximo ao ombro dava pistas de que um dia o braço já teria existido naquele corpo. O rosto estava intacto, mas exibia o verdadeiro terror nos olhos enevoados e arregalados. A bochecha firmemente plantada na poça de sangue que se estendia por todo chão. O braço direito estava lá, esticado, mão segurando firme uma chave enfiada num buraco de tomada. Ninguém soube dizer o motivo dele ter enfiado a chave lá, mas notava-se claramente que fora proposital. Talvez tivesse a esperança de que o choque afastaria o animal que o atacava. E talvez o tenha feito, mas pode também tê-
  • 3. 3 lo matado. Não que todo aquele esquartejamento não o teria feito da mesma forma, e pensando melhor, talvez o choque pudesse até ter sido suicídio a fim de minimizar a dor que já sentia. Ouviram-se muitas teorias desse tipo naquele dia, mas nenhuma história concreta. Todas as câmeras do hospital pararam de funcionar misteriosamente por alguns poucos minutos a partir das 3 da manhã. O diretor Ferreira sempre foi muito supersticioso e manteve aquelas salas fechadas desde então. Até mesmo quando passou seu cargo para o doutor Sheldon, anos depois, o fez prometer que as manteria assim pelo menos durante seu mandato. E este assim o fez, mesmo sem saber a total gravidade do que acontecera, pois foi mantido total e absoluto sigilo. E no fim das contas, sigilo seria a melhor decisão para garantir a continuidade do hospital após aquela terrível tragédia. Com os contatos certos e dinheiro na mão, nem mesmo a imprensa noticiou o suficiente, um atirador até conseguiu matar um São Bernardo com a boca suja de sangue para pôr a culpa e tudo foi enterrado e esquecido por toda uma década. ### Theodoro Maximiliano da Silva. Conhecido por todos como Téo. Sua vida tinha que ser escrita algum dia. Ele tinha só dez anos quando assistiu pela primeira vez na TV a um filme do “Mr. Bronson”. Acredito que muita gente decidiu se tornar policial achando que seria destemido e justiceiro como um personagem daqueles. Crianças, no entanto, não tem muita noção no que ocorre na realidade do sistema de polícia brasileiro, e menos ainda no carioca. — Theodoro Maximiliano da Silva! — Chamou o Comandante da Polícia Militar do Rio de Janeiro ao microfone. Era uma orgulhosa cerimônia de formatura para novos soldados. E Téo deu orgulho a seus pais quando, fardado, subiu ao palanque, pegou seu diploma e apertou mãos de importantes membros da sociedade, como, por exemplo, o governador, que sempre estava presente
  • 4. 4 naquelas cerimônias. O aperto de mão ao governador mereceu até uma pequena pausa para foto. Téo não foi requisitado para as ruas como gostaria. Foi levado a uma mesa onde faria alguns serviços administrativos. Ele não se agradou disso, mas aceitou na esperança de que sairia daquela mesa algum dia para ser o grande herói que sempre sonhou, combatendo o crime com veemência, defendendo o cidadão dos tiranos da sociedade. — Bom dia, bom dia — vinha repetindo Téo desde sua entrada na delegacia até a chegada ao segundo andar, onde ficavam várias mesas separadas por paredes meio de madeira, meio de vidro. A mesa dele era uma das últimas, e ele repetia seus cumprimentos até sentar-se em sua cadeira. Naquele dia havia menos papéis que o de costume, então ele tratou de pegar sua caneta para resolver logo o que tinha para resolver, mas ao abrir a gaveta da sua mesa e estender a mão para encontrar a tal caneta, encontrou em seu lugar um envelope estranho, com uma faixa vermelha pintada verticalmente. Ao abri-lo, uma surpresa: pelo menos vinte notas de cem. — Que porra é essa na minha mesa? — Perguntou firmemente, levantando-se e batendo forte o pé direito no chão. Ele já tinha assistido ao filme do Bope, lido livros sobre corrupção policial, e a última coisa que ele desejava para si era ser desonesto como tudo que via e lia na mídia. E por mais que a realidade cada vez mais se mostrasse ainda pior do que noticiada, ele insistia ferozmente em ser o mais honesto possível. — Vou perguntar de novo, que porra é essa na minha mesa? — Os policiais do andar fingiam que não ouviam, olhavam rapidamente de rabo-de-olho e ignoravam. — Soldado, o que está acontecendo? — Indagou o capitão Baptista a Téo, que surpreendeu-se e imediatamente pôs-se em posição de sentido. — Senhor, este envelope com dinheiro estava na minha mesa e não me pertence, senhor. Apenas queria devolvê-lo ao dono
  • 5. 5 — disse Téo com firmeza, tentando escolher as melhores palavras para falar com seu superior. — Deixa eu ver — pediu o capitão. Ao pegar o envelope, abriu rapidamente e o analisou, devolvendo em seguida a Téo. — Esse envelope só pode ter o senhor como dono, soldado. Se está em sua posse é seu até que seja reclamado oficialmente. — Téo tentou retrucar, mas antes que pudesse terminar de inspirar para falar, foi sumariamente interrompido. — O dinheiro é seu, soldado, simples assim. Apenas continue o seu trabalho e leve sua mulher para curtir a noite mais tarde. E esqueça o que aconteceu aqui hoje. É uma ordem. — Sim senhor — disse Téo, contra sua vontade. — Continue seu serviço, e se acabar mais cedo pode tirar o dia de folga. É uma ordem! — Pois não, senhor. O capitão se retirou e Téo retornou ao seu posto, pondo o dinheiro de volta na mesa, não conseguindo disfarçar todo o ódio em seu olhar. Em menos de uma hora já havia terminado seu serviço e, sem mais nada a fazer, tinha que cumprir a determinação de seu capitão: ir embora. Ele levantou-se e empurrou sua cadeira de volta ao lugar. Foi quando se aproximou o sargento Teixeira. — Soldado, acaba de chegar mais uma solicitação, o capitão Baptista pede que o autorize imediatamente — disse o sargento. Téo pegou o envelope e percebeu que tinha uma faixa avermelhada desenhada nele, exatamente como a desenhada no envelope do dinheiro. Téo estranhou aquilo e ficou desconfiado. Mas o sargento permaneceu ali e com rigor pediu que ele se apressasse. Téo abriu o envelope e se deparou com uma dúzia de folhas abarrotadas de letras pequenas, uma daquelas autorizações mais demoradas de se fazer. Mas ao começar a ler, o sargento lhe entregou a caneta de seu próprio bolso. Era uma caneta luxuosa, com detalhes em ouro. — Soldado, o capitão precisa disso assinado e com o número do protocolo no sistema imediatamente — disse o sargento. — Sim senhor, já comecei a ler — respondeu Téo.
  • 6. 6 — Soldado... para o capitão Baptista, “imediatamente” significa “agora mesmo”. Sua equipe já o aguarda lá embaixo. Téo entendeu o que estava acontecendo. O envelope com o símbolo idêntico, a pressa do capitão, o dinheiro... ele não deveria ler, só assinar e pôr o protocolo no sistema. Certamente documentar alguma máscara para algum esquema corrupto. Téo respirou fundo e encostou-se à cadeira. Ele pensou por um instante, pegou os documentos e se levantou, caminhando até o banheiro. — Aonde vai soldado? — Perguntou o sargento. — Até o banheiro, senhor. Infelizmente não posso esperar. Téo foi até o banheiro e ficou lá por quinze minutos. Claro que leu toda a documentação. E percebeu do que se tratava. Um tipo de superfaturamento de salário de férias de oficiais, nada a ver com a equipe estar aguardando, e não deveria ter urgência. Ele já ouvira falar daquilo antes, mas nunca pensou que seria tão escrachado assim, que passaria pelas mãos de pessoas tão grandes como o governador e tão pequenas como ele e teria todas as aprovações. Quando Téo voltou à sua mesa, o capitão e outros dois policiais o estavam aguardando. — Senhor! — Téo pôs-se em sentido na frente do capitão. — Soldado, o senhor pode explicar agora ou diante da comissão o que significa isso — o capitão apontou para o envelope com dinheiro. Téo tentou dizer alguma coisa, mas acabou sendo calado e preso. Resumindo um mês inteiro de processos e acordos, acabou sendo absolvido de processo judicial, mas expulso da corporação com desonra. Téo viu sua vida desmoronando na sua frente. Só desejou de coração que o ódio não o tomasse e não o tornasse uma pessoa pior. E por sorte, quando isso estava perto de acontecer, quando a depressão já batia em sua porta, seu melhor amigo, o enfermeiro André Lima, o apresentou a um diretor de hospital que lhe ofereceu um emprego em um renomado hospital particular. Téo seria segurança de hospital, ganharia um salário compatível com o de
  • 7. 7 policial e prestaria serviços na mesma carga horária. Téo não teria seus sonhos reavivados com isso, mas já era um recomeço. Também foi André que apresentou Clara a ele. Téo se apaixonou imediatamente pela linda morena que falava tão mansamente e inspirava tanta simpatia. Téo e Clara se casaram um ano depois, André foi o padrinho e a vida finalmente parecia estar tomando algum rumo para Téo. Mesmo não tendo realizado seu sonho de ser um herói, realizara o sonho de se tornar um pai de família. Oito anos depois e a depressão nunca mais batera a sua porta. Os nascimentos de sua filha e, três anos depois, do seu filho agravaram ainda mais sua satisfação com a vida. Já nem se lembrava mais da época de revolta que passara antes. Sua vida financeira não era boa, mas no fim das contas o que sempre importou mesmo foi a felicidade, e isso ele encontrou abundante em sua família. ### Por melhor que sejam suas relações no trabalho, sempre chega uma hora que, talvez por desgaste, as relações entre colegas começam a ficar mais pesadas e incolores. Como um desses repetitivos “Reality Shows”, você acaba acumulando aliados e rivais ainda que de forma não intencional. Algumas relações negativas não passam de rivalidade adolescente, nada mais que homens querendo mostrar quem tem o maior membro, mas vez ou outra essas inimizades acabam por tornarem-se perigosas e com tendências descontroladas, temperadas por ações que podem levar a consequências irrevogáveis como uma demissão ou agressão, ou coisas mais sérias e impensáveis. Téo e André adentraram o refeitório como cotidianamente e caminharam até as bandejas. Pegaram as suas e seguiram até a cantina, a fim de escolher o que comer no almoço. — O que aquela maldita enfermeira tem contra mim, André? Eu sempre fiz o meu trabalho corretamente e nunca tive
