Este documento é uma introdução a um livro sobre técnica processual e teoria do processo escrito por Aroldo Plínio Gonçalves. A introdução discute o movimento de renovação do Direito Processual no Brasil e como tenta superar o tecnicismo do século XIX. Também reflete sobre como os movimentos de renovação acabam por vezes eliminando conceitos importantes como a razão e a técnica. A razão não deve ser culpada pelos problemas do mundo, mas sim como foi usada. O direito material e o processo podem ser
Aroldo plínio gonçalves técnica processual e teoria do processo - ano 1992
1.
2. AROLDO PLÍNIO GONÇALVES
PROFESSOR TITULAR DE DIREITO PROCESSUAL CIVIL NA
FACULDADE DE DIREITO DA UFMG -JUIZ PRESIDENTE DO
TRIBUNAL REGIONAL DO TRABALHO -MG
t éc n ic a pr o c essu a l
e
TEORIA DO PROCESSO
AIDE EDITORA
3. Iaedição — 1992
G635t Gonçalves, Aroldo Plínio, 1943
Técnica Processual e teoria do processo/
Aroldo Plínio Gonçalves. — Rio de Janeiro :
Aide Ed., 1992.
220 p.
1. Direito processual civil. I. Título.
CDD-341.45
ISBN: 85-321-0071-6
IBIBLIOTECAS a T p
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Impresso no Brasil
Printed in Brazil
6. INTRODUÇÃO
O movimento de renovação do Direito Processual, que eclo-
de em vários Congressos e se manifesta em importantes obras do
Direito brasileiro, atua como fonte geradora de novas idéias e
novas reflexões sobre antigas questões da construção doutriná
ria.
Dentre suas contribuições, anuncia a superação do tecnicis
mo do século XIX, onde o rito se fazia pelo rito e a forma se
cumpria pela forma. Essa é realmente uma boa-nova que o século
XX, já caminhando para seu final, pode deixar como conquista
para as gerações futuras. As novas idéias tendem, entretanto, a
diluir, na própria superação do tecnicismo do século passado, a
visão do processo como estrutura técnica que se põe como
instrumento para o exercício da jurisdição.
Quando se reflete sobre as superações de velhos modelos
produzidas pelos movimentos inovadores, em alguns momentos
da história humana, tem-se a impressão de que todos cumprem
um destino comum. Não se passam como as ações e reações
explicadas pela Física, que envolvem forças iguais e contrárias.
Neles, as forças que se sucedem às antigas são mais potentes, e
nem sempre vão apenas na direção contrária, 'mas abrem-se em
7
7. um verdadeiro prisma de possibilidades de múltiplos caminhos.
Pode ser lembrado, nos anos sessenta, deste século, o movimen
to da contracultura, que, reagindo contra uma cultura considera
da arcaica, propõe-se a fechar as Universidades, a retirar os
professores das salas de aula, e a renovar o mundo a partir de
outras bases. Seus efeitos se desdobram em marchas sobre Paris,
no movimento hippie, nos w oodstockes, e em tantas outras ma
nifestações inesquecíveis, que fizeram dos anos sessenta os anos
das revoluções.
O movimento dè renovação do Direito Processual parece
cumprir também esse destino. Tenta superar as insuficiências de
uma concepção deficiente de processo, do rito pelo rito e da
forma pela forma, abolindo o formalismo. Tenta superar um
direito insuficiente, porque não deu respostas adequadas aos
problemas sociais da época, eliminando o fator jurídico, que se
torna o elemento menos importante, confrontado com uma or
dem social ou política. Tenta substituir uma técnica jurídica
deficiente, porque construída sobre antigos conceitos que não
passaram pelo necessário ajustamento, eliminando a técnica.
Nega-se, ou se exclui como algo necessário, o papel fundamental
do conhecimento em relação às necessidades sociais e humanas,
e às necessidades da Ciência do Direito Processual. O importan
te, no Direito Processual, já não são os conceitos, mas é uma
nova mentalidade de reforma, que se quer efetiva, e se fez urgen
te, porque é preciso transformar as condições sociais. E o meca
nismo dessa transformação é direcionado para o processo, a que
se atribui a missão de reformador social, pelo cumprimento de
finalidades políticas e sociais.1 MARX é sempre relembrado, na
1 V. CÂNDIDO R. DINAMARCO - "O que conceitualmente sabemos dos insti
tutos fundamentais desse ramo jurídico já constitui suporte suficiente para
o que queremos, ou seja, para a construção de um sistema processuaL apto
a conduzir aos resultados práticos desejados. Assoma, nesse contexto, o
chamado aspecto ético do processo, a sua conotação deontológica." In: "A
Instrumentalidade do Processo" 2~ ed. rev. e atual. - São Paulo: Editora
Revista dos Tribunais, 1990, p. 21. Ainda: "O processualista de hoje pensa
na missão social, política e jurídica do processo." Cf. CÂNDIDO R. DINA-
8. passagem mais célebre das Teses Contra Feuerbach, a 11a tese:
"Os filósofos se limitaram a interpretar o mundo diferentemente,
cabe transformá-lo'1. Mas não será lembrado que MARX não cha
mava os teóricos como agentes da transformação e sim os operá
rios do mundo, que eram conclamados a se unirem. Uma teoria
será sempre uma teoria, e por si só não tem o poder de ser outra
coisa, e MARX certamente percebia isso. Se for usada como arma
de reforma, a força que possuir estará no braço revolucionário,
ou no braço reacionário, e não nos conceitos por ela formula
dos. GALILEU não foi processado pela força >de qualquer teoria
de ARISTÓTELES, mas pela força de BELARMINO e de URBANO
VIII, ou pela força da Inquisição, que, conforme diz RUSSELL,
"foi muito bem sucedida em seu empenho de acabar com a
ciência na Itália"2. NIETZSCHE certamente não suspeitava da
futura existência de GOBINEAU. É inútil perguntar se teriam
eles, se pudessem, dado autorização para o uso prático que foi
feito de suas construções. A responsabilidade que o teórico tem
com as idéias que coloca em circulação3 limita-se à sua honesti
dade, pois não se pode amordaçar o pensamento, nem se colocar
em uma camisa-de-força a liberdade que constitui instrumento
de sua veiculação. Por isso, teoria são teorias.
Os movimentos de renovação deste século, no campo da
cultura ocidental, como ocorreu em outros momentos da Histó
ria, nasceram da crise da razão, de uma razão que CASTORIADIS
vê como uma criação humana enlouquecida19 e que tem sido
motivo de muitas angústias.
MARCO: "Técnica e Efetividade do Direito Processual" inSynthesis - Direito
do Trabalho Material e Processual - Rev. Semestral, n - 4187, pp. 46147.
2 Cf. BERTRAND RUSSELL - "História da Filosofia Ocidental", Livro Terceiro,
Trad. de Brenno Silveira, 3“ ed., São Paulo: Companhia Editora Nacional,
1969, p. 55.
3 A questão é levantada por MICHEL VIRRALY - La Pensée Juridique, Paris:
Librairie Générale de Droit et deJurisprudence, 1960.
4 "Digamos, antes, que o homem é um animal louco que, por meio da sua
loucura, inventou a razão. Sendo um animal louco, naturalmente fez da
9
9. Assim como, no limiar da Idade Média, SANTO AGOSTI
NHO chorava amargamente por haver cedido à tentação de ter se
entretido com a literatura grega,5 o Ocidente carrega essa sina.
