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AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
PROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA
FACULDADE DE DIREITO DA UFMG -JUIZ PRESIDENTE DO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO -MG
t éc n ic a pr o c essu a l
e
TEORIA DO PROCESSO
AIDE EDITORA
Iaedição — 1992
G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943
Técnica Processual e teoria do processo/
Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro :
Aide Ed., 1992.
220 p.
1. Direito processual civil. I. Título.
CDD-341.45
ISBN: 85-321-0071-6
IBIBLIOTECAS a T p
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INTRODUÇÃO
O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo-
de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do
Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e
novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná­
ria.
Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis­
mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se
cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século
XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista
para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a
diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a
visão do processo como estrutura técnica que se põe como
instrumento para o exercício da jurisdição.
Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos
produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos
da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem
um destino comum. Não se passam como as ações e reações
explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias.
Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e
nem sempre vão apenas na direção contrária, 'mas abrem-se em
7
um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos.
Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século, o movimen­
to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera­
da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os
professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de
outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris,
no movimento hippie, nos w oodstockes, e em tantas outras ma­
nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos
das revoluções.
O movimento dè renovação do Direito Processual parece
cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de
uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da
forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um
direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos
problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se
torna o elemento menos importante, confrontado com uma or­
dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica
deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não
passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica.
Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental
do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas,
e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan­
te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma
nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se fez urgen­
te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca­
nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que
se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de
finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na
1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti­
tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para
o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processuaL apto
a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o
chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A
Instrumentalidade do Processo" 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa
na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA-
passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11a tese:
"Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente,
cabe transformá-lo'1. Mas não será lembrado que MARX não cha­
mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá­
rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria
será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra
coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma
de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário,
ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula­
dos. GALILEU não foi processado pela força >de qualquer teoria
de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO
VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL,
"foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a
ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da
futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam
eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi
feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem
com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti­
dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar
em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento
de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias.
Os movimentos de renovação deste século, no campo da
cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó­
ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS
vê como uma criação humana enlouquecida19 e que tem sido
motivo de muitas angústias.
MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" inSynthesis - Direito
do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, n - 4187, pp. 46147.
2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro,
Trad. de Brenno Silveira, 3“ ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1969, p. 55.
3 A questão é levantada por MICHEL VIRRALY - La Pensée Juridique, Paris:
Librairie Générale de Droit et deJurisprudence, 1960.
4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua
loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da
9
Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI­
NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se
entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina.
Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro
povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por
haver cedido à sua sedução e faz o seu m ea culpa, repudiando-a.
Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos ir­
racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas
adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a
razão.
A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou-
se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostás
adequadas a seus problemas, o fato não poderia ser tributado à
razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos
próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de
permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida
ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse
aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade
que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire­
ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos
sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os
crimes não basta destruir as pedras.
O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um
estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de
amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma
sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua
loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS
CASTOKIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade,
trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um
Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito­
ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado
está na p. 144.
5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A.
Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15,
pp. 36/37.
10
não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND
BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa,
porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí­
nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental
quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais
nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi­
na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios.
Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano
ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco­
nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se
recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele
a detém cativa.7
A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não
resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem­
bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade
reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por
sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. Aindignação
que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade
humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o
foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se,
então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador
da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con­
temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita
profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer
ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia
e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições.
O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga­
nização social, será fator de transformação, se assim for construí­
do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O
6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de
Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a ed., 1981.
7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da
obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons­
ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
11
processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a
manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con­
flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo
qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o
Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E
esse Direito é o únicop od er capaz de limitar a atuação do Poder.
Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade
politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre
na Alemanha, o Freirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de
PHILIPP HECK, mas foi~também ela que, a partir de 1933,
inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão
do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e
confiou no senso inato do juiz à condition qu'il soit d e pure
race et q u ’il s'inspire, non p a s d ’urt individualism e désuet,
m ais d e la com m unauté n ation ale, que admitiu que a lei é um
aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un
droit non écrit qu i se dégage de Vâme du peuple allem an d et
qu i est conform e aux necessités de la vie nationale, droit claire-
m ent reconnu, ou mieux, senti et énergiquem ent réalisé p a r le
ju ge allem am fí. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí­
dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939,
tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no
sentido de que o juiz vinculasse à lei, ressalvando-se que ele
$’inspire d e 1’esprit de la nouvelle philosophie et non plu s des
príncipes individualistes surannés du siècle p assé? Essa nova
filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo.
O século XX rompeu com o mito do século passado de que
a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes,
8 Número inaugural de l ’Akademie fü r dentsches Recht, ju in 1934, p.6,
article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitulé
D er deutsche Richter Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo-
ríe Générale et à la Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: Delachaux et
Niestlé, 1967, p. 196.
9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 196.
12
imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor
con tra o conhecim ento científico, essa postura anseia pelo seu
progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela
palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina
o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".1®. E nessa
profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo
conhecim ento, em qualquer área, é fruto de m uitos esforços
conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se reno­
vam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas
concepções repudiadas ou com o resposta a elas.
Toda afirm ação sobre a inutilidade, a im propriedade ou
impossibilidade do reexam e de conceitos só pode ser tom ada
com o um a atitude de renúncia ou com o uma atitude autoritária,
ou, ainda, com o manifestação de extraordinária pureza, da qual
um a das form as se revela naquela fé inabalável no dogm a que
leva as pessoas a m orrerem por suas verdades. Essa fé é a dos
santos, mas não dos cientistas, pois, lembrando novam ente BA­
CHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência"11.
A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e
m esm o a lei, quando fixa definições e estabelece conceitos, não
poderia impedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, por certo,
tentar impedir a sua divulgação, com o ocorreu com a censura,
quando legalmente admitida, mas a própria história dem onstia
que a liberdade de pensamento, mesmo quanclo não encontra
sua correlata garantia de comunicação, encontra outros cami­
nhos para se expandir.
A autonom ia do Direito Processual, com o seu bem dem ar­
cado cam po de investigação, com conceitos e categorias pró­
prias, não poderia constituir razão para se dispensar um a revisão
de seus principais institutos. A revisita a eles não é movida por
10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto
Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cutural, 1974,
p. 334.
11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334.
13
diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência
dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE-
RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per­
dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também,
de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não
apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi­
palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",—
expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio
labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar
alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos
diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo,
porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre
será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as
transformações sociais possam se fazer não de modo caótico,
mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade
que a época alcança.
No momento em que uma ciência renuncia a continuar
investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser
submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria,
como competência explicativa da realidade, quando clarificar a
realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel­
mente, a missão social comum de qualquer ciência.
Aretomada do exame de alguns dos conceitos já considera­
dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com­
portar certas surpresas. Aimportância crescente que os institutos
do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não
chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não
obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns
problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli­
genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de
solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam.
Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven­
12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186.
14
tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces­
sual Civil. Mas prétende deixar uma contribuição sobre a nova
concepção de processo como procedimento realizado em con­
traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente
alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao
novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró­
pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual,
da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten­
de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle­
tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos.
A nova concepção de processo será trabalhada com base na
obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a
síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa­
ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu­
nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de
FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se
relevarem os aspectos mais importantes que justificariam a trans­
crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de
página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do
autor citado e do controle de sua autenticidade. O método
escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se
demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a
preferência é por essa última, em coerência com o que se enten­
de ser a função social da ciência.
A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na
obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA-
MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de
página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas
o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa­
mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros
da nova geração.
Não se negará, em nenhum m om ento, o direito fundamen­
tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca
em questão são os problemas da construção jurídica e de sua
fundamentação.
15
As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiên­
cias ou contradições do quadro conceituai utilizado pela doutri­
na do Direito Processual Civil para estabelecer as relações entre
procedim ento e processo, que incidem inevitavelmente em dife­
rentes m odos de se conceber o processo, e que se refletem no
conceito de ação, e que se projetam na finalidade do processo,
poderão se constituir em contribuição tanto para a Ciência do
Direito Processual, com o para o tratam ento de questões de or­
dem prática, tão necessária nesse m om ento em que a nova or­
dem constitucional brasileira abriu extenso cam po de pos­
sibilidades de alterações no Direito Processual, aqui referido
com o sistem a normativo.
16
CAPÍTULO I
CIÊNCIA E TÉCNICA
1.1. A CIÊNCIA
A divisão do campo do conhecimento, no curso da História,
gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino­
logias para designá-las de acordo com variados critérios referi­
dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto
da investigação científica.
Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas
propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar
algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen­
são do tema que se põe como objeto deste estudo.
E, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre
teóricas e práticas, ou especulativas e práticas.
A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na
doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti­
cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam
13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências
especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev.
e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, 1° v., pp. 264 e s.
17
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para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação
dos resultados adquiridos por aquelas.
Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris-
totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego
teXvn, de que derivou a palavra "técnica").
Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma­
ções por que as duas concepções passaram na experiência
histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o
campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con­
cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces­
sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível.
Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a
expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ­
ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se
produzir alguirík coisa.14
Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí­
cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e
ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas
a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada
para resultados determinados.
Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri­
ca, embora a atividade humana -encontre procedimentos para a
aplicação prática das aquisições do conhecimento.
Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se
fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi­
da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou
como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de
outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda
ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter­
minada realidade, seja ela natural ou cultural.
Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do
14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L.l, in Obras, trad. de Francisco de P.
Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977.
18
BIBLIOTECA
PUCMINAS/BETIM
termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas
disputas inúteis, no campo do Direito.15
Em uma das cinco acepções registradas por LAIANDE —
quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili­
dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o
termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e
de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera­
lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram
a conclusões concordantes que não resultam de convenções
arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam
comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual­
mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação
definidos".16
A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como
conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam­
bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus
resultados são sujeitos àverificabilidade.
HUISMAN e VERGEZ, com base em LAIANDE , afirmam que
"a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das
relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para
conhecer, para explicar o que é".17
Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo
ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade
desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ­
15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte.
Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito
comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto
objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co­
nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito.
16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et CHtique de la
Philosophie, Paris: Presses IJniversitaires de France, 1972 - verbete: Science.
17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia -
Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a
ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42.
19
to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ­
zi-lo.
Quando se diz que a ciência é uma procura, uma investiga­
ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma­
ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando
entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que
possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é,
antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade
científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por
muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz
de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em­
bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar
surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o
teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi­
na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no­
ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene­
tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela,
por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de
relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e
o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na
medida em que novos conhecimentos são produzidos.
A ciência, considerada já não como atividade, mas como con­
junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco­
bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação.
Assim, as duas acepções do termo, como atividade que
produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun­
damentados, se complementam.
Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de
conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini­
ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSK1
"Toda ciência é a procura da unidade em seme­
lhanças ocultas".18
18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal,
20
"A Ciência é um processo de criação de novos
conceitos que unificam a nossa compreensão do
mundo".19
A atividade essencial da ciência é essa procura das seme­
lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, dò que
se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida­
de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é
classicamente definido como uma unidade mental pela qual se
representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên­
cia exerce a sua atividade criadora.
É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade
científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um
processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva­
mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir­
ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à
universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei­
ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as
antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade
que admite, e requer, processos de correções sobre todo co­
nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação
seguida da decomposição.
Os processos e métodos utilizados na atividade científica
são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti­
dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e
suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a
história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na
história da humanidade.20
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1979, p. 19.
19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil
Ribeiro da Silva, BeLo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida­
de de São Paulo, 1977, p. 114.
20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não uni saber
infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens
*
21
1.2. A TÉCNICA
A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE,
que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e
como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um
objeto, é por ele definida com dois sentidos:
"Conjunto de procedimentos bem definidos
e transmissíveis destinados a produzir certos re­
sultados julgados úteis"
imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se
na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a
forima mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro
saber "pelas nojas da necessidade lógica e da validade universal". O verda­
deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes
mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por
isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples
opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí-
vel, o mundo das idéias que são modeLos dos conceitos e da realidade
empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da
anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememo-
ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena.
Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio
Correia, 8- ed., Coimbra: Armênio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre­
tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja
"doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU-
FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da
Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve:
"...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma
parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância
daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con­
trário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que
é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a
si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socrátieos -
Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do
Prof. José Cavalcante de Souza, 2~ ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978,
pp. 163/169. Em relação à alétheia, a doxa era opinião sem fundamento,
pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme,
a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi­
gação do método adequado para a busca de Alétheia, iniciada, no Ociden­
te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias.
"Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz
particularmente dos métodos organizados que se
fundam sobre um conhecimento científico cor­
respondente"21.
Anoção geral da técnica é de conjunto de meios adequados
para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos
idôneos para a realização de finalidades.
É bastante difundida a concepção de que a adequação dos
meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na
própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá­
cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em
EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge­
nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por
isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não
científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o
seu destino.22
Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque,
depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão
recentes estudos de MAXWEBER sobre os processos de raciona­
lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há
técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos
mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a
consecução de finalidades desejadas.
Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência"
significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou
ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se
inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no
sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen­
21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulciire cit., verbete: Technique (subst.).
22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion al Estúdio del Derecho -
Vigesimuquinta Edicion Revisada, México: EditorialPorrua S.A 1975 p
317.
23
tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser
aceita.
É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje
incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em
ABBAGNANO.23
Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um
fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul­
tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto
de conhecimentos, organizado e ordenado.
1.3. RELAÇÕESENTRE CIÊNCIAE TÉCNICA
A concepção de que a ciência revela as relações entre os
fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção
de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên­
cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MAYNEZ
— supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber
aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de
eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é
teoricamente correlato.
Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons­
trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre
podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos
23 Cf. NICOLAABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev.
por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2_ ed., São
Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica.
24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os
procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para
a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas
seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o
arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de
enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que,
prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se
24
bastante significativos para dem onstrar um postulado que é qua­
se intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os
resultados deles derivados: o de que "historicamente a prática
precede a teoria, a técnica precede à ciência".
O processo de racionalização da técnica iria levá-la a pos­
sibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplica­
do". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a
técnica, racionalizada, perm ite tanto o crescim ento do co ­
nhecim ento científico com o a m elhor aplicação da ciência, con­
form e finalidades previamente concebidas.
A partir desse ponto de confluência, é possível se fazer uma
ciência da técnica e é também possível se obter tanto o aprim ora­
m ento de antigas com o a produção de novas técnicas pela aplica­
ção do conhecim ento fornecido pela ciência.
Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é
apenas o que se disse: um a possibilidade.
MAX WEBER,25 a quem se deve uma sistematizada investiga­
ção dos processos da crescente racionalização da civilização oci­
dental, dem onstrou com o essa tendência não é suficiente para
afastar as formas irracionais em vários de seus domínios, dentre
eles o do D ireito.26
multiplicar em dimensão insuspeitada. »
25 MAX WEBER - Bssais sur la Théorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A
Sociologia do Direito (Recbtssoziologie) que constituiu um capítulo da
Wirtscbaft u n d Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa­
radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber
havia confiado a um de seus aLunos, como relata JULIEN FREUND, a quem
se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em
Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte
deste rodapé.
26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo
das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a
técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio­
nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura-
bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e
arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito
religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente
25
o
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3
3
3
O
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3
3
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O
Q
O
3
3
O
3
3
O
3
3
3
3
3
3
3
3
De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando
os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a
consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser
explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên­
cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira­
mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da
realidade que se fez objeto de sua investigação.
com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo
direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração,
porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula
o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que
não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por
WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a
justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu­
nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais
racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir­
racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material,
oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional
quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o
sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do.
Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou
a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (nâo importando
sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3- O direito formal
irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre
uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se â revelação
do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei
preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo­
rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation du droit
selon Max Weber, in Formes de Racionalité en-Droit, Archives de Phílóso-
phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92.
26
CAPÍTULO II
CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA
2.1. RELAÇÃO ENTRE CLÊNCLAJURÍDICA E TÉCNICA
JURÍDICA
O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a
- sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação
1 deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen­
te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo
de construção.
No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e
os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo
passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência
de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma,
s lhe correspondia.
Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô­
neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a
Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si
mesma.
u Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre
coerências e contradições, puseram em pauta as questões das
relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o '
27
direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na
verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi­
vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase
do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de
uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse
processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu
para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito
manifestado na experiência, do direito positivo, com existência
no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o
estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle­
xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a
própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga­
nização e de solução de seus conflitos.
2.2. OS CAMPOSDA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO
O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que
a doutrina ainda separa por critérios diferentes.27 mas nos qua­
dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada
saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos
objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma
geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões
27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit., 2~ v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria
delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p. 18 e s., GUSTAV RADBRUCH -
Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armê­
nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN,
FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion al Derecho,
8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUIS RECASÉNS SICHES -
Tratado General de Filosofia D elDerecho, Quinta Edicion, México: Edito­
rial Porrua, S.A., 1975, p.l60 e s. Sem pretender esgotar os quadros do
saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda,
outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a
Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente
tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTONIO HERNANDEZ GIL-Meto­
dologia de la Ciência del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352.
28
internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda­
mentos; aí, Sociologia Jurídica se preocupou com as relações
entre os fatos sociais e a normatividade; a Ciência do Direito
restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna
manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico
que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios
não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas
possibilidades se voltam também para o passado, pela História
do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo­
cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por
RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica,
que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co­
nhecimento jurídico.29
O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de
fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza
a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência
Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades
que se põem para o trato da técnica processual.
2.3. DOGMÁTICAJURÍDICA E
TEORIA GERAL DO DIREITO
A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o
fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali­
zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em
síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do
28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p. 185.
29 Cf. PIERRE CATAIA- LHnformatique et la mcionalíté du Droit, in Archives
de Philosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris:
Sirey, 1978, pp. 295/321.
30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva,
1976, pp. 16/17.
29
3
3
3
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3
a
3
3
3
3
3
3
3
direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica
e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em
geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e
amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi­
to, no século passado, como mostra RADBRUCH32.
Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do
Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por
objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi­
cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria
Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de
AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada
noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los
com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou
outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen­
to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as
semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos
gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste­
mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade —
desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem
31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p. 185.
32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189-
33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968,
pp.88191, p. 130.