  • 8. 8 nenhum problema pessoal com ela — reclamava Téo com seu amigo sobre a enfermeira Valquíria. — Ah Téo, você sabe que tem mulher que tem queda por homem de uniforme, né? — Sorria André enquanto explicava. — Pois é, a vagabunda transava com o Linhares, agora tá com ódio de você. — Eu peguei o Linhares roubando medicamento, meu trabalho é evitar que isso aconteça. — Ele era seu superior na segurança, isso fica parecendo conflito de interesse. E agora tão dizendo que você vai ser indicado a substituir o Jarbas quando ele se aposentar, tomando o cargo que ia ser do Linhares — explicava André enquanto já sentavam à mesa com suas bandejas já contendo o almoço do dia. — Aí a vagabunda da Valquíria tá pensando que eu armei pra demitir “a transa” dela só pra tomar o lugar dele na chefia? — Tudo se explica agora, né? — E o que eu faço? — Perguntou Téo com sinceridade. — Peço desculpas a ela e tento explicar? — Tá ficando maluco? — André o repreendeu. — Mas tu é muito inocente mesmo. Cara, se você falar com ela vai piorar a situação, vai ser como assumir de vez que teve tudo a ver com isso. — Mas não como ela pensa — replicou Téo. — Não com intenção de fazer mal a alguém, só sempre quis fazer o que é certo sem prejudicar ninguém. — Cara, isso não vai colar, sai dessa — instruiu André. — Simplesmente deixa quieto e fique de olhos abertos, ela não pode fazer nada, só tentar te pegar na infração, o que nunca vai acontecer. Acho que eu nunca vi alguém tão honesto quanto você, dá quase pra te chamar de trouxa. — Ei! — reclamou Téo, sorrindo. — Desculpa cara, mas é verdade, você é tão honesto e bondoso que chega a ser trouxa — reafirmou André. — Olha só, nem come carne. — Ah, eu como frango. Só não sou a favor da forma que os matadouros agem com os bovinos, não matam com respeito, aquilo é
  • 9. 9 sadismo. E comer isso aí também é — Téo apontou para o filé no prato de André. — Desculpa se eu não mando flores para as vacas quando como os bois — brincou André, fazendo Téo sorrir discretamente, como de costume no trabalho. No bar, entretanto, era diferente. Téo ria alto e sem pudor, e mesmo antes de tomar a primeira cerveja. E digo isso da forma mais honesta possível, pois nunca se ouvira falar que Theodoro Maximiliano da Silva teria passado de meia dúzia de cervejas, pois era o que ele aguentava sem sentir-se embriagado. E lá estava ele, ao lado de André, alguns médicos, médicas, enfermeiros e enfermeiras, além de Carlão, um velho faxineiro que sempre os acompanhava nas noites de sexta-feira. E não importava quando sábado era plantão, naquele hospital sexta a noite era a happy hour para quem não estivesse de plantão naquele instante. — O cara matou o amante da mulher, o cachorro dela, tacou fogo na casa, mas tirou a mulher de lá e se entregou — dizia Téo, contando uma história que vira na televisão na hora do almoço. — Agora estava pedindo perdão e queria a mulher de volta. Caralho! O cara é um matador sanguinário e ao mesmo tempo um corno manso e conformado, como é que pode? Todos riam alto e faziam algazarra com a forma que Téo contava essas histórias, fazendo até o mais trágico parecer não mais que uma piada de bar. — Eu acredito que todo mundo pode se tornar um assassino, é só ter o motivo e a oportunidade — disse o doutor Fargas, já meio bêbado. — Lembram daquele moleque da escola? O cara foi vítima de bulling e ficou sempre na dele, foi só ter uma arma na mão que se vingou. Motivo e oportunidade. — Discordo categoricamente, meu bom doutor — disse André. — Eu conheço muito bem todos aqui nessa mesa. E posso garantir que metade de nós não seria capaz de fazer tal coisa não importa o motivo e não importa a oportunidade. — Metade? — Reclamou o faxineiro Carlão — a coisa é tão feia assim?
  • 10. 10 — O senhor não faz ideia — respondeu André. — Na sua época talvez não fosse assim, velho, mas hoje em dia tudo se resolve no gatilho. É o velho oeste americano de volta e em pleno Rio de Janeiro. Mas continuando o raciocínio: vejam o Téo, por exemplo. Esse aqui foi policial, é guarda agora, tem uma arma no armário a disposição, e perguntem a ele quantas vezes ele já disparou contra um ser vivo na vida! E digo mais, um cidadão que só come frango, e assim mesmo envia condolências à galinha, não merece crédito de nenhum matador, por mais esdrúxulo que seja, no mundo todo. Todos aplaudiram apontando as palmas para Téo. — Muito obrigado, André, agora todo mundo sabe o quanto o guarda é “frouxo”, isso vai ajudar muito na minha promoção — disse Téo, rindo e brincando com tudo que os bêbados diziam. E no fim da noite Téo era sempre o último a chegar em casa entre todos os que ali no bar estavam, pois era o “sóbrio” que sempre levava um grupo pra casa. Com a “lei seca” ainda era perigoso ser parado, mesmo se achando sóbrio, pois não se pode ultimamente nem beber meia dúzia de cervejas sem ser considerado bêbado no trânsito. Mas como a maioria do povo brasileiro, Téo não estava muito interessado nas consequências disso. E naquela noite, como na maioria, chegou bem em casa. — Oi amor, como foi no trabalho hoje? — Perguntou Clara com seu costumeiro tom macio de voz. — E no bar, como foi a farra? — Perguntava ela sinceramente, sem repreensões, já acostumada com a merecida confraternização de seu marido com os colegas nas sextas-feiras. E agradecida por ele jamais ter chegado bêbado em casa como fazia o pai dela durante sua infância. — Foi tudo como de costume, a mesma coisa de sempre. E aqui em casa, tudo bem? — Perguntava enquanto tirava as botas. — E as crianças, dormiram cedo? Como de costume, a conversa mole de marido e mulher levou-os para cama. E como de costume, pelo menos duas horas de sexo ininterrupto. E como de costume, conversaram na cama, olhando para o teto, enquanto os corações se acalmavam.
  • 11. 11 — Amor, eu já estou nesse emprego há oito anos. Acho que já é hora de progredir — disse Téo. — O que tem em mente? — Perguntou Clara. — Tenho uma boa relação com a administração, acho que se eu fosse formado poderia ganhar uma oportunidade. O salário é quase seis vezes maior. — Fazer faculdade agora? — Disse clara, sentando-se e continuando com seu tom de voz costumeiro, sem alterações mesmo na discordância. — Amor, no começo você me dava presentes quase todo mês. Depois que a Marina nasceu, passou a ser duas vezes por ano, aniversário e dia das mães. Já tem dois anos, depois que o Marcos nasceu, que não ganho nada mais que um abraço e um parabéns... — Amor... — Téo tentou dizer algo, mas ela só levantou a palma da mão, pedindo para ele deixa-la concluir. — Eu não estou te cobrando, sei que você não teve nenhum aumento acima da inflação... sei que eu não trabalho fora pra ajudar. Não ligo de não ganhar peças de roupas ou joias há anos. Mas as crianças não podem perder o pouco que tem. — Eu pensei em transferir a Marina para uma escola pública, só por quatro anos, afinal ela tá só começando. E quando eu me formar a gente sobe o padrão de vida. Clara se jogou com força no travesseiro, como forma de protesto e encerrou a discussão imaturamente, como sempre fazia, dizendo para Téo fazer o que quisesse. Sim, Clara não era perfeita, à despeita do que poderiam os vizinhos e amigos do casal pensarem, ela era caprichosa e birrenta. E com seu jeitinho “faça como achar melhor”, sempre convencia a Téo a fazer o que ela achasse melhor. Aquela foi a primeira de pelo menos uma dezena de discussões sobre dinheiro. E nem sempre a pauta foi a desejada graduação de Téo. Ao contrário, a desinteressada Clara começou a mostrar-se de repente muito interessada em peças de roupa e decoração, mesmo sabendo que seu marido não podia arcar com seus planos. Era como se fosse uma forma de pressioná-lo a esquecer de seus planos, para que eles não precisassem descer ainda mais o
  • 12. 12 padrão de vida para que ele se graduasse. A única chance para os planos de Téo era a possibilidade de ser promovido a encarregado, cargo agora ocupado por um velho amigo que estava prestes a se aposentar. ### — Mas que merda é essa? — Téo praguejou e bateu a mão na mesa do diretor do hospital. — Entenda Theodoro, são as necessidades do hospital agora. Precisamos de alguém tão dedicado quanto você no turno da noite — explicava o diretor. — O senhor sabe que eu estou prestes a ser promovido, não sabe? Tudo indica que eu serei indicado para o lugar do meu encarregado — disse Téo, com tom firme, mas agora mais calmo. — Isso nunca aconteceu. Ele acabou de indicar o substituto, e não é você, Téo. Téo sentou-se, olhando para o nada, perdido em sua decepção. — Téo — disse o diretor Sheldon —, preste atenção: lhe transferindo para o turno da noite, estarei lhe dando uma oportunidade de mostrar a mesma excelência do serviço que mostrava aqui de dia. E o encarregado da noite se aposenta em três, quatro anos no máximo. Será sua chance, com certeza, eu mesmo farei a indicação. Téo preferiu não responder nem dizer mais nada. Não tinha jeito mesmo. E antes que alguma ideia maldosa surgisse em seu coração, ele simplesmente preferiu se levantar e sair. Foi ao vestiário e começou a trocar de roupa. Estava indo para casa descansar, pois iria assumir em algumas horas o turno da noite. Após trocar de roupa, seguiu até a enfermaria a fim de se despedir de André e depois pedir ao seu médico, o doutor Fargas mais alguns comprimidos como o de costume, para mantê-lo calmo e centrado. Ele já reclamara antes desses comprimidos, dizendo que o estavam engordando e a esposa já estava reclamando, mas Fargas
  • 13. 13 sempre dizia que era o único que faria o efeito desejado. E fazia. A mente de Téo sempre funcionava focada e calculista. Pensou estar com alguma sorte ao encontrar o Dr. Fargas em uma sala antes mesmo da enfermaria. Já pensou em entrar, pedir licença e então pedir os comprimidos, mas ouviu a voz da enfermeira a qual chamava de vagabunda, a enfermeira Valquíria. Ele apenas escondeu-se e acabou escutando a conversa pela porta entreaberta. — Ouvi dizer que o salafrário vai pro turno da noite, saiu melhor que a encomenda — dizia Valquíria. — E eu ouvi dizer que a esposa dele está incomodada com o fato de ele estar ganhando peso. Depois que o trouxa começou a tomar o calmante que eu receitei, já engordou uns vinte quilos — ria o doutor Fargas, gozando Téo com todo gosto. — E o que acha? Já chega de avacalhar o canalha? — Perguntou Valquíria. — Claro que não — respondeu Fargas com um sorriso sacana no rosto. — Ele vai pra noite, nosso objetivo é a demissão dele, não é? — Nossa, é isso que me dá mais tesão em você, sabia? — Ao dizer isso, Valquíria beijou Fargas ardente, mas rapidamente. Em seguida olhou para a porta. — Alguém vai acabar nos vendo um dia. — Que se dane! — Disse Fargas, a puxando de volta contra seu corpo e a apertando ferozmente enquanto tascava mais um beijo. Ela os separou novamente e foi saindo, andando de costas e sorrindo para ele, mandando beijinhos pelo ar. Téo já não estava mais lá quando ela saiu. — Desgraçados! — Dizia André após ter escutado a história da boca de Téo. — E o que eu faço agora, André? Esse merda ia me engordar até acabar com o meu casamento. — Você tem que processar. Processo neles! — Disse André com aparente indignação. — Mas eles são colegas aqui do hospital e eu já passei por isso... — disse Téo com relutância.