Ama a razão apaixonadamente, cultua-a como nenhum outro
povo jamais o fez, HEGEL o mostrou, mas depois se lamenta por
haver cedido à sua sedução e faz o seu m ea culpa, repudiando-a.
Tenta encontrar sua absolvição no culto dos procedimentos ir
racionais (no sentido Weberiano). A razão não deu respostas
adequadas aos problemas do mundo? Exclui-se, elimina-se a
razão.
A crise da razão, com a negação da racionalidade, alastrou-
se pelo Ocidente, que mal percebeu que, se não deu respostás
adequadas a seus problemas, o fato não poderia ser tributado à
razão, mas às finalidades que foram dadas a seu uso, eleitas pelos
próprios homens. Se a técnica se aperfeiçoou tanto a ponto de
permitir a eficiência em grau de excelência para o culto da vida
ou para o culto da morte, a responsabilidade que decorre desse
aperfeiçoamento não é certamente da técnica, ou da capacidade
que o homem possui de produzi-la, mas da vontade que a dire
ciona para os fins. Porque a pedra foi, segundo os antigos textos
sagrados, a primeira arma de um crime, para se acabar com os
crimes não basta destruir as pedras.
O jogo de amor da cultura ocidental com a razão é um
estranho jogo, mas não mais estranho do que qualquer jogo de
amor. E um jogo dirigido e presidido pelas emoções, e forma
sua invenção, a razão, o instrumento e a expressão mais metódica da sua
loucura. Isto podemos hoje saber, porque isto aconteceu". Cf. CORNELIUS
CASTOKIADIS - Reflexões sobre o Desenvolvimento e a Racionalidade,
trad. de Maurício Santiago Almeida F., in Revolução e Autonomia - Um
Perfil de Cornelius Castoriadis, Belo Horizonte: COPEC-Cooperativa Edito
ra de Cultura e de Ciências Sociais Ltda., 1981, pp. 117/145, o trecho citado
está na p. 144.
5 Cf. SANTO AGOSTINHO - Confissões, trad. de J. Oliveira Santos, S.J., e A.
Ambrósio de Pina, S.J., São Paulo: Abril Cultural, 1973, v. Livro I, 14 e 15,
pp. 36/37.
10
10. não um curso regular, mas um dis-curso, que, como viu ROLAND
BARTHES,6 é a única via possível em toda experiência amorosa,
porque a sua trajetória jamais se dá em uma linha reta e contí
nua. A razão é tão amada e tão cultuada que o homem ocidental
quase se dissolve nela. Mas pede demais a ela, projeta demais
nela, espera demais dela, e logo se ressente e a repudia, incrimi
na-a por não dar respostas satisfatórias a todos os seus anseios.
Entretanto, a separação não dura muito, porque o ser humano
ocidental se fez uno com a razão e necessita dela para se reco
nhecer a si mesmo, e sem ela se vê fragmentado e, para se
recompor, acaba retornando a ela. E porque a razão o cativa, ele
a detém cativa.7
A penosa caminhada de uma sociedade, que ainda não
resolveu problemas de ordem vital para a maioria de seus mem
bros, desperta, nos estudiosos mais conscientes da dignidade
reconhecida a cada ser humano pelo Direito, a indignação por
sabê-lo existente e por vê-lo, não obstante, negado. Aindignação
que nasce da pureza das intenções tem pressa. A dignidade
humana é valor que não se negocia, como realmente sempre o
foi, por isso nasce a ânsia de promovê-la já. Compreende-se,
então, o apelo para que o Direito seja o elemento transformador
da sociedade. Mas não se pode esquecer que a sociedade con
temporânea não tem a pureza das primitivas, e já não aceita
profetas com suas tábuas de leis. Quer fazer o seu destino e quer
ser agente da sua história. Seus conflitos são trazidos à luz do dia
e resolvem-se no jogo das pressões e das contradições.
O direito material, enquanto cânone de conduta e de orga
nização social, será fator de transformação, se assim for construí
do pelos seus destinatários, que são também os seus criadores. O
6 ROLAND BARTHES - Fragmentos de um Discurso Amoroso - Trad. de
Hortênsia dos Santos, Rio de Janeiro: Francisco Alves, 3a ed., 1981.
7 Cf. Reporta-se, aqui, ao duplo significado da expressão "a razão cativa" da
obra de SÉRGIO PAULO ROUANET - A Razão Cativa - As Ilusões da Cons
ciência: de Platão a Freud. São Paulo: Editora Brasiliense, 1985.
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11. processo, como instrumento disciplinado pela lei para permitir a
manifestação do Poder Jurisdicional, chamado a resolver os con
flitos, onde as autocomposições falharem, é instrumento pelo
qual o Estado fala, mas é, também, instrumento pelo qual o
Estado se submete ao próprio Direito que a nação instituiu. E
esse Direito é o únicop od er capaz de limitar a atuação do Poder.
Foi a crise de confiança no Direito instituído pela sociedade
politicamente organizada que inspirou a Escola do Direito Livre
na Alemanha, o Freirecht de KANTOROWICZ, de EHRLICH, de
PHILIPP HECK, mas foi~também ela que, a partir de 1933,
inspirou a "renovação completa dos ideais do direito e da missão
do juiz", que repudiou as construções lógicas dos romanistas e
confiou no senso inato do juiz à condition qu'il soit d e pure
race et q u ’il s'inspire, non p a s d ’urt individualism e désuet,
m ais d e la com m unauté n ation ale, que admitiu que a lei é um
aspecto do direito, mas não o mais importante, porque existe un
droit non écrit qu i se dégage de Vâme du peuple allem an d et
qu i est conform e aux necessités de la vie nationale, droit claire-
m ent reconnu, ou mieux, senti et énergiquem ent réalisé p a r le
ju ge allem am fí. Como recorda DU PASQUIER, o congresso jurí
dico germano-italiano, realizado em Viena em maio de 1939,
tratando do problema do Direito e dos juizes, adotou teses no
sentido de que o juiz vinculasse à lei, ressalvando-se que ele
$’inspire d e 1’esprit de la nouvelle philosophie et non plu s des
príncipes individualistes surannés du siècle p assé? Essa nova
filosofia que se impunha aos juizes era o nacional-socialismo.
O século XX rompeu com o mito do século passado de que
a ciência é um conjunto de verdades e certezas, permanentes,
8 Número inaugural de l ’Akademie fü r dentsches Recht, ju in 1934, p.6,
article du professeur W. Kisch, vice-président de la dite académie, intitulé
D er deutsche Richter Cf. CLA.UDE DU PASQUIER - Introduction à la Théo-
ríe Générale et à la Philosophie du Droit, 4~ ed., Neuchâtel: Delachaux et
Niestlé, 1967, p. 196.
9 Cf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 196.
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12. imutáveis, definitivamente estabelecidas. Ao contrário de depor
con tra o conhecim ento científico, essa postura anseia pelo seu
progresso, por sua contínua complementação, e conduz àquela
palavra de fé, de que fala BACHELARD, do cientista que termina
o seu dia de trabalho dizendo: "Amanhã saberei".1®. E nessa
profissão de fé a ciência recupera a sua dimensão humana. Todo
conhecim ento, em qualquer área, é fruto de m uitos esforços
conjugados, em que conceitos e teorias se substituem e se reno
vam, e, não raras vezes, a renovação se faz com esteio nas antigas
concepções repudiadas ou com o resposta a elas.