34 Cf. JOHN AUSTIN -Lectures onJurispmdence, London: R. Campbell, 1885.
Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do
Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria
Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p.121 e s; W.
FRIEDMAN - Tbéotie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit
et deJurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên­
cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano,
Rio de Janeiro: Forense, 1966; p. 109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands
Courants de La Philosophie du Droit et de UÉtat, Paris: Ed. A Pedone, 3 a
ed., 1978, p. 276 es.
30
jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun­
to.»
Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a
DogmáticaJurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto
de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro
da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou
o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu i
como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de umu
ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37
J 2.4. A TÉCNICAJURÍDICA
c ■
JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri­
nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda
década do século XX, considera que o estudo da ciência do
Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e
que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da
grande revolução do pensamento jurídico.38
A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados
realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência
do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma
técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e
35 Cf. PIERRE PESCATORE -Introduction à la Science du Droit, Luxembourg:
Office des Imprimés de L ’État, 1960, p.73
36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. p o r el Dr. Jose
Safra Valverde, Madrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE
PESCATORE -Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des
Imprimés de L'État, 1960, pp.74/75.
37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado,
Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5~ ed., p. 17.
38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Conflits
des conceptions juridiques en France de 1880 à 1’heure actuelle, Paris:
Librairie de Recueil Sirey, 1928, pp.268/269-
31
passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos
intelectuais da construção jurídica.39
A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS-
QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito
transforma em regras claras e práticas as diretivas da política
jurídica"40.
Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica
Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já
percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da
jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos
conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de
ramos do Direito positivo.
É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa
técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos:
interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon­
dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei­
tos jurídicos41.
Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental
39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY,
que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria
que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos
da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo
método da libre recherhe scientifique, poderão encontrar soluções para os
problemas da,elaboração, buscando os critérios da integração, que serão
utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY -Science et Techni-
que en Droit Ptivé Positif 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à
técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fon­
tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN
DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit positif -
Bruxelles: Bruylant et Paris: Sirey, 1935.
40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 163-
41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU
PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste­
mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta,
citando BUCKHARDT, Methode und System como. "Construire, c'est alors
ram ener les élements camctéristiques du cas concret aux notions abstrai-
tes incluses dans la règle ou dans 1‘institution jutidique", op. cit., p .170.
32
teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação
da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí­
ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este
parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da
interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de
ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua
independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava
sem explicação, ou, antes, explicado como une affaire desprati-
ciens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre
casos concretos ou a dar solução para os~conflitos sociais, sub­
metidos à decisão do Poder.
Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos
constituíam o savoirfa ire daqueles que elaboram e praticam o
Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis
— a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d ’autres mots, la
pratiqu eju d iciaire et adm inistrative42.
Sua descrição dessa atividade é significativa para demons­
trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao
caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica
resplandescia:
"Considérée com m e pratique du droit, la techni-
que ju ridiqu e consiste à appliquer•le droit, à l ’exé-
cuter, à le mettre en oeuvre. C’est l ’habilitépratiqu e
du m agistrat, de l ’avocat, du notaire, dufonction-
naire... C espraticiens n ’on tpas la m êm e liberté que
ceux qu ifo n t Office de législateur et leur art se dis­
tingue sensiblem ent de 1’art de la législation. Pour
lespraticiens, ils'agit avant tout de saisir la réalité
des fa its et des situations concrètes, de m anier les
règles de droit avec intelligence et d e fa ire em ploi
ju dicieu x du pouvoir discrétionnaire qui leur est
42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47.
33
QaQQCjQOQQQOQUQQOQQQQOQQOOaQQQQQQQUC
laissé. Leur art est la prudence juridique, la iuris
prudentia au sens etym ologique du terme"43.
E muito compreensível que, em decorrência dos resultados
do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as­
sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica,
sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos
competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo-
lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican­
do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas,
elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan­
do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob
o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma,
o procedimento de aplicação não fosse mais do que une affaire
des praticiensf44.
A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o
Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara­
va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan-
dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na
Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor­
mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com
seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria
Geral do Processo45.
43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48.
44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K.
STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La
Justice en France, Mutations de l'appareilJudiciaire et Lutte de Classes",
avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e
justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceei
parce q u ’il traite du fonctionnem ent de l’appareiljudiciaire, qui est une
question tetre à teire et non pas de questions qui intéressent laphilosophie
du droit (justice, droit objectif, intérêt général, sujet de droit, responsabi-
lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23
■Formes de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.43V433.
45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA., ADA PELLEGRINI GRINOVER
e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual.
34
Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí­
dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de
meios idôneos para o trato do Direito.
O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos
juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio
sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica
e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi­
dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma
de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re­
presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga­
nizada pelo Direito.
A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas
técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba­
lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são
recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula­
dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade,
unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá­
vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um
critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social
regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con­
junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi­
cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti­
cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla­
dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e
em construção criadora46.
Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen­
te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a
- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991-
46 Çf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a
técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS
MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion al Derecho, Oc-
tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Penot, 1975, pp. 149/167, sobre a
elaboração do conceito, v. RAJFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé:
Librería y Editorial Castellví S.A, 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op.
cit., p. 188 e s.
35
aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a
oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da
aplicação do Direito47.
2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA
2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO
Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e,
conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis
para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia­
da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são
visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões,
referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora
se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des­
pertaram polêmicas.
Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se
encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de
que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio
silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso
concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48.
47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA
MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de
vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica­
do.^..) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na
condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito
processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi­
leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces­
sual: quarta série - São Pauto: Saraiva, 1989, p. 12. Sobre a dignidade da
dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS­
TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os
práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a neces­
sidade de que o Direito se fizesse concreto: Maprim a di tutto bisogna chc
il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge, Cf. JOSÉ OLYMPIO
DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4~ ed., 2~ tiragem, Rio de
Janeiro: Forense, 1989, pp.7118.
48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse
36
É compreensível que, na falta de uma construção científica
mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação"
estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o
pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para
explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao
silogismo.
As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito
fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento
mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a
complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do
juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável,
a questão axiológica que permeia todo o direito49.
O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de
misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse
verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová­
vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque
era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis­
mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer
as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria
dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que
defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais
princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN epi Théories relatives
au raisonnementjudiciaire, surtoüt en droit continental, depuis le Code
Napoléon jusqu'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du
Droit-Logique Jurídique-Nouve/le Rhêtoríque, Paris: Dalloz, 1979,
pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por CLAUDE DU
PASQUIER, que, no capítulo destinado à L’application dn Droit, estuda os
mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri-
diques multiples; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato
à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une
règle, c ’est transposer sur un caspartiadier et concret la décision incluse
dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc unpassage de
l'abstrait au concret, du general auparticulier, bref une déduction, Son
instrument est le syllogisme" in op. cit., p. 126.
49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses
argumentos, como as de COÍNG, em Gnmdzüge der Rechtsphilosophie,
sobre as "situações-tipos".
37
üüOUÜÜUUOOGOÜüOOODODOÜüOOOüÜUUJUüUt
possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos
dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso
concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não
há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo
menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o
modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o
termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo;,
o teimo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa
menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o
termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas
premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível
encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas
não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em
estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi­
das. «
É claro que não se nega que o "argumento", no sentido
estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em
premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci­
são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica)
conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto
para se inferir a sentença.
De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas
pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente
em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço
dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do
Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na
lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a
formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou
na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria
aparecer como algo aterrador.
A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para
ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser
relegada a permanecer à margem de uma ciência qiie se propôs
a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma­
38
na, e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da
razão.
Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que
a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa­
mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que
fala ORTEGAY GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito.
Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá­
vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas,
que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento,
da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica­
ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência.
2.5.2. UMINSTRUMENTO PARA UMRACIOCÍNIO
Alógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência
experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a
Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que
foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que
é a busca do conhecimento.
ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a
Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando
o critério temporal como metodologia da exposição, para pene­
trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso­
res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão,
e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos,
pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela
lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja
construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís­
50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís
Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.
51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a
seguir.
52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente em 1662 La
Logique ou ia rt de Penser, mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE
ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal.
39
tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen­
der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó­
lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que,
"agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga
para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno­
minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando
as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até
a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica.
A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal
contemporânea, mas máis do que o nome, é conveniente esclare­
cer alguns dos pontos por ela estabelecidos.
1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência
normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de
recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces­
so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para
construir o método da livre associação, pode passar por movi­
mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição,
que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do
raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não
alcançadas por critérios objetivos de descrição.
2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma
espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu­
sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis
para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor­
reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe­
lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan­
53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus­
sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309.
54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.
55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais
do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito -
Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8- ed., p. 297 e s.
56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. -
São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21.
40
do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati-
zada57."
3- Alógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou
falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples
enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas,
mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas
sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e
apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de
sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente,
também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên­
cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o
que é evidente em um campo do conhecimento póde não o ser
em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas
diferentes.
4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica
apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se
falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em
sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da
dedução. Asverdades da lógica são formais, porque referidas não
ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu­
mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu­
sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e
falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida­
de", e pela forma de relações entre proposições que são premis­
sas e proposições que são conclusões.
5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos
termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se
57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.