  • 14. 14 — Leva o caso ao diretor, ele não vai te proibir de processá- los, vai até te instruir a processar os dois sem envolver o hospital, um processo civil independente, já aconteceu antes, eu sei o que estou dizendo, vai lá e fala com o diretor. — Claro que não! — Disse o diretor Sheldon firmemente em resposta ao pedido de Téo. — Mas senhor, o que aconteceu foi muito sério — indagava Téo, com lágrimas nos olhos, sentado diante do diretor. — Theodoro, você já teve problemas ao delatar colegas, acho que foi por isso que o Jarbas não te indicou. Agora quer fazer isso de novo? Olha aqui, vou te fazer um favor. Não só vou te proibir de abrir qualquer processo contra o doutor Fargas como também não vou tomar nenhuma providência. Assim você evita essa imagem de dedo-duro, o que é péssimo para sua posição no hospital. Téo fez exatamente o que fizera da vez anterior. Perdeu-se em suas decepções e dirigiu-se ao vestiário, quase que mecanicamente. Pegou o frasco de comprimidos, pôs o último comprimido na mão e quase o levou à boca. Mas por sorte saiu do automático e arremessou o comprimido contra a porta, junto com o frasco vazio e começou a chorar no vestiário. André entrou pela porta coincidentemente e somente o abraçou, sem dizer nada, já imaginando o que teria acontecido. ### O turno da noite não era mais tranquilo do que o do dia, diferente do que Téo poderia ter imaginado. Era a mesma correria, doentes e acidentados não tem hora para se apresentar. E nem os ladrões em potencial. Jovens viciados e pacientes terminais eram os mais comuns, mas todo tipo de gente tentava roubar medicamentos, agredir médicos e enfermeiros, e até mesmo fugir do hospital. Eram todos os tipos de problemas, e o encarregado da noite parecia uma lesma, na opinião de Téo. Por fim, todo o trabalho acabou mais uma vez nas costas de Téo.
  • 15. 15 Já eram duas horas da madrugada quando Téo conseguiu encostar por um instante numa cadeira e apoiar sua cabeça numa mesa. Pensou em ficar ali só por uns cinco minutos. Era uma pequena sala desativada pela diretoria após um incidente com um funcionário há uns dez anos atrás, antes de Téo começar a trabalhar no hospital. E ele não sabia bem o que acontecera. Só que esteve fechada, desde então, até aquela noite quando um guarda novato do turno da noite arrombara a porta a fim de se esconder só um pouco da loucura do hospital. Mal sabia ele que a própria loucura era o que encontraria naquele lugar. Os cinco minutos que ele intencionava se tornaram dez, e depois vinte. Quando deu por si já eram três da manhã. Ele havia pegado no sono e acordara de repente. Olhou rápido no relógio, as luzes todas da sala estavam apagadas. Apertou o botão de acender a luz do relógio, mas não conseguiu ver a hora, pois a visão estava toda embaçada. Forçou um pouco a vista para ver a sala. Procurou o interruptor e o encontrou rapidamente. Foi até ele e clicou, mas a luz não acendeu. Tentou de novo e nada. Pensando bem, ele teve certeza de que todas as luzes estavam acesas quando dormiu... merda, alguém provavelmente o teria visto e talvez entregue ao superior. Com tal pensamento ele deu um passo até a porta e girou a maçaneta, mas estava trancada. Esta sala não tinha janelinha para ver o exterior. Ele pensou em bater, mas e se estava enganado e alguém fechara ali por engano? Bater seria como se entregar ao encarregado e pedir por uma demissão. E no momento delicado que estava passando com sua esposa, não seria nada interessante perder seu emprego. De repente escutou um som estranho na sala. Parecia uma respiração forte, mas ao mesmo tempo se esforçando para ficar escondida. Ele se virou lentamente e não viu nada naquela escuridão. Pegou seu spray de pimenta, pois ainda escutava a respiração. Estava bem escuro, mas a luz que entrava por baixo da fina fresta em baixo da porta para o corredor ajudava bastante. Mesmo assim, três metros à frente ainda era difícil de enxergar. Não se pode dizer que Téo estava assustado, parecia mais um estado de prontidão. Afinal
  • 16. 16 poderia ser um paciente da ala psiquiátrica escondido na salinha em anexo. Téo foi de vagar até a porta que dava para a outra salinha ao lado, do mesmo tamanho dessa, e a abriu bruscamente, apontando seu spray. Não viu nada na hora. Esta sala estava escura também, mas era diferente. Era um escuro absoluto, simplesmente preto, simplesmente a imagem do nada, como se a fraca luz da fresta da porta só chegasse até esta segunda porta e não passasse por ali. E olhando para o chão com mais cuidado, pôde comprovar isso. A luz chegava exatamente ali e parecia bloqueada bruscamente na porta. Téo escutou novamente a respiração e voltou seus olhos mais uma vez para o breu, e foi neste momento que os avistou! Eram olhos. Ele forçou a vista mais um pouco para ter certeza. Pareciam duas pequenas lanternas, mas o formato era exatamente o de olhos humanos, só que maiores, o dobro do tamanho de olhos comuns. Mas ao invés de escleróticas brancas, eram douradas. A retina em si era preta, contrastava bastante com o dourado luminoso que emanava naquela escuridão. Apesar de parecerem lanternas douradas, não iluminavam de verdade, parecia que a iluminação própria dos olhos dourados serviam somente para iluminar a si mesmos. Téo aproximou-se com cuidado, mas tinha certeza que era somente uma brincadeira ou alguma coisa posta ali para assustar a pacientes psiquiátricos. Na verdade os olhos eram tão profundos que facilmente assustariam qualquer tipo de pessoa mais frágil. Téo então deu um passo atrás e se lembrou que tinha uma lanterna no cinto. Claro, idiota, ele sempre andou com tal lanterna. Mas tinha acabado de acordar e ainda estava atordoado do sono, então deu-se um desconto e simplesmente pegou a lanterna. Só que no momento que ele apontou a lanterna para frente e tocou no botão de ligar, algo monstruoso avançou ferozmente para cima dele. Não pôde identificar o que era a fera, pois era negro como a própria escuridão. A lanterna caiu para um lado e o spray para outro. Ele começou a gritar desesperado, mas não parecia que alguém o escutava. Téo pensou rápido e pegou o “taser” em seu cinto, uma arma de choque não-letal, e aplicou em algum lugar na pele do
  • 17. 17 bicho, apertando em seguida. Escutou um grito estranho, animalesco, como o grunhido de um porco sendo abatido. E não percebeu o ser de olhos dourados se afastando, apenas deixou de sentir o peso dele sobre si, teve a impressão de que este desaparecera no ar, como se tivesse esfumaçado e dissolvido. Téo levantou-se lentamente, recuperou sua lanterna e a ligou. Ele estava na primeira sala, que dava acesso ao corredor. A porta para a segunda sala estava fechada. Ele não teve coragem de abrir. Pegou seu spray de pimenta, guardou junto com seu taser e sentou mais um instante. Na mesma hora a luz voltou, quase como se a cadeira fosse o interruptor. Ele olhou em volta e prestou mais atenção na sala. Era só uma sala vazia. Havia um armário de vidro na parede, estava tudo perfeitamente limpo, só algumas portas de vidro do armário estavam quebradas. Mas não havia cacos e nem mesmo poeira, parecia limpa recentemente. Ele pensou bem no que acontecera. Aquilo não podia ser real. Um monstro numa salinha abandonada de hospital. Então lembrou-se de que não tinha tomado seu remédio, que jogou fora o último comprimido e não queria mais pedir ao canalha do Dr. Fargas. Téo esfregou o rosto com as duas mãos, como se o estivesse lavando e se levantou. Dessa vez se a porta para o corredor não abrisse ele bateria. Até pensou antes em dar mais uma olhada na sala em anexo pra provar a si mesmo que era tudo alucinação pela abstinência do remédio, mas preferiu não arriscar acabar tendo outra visão ainda mais assustadora. Ouvira falar horrores de alucinações durante abstinência de drogas. E surpreendeu-se quando conseguiu girar a maçaneta e a porta abriu normalmente. Será que até isso fora alucinação? Seis da manhã. Téo correu ao vestiário apenas para lavar o rosto, foi pra casa de uniforme mesmo, como fazia às vezes, quando tinha pressa para alguma coisa ou quando queria chegar em casa uniformizado para dar um sinal à esposa de que ela poderia ajuda-lo a tirar todo aquele pesado uniforme e aproveitar-se dele no chuveiro.
  • 18. 18 Mas não naquele dia, ele só não queria ficar mais que um minuto do que o obrigatório naquele hospital. Chegou em casa dez minutos antes do previsto e quando preparou para pôr a chave na fechadura, a porta abriu-se por dentro. Era sua esposa. Estava levando André até a porta. Téo surpreendeu- se com aquilo, não era de costume André vir até sua casa em sua ausência. Mas aos maldosos de plantão, aviso logo que André até então sempre fora acima de qualquer suspeita, não precisaria nem explicar nada naquele dia que o próprio Téo era capaz de inventar uma desculpa por ele, de tanto que André era confiável. — Oi amor, bom dia — disse Clara, recebendo Téo com um beijo, sorridente e levando tudo como se fosse absolutamente normal. — E aí Téo, como foi no hospital de noite? — Perguntou André, no mesmo tom natural. — Ah, amor — já foi dizendo Clara —, André acabou de chegar, queria conversar com você antes que você pegasse no sono, ouvimos a chave na porta e viemos te receber. — Então vamos entrar — disse Téo, abrindo um sincero sorriso. — Me diz durante o café. — Eu conversei com o diretor Sheldon sobre sua situação — dizia André enquanto tomavam café na mesa de jantar —, e ele disse que é possível que o encarregado da noite troque de hospital, o que abriria uma vaga para o cargo. — Sério? Nossa, isso seria minha salvação para poder estudar e tentar sair desse hospital. — Téo, só peço que você não fale nada pra ninguém ainda, nem comenta com o diretor que tivemos essa conversa, porque ele pediu sigilo pra evitar de te dar falsas esperanças, caso não aconteça a transferência... mas é quase certo. — Claro amigo, fica tranquilo. E obrigado por vir me dizer. Sem aquela merda de comprimido calmante, eu preciso de boas notícias pra dormir bem.