Toda afirm ação sobre a inutilidade, a im propriedade ou
impossibilidade do reexam e de conceitos só pode ser tom ada
com o um a atitude de renúncia ou com o uma atitude autoritária,
ou, ainda, com o manifestação de extraordinária pureza, da qual
um a das form as se revela naquela fé inabalável no dogm a que
leva as pessoas a m orrerem por suas verdades. Essa fé é a dos
santos, mas não dos cientistas, pois, lembrando novam ente BA
CHELARD, "verdades inatas não poderiam intervir na ciência"11.
A liberdade da investigação científica não pode ser tolhida, e
m esm o a lei, quando fixa definições e estabelece conceitos, não
poderia impedir a ação da doutrina jurídica. Poderia, por certo,
tentar impedir a sua divulgação, com o ocorreu com a censura,
quando legalmente admitida, mas a própria história dem onstia
que a liberdade de pensamento, mesmo quanclo não encontra
sua correlata garantia de comunicação, encontra outros cami
nhos para se expandir.
A autonom ia do Direito Processual, com o seu bem dem ar
cado cam po de investigação, com conceitos e categorias pró
prias, não poderia constituir razão para se dispensar um a revisão
de seus principais institutos. A revisita a eles não é movida por
10 Cf. GASTON BACHELARD - O Novo Espírito Científico, trad. de Remberto
Francisco Kuhnen. in Bergson-Bachelard, São Paulo: Abril Cutural, 1974,
p. 334.
11 Cf. BACHELARD, op. cit., p. 334.
13
13. diletantismo ou por qualquer afinidade com uma jurisprudência
dos conceitos, há muito desmistificada pela crítica de VON JHE-
RING sobre o lúgubre céu dos conceitos descarnados, que per
dem a vitalidade quando se distanciam do real. Longe, também,
de sugerir postura conservadora, a tarefa que se constitui não
apenas no "repensar o que já uma vez foi pensado", mas princi
palmente "em um pensar até ao fim o já pensado uma vez",—
expressão utilizada por RADBRUCH12 para definir o próprio
labor interpretativo — é, ainda, a alternativa de se projetar
alguma luz sobre a própria realidade do Direito que tem vínculos
diretos com o fator humano. Assim, embora não seja certo,
porque intrincados fatores não autorizam tal previsão, sempre
será possível que o resultado dessa tarefa contribua para que as
transformações sociais possam se fazer não de modo caótico,
mas com o mínimo de sofrimento possível, com a racionalidade
que a época alcança.
No momento em que uma ciência renuncia a continuar
investigando seu objeto e as complexas relações a que pode ser
submetido pela análise, terá renunciado, antes, a si própria,
como competência explicativa da realidade, quando clarificar a
realidade que elege como seu domínio de trabalho é, inegavel
mente, a missão social comum de qualquer ciência.
Aretomada do exame de alguns dos conceitos já considera
dos seguramente estabelecidos no Direito Processual pode com
portar certas surpresas. Aimportância crescente que os institutos
do Direito Processual adquiriram na época contemporânea não
chegou, ainda, ao ápice de seu movimento ascendente. Não
obstante, a doutrina do Direito Processual não resolveu alguns
problemas que têm retardado sua marcha e ela não pode negli
genciar seu próprio progresso justamente quando as formas de
solução de conflitos do mundo atual dela muito esperam.
Este trabalho não pretende e não poderia pretender inven
12 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.186.
14
14. tariar todas as inovações que se prenunciam no Direito Proces
sual Civil. Mas prétende deixar uma contribuição sobre a nova
concepção de processo como procedimento realizado em con
traditório entre as partes, que exige que se pensem novamente
alguns conceitos da moderna doutrina que já não se ajustam ao
novo quadro do Direito positivo contemporâneo: assim, a pró
pria concepção de procedimento, de relação jurídica processual,
da ação, da relação entre o direito material e o processo. Preten
de, também, a partir de uma nova concepção de processo, refle
tir novamente sobre os escopos que lhe são atribuídos.
A nova concepção de processo será trabalhada com base na
obra do ilustre Professor italiano ELIO FAZZALARI, que contém a
síntese de suas investigações sobre o tema. Não há a preocupa
ção de se citar passagens no original, a não ser quando a oportu
nidade do tratamento do tema o autorizar, porque, na obra de
FAZZALARI, toda reflexão é profunda, o que tira o sentido de se
relevarem os aspectos mais importantes que justificariam a trans
crição acadêmica. As constantes referências em notas de pé de
página suprirão as exigências de se indicar o pensamento do
autor citado e do controle de sua autenticidade. O método
escolhido se explica pela opção que se faz: entre a tentativa de se
demonstrar erudição e a tentativa de se conquistar a clareza, a
preferência é por essa última, em coerência com o que se enten
de ser a função social da ciência.
A reflexão sobre os escopos do processo tem inspiração na
obra do ilustre jurista brasileiro, Professor CÂNDIDO R. DINA-
MARCO, citado, inclusive, por FAZZALARI, em notas de pé de
página. Dele se vai divergir em vários tópicos, mas este é apenas
o sinal do reconhecimento da grande influência que seu pensa
mento tem exercido na formação dos processualistas brasileiros
da nova geração.
Não se negará, em nenhum m om ento, o direito fundamen
tal da doutrina de fazer suas opções filosóficas. O que se coloca
em questão são os problemas da construção jurídica e de sua
fundamentação.
15
15. As possíveis elucidações sobre as ainda presentes insuficiên
cias ou contradições do quadro conceituai utilizado pela doutri
na do Direito Processual Civil para estabelecer as relações entre
procedim ento e processo, que incidem inevitavelmente em dife
rentes m odos de se conceber o processo, e que se refletem no
conceito de ação, e que se projetam na finalidade do processo,
poderão se constituir em contribuição tanto para a Ciência do
Direito Processual, com o para o tratam ento de questões de or
dem prática, tão necessária nesse m om ento em que a nova or
dem constitucional brasileira abriu extenso cam po de pos
sibilidades de alterações no Direito Processual, aqui referido
com o sistem a normativo.
16
16. CAPÍTULO I
CIÊNCIA E TÉCNICA
1.1. A CIÊNCIA
A divisão do campo do conhecimento, no curso da História,
gerou uma multiplicidade de ciências e, mais ainda, de termino
logias para designá-las de acordo com variados critérios referi
dos, principalmente, à relação entre teoria e prática e ao objeto
da investigação científica.
Não se pretende, aqui, recuperar o elenco das diversas
propostas de divisão e de designação das ciências, mas explicitar
algumas noções cuja obscuridade tem prejudicado a compreen
são do tema que se põe como objeto deste estudo.
E, ainda, comum encontrar-se a divisão das ciências entre
teóricas e práticas, ou especulativas e práticas.
A qualificação, imprópria e ainda amplamente utilizada na
doutrina jurídica,13 que contrapõe às ciências teóricas as práti
cas, tem a única utilidade de ressaltar que as primeiras se voltam
13 Sobre as manifestações da doutrina envolvendo a distinção entre ciências
especulativas e práticas, cf. MIGUEL REALE - Filosofia do Direito, 8a ed. rev.
e atualizada - São Paulo: Saraiva, 1978, 1° v., pp. 264 e s.
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para a produção do conhecimento e as segundas para a aplicação
dos resultados adquiridos por aquelas.