58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia­
do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade,
em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As
dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em
KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares cor­
respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica
da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
UOOUUOUÜOOGOOUOOOUOÜÜÜUOÜOOÜÜÜUJÜUÍ
desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos,
no argumento59.
6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma
premissa (uma proposição que será usada como base para se
inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo­
sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do
juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado).
7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela-
Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985,
pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar
às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou
singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que
refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica:
"Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações
que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise
descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi­
mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier,
3" ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan­
do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que
afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a
unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém
em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a
totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de
Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240;
no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad.
do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987,
pp. 169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é
individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do
sum m um genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ­
TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conce­
ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica,
geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na
Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina-
lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito.
59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito
e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento.
E aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio-
nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das
funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT BLAN-
CHÉ, op. cit. pp.310/311.
42
ciónada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma
premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola­
da, porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu­
são60.
8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma
estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões.
O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o
argumento indutivo pretende oferecer apenas uma pro­
babilidade da afirmação da conclusão61.
9. Adedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção
de objetos que possuem algumas características específicas co­
muns. O que é necessário na identificação dos objetos para
integrá-los a uma classe é que compartilhem de características,
qualidades, determinações específicas. Assim como o problema
da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co­
nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão
entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes
vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão.
<50 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., p. 23-
61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39-
62 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o
criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL, seu grande divulga­
dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De
falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um
puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma
premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que
ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser
empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO-
CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A
lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer­
sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência
particular". (RUSSELL, Vimportante philosophique de la logique, Rev. de
métaph., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309. E
sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo
inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao
mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que
dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos.
Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis-
10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta,
segundo determinadas características de que compartilham, mas
pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife­
rentes, quando uma característica é tomada como totalidade
dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na
sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia d^s
classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o
indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63.
A preocupação com o levantamento desses dez tópicos,
escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu
desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos
adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o
implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que
convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem
a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em
que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que
legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser
como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen­
samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente
a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência,
e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum
benefício para seu desenvolvimento.
mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti­
tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da
lógica. Cf. op. cit., pp.309/310.
63 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias
classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente
diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que
permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma
variedade de outras classes.
64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a lógica
tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no
pensamento", p.256.
44
CAPÍTULO III
CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL
E TÉCNICA PROCESSUAL
3.1. ACIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO
Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio­
nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva­
mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró­
prio sistema.
O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena­
mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das
garantias constitucionais, importa na superação do critério de
aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na
sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga­
dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo
"Fenômeno Magnaud”65. Esse critério é substituído por uma
65 Le phénom ène Magnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi­
ção do Méthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, analisou
os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que
presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château-
Ttiierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge
üüUUUOuGOõGüOOOOüOOOOüüOOOOuüOUJüOi
, técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não-
subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem-
bros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma
Isegurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de
inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam
|diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos
predicados.
A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins
do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso
interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus
deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de
racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que
sobre ele se desenvolvia.
Aciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência,
sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnir-
cas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que
organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direi­
to pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição.
Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organi­
zam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifesta­
ção, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de
atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus
conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre
semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, de­
senvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no
mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão
da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e
organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra­
Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: LesJugem ents
du Président Magnaud (1900) e Les Nouveaux Jugem ents du Président
M agnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser
o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se
preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se
comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN
LogiqueJuridiqtte -NouvelleRhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp.71/72.
46
mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, consti­
tuir-se em novas disciplinas autônomas.
Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém
relembrai- com EDUARDOJ. COUTURE, que "a ciência do processo
não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das
execuções, das formas e dos prazos. Seria difícil construir uma
ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo-
se, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a
ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de
conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de
tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo
— não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado"66.
3.2.A NECESSIDADEDA DISTINÇÃO ENTRE
A CIÊNCIA E SEU OBJETO
Como a expressão "direito processual" é utilizada para de­
signar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto
uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um
conhecimento organizado, quanto para designar o próprio com­
plexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns pro­
blemas no seu uso.
O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto con­
junto de conhecimentos, organizado como disciplina, no senti­
do didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas,
classificadas no campo do Direito Público, não "governa a ativi­
dade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria"
ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo
todo o ordenamento jurídico"67, porque a ciência, considerada
66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da
Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad,
1956, p. 157.
67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na
valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI
47
com o atividade de conhecim ento, ou considerada com o conjun­
to organizado de conhecim entos, não tem essa função.
Considerado com o com plexo de norm as, objeto do co ­
nhecim ento da ciência que dele se ocupa, o Direito Processual
tem a função criadora que toda norm a possui, no sentido de
conferir significado jurídico a determinadas situações produzi­
das por fatos e atos que recebem a valoração normativa.
3.3. A NORMA PROCESSUAL
As norm as jurídicas são classificadas com base em diversos
critérios, que permitem sejam recolhidas e sistematizadas, den­
tre outros, os referentes a sua form a de produção, a seu âm bito
de validade, a seu grau de obrigatoriedade, à garantia de sua
exigibilidade, à m atéria por ela regulamentada, ao objeto de sua
disciplina, a sua posição na hierarquia do sistema normativo.
Tom ando o objeto de sua regulam entação com o ponto de
referência, a doutrina desdobra os critérios de classificação pela
pluralidade da matéria disciplinada. Nesse sentido fala em nor­
mas de direito material, ou substancial, e em norm as de Direito
Processual. Relacionando as duas categorias, com base em crité­
rios ditos de com plem entação, denom ina as norm as de direito
m aterial com o norm as substantivas, norm as primárias, norm as
de prim eiro grau, e as norm as processuais norm as secundárias,
norm as de segundo grau, norm as instrumentais.
É interessante verificar que as teorias, em bora utilizando a
m esm a denom inação, nem sem pre falam a mesma linguagem
sobre essa classificação. Alguns autores invertem a posição das
norm as, dentro do quadro definido pelo critério, e denom inam
norm as de primeiro grau, norm as primárias, as norm as proces­
GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed.
rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 48.
48
suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de se­
gundo grau, às normas materiais68.
E, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de nor­
mas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria.
Essas constatações são suficientes para que se dê razão a
FAZZALARI quando afirma que a qualificação das normas em
normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente con­
vencional69.
Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordena­
mento jurídico e se complementam mutuamente. ‘
A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que com­
portam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois
enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta,
qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria ás
68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabe­
lecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As
primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, cons-
tituindo-se como condição da manutenção da vida em sociedade. Delas,
conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo
que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele.
O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indireta­
mente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas
estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação
das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam
competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam
condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam
o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en somme le règle
organique de la contmínte e por ela se define a própria existência do
Estado: il n'y a d'Etat que s ’ily a monopole de la contrainte, et il y a État
des que ce monopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité de Droit Constitu-
tionnel, Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie Éditeurs, 1927, v.I,
pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material
são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as
normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas com­
pletas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General del Derecho, traduccion de la
segunda edicion en lengua a/emana por el Dr. Jose Safra Valverde, Ma­
drid: Ediciones Ria/p S.A, 1962, pp.35/38.
69 Cf. ELIO FA22ALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione,
Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp.91/96.
UüuUUOU^L/vuuUUuuuuuOUUUüOOOuüJüüüUÍ
situações jurídicas de gue decorrem direitos e deveres, as nor­
mas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função
jurisdicional e õ ínstr.umenFõrpeIõ^~quãI_eía se manifesta, o
processo.
V/'
/
3.4. AJURISDIÇÃO
O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo
fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem
jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa.
As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo
poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a sobera­
nia pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto repre­
sentante da áociedade politicamente organizada pelo Direito,
assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres,
garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo
os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual
reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos.
É preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas
soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente
constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional,
que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala
pela nação, se exerce em conformidade com as normas que
disciplinam a jurisdição.
"Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do
Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio pro­
blema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo,
nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elemen­
tos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou
dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as
situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70.
70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São
Pauló: Sugestões Literárias, 1980, p. 66.
50
O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas
noções.- status, no sentido original de situação, condição, e res
popu li-res pú blica, a coisa pública, que se sintetizaram no
Status-res p ú b lica, em que a situação de organização política
da sociedade se corporifica no Estado71. As doutrinas contra-
tualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e
ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado
"social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil,
adquirido — expressões utilizadas para designar o direito exis­
tente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabe­
lecer um fundamento racional para o poder. Embora divergin­
do sobre o caráter social do estado pré-político, negado por
HOBBES, com violência a manifesta e latente do hom o lupus
hom ini, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter
cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na
construção teórica do "pacto social". Tais doutrinas são
expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e
a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade
para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitis­
se de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo
Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na épo­
ca. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o
Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formu­
lação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo
concebido como instrumento de opressão da classe dominan­
te —, tem recebido várias análises da Ciência Política e da
Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o
conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada
na legitimação pelo procedimento em detrimento da comple­
xidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contra­
posição entre a superlegalidade política e a legalidade consti­
71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Di­
ritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Genemli, Bologna: Giuffrè
Editore, 1980, pp.3/4.
51
tucional72. O dimensionamento da "crise", sob a concepção da
"democracia" como espaço da liberdade que não anula mas per­
mite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão
jurídica73, e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se
desenvolveu como elemento fundamental do conceito de
processo.