  • 19. 19 — Por isso eu vim aqui tão cedo, amigo. E veja se conversa com outro médico pra te passar outro calmante. — André... — Téo mudou o tom de voz. — Já ouviu falar de alguém que teve uma alucinação por abstinência apenas algumas horas sem usar a droga? — Você teve uma alucinação? — Estranhou André. — Mais ou menos — respondeu Téo, sussurrando e olhando para os lados para ver se sua esposa não estaria por perto, tentando ao mesmo tempo amenizar a história do que acontecera na madrugada. — Vi uns olhos me observando no escuro. Só que eram dourados. Apertei a visão pra tentar enxergar melhor e eles se aproximaram, então me afastei e acabou, evaporou no ar. — Que sinistro, cara — disse André, sorrindo com um leve deboche. — Faz o seguinte, procura o Dr. Pierre hoje, dizem que ele é muito bom, e entende especialmente desses efeitos colaterais. Pode te indicar um calmante bom que não vai te engordar. Téo suspirou preocupado, mas em seguida sorriu para o amigo. André não demorou mais, e assim que saiu, Téo tomou um banho, beijou sua mulher, que lia um livro na sala, beijou seus filhos que ainda dormiam e foi para cama. Dormiu até quatro da tarde, sem pesadelos, o que até contrariou suas expectativas. Trabalhou por mais vinte dias e chegou o último dia do mês. Neste meio tempo, ele nunca mais pôs os pés na estranha sala. Ele acreditava mesmo que teria sido apenas uma alucinação, mas também tinha medo de tê-las novamente. Assim que chegou, às 19 horas, foi até o Departamento de Recursos Humanos buscar seu cheque. Só que ao abrir seu envelope, constatou que não havia sido cogitado o adicional noturno que ele tinha direito, pelo menos da metade do mês que trabalhou a noite. Ele se voltou pra fazer uma reclamação, mas Aline, a responsável pelas contas e única funcionária de plantão naquele momento, fechou a porta de supetão. — Aline, por favor... — tentou dizer Téo.
  • 20. 20 — Reclamações só amanhã entre dez e meio dia como todo mundo, Téo, a essa hora só fiquei pra pagar o pessoal da noite — interrompeu Aline. — Eu não posso vir aqui amanhã a essa hora, eu trabalho de noite. Resolve isso pra mim, por favor — quase implorava Téo. Ele sabia que precisava daquele adicional, que estava numa fase financeira delicada e numa fase ainda mais delicada com sua esposa. E já tinha prometido a levar para sair, contando com o adicional. — Escuta, Téo — explicou Aline. — Esse tipo de problema não tem pressa, essa diferença você não tem como receber este mês, só no próximo. — Mas Aline... — tentou argumentar Téo. — Sem mais, vem no horário de atendimento que eu conserto e adiciono no seu próximo pagamento — disse Aline demonstrando soberba e superioridade com seu tom de voz, como se estivesse fazendo um favor a Téo. Téo não estava mais tomando seu comprimido havia 21 dias. Isso mesmo, ele não procurou o outro médico, simplesmente achou que podia superar sua ansiedade por si só, como nunca conseguira por vinte cinco anos desde que o primeiro surto de raiva ocorrera. Talvez só por isso ele pôs a mão no portal que dava acesso ao corredor, formando uma barreira para Aline não passar. — Me dá licença, por favor — disse Aline com um ar ainda maior de soberba. — A incompetência foi só sua, Aline — disse Téo com uma voz diferente, como com mais ódio. — Conserta teu erro agora e a gente fica numa boa. — Tá me ameaçando, guardinha? Téo cerrou os lábios e os pulsos. Aline deu um passo para trás, agora acreditando na sinceridade dos atos de Téo. E antes que Téo pudesse tomar qualquer outra atitude, Aline pediu o contracheque e o levou para a salinha do RH, a reabrindo e digitando em seu computador a correção. Em seguida devolveu os papéis e disse, um pouco preocupada, que fez a correção, mas que realmente a única forma seria ele receber no próximo pagamento, não teria
  • 21. 21 jeito. Ele não discutiu, apenas tomou seu documento e foi embora em silêncio. A face de Aline mudou de medo para raiva em um instante, observando Téo pelas costas. Quando Téo chegou em casa, teve uma áspera discussão com Clara. Ela já não parecia aquela mulher compreensiva e meiga com quem tinha casado. Aquela que passaria até fome ao seu lado. Agora discutia porque passariam um mês sem comer em um restaurante no shopping. A discussão acabou acordando os filhos, o que pôs um fim à mesma. Ele abraçou sua filha com força. Esta adorava o pai, e muitas vezes ele achava que era sua pedra fundamental, como se vê-la todo dia o mantivesse centrado e sóbrio, mesmo sem o calmante. O filho veio em seguida. Um menino lindo de dois aninhos. Téo ouviu vez ou outra falarem sobre uma ou outra semelhança, mas ele mesmo nunca achou seu filho Marcos parecido consigo. Tinha cabelos loiros e lisos, Clara disse que eram como os da avó dela, alguns parentes confirmaram. Téo não teve nem ideia do por que, mas naquele momento veio em sua mente que aquele cabelo parecia cada vez mais com o cabelo de André. E coincidentemente, até o corte de André agora lembrava Marcos. Mas que coincidência, não? E que bom que ele se pareça com alguém que goste tanto. Foi só o que veio em seguida na mente de Téo. A desconfiança havia brotado por um segundo, mas era extremamente infundada. E se ele já era incapaz absurdamente de pensar que sua mulher seria capaz de traí-lo, que diria pensar que sua mulher e seu amigo de maior confiança o trairiam juntos. E assim, o pensamento desapareceu por completo da mente perturbada do abstêmio. E porra, como ele precisava da droga naquele momento. Trabalhou na madrugada seguinte, de quinta para sexta-feira e na noite seguinte, de sexta para sábado, logo no começo do expediente, fora chamado na sala do diretor Sheldon. — O que é isso? — Perguntou Téo, segurando um envelope.
  • 22. 22 — Sinto muito, Theodoro — respondeu Sheldon. — Infelizmente seus serviços não serão mais necessários aqui. Este é seu aviso prévio, você terá que nos prestar mais quinze dias de serviço somente até arranjarmos um substituto. — Senhor, eu não entendo... eu estive prestes a ser promovido. — Desculpa Theodoro, mas achamos que você precisa passar por uma avaliação psicológica e... Téo deu um soco forte na mesa do diretor, o assustando. — Aquela puta desgraçada! — Praguejou Téo, se referindo a Aline. — Controle-se Theodoro — ordenou Sheldon com firmeza, ocultando o medo da reação dele. — Por favor, volte ao serviço. Téo lhe lançou um olhar de ódio e saiu, batendo a porta com força. Pensou em ir até o RH para arrumar alguma briga com Aline, mas lembrou que ela não estaria ali naquela hora. E também não faria isso de manhã, não iria adiantar mesmo, o que estava feito, estava feito. E ainda vinha a pior parte: contar para Clara. — Merda Téo — disse André, na enfermaria, de frente para o amigo, logo que soube da notícia. — Aquele desgraçado. Ele prometeu... — Mas a Aline tem muita influência sobre ele, eu devia ter imaginado — disse Téo, cabisbaixo. — Como uma funcionária de RH tem influência sobre o diretor do hospital, Téo? — Ela mais do que ninguém, André — explicou Téo. — Por quem passa toda a documentação de funcionários? Eu sei como funciona, fui mandado embora da polícia por não querer participar de um esquema assim. É superfaturamento salarial. Eu já tinha visto aqui no hospital algumas coisas que me levavam a crer nisso, mas não é meu trabalho investigar, então deixei pra lá. Agora tudo fez sentido. — Bota pra foder, Téo — disse André enfurecido. — Bota na justiça pelo menos o salafrário do médico te enganando com os remédios. E pensando melhor, põe logo o hospital na justiça por isso.