Tal terminologia certamente é reminiscência da divisão aris-
totélica entre a ciência e arte (ars, tradução latina do grego
teXvn, de que derivou a palavra "técnica").
Sem necessidade de se aprofundar, aqui, as transforma
ções por que as duas concepções passaram na experiência
histórica, registre-se apenas que ARISTÓTELES restringe o
campo da ciência ao conhecimento teórico, cujo objeto é con
cebido como necessário, e projeta fora dessa esfera do neces
sário o que, não sendo necessário, é, entretanto, possível.
Subdividindo o possível, quanto à ação e à produção, reserva a
expressão arte à ação possível que tem como objeto a produ
ção. A arte é definida como o hábito dirigido pela razão de se
produzir alguirík coisa.14
Hoje, a antiga denominação, de que se tem ainda resquí
cios, se substitui, mais adequadamente, por ciências teóricas e
ciências aplicadas, admitindo-se que a ciência aplicada é apenas
a ciência, em sua constituição intrinsecamente teórica, voltada
para resultados determinados.
Não se duvida mais de que qualquer ciência é sempre teóri
ca, embora a atividade humana -encontre procedimentos para a
aplicação prática das aquisições do conhecimento.
Toda ciência, seja natural, social, cultural, divisões que se
fazem pelo critério do objeto da investigação, pode ser entendi
da como um conjunto de conhecimentos fundamentados, ou
como uma atividade criadora de conhecimento. De uma ou de
outra forma, independentemente de qual seja seu objeto, toda
ciência se quer como uma competência explicativa de uma deter
minada realidade, seja ela natural ou cultural.
Não é demais insistir na dupla possibilidade de emprego do
14 Cf. ARISTÓTELES - Metafísica, L.l, in Obras, trad. de Francisco de P.
Samaranch, Madrid: Aguilar, 1977.
18
18. BIBLIOTECA
PUCMINAS/BETIM
termo ciência, pois a falta dessa discriminação tem gerado muitas
disputas inúteis, no campo do Direito.15
Em uma das cinco acepções registradas por LAIANDE —
quatro delas referidas a "saber", a "direção de conduta", a "habili
dade técnica", e a "termo usado para oposição a letras" — o
termo ciência corresponde a "um conjunto de conhecimentos e
de pesquisas que têm um grau suficiente de unidade, de genera
lidade, e susceptíveis de levar os homens que a ele se consagram
a conclusões concordantes que não resultam de convenções
arbitrárias ou de gostos e interesses individuais que lhes sejam
comuns, mas de relações objetivas que se descobrem gradual
mente e que possam ser confirmadas por métodos de verificação
definidos".16
A definição de LALANDE compreende a ciência tanto como
conjunto de conhecimento, tanto como pesquisa. Encerra, tam
bém, a idéia de que ciência é descoberta gradual e de que seus
resultados são sujeitos àverificabilidade.
HUISMAN e VERGEZ, com base em LAIANDE , afirmam que
"a ciência pode ser entendida como descoberta progressiva das
relações objetivas que existem no real" (...) "um esforço para
conhecer, para explicar o que é".17
Percebe-se, no exame das duas propostas, que o termo
ciência refere-se ou ao conhecimento obtido, ou à atividade
desenvolvida para se obtê-lo, sendo empregado ou como produ
15 Até hoje se discute, por exemplo, se o Direito é uma ciência, ou uma arte.
Mesmo considerando-se a multiplicidade de sentidos que o termo Direito
comporta, essa questão se esvazia, porque obviamente o Direito enquanto
objeto de um conhecimento fundamentado é só objeto desse co
nhecimento. Nem por outra razão se fala em Ciência do Direito.
16 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulaire Tecbnique et CHtique de la
Philosophie, Paris: Presses IJniversitaires de France, 1972 - verbete: Science.
17 Cf. DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ - Curso Moderno de Filosofia -
Introdução à Filosofia da Ciência, trad. de Lélia de Almeida Gonzalez, 8a
ed., Rio de Janeiro: Freitas Bastos, 1983, p. 42.
19
19. to de uma atividade ou como a própria atividade capaz de produ
zi-lo.
Quando se diz que a ciência é uma procura, uma investiga
ção, uma tentativa de compreensão, está implícito, nessa afirma
ção, que o intelecto se debruça sobre a realidade procurando
entendê-la, pois o conhecimento não é um objeto natural que
possa ser simplesmente encontrado em algum lugar, mas é,
antes, construído sobre uma determinada realidade. A atividade
científica, enquanto atividade que gera conhecimento, se faz por
muitas formas, mas uma atividade científica racionalizada, capaz
de compreender o seu próprio operar, exige alguma meta (em
bora o resultado obtido sempre possa dela escapar e causar
surpresas), alguns métodos que já foram testados, ou mesmo o
teste de novos métodos, e o manejo do que usualmente se denomi
na instrumental teórico, ou seja, alguns conceitos, definições, no
ções, teorias que auxiliem a investigação. Nenhuma realidade pene
tra na mente humana senão pela representação que se tenha dela,
por isso a atividade científica necessita encontrar um meio de
relação do intelecto com o real que se faz objeto da investigação, e
o encontra nesse instrumental, que também sofre retificações, na
medida em que novos conhecimentos são produzidos.
A ciência, considerada já não como atividade, mas como con
junto de conhecimentos, é, naturalmente, a unificação das desco
bertas fragmentadas, dos resultados parciais da investigação.
Assim, as duas acepções do termo, como atividade que
produz conhecimento e como conjunto de conhecimentos fun
damentados, se complementam.
Convém, ainda, explicitar o que se entende por criação de
conhecimento, e, para tanto, vale a pena relembrar duas defini
ções propostas, em síntese magistral, por BRONOWSK1
"Toda ciência é a procura da unidade em seme
lhanças ocultas".18
18 JACOB BRONOWSKI - Ciência e Valores Humanos, Trad. de Alceu Letal,
20
20. "A Ciência é um processo de criação de novos
conceitos que unificam a nossa compreensão do
mundo".19
A atividade essencial da ciência é essa procura das seme
lhanças não aparentes, da unificação, no entendimento, dò que
se encontra fragmentado e disperso em algum plano da realida
de. É no momento dessa unificação do real no conceito, que é
classicamente definido como uma unidade mental pela qual se
representa alguma parcela da realidade no intelecto, que a Ciên
cia exerce a sua atividade criadora.
É oportuno ressaltar, também, a qualificação da atividade
científica, e do próprio conhecimento que dela resulta, como um
processo. A antiga concepção de ciência como saber definitiva
mente adquirido em caráter irretocável e imutável não se confir
ma historicamente e não é mais sustentável, e a pretensão à
universalidade necessária, requerida pela imobilidade da perfei
ção, tão explicável no pensamento grego, que acompanhou as
antigas concepções de ciência, foi substituída pela objetividade
que admite, e requer, processos de correções sobre todo co
nhecimento que não perdeu sua vitalidade pela mumificação
seguida da decomposição.
Os processos e métodos utilizados na atividade científica
são múltiplos, e são, também, em seu aperfeiçoamento, submeti
dos à racionalização da ciência. Recuperar suas manifestações e
suas avaliações, no curso da História, seria penetrar em toda a
história do conhecimento, e, em conseqüência, pode-se dizer, na
história da humanidade.20
Belo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universidade de São Paulo,
1979, p. 19.
19 Cf. JACOB BRONOWSKI - O Senso Comum da Ciência, Trad. de Neil
Ribeiro da Silva, BeLo Horizonte: Ed. Itatiaia; São Paulo: Ed. da Universida
de de São Paulo, 1977, p. 114.