Os três enfoques mencionados, referidos a momentos his­
tóricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a ques­
tão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas
diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias de­
senvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo
sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações
sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função
jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expres­
são de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela
norma jurídica.
No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a
autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança
privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica,
do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das
formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de san­
gue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer
representante do clã de onde partira a ofensa, vingança neces­
sária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que
72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política -
NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO,
trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis
Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2a ed., 1986, pp.401/409.
73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito e praxis
política, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp.56/58.
74 Cf. FUSTEL DE COULANGHS - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo
Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Heraus, 1975, pp.17132. Sobre as
primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da
retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59-
52
hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino deEshnunna, tombado
sob o exército de H am m u rabf3, o Estado foi se organizando
juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos
atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históri­
cas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o
Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respos­
tas à sociedade sobre as condutas valoradas negatiyamente, que
seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a
tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é
expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introdu­
zam os direitos individuais e coletivos, em suas várias clas­
sificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reco­
nhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum
nas sociedades contemporâneas.
Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHE-
RING, a quem reconhece o título de le plus grandjurisconsulte
de VAllemagne m oderne, segundo a qual o Direito exa composto
de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela
força (Zwang), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopó­
lio da força sobre seu território, não são regras de direito senão
aquelas que têm, atrás delas, a força estatal76.
O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a
outros tipos de sanção que estão presentes enj outras formas
normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL
REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens nor­
mativas, e de ordens jurídicas grupalistas. extra ou intra-estatais,
demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando-
75 Cf. - As Leis de Eshntmna, Introdução, texto cuneiforme em transcrição,
tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópolis: Vozes, 1981.
76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com
aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via
para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as
regras normativas. Cf. Traité de Droit Constitutionnel troisième édition,
Tome I -La Règle de Droit -Le Problème de L'État, Paris: Ancienne Libraire
Fontemoing& Cie, Éditeurs, 1927, p.101.
se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque
mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante
segue uma série dê normas de seu sistema jurídico77.
Podem ser aparados os excessos das doutrinas que conce­
bem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se
investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a
outros critérios axiológicos78, que não sejam os dele decor­
rentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidên­
cia comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados
pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação
dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O
sentido lógico de "princípio" — o que está posto como funda­
mento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito
—, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de
"princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apre­
sentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo,
impedem sua projeção, através de normas que com ele possam
ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do
sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado
sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados
pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos co­
mo não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque,
obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que
os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do
sistema jurídico, em direção contrária a ele.
Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do
Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar
77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva,
1976, pp.76/78.
78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas
para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido,
v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo
Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário
pode-se atribuir o monopólio do "direito" como força, porque a lei pode
ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força.
Aroldo plínio gonçalves   técnica processual e teoria do processo - ano 1992
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Aroldo plínio gonçalves técnica processual e teoria do processo - ano 1992

  • 1.
  • 2. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES PROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA FACULDADE DE DIREITO DA UFMG -JUIZ PRESIDENTE DO TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO -MG t éc n ic a pr o c essu a l e TEORIA DO PROCESSO AIDE EDITORA
  • 3. Iaedição — 1992 G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943 Técnica Processual e teoria do processo/ Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro : Aide Ed., 1992. 220 p. 1. Direito processual civil. I. Título. CDD-341.45 ISBN: 85-321-0071-6 IBIBLIOTECAS a T p | i ; 'íj-íf | RSGsSTRO: '^ 3 3 ^ 5 Í0ATA:Jsi„# o$ /99 PUBLICAÇAO N °146 tacetVO: * Reservados os direitos desfl^èíTfÇãQ^ara jí AIDE EDITORA E COMÉRCIO DE LIVROS LTDA. Rua Siqueira Campos 143 — 2° andar — Lojas 22 e 23 Tels.: 235-2440 - 236-5986 - 256-2975 FAX: (021) 237-4585 Copacabana — 22033 — Rio — RJ B I B L I O T E C A DA P u C MtNAS BcTíM n.o Z ± Z é | 3 d a t a 1 Impresso no Brasil Printed in Brazil
  • 4.
  • 6. INTRODUÇÃO O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo- de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná­ ria. Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis­ mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a visão do processo como estrutura técnica que se põe como instrumento para o exercício da jurisdição. Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem um destino comum. Não se passam como as ações e reações explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias. Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e nem sempre vão apenas na direção contrária, 'mas abrem-se em 7
  • 7. um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos. Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século, o movimen­ to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera­ da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris, no movimento hippie, nos w oodstockes, e em tantas outras ma­ nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos das revoluções. O movimento dè renovação do Direito Processual parece cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se torna o elemento menos importante, confrontado com uma or­ dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica. Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas, e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan­ te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se fez urgen­ te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca­ nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na 1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti­ tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processuaL apto a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A Instrumentalidade do Processo" 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA-
  • 8. passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11a tese: "Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente, cabe transformá-lo'1. Mas não será lembrado que MARX não cha­ mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá­ rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário, ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula­ dos. GALILEU não foi processado pela força >de qualquer teoria de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL, "foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti­ dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias. Os movimentos de renovação deste século, no campo da cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó­ ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS vê como uma criação humana enlouquecida19 e que tem sido motivo de muitas angústias. MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" inSynthesis - Direito do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, n - 4187, pp. 46147. 2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro, Trad. de Brenno Silveira, 3“ ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional, 1969, p. 55. 3 A questão é levantada por MICHEL VIRRALY - La Pensée Juridique, Paris: Librairie Générale de Droit et deJurisprudence, 1960. 4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da 9
  • 9. Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI­ NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina. Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por haver cedido à sua sedução e faz o seu m ea culpa, repudiando-a. Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos ir­ racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a razão. A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou- se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostás adequadas a seus problemas, o fato não poderia ser tributado à razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire­ ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os crimes não basta destruir as pedras. O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS CASTOKIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade, trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito­ ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado está na p. 144. 5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A. Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15, pp. 36/37. 10
  • 10. não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa, porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí­ nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi­ na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios. Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco­ nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele a detém cativa.7 A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem­ bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. Aindignação que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se, então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con­ temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições. O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga­ nização social, será fator de transformação, se assim for construí­ do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O 6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a ed., 1981. 7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons­ ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985. 11
  • 11. processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con­ flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E esse Direito é o únicop od er capaz de limitar a atuação do Poder. Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre na Alemanha, o Freirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de PHILIPP HECK, mas foi~também ela que, a partir de 1933, inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e confiou no senso inato do juiz à condition qu'il soit d e pure race et q u ’il s'inspire, non p a s d ’urt individualism e désuet, m ais d e la com m unauté n ation ale, que admitiu que a lei é um aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un droit non écrit qu i se dégage de Vâme du peuple allem an d et qu i est conform e aux necessités de la vie nationale, droit claire- m ent reconnu, ou mieux, senti et énergiquem ent réalisé p a r le ju ge allem am fí. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí­ dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939, tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no sentido de que o juiz vinculasse à lei, ressalvando-se que ele $’inspire d e 1’esprit de la nouvelle philosophie et non plu s des príncipes individualistes surannés du siècle p assé? Essa nova filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo. O século XX rompeu com o mito do século passado de que a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes, 8 Número inaugural de l ’Akademie fü r dentsches Recht, ju in 1934, p.6, article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitulé D er deutsche Richter Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo- ríe Générale et à la Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: Delachaux et Niestlé, 1967, p. 196. 9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 196. 12
  • 12. imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor con tra o conhecim ento científico, essa postura anseia pelo seu progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".1®. E nessa profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo conhecim ento, em qualquer área, é fruto de m uitos esforços conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se reno­ vam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas concepções repudiadas ou com o resposta a elas. Toda afirm ação sobre a inutilidade, a im propriedade ou impossibilidade do reexam e de conceitos só pode ser tom ada com o um a atitude de renúncia ou com o uma atitude autoritária, ou, ainda, com o manifestação de extraordinária pureza, da qual um a das form as se revela naquela fé inabalável no dogm a que leva as pessoas a m orrerem por suas verdades. Essa fé é a dos santos, mas não dos cientistas, pois, lembrando novam ente BA­ CHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência"11. A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e m esm o a lei, quando fixa definições e estabelece conceitos, não poderia impedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, por certo, tentar impedir a sua divulgação, com o ocorreu com a censura, quando legalmente admitida, mas a própria história dem onstia que a liberdade de pensamento, mesmo quanclo não encontra sua correlata garantia de comunicação, encontra outros cami­ nhos para se expandir. A autonom ia do Direito Processual, com o seu bem dem ar­ cado cam po de investigação, com conceitos e categorias pró­ prias, não poderia constituir razão para se dispensar um a revisão de seus principais institutos. A revisita a eles não é movida por 10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cutural, 1974, p. 334. 11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334. 13
  • 13. diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE- RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per­ dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também, de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi­ palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",— expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo, porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as transformações sociais possam se fazer não de modo caótico, mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade que a época alcança. No momento em que uma ciência renuncia a continuar investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria, como competência explicativa da realidade, quando clarificar a realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel­ mente, a missão social comum de qualquer ciência. Aretomada do exame de alguns dos conceitos já considera­ dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com­ portar certas surpresas. Aimportância crescente que os institutos do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli­ genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam. Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven­ 12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186. 14