  • 23. 23 — Não estou preocupado com isso agora... tenho algo muito mais sério com que me preocupar. E não era exagero. Téo estava sentado em sua cama olhando para o chão, ouvindo a pior frase que um homem que ama sua esposa poderia ouvir: “quero que você vá embora”. Quase um minuto de silêncio após isso. — Clara... — Téo tentava argumentar. — As coisas vão melhorar. — Nossos filhos não merecem passar necessidade de novo. Lembra aquela época que você se endividou? — Me endividei com as contas que você fez, Clara — começava Téo a se enfurecer, falando agora em tom mais firme. — Os móveis da casa. Precisávamos mobilhar a casa, dormimos no chão por quase um ano. As crianças não podiam passar pelo mesmo — dizia Clara fortemente, quase gritando. Nem parecia mais aquela mulher calma e compreensiva de pouco tempo atrás. — Eu trabalhei por todos esses anos para nos sustentar e dar o melhor possível pra você e as crianças e você vai me deixar agora por causa de uma dificuldade? — Disse Téo, com a voz mais calma. — Preciso de um tempo. Só eu e as crianças por um tempo. É só pra pensar, pra organizar minhas ideias. Nem precisa levar suas coisas, só algumas roupas. Passa um tempo fora daqui e depois a gente conversa. E acreditando nisso, Téo se despediu dos filhos, prometendo voltar na próxima semana para vê-los. Foi a semana mais longa na vida de Téo. Naquela semana ele quase não viu André, pois diferente da semana anterior, nesta André fora escalado apenas para um plantão de 24 horas. E a conversa neste dia não fora muito produtiva. Apenas alguns abraços, choro e palavras de esperança. Téo estava dormindo no hospital secretamente, em um quarto na oncologia. Não fora descoberto a semana toda. Sexta-feira chegou e ele estava animado, pois veria os filhos pessoalmente no dia seguinte. Até então só havia falado com eles
  • 24. 24 pelo telefone no único dia que conseguira, na quarta-feira. E trabalhar à noite não ajudava. Na madrugada, foi chamado para imobilizar um velho que estava agredindo a enfermeira e negando medicamentos. Após tudo resolvido, continuou sua ronda. E foi só por ter atendido a este caso que acabou passando em frente à saleta novamente. Aquela saleta da alucinação. Durante todo aquele tempo, nunca mais tivera outra alucinação. Nada mesmo. Continuava sem tomar seu calmante, mas não vira mais nada. Ele então sorriu e debochou de si mesmo. Foi até a sala e a abriu. Não entrou logo de cara, observou bem. Acendeu a luz e deu tudo certo. Caminhou até a segunda porta, que dava para a salinha sem saída e sem janelas e a abriu. Agora a luz atravessava a porta e iluminava tudo lá dentro. Era ainda mais vazia do que a primeira, sem mesa e com armário totalmente sem vidros. Ele riu de si mesmo e fechou a porta. Em seguida, por que não? Sentou-se à mesinha, fechou a outra porta e resolveu tirar outro cochilo. Que se danasse tudo, a vida já estava uma merda mesmo, o que de pior aconteceria? Que viessem as alucinações, o taser estaria pronto para ajudar a destilar todo o ódio que Téo tinha naquele momento por seu emprego. O relógio marcava duas e meia da manhã. Dessa vez ele não conseguiu dormir. Não conseguia parar de pensar nos seus filhos, em especial na sua filha. Não sabia o motivo do “em especial”, mas era verdade, pensou muito mais nela naquela noite, como se no caso de um divórcio, ela fosse sentir muito mais do que o menino. Ele ficou nesses pensamentos por mais meia hora. E exatamente quando deu três da manhã e seu relógio apitou, a luz da salinha se apagou. Ele imediatamente puxou seu taser e a lanterna. A acendeu e a posicionou no centro da mesa, de forma a iluminar toda a salinha facilmente. Ele deu um sorrisinho maroto e foi até a porta que dava para o corredor. Mas ao girar a maçaneta, o mesmo do outro dia, ela não destrancou. Ele começou a ficar assustado, mas se lembrou de seus pensamentos de momentos atrás... que se danasse a alucinação. Pegou a lanterna de volta e partiu para a outra porta. Girou a
  • 25. 25 maçaneta com cuidado e empurrou lentamente para dentro da outra sala. Ah se pudéssemos explicar em palavras a profundidade do medo que o ser humano é capaz de ter no limite da capacidade de enfrenta-lo... pois lá estavam novamente os olhos dourados o observando. Se aquilo fosse um monstro, porque os olhos eram tão humanizados? Eram perfeitos olhos humanos, e meio femininos. Só que dourados. Agora, mesmo diante de tanto medo, podia perceber mais detalhes. A outra sala também tinha três metros de profundidade, mas os olhos aparentavam estar mais longe, tipo a uns cinco metros. Como isso seria possível? — Uma alucinação, soldado Theodoro — disse Téo a si mesmo — assim que é possível! Téo deu passos para trás. Os olhos se aproximaram até passar para a sala onde Téo estava. Este pegou a lanterna, que até então iluminava só o chão, e apontou para os olhos dourados. O espanto foi estrondoso, seus nervos entraram em colapso. O monstro parecia um enorme cachorro, algo como um Rottweiler, só que muito mais largo, com músculos enormes e humanizados, o rosto também não era totalmente canino, tinha algo, além dos olhos, de humano nele. E tinha expressão facial, como animal nenhum poderia ter. E foi só por um segundo que pôde perceber todos esses detalhes, pois a besta avançou sobre ele novamente. Téo conseguiu se desviar, a besta passou totalmente para o cômodo onde Téo estava, derrubando a mesa e se chocando contra a porta do corredor, o que não foi suficiente para abri-la. Téo puxou seu taser e apontou para dar o choque na besta, mas esta agarrou sua mão com a mesma precisão que um ser humano agarra a mão de outro. Eram mãos caninas e humanas ao mesmo tempo. Com um forte impulso, arremessou Téo sobre a parede de armários e quebrou alguns vidros, o que cortou Téo nos braços que usou para proteger o rosto. A besta rosnou e em seguida deu um tipo de grito estrondoso, que parecia um rugido de leão. Foi ensurdecedor, fez Téo se ajoelhar e pôr as mãos nos ouvidos.
  • 26. 26 A respiração de Téo estava acelerada, ele nem tinha noção do quanto sua adrenalina estava acima do máximo suportado. Foi ficando zonzo e quase não percebeu quando o monstro agarrou seu pescoço e abriu a boca a fim de mordê-lo. Sim, o monstro estava de pé nas patas traseiras, tinha, em pé, uns três metros de altura. Téo já sentia o bafo de carniça na boca do monstro. E no exato momento em que o monstro preparou para abocanhar o rosto de Téo, acabou pisando no taser e o esmagando, mas tomando um último choque, o que foi o suficiente para dissolvê-lo como fumaça no ar. Os olhos dourados sumiram por último, esvaecendo-se no ar ainda fixos em Téo, e este caiu com violência no chão. A luz voltou como um raio cortando a noite, mas permaneceu. Téo levantou e correu até a porta, tossindo e cuspindo muito, quase vomitando. Pôs a mão na maçaneta e a porta abriu facilmente. Os poucos pacientes e enfermeiros que o viram sair daquela forma da saleta não entenderam nada daquela situação. Um enfermeiro ofereceu ajuda, mas ele simplesmente fechou a porta e correu para o banheiro, vomitando tão logo chegou lá. O dia amanheceu e Téo estava saindo do vestiário usando sua melhor roupa. André encontrou Téo quanto este saía da farmácia do hospital, tomando um comprimido. — Nossa como está elegante o homem! — Espantou-se André. — Sobrevivi mais uma noite e vou ver meus filhos agora — respondeu Téo, fechando o frasco de comprimidos. — Vejo que foi ao médico. — Não, meu amigo, são os mesmos comprimidos que me engordam. Tudo bem, é só por hoje. Na segunda procuro um médico pra trocar, prometo. Só não quero estar alterado em casa hoje. — Claro amigo, tá certo. Boa sorte então, e não se preocupa, você é um homem bom e íntegro, no final vai dar tudo certo pra você — disse André e em seguida deu um abraço amigável em Téo. — Ah, não esquece de ver a escala, você está neste fim de semana todo.
  • 27. 27 — Meu amigo, nem essa merda vai me fazer ficar triste hoje, vou passar o dia com meus filhos e, se eu estiver disposto, a noite eu venho trabalhar. O que eles vão fazer se eu não vier? Me demitir? André riu, não do humor negro de Téo, mas feliz por pelo menos bom-humor ainda fazer parte da vida dele. ### Téo chegou em casa e pôs a chave na fechadura. A chave não abriu. Ele começou a sentir-se mal imediatamente. Bateu na porta. Nada. Continuou batendo e apertando a campainha. Nem sinal. Deus, o que estaria acontecendo? Téo subitamente deu com o pé na porta, como foi treinado pra fazer na polícia, e a arrombou no primeiro chute. Entrou apressado e percebeu que a casa estava vazia, sem mais nenhum móvel, nada, absolutamente nada. Ele se ajoelhou no chão e ficou imóvel por um tempo, o qual ele nem soube dizer quanto foi. Podem ter sido dez minutos, podem ter sido duas horas. Ele só ficou olhando para o nada. A mente estava absolutamente vazia, como há muito tempo não ficava, desde que tivera o primeiro surto, ainda na adolescência. Vazio. Apenas o vazio. Olhos quase anuviados. Alguém teria dúvida se aquele ser estaria vivo ou morto ou em coma. O rosto estava cada vez mais pálido, e quando a atitude voltou foi só para se levantar e caminhar feito um zumbi para o ponto de ônibus. Chegou ao hospital e caminhou até a sala o qual dormira durante a semana. Valquíria o viu no corredor e se aproximou. — O que está fazendo aqui a essa hora? O diretor sabe que está aqui fora do seu horário? Téo olhou para ela com uma cara de puro ódio. A impressão que dava era que toda a vida havia sido sugada de dentro daquele invólucro e somente o ódio permaneceu para se multiplicar. Se ela quisesse desenhar uma caricatura da face que viu de Téo naquele instante, poderia acrescentar sangue ou fogo nos olhos. Valquíria
  • 28. 28 simplesmente se afastou com uns passos para trás e depois correu para a sala do namoradinho, o Dr. Fargas. Téo continuou andando. Mas ao invés de se instalar no quarto onde dormia costumeiramente, mudou seu rumo e caminhou até a saleta da incursão com a besta de olhos dourados. Abriu a primeira porta, entrou e viu que a mesa e os cacos de vidro estavam ainda no chão. Seguiu até a segunda sala e sentou-se, encostando na parede. A luz elétrica agora funcionava nesta segunda sala, e ele a acendeu. Ficou ali até meia hora depois do seu horário para trabalhar. Se atrasou mesmo estando já no hospital desde cedo. Esqueceu tudo. E só despertou quando a suave voz que chama por médicos o chamou no alto-falante pedindo que se apresentasse caso estivesse no hospital. Ele teve um pequeno despertar. Então correu para o vestiário e se fardou prontamente. Em dez minutos estava na recepção batendo seu ponto e justificando-se com seu encarregado dizendo que tinha esquecido de bater no horário, mas já estava rondando o hospital antes. O encarregado não acreditou, mas não discutiu, sabia que estava falando com um homem que só cumpria o aviso prévio. Téo não sabia o que fazer. Agora que estava consciente novamente, pegou o telefone da recepção e tentou ligar para um monte de parentes da Clara, mas ninguém sabia dela. Fazia uma considerável pausa entre uma ligação e outra para não levantar suspeitas de fofoqueiros como um médico traidor ou uma enfermeira vagabunda. Aproveitou uma dessas pausas para trocar os curativos nos cortes dos braços, mesmo nem tendo ligado para eles durante todo o dia, só um pretexto para fugir de sua função. Téo levou quase sete horas para ligar pra todo mundo. E repetiu muitas ligações, no meio tempo, como esperança de que Clara pudesse ter chegado depois em algum lugar. Uma tia dela que morava em Arraial do Cabo foi a única a não atender o telefone. Ela tinha bina, sabia que era do hospital. Neste pensamento, Téo caminhou na direção de um médico próximo na esperança de pedir o celular emprestado, mas no