20 A tentativa da ciência de se tornar um processo racional, não uni saber
infundado, mas inteligível e transparente para si mesmo, tem origens
*
21
21. 1.2. A TÉCNICA
A palavra técnica é objeto de dois verbetes em LALANDE,
que fez a crítica de seu significado tomando-a como adjetivo e
como substantivo. A técnica, como substantivo, que nomeia um
objeto, é por ele definida com dois sentidos:
"Conjunto de procedimentos bem definidos
e transmissíveis destinados a produzir certos re
sultados julgados úteis"
imemoriais, mas, no Ocidente, até onde a investigação alcançou, inicia-se
na Grécia, com os chamados Pré-Socráticos. JOHANNES HESSEN atribui a
forima mais antiga do racionalismo a Platão, que distinguiu o verdadeiro
saber "pelas nojas da necessidade lógica e da validade universal". O verda
deiro saber não poderia ser fornecido por um mundo em constantes
mutações, submetido à lei do movimento, à geração e corrupção, e por
isso não poderia provir dos sentidos. Estes podem fornecer uma simples
opinião, uma "doxa". Além do mundo sensível há um mundo supra-sensí-
vel, o mundo das idéias que são modeLos dos conceitos e da realidade
empírica. A ele, Platão julga possível ascender, como mostra pela teoria da
anamnésis, pela qual o conhecimento é uma reminiscência, uma rememo-
ração da alma que contemplou as idéias em uma experiência extraterrena.
Cf. JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento. Trad. do Dr. Antônio
Correia, 8- ed., Coimbra: Armênio Amado-Editora, 1987, pp.63/64. Entre
tanto, antes de Platão houve Parmênides, Heráclito, e tantos outros, cuja
"doxografia" foi parcialmente recuperada para nossos tempos. JEAN BEAU-
FRET, em ensaio sobre o Poema de Parmênides, na parte da Palavras da
Verdade, contra a "Opinião, defensora do partido dos múltiplos", escreve:
"...a doxa, que não é nem conhecimento nem ignorância, voga em alguma
parte entre... o ser puro e o não-ser absoluto, só se ligando à inconstância
daquilo que está incessantemente em devir. A ciência (epistéme), ao con
trário, é acesso direto ao que existe de propriamente sendo naquilo que
é..., ou seja, àquilo que sempre se comporta invariavelmente em relação a
si mesmo e a que Platão denomina eidos". Cf. in Os Pré-Socrátieos -
Fragmentos, Doxografia e Comentários, Seleção de textos e supervisão do
Prof. José Cavalcante de Souza, 2~ ed., São Paulo: Abril Cultural, 1978,
pp. 163/169. Em relação à alétheia, a doxa era opinião sem fundamento,
pura ilusão dos sentidos, recolhida da aparência ao contrário da epistéme,
a ciência, o conhecimento de que se podia apresentar as causas. A investi
gação do método adequado para a busca de Alétheia, iniciada, no Ociden
te, com o nôus de Parmênides, prossegue até os nossos dias.
22. "Em sentido especial (...) a palavra técnica se diz
particularmente dos métodos organizados que se
fundam sobre um conhecimento científico cor
respondente"21.
Anoção geral da técnica é de conjunto de meios adequados
para a consecução dos resultados desejados, de procedimentos
idôneos para a realização de finalidades.
É bastante difundida a concepção de que a adequação dos
meios aos fins, a idoneidade do procedimento, que estão na
própria concepção de técnica, supõem o conhecimento da eficá
cia dos meios adotados para a realização do fim, como se lê em
EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ, que sustenta que toda técnica ge
nuína deve encontrar-se iluminada pelas luzes da Ciência, e, por
isso, toda técnica é de índole científica, pois uma técnica não
científica não é técnica, porque se torna incapaz de cumprir o
seu destino.22
Essa noção deve ser tomada com extrema cautela, porque,
depois dos recentes estudos da Filosofia da ciência e dos não tão
recentes estudos de MAXWEBER sobre os processos de raciona
lidade no Ocidente, já há base suficiente para se afirmar que há
técnicas produzidas antes da ciência, e que os procedimentos
mágicos primitivos eram dotados de admirável eficácia para a
consecução de finalidades desejadas.
Dizer que toda técnica é "iluminada pelas luzes da ciência"
significa ou negar-se a existência dessas técnicas primitivas, ou
ampliar-se tanto o conceito de ciência para que dentro dele se
inclua, também, o saber desorganizado e ainda irracional, no
sentido de que não pode ainda pensar seus próprios fundamen
21 Cf. ANDRÉ LALANDE - Vocabulciire cit., verbete: Technique (subst.).
22 Cf. EDUARDO GARCÍA MÁYNEZ - Introduccion al Estúdio del Derecho -
Vigesimuquinta Edicion Revisada, México: EditorialPorrua S.A 1975 p
317.
23
23. tos. E nenhuma das duas hipóteses, pelo que já disse, poderia ser
aceita.
É por isso que os estudos críticos do termo técnica hoje
incluem técnicas racionais e técnicas irracionais, como já está em
ABBAGNANO.23
Se é verdade que a técnica nunca é concebida como um
fazer desordenado, que eventual e acidentalmente alcança resul
tados, não é menos verdade que a ciência se quer um conjunto
de conhecimentos, organizado e ordenado.
1.3. RELAÇÕESENTRE CIÊNCIAE TÉCNICA
A concepção de que a ciência revela as relações entre os
fenômenos e a técnica utiliza esse conhecimento para a obtenção
de um resultado desejado — tão divulgada nos estudos da Ciên
cia do Direito, formulada na linha adotada por GARCÍA MAYNEZ
— supõe a concepção de que a técnica corresponde a um saber
aplicado, como se necessariamente ela viesse a atingir o nível de
eficácia equivalente ao nível de racionalidade do saber que lhe é
teoricamente correlato.
Não obstante, há trabalhos bem sistematizados demons
trando que as relações entre a ciência e a técnica nem sempre
podem ser captadas, na história de seu desenvolvimento.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ24 fornecem exemplos
23 Cf. NICOLAABBAGNANO - Dicionário de Filosofia, trad. coordenada e rev.
por Alfredo Bosi, com a colaboração de Maurício Cunio ...et al., 2_ ed., São
Paulo: Mestre Jou, 1982, v. verbete Técnica.
24 Das velhas formas antropomórficas de explicação do mundo, em que os
procedimentos mágicos deram origem à formação de técnicas eficazes para
a atuação do homem na busca de resultados úteis, cujas bases científicas
seriam descobertas posteriormente, lembram as antigas embarcações, o
arco e a flecha, os utensílios, a alavanca, que permitiu o deslocamento de
enormes blocos de pedras de que resultaram arquiteturas admiráveis. Cf.
DENIS HUISMAN e ANDRÉ VERGEZ, op. cit., p.42 e s. Observe-se que,
prosseguindo na história, até os nossos dias, os exemplos poderiam se
24
24. bastante significativos para dem onstrar um postulado que é qua
se intuitivo, quando se reflete sobre os processos culturais e os
resultados deles derivados: o de que "historicamente a prática
precede a teoria, a técnica precede à ciência".