  • 14. tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces­ sual Civil. Mas prétende deixar uma contribuição sobre a nova concepção de processo como procedimento realizado em con­ traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró­ pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual, da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten­ de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle­ tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos. A nova concepção de processo será trabalhada com base na obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa­ ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu­ nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se relevarem os aspectos mais importantes que justificariam a trans­ crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do autor citado e do controle de sua autenticidade. O método escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a preferência é por essa última, em coerência com o que se enten­ de ser a função social da ciência. A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA- MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa­ mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros da nova geração. Não se negará, em nenhum m om ento, o direito fundamen­ tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca em questão são os problemas da construção jurídica e de sua fundamentação. 15
  • 15. As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiên­ cias ou contradições do quadro conceituai utilizado pela doutri­ na do Direito Processual Civil para estabelecer as relações entre procedim ento e processo, que incidem inevitavelmente em dife­ rentes m odos de se conceber o processo, e que se refletem no conceito de ação, e que se projetam na finalidade do processo, poderão se constituir em contribuição tanto para a Ciência do Direito Processual, com o para o tratam ento de questões de or­ dem prática, tão necessária nesse m om ento em que a nova or­ dem constitucional brasileira abriu extenso cam po de pos­ sibilidades de alterações no Direito Processual, aqui referido com o sistem a normativo. 16
  • 16. CAPÍTULO I CIÊNCIA E TÉCNICA 1.1. A CIÊNCIA A divisão do campo do conhecimento, no curso da História, gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino­ logias para designá-las de acordo com variados critérios referi­ dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto da investigação científica. Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen­ são do tema que se põe como objeto deste estudo. E, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre teóricas e práticas, ou especulativas e práticas. A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti­ cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam 13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev. e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, 1° v., pp. 264 e s. 17 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3
  • 17. 3 3 3 3 0 3 3 O O o o o o o o o o o o o 3 3 O 3 3 O 3 3 3 3 3 3 3 3 para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação dos resultados adquiridos por aquelas. Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris- totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego teXvn, de que derivou a palavra "técnica"). Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma­ ções por que as duas concepções passaram na experiência histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con­ cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces­ sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível. Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ­ ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se produzir alguirík coisa.14 Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí­ cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada para resultados determinados. Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri­ ca, embora a atividade humana -encontre procedimentos para a aplicação prática das aquisições do conhecimento. Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi­ da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter­ minada realidade, seja ela natural ou cultural. Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do 14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L.l, in Obras, trad. de Francisco de P. Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977. 18
  • 18. BIBLIOTECA PUCMINAS/BETIM termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas disputas inúteis, no campo do Direito.15 Em uma das cinco acepções registradas por LAIANDE — quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili­ dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera­ lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram a conclusões concordantes que não resultam de convenções arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual­ mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação definidos".16 A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam­ bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus resultados são sujeitos àverificabilidade. HUISMAN e VERGEZ, com base em LAIANDE , afirmam que "a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para conhecer, para explicar o que é".17 Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ­ 15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte. Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co­ nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito. 16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et CHtique de la Philosophie, Paris: Presses IJniversitaires de France, 1972 - verbete: Science. 17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia - Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42. 19
  • 19. to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ­ zi-lo. Quando se diz que a ciência é uma procura, uma investiga­ ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma­ ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é, antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em­ bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi­ na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no­ ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene­ tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela, por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na medida em que novos conhecimentos são produzidos. A ciência, considerada já não como atividade, mas como con­ junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco­ bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação. Assim, as duas acepções do termo, como atividade que produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun­ damentados, se complementam. Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini­ ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSK1 "Toda ciência é a procura da unidade em seme­ lhanças ocultas".18 18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal, 20
  • 20. "A Ciência é um processo de criação de novos conceitos que unificam a nossa compreensão do mundo".19 A atividade essencial da ciência é essa procura das seme­ lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, dò que se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida­ de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é classicamente definido como uma unidade mental pela qual se representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên­ cia exerce a sua atividade criadora. É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva­ mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir­ ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei­ ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade que admite, e requer, processos de correções sobre todo co­ nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação seguida da decomposição. Os processos e métodos utilizados na atividade científica são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti­ dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na história da humanidade.20 Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo, 1979, p. 19. 19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil Ribeiro da Silva, BeLo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida­ de de São Paulo, 1977, p. 114. 20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não uni saber infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens * 21
  • 21. 1.2. A TÉCNICA A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE, que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um objeto, é por ele definida com dois sentidos: "Conjunto de procedimentos bem definidos e transmissíveis destinados a produzir certos re­ sultados julgados úteis" imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a forima mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro saber "pelas nojas da necessidade lógica e da validade universal". O verda­ deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí- vel, o mundo das idéias que são modeLos dos conceitos e da realidade empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememo- ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena. Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio Correia, 8- ed., Coimbra: Armênio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre­ tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja "doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU- FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve: "...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con­ trário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socrátieos - Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do Prof. José Cavalcante de Souza, 2~ ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978, pp. 163/169. Em relação à alétheia, a doxa era opinião sem fundamento, pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme, a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi­ gação do método adequado para a busca de Alétheia, iniciada, no Ociden­ te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias.
  • 22. "Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz particularmente dos métodos organizados que se fundam sobre um conhecimento científico cor­ respondente"21. Anoção geral da técnica é de conjunto de meios adequados para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos idôneos para a realização de finalidades. É bastante difundida a concepção de que a adequação dos meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá­ cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge­ nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o seu destino.22 Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque, depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão recentes estudos de MAXWEBER sobre os processos de raciona­ lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a consecução de finalidades desejadas. Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência" significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen­ 21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulciire cit., verbete: Technique (subst.). 22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion al Estúdio del Derecho - Vigesimuquinta Edicion Revisada, México: EditorialPorrua S.A 1975 p 317. 23
  • 23. tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser aceita. É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em ABBAGNANO.23 Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul­ tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto de conhecimentos, organizado e ordenado. 1.3. RELAÇÕESENTRE CIÊNCIAE TÉCNICA A concepção de que a ciência revela as relações entre os fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên­ cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MAYNEZ — supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é teoricamente correlato. Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons­ trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos 23 Cf. NICOLAABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev. por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2_ ed., São Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica. 24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que, prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se 24
  • 24. bastante significativos para dem onstrar um postulado que é qua­ se intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os resultados deles derivados: o de que "historicamente a prática precede a teoria, a técnica precede à ciência". O processo de racionalização da técnica iria levá-la a pos­ sibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplica­ do". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a técnica, racionalizada, perm ite tanto o crescim ento do co ­ nhecim ento científico com o a m elhor aplicação da ciência, con­ form e finalidades previamente concebidas. A partir desse ponto de confluência, é possível se fazer uma ciência da técnica e é também possível se obter tanto o aprim ora­ m ento de antigas com o a produção de novas técnicas pela aplica­ ção do conhecim ento fornecido pela ciência. Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é apenas o que se disse: um a possibilidade. MAX WEBER,25 a quem se deve uma sistematizada investiga­ ção dos processos da crescente racionalização da civilização oci­ dental, dem onstrou com o essa tendência não é suficiente para afastar as formas irracionais em vários de seus domínios, dentre eles o do D ireito.26 multiplicar em dimensão insuspeitada. » 25 MAX WEBER - Bssais sur la Théorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A Sociologia do Direito (Recbtssoziologie) que constituiu um capítulo da Wirtscbaft u n d Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa­ radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber havia confiado a um de seus aLunos, como relata JULIEN FREUND, a quem se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte deste rodapé. 26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio­ nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura- bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente 25
  • 25. o 3 3 3 3 O 3 3 3 3 3 3 O 3 D O O O Q O 3 3 O 3 3 O 3 3 3 3 3 3 3 3 De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên­ cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira­ mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da realidade que se fez objeto de sua investigação. com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração, porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu­ nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir­ racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material, oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do. Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (nâo importando sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3- O direito formal irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se â revelação do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo­ rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation du droit selon Max Weber, in Formes de Racionalité en-Droit, Archives de Phílóso- phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92. 26
  • 26. CAPÍTULO II CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA 2.1. RELAÇÃO ENTRE CLÊNCLAJURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a - sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação 1 deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen­ te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo de construção. No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma, s lhe correspondia. Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô­ neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si mesma. u Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre coerências e contradições, puseram em pauta as questões das relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o ' 27
  • 27. direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi­ vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito manifestado na experiência, do direito positivo, com existência no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle­ xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga­ nização e de solução de seus conflitos. 2.2. OS CAMPOSDA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que a doutrina ainda separa por critérios diferentes.27 mas nos qua­ dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões 27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit., 2~ v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p. 18 e s., GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armê­ nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN, FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion al Derecho, 8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUIS RECASÉNS SICHES - Tratado General de Filosofia D elDerecho, Quinta Edicion, México: Edito­ rial Porrua, S.A., 1975, p.l60 e s. Sem pretender esgotar os quadros do saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda, outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTONIO HERNANDEZ GIL-Meto­ dologia de la Ciência del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352. 28