  • 29. 29 meio do caminho foi abordado por um homem de idade, de terno e gravata, muito elegante e bem afeiçoado. — Bom dia, o senhor é Theodoro Maximiliano da Silva? — Perguntou o velho elegante. — Sim, o que você quer? — Respondeu Téo secamente. — Eu sou o advogado de sua esposa, e preciso lhe entregar isso — entregou um envelope a Téo. — E o que é isso? — Os papéis do divórcio. Sabe, senhor Theodoro, hoje em dia a lei facilitou muito esse tipo de situação, se o senhor assinar agora, ela promete que não haverá uma batalha judicial, vocês dividem os bens e ela deixa você ver seus filhos uma vez por semana. — E de que bens o senhor está falando? — Perguntou Téo, caminhando lentamente na direção do advogado, como se fosse brigar com ele. — Ela levou tudo que nós tínhamos. — Ela deixou a casa, que só falta pagar a metade. A fechadura foi trocada para evitar que o senhor voltasse lá antes da hora e a visse arrumando as coisas, mas ela tinha deixado uma cópia com o vizinho. — O senhor quer que eu assine o divórcio aqui e agora? — Téo continuava com a pior cara de ódio que conseguia. — Ela pediu que eu viesse aqui na madrugada durante seu expediente, seria a melhor forma de encontra-lo. Téo novamente se viu próximo a entrar no seu estado de paralização mental. Chegou a ver a realidade se afastando um pouco, quase como se o chão estivesse pronto a fugir. Mas fez um esforço e conseguiu agarrar um pouco da realidade ainda. Seus sentimentos, por outro lado, ele não tinha muita certeza. Nem mesmo ódio parecia estar sentindo, apenas um grande vazio. E com este mesmo vazio, expressado até mesmo no seu falar, convidou o advogado a um lugar mais reservado para que pudesse ler com calma o documento. O advogado achou natural e o acompanhou até uma certa salinha de três metros por dois que tinha uma porta em cada extremidade, uma para o corredor, outra para outra salinha quase idêntica. Téo trouxe
  • 30. 30 um banquinho pequeno de um quarto próximo e encontrou o advogado lá na salinha, sentado à mesa com os documentos já organizados para leitura. Téo sentou-se ali e começou a ler. Ah, que nada, leu nada. Só fingiu por longos 37 minutos que estava lendo aquela maldita papelada. O advogado não estranhou, essas coisas se lêem com calma mesmo. E já eram quase três da manhã quando o fingimento acabou e Téo virou a última página. — E então, senhor Theodoro, alguma dúvida? — Perguntou o advogado. Téo olhou para ele com um sorriso no rosto, mas não um sorriso feliz. Nem triste. Um sorriso vazio, como seus olhos. Vazios. Então a luz se apagou abruptamente. O advogado se espantou, mas não temeu de imediato. — Oh droga — disse o advogado. — Se o senhor tiver a bondade de assinar lá na mesa da recepção será excelente. Sem mais delongas, de preferência. — O senhor veio até aqui me entregar o documento que irá arruinar toda a minha vida e a vida de duas crianças — disse Téo, o mais friamente possível —, e me diz tudo isso com essa frieza? Como se fosse uma solicitação qualquer? — Senhor, entenda... — o advogado começou a ficar preocupado. — Eu sou pago por hora, e tenho outros clientes amanhã, preciso ir descansar. Téo se levantou brusca e rapidamente, derrubando o banco. O advogado correu para porta assustado, mas esta não abriu. Ele então correu para a outra, contando os passos naquela escuridão. E logo que a abriu, viu-se diante dos olhos dourados observando famintos. Téo nem pensou. Apenas deu um chute forte na coluna do advogado, o que o arremessou para cima dos olhos dourados. Os gritos não duraram nem cinco segundos, foram substituídos pelo som dos ossos quebrando, sangue jorrando e carne sendo mastigada. Téo simplesmente fechou a porta e sorriu, sentando-se à mesa e aguardando o pior. Mas o pior não aconteceu. Pouco depois as luzes se acenderam.
  • 31. 31 Téo não sentiu remorso nem por um instante. Ele já não conseguia sentir mais nada. A única coisa que fez a seguir foi abrir a porta da sala dos olhos dourados novamente para ver o que precisaria limpar. Mas estranhamente não havia nada lá. Era como se o advogado também tivesse sido uma alucinação. A não ser pelo fato da maleta e documentos ainda estarem sobre a mesa. Maleta e documentos estes que Téo apenas misturou no lixo hospitalar no fundo do hospital. O dia amanheceu e Téo pegou no sono dentro desta mesma saleta, sem nem ter o trabalho de se dirigir ao quarto que vinha dormindo antes, e nem mesmo de tirar a roupa de vigilante. E passou o dia dormindo, até quase às 19 horas. Seu celular chamou algumas vezes, mas não o suficiente para acordá-lo ou alertar alguém fora da sala. Ele dormiu como uma pedra. Quando bateu seu ponto no horário correto, seu olhar ainda era um profundo vazio. Não há de se saber se ele pensava alguma coisa, mesmo que vagamente, ou se era totalmente um robô em curto-circuito caminhando pelos corredores brancos e lotados de gente. E as várias horas de sono não foram suficientes nem de perto para reaver alguma humanidade naquele saco de carne e ossos. Ele sabia que tinha alimentado a besta com um ser humano, mas saber não quer dizer pensar a respeito, nem mesmo sentir algo a respeito. A não ser talvez a vontade de fazer de novo. E esse pensamento sinistro e vago veio em sua mente quando ele avistou Valquíria caminhando ao lado do Dr. Fargas no corredor da recepção. E ela ainda olhou para ele com desprezo. Fargas por sua vez o cumprimentou de longe, com um aceno, como se estivesse tudo mais que normal. Então finalmente um sentimento pareceu ter brotado no mais profundo do ser de Theodoro Maximiliano da Silva. E esse sentimento qualquer traduziu-se em um sorrisinho maroto em meio àquela face vazia. ###
  • 32. 32 Eram duas da manhã quando Dr. Fargas foi chamado no quarto andar. Meia hora depois anunciaram o nome da enfermeira Valquíria na sala 401. Dez para as três anunciaram o nome do diretor Sheldon para resolver uma emergência na saleta selada no quarto andar. Era plantão de Fargas e Valquíria, e o diretor Sheldon sempre ficava madrugada adentro nos domingos, para resolver qualquer problema recorrente pela escassez de médicos aos fins de semana. Sheldon saiu rapidamente de sua sala e correu para a saleta, imaginando o que poderia estar acontecendo. Nunca teve problemas com aquela sala, mas lembrou-se de quando seu antecessor lhe fez prometer que nunca a abriria. Naquela altura pensava que alguma lenda urbana envolvendo aquele lugar poderia despertar algum lunático ou desencadear uma reação na ala psiquiátrica toda, talvez algo até pior, então preferiu manter sua promessa e esquecer aquele lugar e qualquer lenda que pudesse o envolver. Assim que chegou, Sheldon abriu a porta subitamente, sem pensar nem refugar. E foi aí que teve o baque. Valquíria estava amarrada na mesa, amordaçada. Fargas ao lado na cadeira, todo amordaçado também. Diante da outra porta estava Téo, segurando uma arma que não usava corriqueiramente no expediente, mas que ficava em um armário da segurança, e todo guarda tinha a chave. Téo apontou ameaçadoramente a arma para o diretor. — Theodoro, o que vai fazer? — Perguntou o diretor Sheldon, com as mãos para cima, após fechar a porta a mando de Téo. — O senhor chegou bem na hora. E a vantagem é que nem mesmo vou precisar te amarrar. O senhor vai ser o primeiro — disse Téo com um ar de satisfeito, mesmo misturado ao vazio que era sua cara. — Téo, não faça nenhuma besteira — implorava Sheldon — você não tem como sair daqui impune. — Eu tenho como sair impune de qualquer coisa, eu tenho a arma perfeita para o crime perfeito. Se não houver corpo nem suspeitas, como iriam acusar alguém? — Sem corpos, como assim?
  • 33. 33 Valquíria não tinha parado de chorar nem um instante, mas ao ouvir a última declaração de Téo, danou-se a chorar ainda mais. Até mesmo Dr. Fargas, sempre tão centrado e paciente, agora chorava como uma moça, quase tanto quanto Valquíria. E Sheldon não teve tempo de tentar dizer mais nada. As luzes se apagaram todas de uma vez, como de costume. Sheldon pensou que seria sua chance de escapar e tentou abrir a porta, sem sucesso. Téo abaixou a arma, a pôs na cintura e pegou o taser. — Calma, Theodoro — ainda implorava Sheldon. — Eu estou calmo como nunca estive na vida — disse Téo ainda mais friamente. — Mas ele está faminto! Téo finalmente abriu a porta e dessa vez mal pôde se ver os olhos da besta, pois esta saiu feroz já saltando com tudo que tinha e abocanhando toda a cabeça de Sheldon, batendo seu corpo violentamente contra a porta. Respingou um pouco de sangue, mas antes mesmo que pudessem espalhar-se vísceras ou algo assim, a besta pulou de volta para sua escuridão na outra sala, com Sheldon ainda na boca, e desapareceu sombra adentro, como se houvesse um longo caminho após os 3 metros. Como se as sombras fossem o portal para uma estrada no infinito nada. Valquíria e Fargas tentavam berrar e esbanjavam lágrimas enquanto escutavam os ossos e a carne se destrinchando na outra sala. Téo considerou-se bondoso ao tirar as mordaças de ambos e ouvir gritos de misericórdia misturados com gritos de fúria, palavrões e rogo de praga. Téo não sentiu nem uma centelha de remorso, ele só sentou-se no chão e começou a rir da desgraça que ambos passavam. Dois minutos depois a besta passou pela porta, agora andando lentamente, exibindo seus arregalados e assustadores olhos dourados. Valquíria e Fargas berravam com tudo que tinham. Então Fargas começou a vomitar e se engasgar com o vômito. E deve ter sido o critério de escolha da besta, que o agarrou com suas enormes garras, cravando as grandes e duras unhas nos músculos mal trabalhados de seus braços, o que fez espirrar mais sangue, mas como da vez anterior, sem tempo para espalhar, pois o monstro o
  • 34. 34 levou para a escuridão em um segundo, deixando só a cadeira e as cordas partidas para trás. Valquíria parou de gritar enquanto escutava seu amante ser devorado. — Você não vai tirar minha dignidade, nem na hora da minha morte — disse ela, erguendo a cabeça. — Vou morrer como vivi, de cabeça erguida. Téo levantou e se aproximou, pondo seu rosto tão perto do dela que os narizes se tocaram. — Você nunca teve nenhuma dignidade, sua piranha desalmada... eu tinha uma família que você ajudou a destruir. Conviva enquanto pode com isso e responda no inferno por tudo que você fez. E tão logo Téo tirou a cara dali, saindo da frente, os olhos de Valquíria puderam contemplar a besta, agora andando como bípede e se aproximando lentamente dela. — O que foi, “Olhos Dourados”? — Perguntou Téo como se tivesse toda a intimidade com a besta. — Comeu o prato principal e agora vai querer esnobar a sobremesa? Ela é fêmea, a carne mais macia, devia ter provado primeiro. — E danou-se a rir enquanto o monstro agarrou e levou Valquíria para as sombras lentamente, com mesa e tudo, sem nem desamarrá-la. Valquíria manteve-se firme, cabeça erguida e sem chorar mais. Mesmo quando ouviu-se o som de seus ossos quebrando, nenhum grito. Téo supôs que o primeiro osso a se partir deva ter sido o pescoço. E após esses preciosos minutos, as luzes se acenderam de uma vez. Tudo em seu devido lugar, menos a mesa, que desaparecera. Téo chegou a olhar na sala ao lado, mas nem sinal da mesa, de qualquer vestígio dos corpos ou da existência da besta. Ele só levantou a cadeira onde esteve sentado Fargas e começou a rir histericamente. Riu e se satisfez como se não houvesse amanhã. Reviveu mais e mais vezes as cenas em sua memória até cair no sono, sentado só na cadeira. Acordou na hora certa, momentos antes do horário de bater o ponto e começar o expediente.