O processo de racionalização da técnica iria levá-la a pos
sibilitar que a ciência se tornasse, realmente, um "saber aplica
do". Ao alcançar essa etapa, a ciência engendra novas técnicas e a
técnica, racionalizada, perm ite tanto o crescim ento do co
nhecim ento científico com o a m elhor aplicação da ciência, con
form e finalidades previamente concebidas.
A partir desse ponto de confluência, é possível se fazer uma
ciência da técnica e é também possível se obter tanto o aprim ora
m ento de antigas com o a produção de novas técnicas pela aplica
ção do conhecim ento fornecido pela ciência.
Entretanto, deve ser ressaltado que essa possibilidade é
apenas o que se disse: um a possibilidade.
MAX WEBER,25 a quem se deve uma sistematizada investiga
ção dos processos da crescente racionalização da civilização oci
dental, dem onstrou com o essa tendência não é suficiente para
afastar as formas irracionais em vários de seus domínios, dentre
eles o do D ireito.26
multiplicar em dimensão insuspeitada. »
25 MAX WEBER - Bssais sur la Théorie de la Science, Paris: Plon, 1965. A
Sociologia do Direito (Recbtssoziologie) que constituiu um capítulo da
Wirtscbaft u n d Gesellschaft, publicada postumamente, foi publicada sepa
radamente há alguns anos na França, com alguns acréscimos que Weber
havia confiado a um de seus aLunos, como relata JULIEN FREUND, a quem
se deve um excelente estudo feito sobre a racionalização do Direito em
Weber, recolhida do conjunto de sua obra, referida no número seguinte
deste rodapé.
26 A racionalização, segundo WEBER, liga-se ao desenvolvimento cumulativo
das civilizações, que cresce na medida em que elas manejam e dominam a
técnica ou certos procedimentos técnicos. No Direito, o processo de racio
nalização é muito antigo, e WEBER o remete mesmo ao código de Hamura-
bi. Entretanto, as formas irracionais, que são aquelas formas primitivas e
arcaicas de Direito, em que o pensamento jurídico não se distingue do rito
religioso, das prescrições morais e políticas, convivem freqüentemente
25
25. o
3
3
3
3
O
3
3
3
3
3
3
O
3
D
O
O
O
Q
O
3
3
O
3
3
O
3
3
3
3
3
3
3
3
De qualquer forma, para racionalizar a técnica, investigando
os meios mais hábeis, mais idôneos e mais adequados para a
consecução de resultados sobre bases objetivas, que podem ser
explicadas e entendidas, ou seja, sobre bases inteligíveis, a ciên
cia, em qualquer campo do conhecimento, necessitou, primeira
mente, se construir a si mesma, como competência explicativa da
realidade que se fez objeto de sua investigação.
com as formas racionais. As variadas formas de irracionalismo passam pelo
direito carismático, que apela a um profeta deixado à própria inspiração,
porque interpreta oráculos ou recebe revelações, do qual WEBER formula
o arquétipo da justiça do Kadi (Kadi-justiz), profética e carismática, que
não se vincula a normas preexistentes. Os exemplos fornecidos por
WEBER, sob esse arquétipo, são bem amplos, e podem ser lembrados a
justiça de Salomão, as Ordálias, os linchamentos e as atuações dos tribu
nais revolucionários. Tais formas irracionais subsistem nos sistemas os mais
racionais, e, para demonstrar a convivência da racionalidade com a ir
racionalidade, WEBER toma a distinção entre direito formal e material,
oferecendo quatro hipóteses e afirmando que um pode ser tão irracional
quanto o outro: 1. O direito material irracional que se funda sobre o
sentimento pessoal do juiz ou sobre o arbítrio do déspota. A justiça do.
Kadi é o exemplo típico. 2. O direito material racional, quando o direito ou
a sentença se baseiam em normas exteriores e anteriores (nâo importando
sua fonte: moral, política, religiosa ou ideológica). 3- O direito formal
irracional — quando o juiz formaliza a sentença, mas fundando-se sobre
uma revelação, isso é, o rito da produção da sentença deve-se â revelação
do juiz. 4. O direito formal racional, quando o julgamento é baseado em lei
preexistente, ou seja, em regras sistematizadas e conceitos abstratos elabo
rados juridicamente. Cf. JULIEN FREUND - La rationalisation du droit
selon Max Weber, in Formes de Racionalité en-Droit, Archives de Phílóso-
phie, Tome 23, Paris: Sirey, 1978, pp.67/92.
26
26. CAPÍTULO II
CIÊNCIA JURÍDICA E TÉCNICA JURÍDICA
2.1. RELAÇÃO ENTRE CLÊNCLAJURÍDICA E TÉCNICA
JURÍDICA
O Direito é criado, formulado, para ser aplicado, e entre a
- sua ciência e os procedimentos adequados para sua aplicação
1 deveria haver um indissociável liame, realimentado mutuamen
te, em razão de sua natureza, que o faz em permanente processo
de construção.
No entanto, as relações entre a ciência do direito positivo e
os procedimentos de sua aplicação verificaram-se no mesmo
passo que marcou a cadência do relacionamento entre a ciência
de qualquer campo do saber e a técnica que, de alguma forma,
s lhe correspondia.
Para investigar os procedimentos adequados, hábeis e idô
neos para a aplicação do Direito e lhes conferir racionalidade, a
Ciência Jurídica necessitou, primeiramente, construir-se a si
mesma.
u Os passos dessa construção foram muito férteis, pois entre
coerências e contradições, puseram em pauta as questões das
relações entre um direito ideal e um direito positivo, entre o '
27
27. direito natural e o direito estatal, e o que estava em jogo, na
verdade, eram os limites da intervenção social na liberdade indi
vidual, e, logo, a sua recíproca, que entra em cena, passada a fase
do individualismo: os limites da liberdade humana dentro de
uma sociedade politicamente organizada. Como resultado desse
processo, uma multiplicidade de temas e de perspectivas se abriu
para a investigação do fenômeno jurídico, ou seja, do direito
manifestado na experiência, do direito positivo, com existência
no tempo e no espaço. Do estudo da gênese das normas até o
estudo de sua aplicação há uma infinidade inesgotável de refle
xões, pois o que está envolvido, entre esses dois momentos, é a
própria existência da sociedade humana, as formas de sua orga
nização e de solução de seus conflitos.
2.2. OS CAMPOSDA INVESTIGAÇÃO DO DIREITO
O conhecimento jurídico se dividiu em vários campos, que
a doutrina ainda separa por critérios diferentes.27 mas nos qua
dros por ela apresentados percebe-se que o domínio de cada
saber é, geralmente, demarcado tanto pelo objeto como pelos
objetivos da investigação desenvolvida sobre o Direito. De forma
geral, pode-se dizer que a Filosofia do Direito, com suas divisões
27 Cf. MIGUEL REALE - op. cit., 2~ v. p. 609 e s.; NORBERTO BOBBIO - Teoria
delia Scienza Giurídica, Turim, 1950, p. 18 e s., GUSTAV RADBRUCH -
Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de Moncada, Coimbra: Armê
nio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p.185 e s.; ENRIQUE R. AFTALIÓN,
FERNANDO GARCÍA OLANO, JOSÉ VILANOVA - Introduccion al Derecho,
8a ed., Buenos Aires: La Ley, 1967, p.73 e s; LUIS RECASÉNS SICHES -
Tratado General de Filosofia D elDerecho, Quinta Edicion, México: Edito
rial Porrua, S.A., 1975, p.l60 e s. Sem pretender esgotar os quadros do
saber jurídico, apresentados na doutrina, registre-se que incluem, ainda,
outros domínios, como a Psicologia Jurídica, a Antropologia Jurídica, a
Lógica Jurídica, com destaque para os trabalhos de PERELMAN, a recente
tendência do "Politicismo Jurídico", Cf. ANTONIO HERNANDEZ GIL-Meto
dologia de la Ciência del Derecho, Madrid, 1971, v.I, pp. 337/352.