  • 28. internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda­ mentos; aí, Sociologia Jurídica se preocupou com as relações entre os fatos sociais e a normatividade; a Ciência do Direito restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas possibilidades se voltam também para o passado, pela História do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo­ cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica, que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co­ nhecimento jurídico.29 O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades que se põem para o trato da técnica processual. 2.3. DOGMÁTICAJURÍDICA E TEORIA GERAL DO DIREITO A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali­ zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do 28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p. 185. 29 Cf. PIERRE CATAIA- LHnformatique et la mcionalíté du Droit, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris: Sirey, 1978, pp. 295/321. 30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva, 1976, pp. 16/17. 29 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 3 a 3 3 3 3 3 3 3
  • 29. direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi­ to, no século passado, como mostra RADBRUCH32. Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi­ cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen­ to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste­ mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade — desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem 31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p. 185. 32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189- 33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968, pp.88191, p. 130. 34 Cf. JOHN AUSTIN -Lectures onJurispmdence, London: R. Campbell, 1885. Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p.121 e s; W. FRIEDMAN - Tbéotie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit et deJurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên­ cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano, Rio de Janeiro: Forense, 1966; p. 109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands Courants de La Philosophie du Droit et de UÉtat, Paris: Ed. A Pedone, 3 a ed., 1978, p. 276 es. 30
  • 30. jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun­ to.» Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a DogmáticaJurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu i como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de umu ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37 J 2.4. A TÉCNICAJURÍDICA c ■ JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri­ nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda década do século XX, considera que o estudo da ciência do Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da grande revolução do pensamento jurídico.38 A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e 35 Cf. PIERRE PESCATORE -Introduction à la Science du Droit, Luxembourg: Office des Imprimés de L ’État, 1960, p.73 36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. p o r el Dr. Jose Safra Valverde, Madrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE PESCATORE -Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des Imprimés de L'État, 1960, pp.74/75. 37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado, Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5~ ed., p. 17. 38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Conflits des conceptions juridiques en France de 1880 à 1’heure actuelle, Paris: Librairie de Recueil Sirey, 1928, pp.268/269- 31
  • 31. passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos intelectuais da construção jurídica.39 A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS- QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito transforma em regras claras e práticas as diretivas da política jurídica"40. Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de ramos do Direito positivo. É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos: interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon­ dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei­ tos jurídicos41. Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental 39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY, que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo método da libre recherhe scientifique, poderão encontrar soluções para os problemas da,elaboração, buscando os critérios da integração, que serão utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY -Science et Techni- que en Droit Ptivé Positif 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fon­ tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit positif - Bruxelles: Bruylant et Paris: Sirey, 1935. 40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 163- 41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste­ mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta, citando BUCKHARDT, Methode und System como. "Construire, c'est alors ram ener les élements camctéristiques du cas concret aux notions abstrai- tes incluses dans la règle ou dans 1‘institution jutidique", op. cit., p .170. 32
  • 32. teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí­ ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava sem explicação, ou, antes, explicado como une affaire desprati- ciens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre casos concretos ou a dar solução para os~conflitos sociais, sub­ metidos à decisão do Poder. Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos constituíam o savoirfa ire daqueles que elaboram e praticam o Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis — a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d ’autres mots, la pratiqu eju d iciaire et adm inistrative42. Sua descrição dessa atividade é significativa para demons­ trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica resplandescia: "Considérée com m e pratique du droit, la techni- que ju ridiqu e consiste à appliquer•le droit, à l ’exé- cuter, à le mettre en oeuvre. C’est l ’habilitépratiqu e du m agistrat, de l ’avocat, du notaire, dufonction- naire... C espraticiens n ’on tpas la m êm e liberté que ceux qu ifo n t Office de législateur et leur art se dis­ tingue sensiblem ent de 1’art de la législation. Pour lespraticiens, ils'agit avant tout de saisir la réalité des fa its et des situations concrètes, de m anier les règles de droit avec intelligence et d e fa ire em ploi ju dicieu x du pouvoir discrétionnaire qui leur est 42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47. 33 QaQQCjQOQQQOQUQQOQQQQOQQOOaQQQQQQQUC
  • 33. laissé. Leur art est la prudence juridique, la iuris prudentia au sens etym ologique du terme"43. E muito compreensível que, em decorrência dos resultados do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as­ sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica, sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo- lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican­ do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas, elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan­ do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma, o procedimento de aplicação não fosse mais do que une affaire des praticiensf44. A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara­ va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan- dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor­ mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria Geral do Processo45. 43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48. 44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K. STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La Justice en France, Mutations de l'appareilJudiciaire et Lutte de Classes", avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceei parce q u ’il traite du fonctionnem ent de l’appareiljudiciaire, qui est une question tetre à teire et non pas de questions qui intéressent laphilosophie du droit (justice, droit objectif, intérêt général, sujet de droit, responsabi- lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23 ■Formes de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.43V433. 45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA., ADA PELLEGRINI GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual. 34
  • 34. Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí­ dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de meios idôneos para o trato do Direito. O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi­ dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re­ presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga­ nizada pelo Direito. A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba­ lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula­ dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade, unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá­ vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con­ junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi­ cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti­ cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla­ dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e em construção criadora46. Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen­ te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a - São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991- 46 Çf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion al Derecho, Oc- tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Penot, 1975, pp. 149/167, sobre a elaboração do conceito, v. RAJFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé: Librería y Editorial Castellví S.A, 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op. cit., p. 188 e s. 35
  • 35. aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da aplicação do Direito47. 2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA 2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e, conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia­ da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões, referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des­ pertaram polêmicas. Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48. 47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica­ do.^..) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi­ leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces­ sual: quarta série - São Pauto: Saraiva, 1989, p. 12. Sobre a dignidade da dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS­ TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a neces­ sidade de que o Direito se fizesse concreto: Maprim a di tutto bisogna chc il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge, Cf. JOSÉ OLYMPIO DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4~ ed., 2~ tiragem, Rio de Janeiro: Forense, 1989, pp.7118. 48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse 36
  • 36. É compreensível que, na falta de uma construção científica mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação" estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao silogismo. As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável, a questão axiológica que permeia todo o direito49. O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová­ vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis­ mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN epi Théories relatives au raisonnementjudiciaire, surtoüt en droit continental, depuis le Code Napoléon jusqu'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du Droit-Logique Jurídique-Nouve/le Rhêtoríque, Paris: Dalloz, 1979, pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por CLAUDE DU PASQUIER, que, no capítulo destinado à L’application dn Droit, estuda os mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri- diques multiples; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une règle, c ’est transposer sur un caspartiadier et concret la décision incluse dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc unpassage de l'abstrait au concret, du general auparticulier, bref une déduction, Son instrument est le syllogisme" in op. cit., p. 126. 49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses argumentos, como as de COÍNG, em Gnmdzüge der Rechtsphilosophie, sobre as "situações-tipos". 37
  • 37. üüOUÜÜUUOOGOÜüOOODODOÜüOOOüÜUUJUüUt possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo;, o teimo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi­ das. « É claro que não se nega que o "argumento", no sentido estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci­ são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica) conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto para se inferir a sentença. De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria aparecer como algo aterrador. A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser relegada a permanecer à margem de uma ciência qiie se propôs a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma­ 38
  • 38. na, e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da razão. Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa­ mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que fala ORTEGAY GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito. Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá­ vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas, que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento, da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica­ ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência. 2.5.2. UMINSTRUMENTO PARA UMRACIOCÍNIO Alógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que é a busca do conhecimento. ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando o critério temporal como metodologia da exposição, para pene­ trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso­ res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão, e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos, pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís­ 50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963. 51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a seguir. 52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente em 1662 La Logique ou ia rt de Penser, mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal. 39
  • 39. tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen­ der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó­ lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que, "agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno­ minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica. A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal contemporânea, mas máis do que o nome, é conveniente esclare­ cer alguns dos pontos por ela estabelecidos. 1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces­ so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para construir o método da livre associação, pode passar por movi­ mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição, que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não alcançadas por critérios objetivos de descrição. 2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu­ sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor­ reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe­ lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan­ 53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus­ sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309. 54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito - Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8- ed., p. 297 e s. 56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. - São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21. 40
  • 40. do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati- zada57." 3- Alógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas, mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente, também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên­ cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o que é evidente em um campo do conhecimento póde não o ser em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas diferentes. 4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da dedução. Asverdades da lógica são formais, porque referidas não ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu­ mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu­ sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida­ de", e pela forma de relações entre proposições que são premis­ sas e proposições que são conclusões. 5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se 57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348. 58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia­ do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade, em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares cor­ respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
  • 41. UOOUUOUÜOOGOOUOOOUOÜÜÜUOÜOOÜÜÜUJÜUÍ desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos, no argumento59. 6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma premissa (uma proposição que será usada como base para se inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo­ sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado). 7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela- Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985, pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica: "Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi­ mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier, 3" ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan­ do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240; no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad. do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987, pp. 169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do sum m um genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ­ TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conce­ ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica, geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina- lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito. 59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento. E aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio- nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT BLAN- CHÉ, op. cit. pp.310/311. 42