  • 35. 35 ### Segunda-feira. Normalmente é o dia da preguiça. Mas não para o disposto e sempre vigoroso guarda Theodoro Maximiliano da Silva. Mesmo estando à beira dos últimos dias no emprego, manteve- se vigilante como um leão na selva. Resolveu sozinho um caso de fuga da ala psiquiátrica, um outro de velhinho que revidava injeções, sempre com maestria, sabendo ser gentil ou firme nas horas corretas. Naquela noite o encarregado sentiu remorso de ter que perder o seu melhor homem por causa de um miserável complô de RH. E no meio de tanta vigilância ele acabou vigiando o que almejava: a às da contabilidade, a chefia maior dos números, a ameaça de qualquer um que ousasse se opor, a tirana ditadora de todo o hospital, capaz de mandar até na diretoria, é ela mesma, a temível Aline do RH. O mesmo RH que por acaso tinha sua sede no quarto andar... E já passava de meia noite quando a voz suave nas caixas de som pediram a presença do segurança Theodoro na recepção. Ao chegar lá ele observou que havia uma fila de funcionários de diferentes cargos. Ao perguntar a um enfermeiro, este lhe disse que havia um detetive para interrogar todos os funcionários que trabalhavam exclusivamente à noite. Os residentes ficariam para o dia seguinte. Téo sorrateiramente saiu da fila e seguiu para a saleta do “Olhos Dourados”. A voz suave o chamou mais umas cinco vezes, mas ele não saiu da saleta. Até que o seu relógio marcou duas e meia e ele resolveu ir até a recepção. — Me desculpe, oficial — disse Téo, estendendo a mão em cumprimento ao detetive Camargo. — Eu estive resolvendo um problema sério. Eu sou Theodoro Silva. Do que se trata? — O senhor deve ter ouvido falar que o diretor do hospital não compareceu hoje ao trabalho — começou o detetive.
  • 36. 36 — Na verdade estou sabendo agora — Téo fez cara de surpresa. — Ele não está em casa? — Perguntou o óbvio talvez para parecer inocente ou estúpido. — Sua esposa nos acionou quando ele não voltou pra casa e nem atendeu no hospital. A recepcionista da noite disse que o anunciou algumas vezes, mas não teve notícias concretas. Quando foi a última vez que o senhor o viu? Téo pensou a fundo e sorriu confiante para o detetive. — Na verdade o vi hoje pela manhã na minha sala. — Ora, então o senhor teria sido o último a vê-lo — surpreendeu-se o detetive Camargo. — Posso dar uma olhada na sua sala? — Perfeitamente, oficial, venha comigo por favor. Eles caminharam até o elevador e chegaram rapidamente ao quarto andar. Ao passar pelo banheiro, Téo pediu para utilizá-lo rapidamente e o detetive não tinha porque não permitir. Ele entrou e saiu estrategicamente em alguns minutos. Ele então caminhou com o detetive até a porta da sala e olhou o seu relógio. — Por que tanto olha este relógio, senhor Theodoro? — Perguntou o perspicaz detetive. — Um vício de infância na verdade. Sempre que chega as três da manhã fico ligado como um louco, aguardando o sininho tocar. Quando criança acordava neste horário só pra ouvir o toque do relógio e voltava a dormir. — Que estranho. — Sabia que de acordo com algumas culturas do mundo, esta é a hora em que as trevas zombam da luz? E em outras culturas é simplesmente considerada a hora mais escura da noite, claro que isso varia de lugar para lugar no mundo, estações do ano e tudo mais. Mas definitivamente três da manhã é uma hora especial. — Podemos entrar então? — Perguntou Camargo, agora ele olhando para o celular a fim de ver a hora. — Dez segundos mais, dez segundos menos... — disse Téo, olhando para o relógio uma última vez antes de girar a maçaneta. Ele então empurrou a porta e sinalizou para Camargo entrar primeiro.
  • 37. 37 Camargo arregalou os olhos e o coração palpitou mais forte ao avistar a estranhíssima cena no centro da salinha. Era Aline amordaçada e amarrada na cadeira, bem no centro da sala, tentando gritar e espernear, sem sucesso. A outra porta estava aberta. Rapidamente Téo puxou o celular da mão de Camargo e o empurrou porta adentro, fechando a porta em seguida. No momento que Camargo correu para tentar abrir a porta, tudo se apagou. Os enfermeiros, médicos, outros funcionários e pacientes que porventura passassem em frente à porta da sala naquele instante não poderiam de forma alguma escutar nenhum som vindo lá de dentro, era como se nada estivesse acontecendo, como sempre, mas naquela madrugada algo estava diferente: um guarda do hospital, um competente homem chamado Theodoro Maximiliano da Silva estava sentado diante da porta rindo histericamente, como se estivesse assistindo ao melhor show de stand-up de sua vida. Mas bastava a sua imaginação do que estaria acontecendo atrás da porta para deixá- lo naquele estado de inabalável histeria. ### Téo encontrava-se no vestiário esperando nada mais que o amanhecer, uma hora conveniente para fazer uma ligação. O celular de Camargo chamou duas vezes durante a noite e Téo simplesmente não atendeu. O expediente acabou e ele não bateu o ponto de saída. Apenas ficou ali aguardando. Considerou oito da manhã uma hora conveniente, então ligou para a tia de sua esposa, a única que não atendera ligações do hospital. O telefone chamou quatro vezes antes da tia atender. Ele foi bem persuasivo no telefone. Não ameaçador de qualquer forma, apenas persuasivo, foi ator, convenceu até que estava chorando por saudades dos filhos, dizendo que ela não podia fazer aquilo com ele. A tia meio que concordava com ele e acabou dizendo que ela estava na casa de um cara que podia ser um tipo de namorado. Ela disse isso como forma de prepara-lo para o que poderia estar vindo. Eu não poderia dizer que o ódio em Téo crescera, ele apenas ficou lá vazio como esteve nos últimos dias.
  • 38. 38 Ele ainda confirmou com ela que Clara estava lá sozinha, sem as crianças. Fez a tia jurar que as crianças estavam com ela, então desligou e ligou imediatamente para o número que a tia lhe deu. — Alô! — Ele simplesmente largou o telefone no chão. Ele não podia conceber o que ouviu... ele não podia conviver com a realidade do que escutou naquele simples “alô”. Era a voz do seu melhor amigo André! Agora sim! Agora posso dizer que o ódio dele veio com força total e cresceu até onde pôde, se é que há um limite. ### André desligou o telefone e disse a Clara que não era ninguém. Ela se preocupou, mas ele disse que ela devia se acalmar, que Téo não desconfiaria nunca que ela estaria ali, que ficasse tranquila. E que podia ficar o tempo que precisasse até o divórcio sair, era mais seguro que na casa da tia, onde provavelmente Téo a procuraria. Eram cinco para as três da manhã quando André assistia televisão, insone como de costume. Pouco depois, uma notícia o chamou atenção por ser do hospital. Um incêndio na rede de energia subterrânea havia causado um apagão geral no hospital e os geradores do hospital estavam todos sabotados. Pacientes já haviam morrido por falta dos equipamentos e os mais graves estavam sendo transferidos às pressas para outros hospitais enquanto os especialistas tentavam reaver a luz ou os geradores. Cláudia saiu do quarto correndo e já encontrou André se levantando. — Eu vi na televisão do quarto. Precisam de você lá — disse ela. — Eu sei, cuida de tudo aqui, eu volto quando puder — disse André e foi caminhando até a porta. De repente um som alto de batida de carro e a luz apagou na casa também. Eles se mostraram surpresos. Alguém derrubara um
  • 39. 39 poste na frente da casa com certeza! Luz e telefone já eram. Uma única luz de emergência acendeu-se na sala. André correu para a porta e assim que a abriu, tomou um dos maiores sustos de sua vida, avistando seu melhor amigo Téo bem na sua frente. — Porra Téo! — Gritou André mais para alertar Clara do que pelo enorme susto que realmente tomara. — Desculpe, melhor amigo — disse Téo, com claro tom de deboche e sarcasmo. — Eu já ia tocar a campainha. — O que tá fazendo aqui? Tem uma crise no hospital, vamos lá, anda! — André tentava tirá-lo dali. — Só um instante, amigo, precisamos conversar — Téo continuava no mesmo tom, adicionando até um sorriso cínico no rosto. — Conversamos no caminho — André já falava em tom mais sério, como se já desconfiando que Téo soubesse que Clara estaria ali. — Conversamos agora! — Disse Téo, agora em tom claramente ameaçador, apontando a arma para André, que levantou as mãos imediatamente. Entraram em seguida. — O que vai fazer, cara? — Perguntou André, amedrontado. — Clara, pode sair daí, vamos ter uma reunião familiar aqui! — Ordenou Téo. Clara nada podia fazer da posição em que estava no quarto, apenas saiu e tomou o cuidado de fechar a porta calmamente. — O que está fazendo, Téo? — Clara tentava manter a calma. — Esse não é você, você nem come carne pra não participar da morte de animais. — Não estou matando bois aqui — disse Téo, calmamente. — SENTA! — Gritou imperativamente. Ela sentou-se ao lado de André, mantendo uma certa distância respeitosa, o que fez Téo rachar de rir, como um lunático. — Téo, se você fizer isso vão te pegar — disse André —, você não quer ver seus filhos crescendo da cadeia.