28
28. internas, se ocupou do Direito em sua natureza e em seus funda
mentos; aí, Sociologia Jurídica se preocupou com as relações
entre os fatos sociais e a normatividade; a Ciência do Direito
restringiu seu campo ao Direito que se positiviza, que se torna
manifesto na experiência, como fenômeno, o fenômeno jurídico
que se delimita pelo critério espácio-temporal. Os três domínios
não esgotam as possibilidades do estudo do Direito e, se essas
possibilidades se voltam também para o passado, pela História
do Direito, projetam-se, igualmente, para o futuro, com a preo
cupação em torno de uma Política Jurídica, já admitida por
RADBRUCH,28 e até mesmo de uma recente Informática Jurídica,
que já pretende se sistematizar como campo autônomo do co
nhecimento jurídico.29
O ponto de interesse desse tópico, no entanto, não é o de
fazer cortes epistemológicos no amplo espaço em que se realiza
a investigação jurídica, mas apenas o de correlacionar a Ciência
Jurídica e a Técnica Jurídica, superando algumas dificuldades
que se põem para o trato da técnica processual.
2.3. DOGMÁTICAJURÍDICA E
TEORIA GERAL DO DIREITO
A Ciência Jurídica, cujo objeto ficou bem definido como "o
fenômeno jurídico tal como ele se encontra historicamente reali
zado", "tal como se concretiza no espaço e no tempo",30 em
síntese, o direito positivo, a "ciência do sentido objetivo do
28 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v.II, p. 185.
29 Cf. PIERRE CATAIA- LHnformatique et la mcionalíté du Droit, in Archives
de Philosophie du Droit, Tome 23 - Formes de Racionalité en Droit, Paris:
Sirey, 1978, pp. 295/321.
30 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito. São Paulo: Saraiva,
1976, pp. 16/17.
29
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
3
a
3
3
3
3
3
3
3
29. direito positivo",31 também se subdividiu na Dogmática Jurídica
e na Teoria Geral do Direito, dirigida para o Direito positivo em
geral, sem fronteiras de sistemas, fundada por JOHN AUSTIN e
amplamente aceita como "um substitutivo" da Filosofia do Direi
to, no século passado, como mostra RADBRUCH32.
Enquanto a Dogmática Jurídica se volta para o estudo do
Direito positivo de um sistema jurídico determinado, tendo por
objeto de investigação "a conduta em função de modelos jurídi
cos consagrados no ordenamento jurídico em vigor"33, a Teoria
Geral do Direito — que, segundo as propostas originárias de
AUSTIN34, deveria extrair de uma ordem jurídica determinada
noções, conceitos e distinções fundamentais, para compará-los
com noções, conceitos e distinções fundamentais de outra ou
outras ordens jurídicas, estabelecendo, em um terceiro momen
to, os elementos comuns, as correlações lógicas entre elas, as
semelhanças existentes em sua estrutura, porque os conceitos
gerais comparecem com certa uniformidade em todos os siste
mas jurídicos que alcançaram análogo nível de maturidade —
desenvolveu-se como a ciência das noções elementares da ordem
31 Cf. GUSTAV RADBRUCH - Filosofia do Direito, Trad. do Prof. L. Cabral de
Moncada, Coimbra: Armênio Amado, Editor, Sucessor, 1961, v. II, p. 185.
32 GUSTAV RADBRUCH - op. cit., p. 189-
33 Cf. MIGUEL REALE - O Direito como Experiência, São Paulo: Saraiva, 1968,
pp.88191, p. 130.
34 Cf. JOHN AUSTIN -Lectures onJurispmdence, London: R. Campbell, 1885.
Sobre a influência do positivismo analítico na construção da Teoria do
Direito v. EDGAR DE GODOI DA MATA-MACHADO - Elementos de Teoria
Geral do Direito. Belo Horizonte: Editora Vega S.A., 1976, p.121 e s; W.
FRIEDMAN - Tbéotie Générale du Droit, Paris: Librairie Générale de Droit
et deJurisprudence-LGDL, 1965, p.211 e s.; EDGAR BODENHEIMER - Ciên
cia do Direito, Filosofia e Metodologia Jurídicas - Trad. de Enéas Marzano,
Rio de Janeiro: Forense, 1966; p. 109 e s.; ALBERT BRIMO - Les Grands
Courants de La Philosophie du Droit et de UÉtat, Paris: Ed. A Pedone, 3 a
ed., 1978, p. 276 es.
30
30. jurídica e dos princípios fundamentais que regem seu conjun
to.»
Entretanto, com a diferença de grau apontada, ambas, a
DogmáticaJurídica e a Teoria Geral do Direito, têm como objeto
de investigação o Direito positivo36 e, por isso, estão no quadro
da Ciência do Direito. Nem por outro motivo, quando justificou
o título de sua obra Teoria Pura do Direito, KELSEN definiu i
como uma Teoria do Direito positivo em geral, e não, de umu
ordem jurídica especial, uma Ciência do Direito positivo.37
J 2.4. A TÉCNICAJURÍDICA
c ■
JULIEN BONNECASE, fazendo o levantamento das doutri
nas jurídicas surgidas em França, de 1880 até o fim da segunda
década do século XX, considera que o estudo da ciência do
Direito Civil não apareceu senão pela via da técnica jurídica e
que a distinção entre ciência e técnica no Direito foi o signo da
grande revolução do pensamento jurídico.38
A revolução, de que fala BONNECASE, produziu resultados
realmente profícuos. Sob o título de Técnica Jurídica, a Ciência
do Direito anunciava que havia uma técnica de criação, uma
técnica de interpretação e uma técnica de aplicação do Direito, e
35 Cf. PIERRE PESCATORE -Introduction à la Science du Droit, Luxembourg:
Office des Imprimés de L ’État, 1960, p.73
36 Cf. HANS NAWIASKY - Teoria General del Derecho - Trad. p o r el Dr. Jose
Safra Valverde, Madrid: Ediciones Rialp, S.A.., 1962, pp. 19/27; PIERRE
PESCATORE -Introduction à la Science du Droit., Luxembourg: Office des
Imprimés de L'État, 1960, pp.74/75.
37 Cf. HANS KELSEN - Teoria Pura do Direito, trad. de João Baptista Machado,
Coimbra: Armênio Amado-Editor, Sucessor, 5~ ed., p. 17.
38 Cf. JULIEN BONNECASE - Science du Droit et Romantisme - Les Conflits
des conceptions juridiques en France de 1880 à 1’heure actuelle, Paris:
Librairie de Recueil Sirey, 1928, pp.268/269-
31
31. passava à investigação detalhada e exaustiva dos procedimentos
intelectuais da construção jurídica.39
A técnica jurídica, conforme a define CLAUDE DU PAS-
QUIER, é "o conjunto de procedimentos pelos quais o Direito
transforma em regras claras e práticas as diretivas da política
jurídica"40.