  • 42. ciónada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola­ da, porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu­ são60. 8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões. O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o argumento indutivo pretende oferecer apenas uma pro­ babilidade da afirmação da conclusão61. 9. Adedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção de objetos que possuem algumas características específicas co­ muns. O que é necessário na identificação dos objetos para integrá-los a uma classe é que compartilhem de características, qualidades, determinações específicas. Assim como o problema da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co­ nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão. <50 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., p. 23- 61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39- 62 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL, seu grande divulga­ dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO- CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer­ sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência particular". (RUSSELL, Vimportante philosophique de la logique, Rev. de métaph., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309. E sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos. Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis-
  • 43. 10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta, segundo determinadas características de que compartilham, mas pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife­ rentes, quando uma característica é tomada como totalidade dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia d^s classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63. A preocupação com o levantamento desses dez tópicos, escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen­ samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência, e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum benefício para seu desenvolvimento. mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti­ tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da lógica. Cf. op. cit., pp.309/310. 63 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma variedade de outras classes. 64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a lógica tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no pensamento", p.256. 44
  • 44. CAPÍTULO III CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E TÉCNICA PROCESSUAL 3.1. ACIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio­ nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva­ mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró­ prio sistema. O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena­ mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das garantias constitucionais, importa na superação do critério de aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga­ dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo "Fenômeno Magnaud”65. Esse critério é substituído por uma 65 Le phénom ène Magnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi­ ção do Méthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, analisou os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château- Ttiierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge
  • 45. üüUUUOuGOõGüOOOOüOOOOüüOOOOuüOUJüOi , técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não- subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem- bros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma Isegurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam |diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos predicados. A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que sobre ele se desenvolvia. Aciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência, sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnir- cas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direi­ to pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição. Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organi­ zam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifesta­ ção, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, de­ senvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra­ Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: LesJugem ents du Président Magnaud (1900) e Les Nouveaux Jugem ents du Président M agnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN LogiqueJuridiqtte -NouvelleRhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp.71/72. 46
  • 46. mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, consti­ tuir-se em novas disciplinas autônomas. Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém relembrai- com EDUARDOJ. COUTURE, que "a ciência do processo não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das execuções, das formas e dos prazos. Seria difícil construir uma ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo- se, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo — não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado"66. 3.2.A NECESSIDADEDA DISTINÇÃO ENTRE A CIÊNCIA E SEU OBJETO Como a expressão "direito processual" é utilizada para de­ signar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um conhecimento organizado, quanto para designar o próprio com­ plexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns pro­ blemas no seu uso. O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto con­ junto de conhecimentos, organizado como disciplina, no senti­ do didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas, classificadas no campo do Direito Público, não "governa a ativi­ dade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria" ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo todo o ordenamento jurídico"67, porque a ciência, considerada 66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad, 1956, p. 157. 67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI 47
  • 47. com o atividade de conhecim ento, ou considerada com o conjun­ to organizado de conhecim entos, não tem essa função. Considerado com o com plexo de norm as, objeto do co ­ nhecim ento da ciência que dele se ocupa, o Direito Processual tem a função criadora que toda norm a possui, no sentido de conferir significado jurídico a determinadas situações produzi­ das por fatos e atos que recebem a valoração normativa. 3.3. A NORMA PROCESSUAL As norm as jurídicas são classificadas com base em diversos critérios, que permitem sejam recolhidas e sistematizadas, den­ tre outros, os referentes a sua form a de produção, a seu âm bito de validade, a seu grau de obrigatoriedade, à garantia de sua exigibilidade, à m atéria por ela regulamentada, ao objeto de sua disciplina, a sua posição na hierarquia do sistema normativo. Tom ando o objeto de sua regulam entação com o ponto de referência, a doutrina desdobra os critérios de classificação pela pluralidade da matéria disciplinada. Nesse sentido fala em nor­ mas de direito material, ou substancial, e em norm as de Direito Processual. Relacionando as duas categorias, com base em crité­ rios ditos de com plem entação, denom ina as norm as de direito m aterial com o norm as substantivas, norm as primárias, norm as de prim eiro grau, e as norm as processuais norm as secundárias, norm as de segundo grau, norm as instrumentais. É interessante verificar que as teorias, em bora utilizando a m esm a denom inação, nem sem pre falam a mesma linguagem sobre essa classificação. Alguns autores invertem a posição das norm as, dentro do quadro definido pelo critério, e denom inam norm as de primeiro grau, norm as primárias, as norm as proces­ GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 48. 48
  • 48. suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de se­ gundo grau, às normas materiais68. E, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de nor­ mas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria. Essas constatações são suficientes para que se dê razão a FAZZALARI quando afirma que a qualificação das normas em normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente con­ vencional69. Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordena­ mento jurídico e se complementam mutuamente. ‘ A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que com­ portam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta, qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria ás 68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabe­ lecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, cons- tituindo-se como condição da manutenção da vida em sociedade. Delas, conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele. O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indireta­ mente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en somme le règle organique de la contmínte e por ela se define a própria existência do Estado: il n'y a d'Etat que s ’ily a monopole de la contrainte, et il y a État des que ce monopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité de Droit Constitu- tionnel, Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie Éditeurs, 1927, v.I, pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas com­ pletas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General del Derecho, traduccion de la segunda edicion en lengua a/emana por el Dr. Jose Safra Valverde, Ma­ drid: Ediciones Ria/p S.A, 1962, pp.35/38. 69 Cf. ELIO FA22ALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione, Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp.91/96.
  • 49. UüuUUOU^L/vuuUUuuuuuOUUUüOOOuüJüüüUÍ situações jurídicas de gue decorrem direitos e deveres, as nor­ mas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função jurisdicional e õ ínstr.umenFõrpeIõ^~quãI_eía se manifesta, o processo. V/' / 3.4. AJURISDIÇÃO O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa. As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a sobera­ nia pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto repre­ sentante da áociedade politicamente organizada pelo Direito, assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres, garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos. É preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional, que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala pela nação, se exerce em conformidade com as normas que disciplinam a jurisdição. "Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio pro­ blema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo, nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elemen­ tos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70. 70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São Pauló: Sugestões Literárias, 1980, p. 66. 50
  • 50. O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas noções.- status, no sentido original de situação, condição, e res popu li-res pú blica, a coisa pública, que se sintetizaram no Status-res p ú b lica, em que a situação de organização política da sociedade se corporifica no Estado71. As doutrinas contra- tualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado "social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil, adquirido — expressões utilizadas para designar o direito exis­ tente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabe­ lecer um fundamento racional para o poder. Embora divergin­ do sobre o caráter social do estado pré-político, negado por HOBBES, com violência a manifesta e latente do hom o lupus hom ini, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na construção teórica do "pacto social". Tais doutrinas são expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitis­ se de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na épo­ ca. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formu­ lação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo concebido como instrumento de opressão da classe dominan­ te —, tem recebido várias análises da Ciência Política e da Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada na legitimação pelo procedimento em detrimento da comple­ xidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contra­ posição entre a superlegalidade política e a legalidade consti­ 71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Di­ ritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Genemli, Bologna: Giuffrè Editore, 1980, pp.3/4. 51
  • 51. tucional72. O dimensionamento da "crise", sob a concepção da "democracia" como espaço da liberdade que não anula mas per­ mite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão jurídica73, e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se desenvolveu como elemento fundamental do conceito de processo. Os três enfoques mencionados, referidos a momentos his­ tóricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a ques­ tão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias de­ senvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expres­ são de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela norma jurídica. No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica, do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de san­ gue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer representante do clã de onde partira a ofensa, vingança neces­ sária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que 72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política - NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO, trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de Brasília, 2a ed., 1986, pp.401/409. 73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito e praxis política, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp.56/58. 74 Cf. FUSTEL DE COULANGHS - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Heraus, 1975, pp.17132. Sobre as primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59- 52
  • 52. hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino deEshnunna, tombado sob o exército de H am m u rabf3, o Estado foi se organizando juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históri­ cas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respos­ tas à sociedade sobre as condutas valoradas negatiyamente, que seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introdu­ zam os direitos individuais e coletivos, em suas várias clas­ sificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reco­ nhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum nas sociedades contemporâneas. Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHE- RING, a quem reconhece o título de le plus grandjurisconsulte de VAllemagne m oderne, segundo a qual o Direito exa composto de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela força (Zwang), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopó­ lio da força sobre seu território, não são regras de direito senão aquelas que têm, atrás delas, a força estatal76. O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a outros tipos de sanção que estão presentes enj outras formas normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens nor­ mativas, e de ordens jurídicas grupalistas. extra ou intra-estatais, demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando- 75 Cf. - As Leis de Eshntmna, Introdução, texto cuneiforme em transcrição, tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópolis: Vozes, 1981. 76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as regras normativas. Cf. Traité de Droit Constitutionnel troisième édition, Tome I -La Règle de Droit -Le Problème de L'État, Paris: Ancienne Libraire Fontemoing& Cie, Éditeurs, 1927, p.101.
  • 53. se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante segue uma série dê normas de seu sistema jurídico77. Podem ser aparados os excessos das doutrinas que conce­ bem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a outros critérios axiológicos78, que não sejam os dele decor­ rentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidên­ cia comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O sentido lógico de "princípio" — o que está posto como funda­ mento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito —, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de "princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apre­ sentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo, impedem sua projeção, através de normas que com ele possam ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos co­ mo não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque, obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do sistema jurídico, em direção contrária a ele. Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar 77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva, 1976, pp.76/78. 78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido, v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário pode-se atribuir o monopólio do "direito" como força, porque a lei pode ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força.