  • 40. 40 Mais uma risada histérica. — Eu não vou preso — dizia Téo em meio a risadas descontroladas enlouquecidas. — Pra eu ser preso precisam apresentar alguns corpos. E de vocês é provável que não sobre nada. Vou matar vocês e dar de comer ao meu bichinho. — Cara, para com isso, você tá vendo muita televisão, o último cara que fez isso tá mofando na cadeia, e o cara era famoso e rico, imagina... — interrompeu André suas próprias palavras. — Diz, André — incentivou calmamente Téo. — Diz: “imagina você que é pobre!” — Gritou. Clara teve total certeza naquele momento que aquilo tudo era mais um teatrinho do policial falido que sempre foi seu marido, e se posicionou ereta na sua frente, desafiadoramente. — Guarda já essa arma, Theodoro! — Disse imponente. — E vai pra casa, conversamos pelos advogados! Vai agora! — Ordenou. Téo deu um sorrisinho cínico. Ela se irritou e com confiança o empurrou seus ombros com as duas mãos. A reação foi imediata, Téo simplesmente atirou nela, acertando bem no ombro. André misturou o susto com a oportunidade e saiu correndo como louco para a porta da frente. Téo fingiu não ter tido tempo para protestar, se quisesse atirar teria conseguido, mas havia uma surpresa na porta. Quando André abriu a porta e mirou a rua, freou sua corrida abruptamente, caindo e arrastando a bunda uns centímetros pelo chão, ainda empurrado pela inércia. Ele parou com os olhos tão próximos dos olhos da besta que aquela luz nos olhos dela quase o cegara. Ainda assim ele não conseguiu tirar os olhos dos olhos dourados. Nem mesmo o bafo de morte da besta o afastara naqueles últimos três segundos de vida em que misteriosamente a besta demorou para ataca-lo. Mas atacou. E foi uma única mordida, que arrancou toda a cabeça e metade do peitoral, o sangue jorrou muito mais que nas outras vítimas, provavelmente por não estar no ambiente habitual da besta. O corpo de André caiu no chão e podia se observar de perto os pulmões partidos ao meio pela mordida única
  • 41. 41 e mortal, e o coração ainda inteiro, metade pra dentro da carcaça, metade pra fora, pulsando como se para abastecer um vivo. O sorriso de Téo aconteceu juntamente com o berro de Clara, que viu apenas uma pequena parte do ataque lá fora perto da porta. Ela então começou a se arrastar para trás, para o corredor onde ficavam as entradas dos dois quartos e do banheiro ao fundo. Téo apontou a arma para ela. A besta avançou casa adentro, mas ao tentar passar pela luz de emergência no meio da sala, sua pele queimou e ela soltou o monstruoso grunhido. Téo preocupou-se visivelmente com seu animalzinho de estimação e prontamente atirou na lâmpada de emergência, logicamente a apagando. A besta passou por cima de sua cabeça num único e longuíssimo salto, já caindo próximo a Clara, que parou de gritar um instante e surpreendentemente rápido puxou o celular do bolso e apertou um botão, iluminando os olhos da besta, a afastando assustada a ponto de se desequilibrar e cair de cara no chão. Téo viu a cena com ódio e atirou certeiro no celular, que estourou-se. A bala pegou na mão dela também, arrancando dois dedos e causando um grito de dor indizível, porém curto, visto que sua cabeça imediatamente fora arrancada com uma só patada da besta. E antes mesmo de tocar o chão, a besta a abocanhara. Téo começou a rir enquanto a besta comia o restante do corpo, questão de segundos, como uma cobra que nem mastiga, apenas engole. Só que as vítimas desapareciam bem rápido no estômago, como se tivesse um buraco negro lá dentro. Em seguida a besta lambeu o sangue e uma enorme sombra surgiu na escuridão, ainda mais negra que a escuridão e devorou todo e qualquer átomo que pudesse ter existido de Cláudia, tal como acontecera há alguns segundos com André. Estava tudo acabado. A besta, satisfeita, caminhou um pouco e deitou-se, apoiando a cabeça aos pés de Téo. Ela mesma nunca imaginara que se tornaria fiel a um ser humano, mas este lhe alimentava e entendia como nenhum outro em milênios de existência. E a sensação de
  • 42. 42 liberdade era tamanha que já passara muito da hora da besta se recolher e esta simplesmente queria ficar ali com seu dono. Mas um som surpreendeu a ambos naquela madrugada. A maçaneta da porta do quarto, de onde antes saíra Clara, tentou girar. Em seguida um som de trinco destrancando e a maçaneta girando. A besta se levantou e se pôs em prontidão. A porta se abriu e de lá, lentamente saiu ninguém menos que Marina, a filha de cinco anos de Téo. A besta rosnou e se pôs em posição para ataca-la. Téo gritou que não desesperadamente, mas não adiantou. A besta saltou sobre ela ferozmente. Mas Téo foi tão rápido quanto e agarrou no pescoço da besta com um “mata-leão”. Esta levantava e voltava a ficar de quatro, alternando entre bípede e quadrúpede, empurrando e batendo com força o corpo de Téo contra as paredes e móveis da sala. Ele sentia dores fortes, ossos foram quebrados, mas ele não desistiria de sua filha. E Téo mal começara a batalha, avistou seu filho saindo e se juntando à irmã. O desespero foi dobrado, se é que isso pudesse ser possível. Com toda aquela ação, outro taser acabou caindo no chão e quebrando. Téo não tinha nenhum recurso a não ser segurar o máximo possível a besta para que seus filhos corressem. E ele gritou para que o fizessem por várias vezes, mas eles estavam imobilizados pelo medo. Então a besta finalmente conseguiu se soltar de Téo, o arremessando com força nos móveis da sala. Agora não tinha mais jeito. A besta se aproximava lentamente dos irmãos. — São meus filhos... não mate meus filhos! — Implorou Téo. Surpreendentemente, a besta pareceu ter entendido o que ele disse. E ainda mais surpreendente o som que saiu de seu focinho meio humanizado em seguida: um som que parecia um latido, mas que exprimia palavras em português. “Filhos”. Ela tinha acabado de dizer, ou latir, a palavra “filhos”! Téo sorriu e deitou-se no chão, arrasado de dor, mas feliz. A visão de seus filhos em segurança mesmo diante da besta começava
  • 43. 43 a trazer sua humanidade de volta. E com isso ele começou a lembrar do que tinha feito nos últimos dias. Uma lágrima sincera desceu de seus olhos. E mais lágrimas sinceras para cada vítima e para seus filhos que teriam que crescer sem a mãe. Mas naqueles vinte segundos de pausa, tomou a decisão de se recuperar e seguir em frente pelo bem dos filhos. Desistiria de sua vida própria em prol do melhor para eles e quando não precisassem mais dele, ele se entregaria e pagaria por seus crimes. Eu cheguei a dizer que a pausa fora de vinte segundos somente, não disse? Pois é, foi o tempo que a besta levou cheirando as crianças. Dez segundos para Marina e um sorriso animalesco, seguido novamente da palavra “filho”. Mais dez segundos para Marcos... só que foi um rugido e a palavra foi “mentira”! Téo arregalou os olhos em profundo horror ao ver aquela besta devorar seu filho com uma única bocada, sem nem mesmo mastigar, apenas engoli-lo inteiro e depois ficar em duas patas uivando para o teto, como que para a lua. Marina desmaiara antes que pudesse testemunhar qualquer outra coisa, como o que Téo pôde ver enquanto a besta uivava: a barriga da besta se mexia, e por uns segundos eram claros os membros e rosto de Marcos tentando sair da barriga, ainda vivo e desesperado para sair de lá. — Nããããããããããããããããããããããããããããoooooooooooooo!!! — Gritou Téo desesperado. Mesmo com alguns ossos quebrados por todo o corpo, reuniu todas as forças que pôde e correu na direção da besta, mas imediatamente as luzes se reestabeleceram na sala e no corredor e a besta começou a queimar e queimar. Em cinco segundos de agonia desapareceu, esfumaçando-se no ar. Téo caiu no chão chorando. Ele gritava e rosnava, inconformado, chorando e rangendo os dentes, passando pelo maior sofrimento que jamais imaginou passar na vida. ###
  • 44. 44 Alguns meses se passaram. O pouco que se sabe do que aconteceu depois é que Marina foi entregue pelo pai a avó e estaria morando com ela até então. Téo desapareceu no tempo, sendo considerado mais uma vítima dos misteriosos desaparecimentos dos funcionários do hospital. Jamais ninguém soube da verdade. E depois da noite dos blecautes misteriosos, nunca mais ninguém desapareceu no hospital. Nem mesmo Marina soube dar algum depoimento consistente para o caso, só falava no monstro que levou seu irmãozinho, e como seu pai tentou lutar com ele. E na delegacia, o agora tenente Teixeira, arquivava o caso dos desaparecidos junto com o montante de casos sem solução que já quase tomavam todo o espaço nos depósitos da policia militar. O trabalho administrativo foi tão árduo naquele dia que o tenente Teixeira nem percebeu que a tarde se fôra e a noite começara. Teixeira tinha recebido um recado para comparecer na residência do agora coronel Baptista naquela noite e partiu pra lá em um carro civil, saindo da delegacia já sem farda e de banho tomado. Provavelmente havia planos para algum serviço extraoficial para levantar “um extra” naquela noite. O que mais se poderia esperar de uma convocação do coronel Baptista? Assim que chegou, estacionou em uma distância considerável, a fim de não levantar suspeitas, caminhou até a residência do coronel e apertou a campainha. O coronel demonstrou surpresa ao ver o amigo em sua porta. — Teixeira, que houve? — Às ordens, coronel! — Teixeira prestou continência. — Tá falando de quê? Tá fazendo o que aqui? — Vim pelo recado que o senhor deixou pra eu comparecer aqui. — Eu não deixei recado nenhum! E enquanto essa dúvida pairava na prosa dos oficiais, ouviu- se um som forte de explosão em um lugar próximo e a luz se
  • 45. 45 ausentou imediatamente. Ambos puxaram suas armas e se puseram em prontidão. Quando o coronel estava prestes a convidar o tenente para entrar, por segurança, ouviram no meio da escuridão uma conhecida voz. — E aí corruptos? Forçaram a visão e avistaram a uns dez metros de distância, numa área até bem iluminada só pela lua, ninguém menos que o desaparecido ex-colega: Theodoro Maximiliano da Silva. E não estava sozinho, tinha em mãos uma coleira que emanava faíscas elétricas segurando com força a enorme besta que babava diante deles como se fossem a mais suculenta refeição. — Será que a rua tá pra negócio hoje? — Debochou Téo. Eles apontaram as armas. — Vai garoto! — Disse Téo. E quando apertou o botão de soltar a coleira, a besta praticamente voou pra cima dos dois, e foi tão rápido que a reação deles nem foi a natural, de puxar o gatilho, apenas de gritar desesperados naquele pequeno segundo antes da voz cessar para sempre. E a última imagem que irão levar para o inferno deste mundo cruel que eles tanto contribuíram para que continuasse assim, é a imagem de um par de olhos dourados fixos nos seus olhos. Olhos dourados famintos e prontos para deliciar-se com a cota de carne corrupta fresca daquela noite, ao som da verdadeira loucura que exprimia a histérica risada do algoz. FIM