Mas, no estudo desses procedimentos, embora a Técnica
Jurídica, desenvolvida no âmago da Ciência do Direito, já
percebesse que há uma "técnica legislativa" e uma "técnica da
jurisprudência", seus estudos se concentram na formulação dos
conceitos, de categorias jurídicas, de institutos jurídicos, e de
ramos do Direito positivo.
É sobretudo da elaboração jurídico-científica que trata essa
técnica, que, como diz RADBRUCH, executa-se em três tempos:
interpretação, Construção e Sistematização, a que correspon
dem os conceitos juridicamente relevantes e os genuínos concei
tos jurídicos41.
Enquanto a Ciência do Direito construía seu instrumental
39 Essa é fundamentalmente a matéria da obra magistral de FRANÇOIS GÉNY,
que estuda os fundamentos do Direito, separa "o dado", o real, a matéria
que decorre da "natureza das coisas", do "construído", os procedimentos
da construção intelectual, matéria de trabalho dos juristas, que, pelo
método da libre recherhe scientifique, poderão encontrar soluções para os
problemas da,elaboração, buscando os critérios da integração, que serão
utilizados na aplicação do Direito. Cf. FRANÇOIS GÉNY -Science et Techni-
que en Droit Ptivé Positif 4 vol. Paris: Sirey, 1914-1924. É também à
técnica de elaboração teórica e lógica, compreendendo o estudo das fon
tes, a formulação de conceitos, as construções jurídicas, que se dedica JEAN
DABIN, na clássica obra La Technique de 1'élaboration du droit positif -
Bruxelles: Bruylant et Paris: Sirey, 1935.
40 CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., p. 163-
41 Cf. RADBRUCH - Op. cit., p.185 e s. No mesmo sentido CLAUDE DU
PASQUIER que distinguindo três momentos da construção jurídica: a siste
mática, a criadora e a construção na aplicação do direito, caracteriza esta,
citando BUCKHARDT, Methode und System como. "Construire, c'est alors
ram ener les élements camctéristiques du cas concret aux notions abstrai-
tes incluses dans la règle ou dans 1‘institution jutidique", op. cit., p .170.
32
32. teórico para trabalhar seu objeto, os procedimentos de criação
da lei e da aplicação do Direito ao caso concreto não constituí
ram preocupação fundamental do pensamento jurídico. Este
parava no limiar daquela investigação, quando, do estudo da
interpretação da lei, fazia o salto para pesquisar os problemas de
ordem ética ou axiológica da atividade do juiz e o grau de sua
independência em relação à lei. Entre esses momentos, ficava
sem explicação, ou, antes, explicado como une affaire desprati-
ciens, todo o procedimento que leva o Direito a incidir sobre
casos concretos ou a dar solução para os~conflitos sociais, sub
metidos à decisão do Poder.
Na expressão de PIERRE PESCATORE, tais procedimentos
constituíam o savoirfa ire daqueles que elaboram e praticam o
Direito, podendo assumir duas funções distintas: a de fazer leis
— a técnica legislativa e a de aplicar a lei, en d ’autres mots, la
pratiqu eju d iciaire et adm inistrative42.
Sua descrição dessa atividade é significativa para demons
trar a concepção generalizada quanto à aplicação do Direito ao
caso concreto, na época em que a técnica de construção jurídica
resplandescia:
"Considérée com m e pratique du droit, la techni-
que ju ridiqu e consiste à appliquer•le droit, à l ’exé-
cuter, à le mettre en oeuvre. C’est l ’habilitépratiqu e
du m agistrat, de l ’avocat, du notaire, dufonction-
naire... C espraticiens n ’on tpas la m êm e liberté que
ceux qu ifo n t Office de législateur et leur art se dis
tingue sensiblem ent de 1’art de la législation. Pour
lespraticiens, ils'agit avant tout de saisir la réalité
des fa its et des situations concrètes, de m anier les
règles de droit avec intelligence et d e fa ire em ploi
ju dicieu x du pouvoir discrétionnaire qui leur est
42 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit., p. 47.
33
QaQQCjQOQQQOQUQQOQQQQOQQOOaQQQQQQQUC
33. laissé. Leur art est la prudence juridique, la iuris
prudentia au sens etym ologique du terme"43.
E muito compreensível que, em decorrência dos resultados
do movimento da codificação, a Ciência do Direito tenha as
sumido sua tarefa de trabalhar sobre essa realidade jurídica,
sobre o fenômeno jurídico, o Direito posto, criado pelos órgãos
competentes, recriando-o no plano epistemológico, conferindo-
lhe unidade, sistematizando-o, elaborando conceitos, dedican
do-se à construção jurídica, e no trabalho de agrupar as normas,
elaborando categorias jurídicas, institutos jurídicos e organizan
do ramos do Direito positivo. E também compreensível que sob
o império do tecnicismo, ou seja, do domínio do rito e da forma,
o procedimento de aplicação não fosse mais do que une affaire
des praticiensf44.
A revolução de que falou BONNECASE alcançaria também o
Direito nesse aspecto, mas viria da Alemanha, onde já se prepara
va na renovação dos conceitos produzida pelo movimento pan-
dectista, e encontraria terreno fértil para seu desenvolvimento na
Itália. Passou, também, por sua fase de construção para transfor
mar esse campo de investigação em uma ciência autônoma com
seu referencial teórico próprio, que, hoje, já se quer uma Teoria
Geral do Processo45.
43 Cf. PIERRE PESCATORE, op. cit,., p. 48.
44 Tal concepção não foi superada, como demonstra, ilustrativamente, K.
STOYANOVITCH, fazendo a resenha do livro de ROBERT CHARVIN - "La
Justice en France, Mutations de l'appareilJudiciaire et Lutte de Classes",
avec la collaboration de GÉRARD QUIOT, Editions Sociales, Paris, 1976, e
justificando por que, de início, não tinha intenção de apresentá-lo: "Ceei
parce q u ’il traite du fonctionnem ent de l’appareiljudiciaire, qui est une
question tetre à teire et non pas de questions qui intéressent laphilosophie
du droit (justice, droit objectif, intérêt général, sujet de droit, responsabi-
lité...)" Cf. Comptes Rendues, in Archives de Philosophie du Droit, Tome 23
■Formes de Racionalité en Droit. Paris: Sirey, 1978, pp.43V433.
45 Cf. ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA., ADA PELLEGRINI GRINOVER
e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed. rev. e atual.
34
34. Em seu desenvolvimento e aperfeiçoamento, a técnica jurí
dica tem oferecido excelentes resultados, como conjunto de
meios idôneos para o trato do Direito.
O Direito, como sistema normativo, não é elaborado pelos
juristas, mas pelos órgãos que são legitimados pelo próprio
sistema para produzi-lo. O poder para elaborar a norma genérica
e abstrata destinada à observância geral, ou é difuso na coletivi
dade, quando o sistema jurídico acolhe o costume como forma
de produção normativa, ou é centralizado pelo Estado, que re
presenta a comunidade jurídica, a sociedade politicamente orga
nizada pelo Direito.
A Ciência do Direito tem desenvolvido e aprimorado suas
técnicas para apreender o fenômeno jurídico e realizar seu traba
lho de construção jurídica. As normas criadas pelo legislador são
recolhidas, sistematizadas, classificadas, conceitos são formula
dos, através da busca das semelhanças ocultas na diversidade,
unificando realidades jurídicas em um modelo genérico aplicá
vel a uma multiplicidade de casos, normas são agrupadas por um
critério lógico de conexão e coerência entre a matéria social
regida, sobre princípios comuns, que conferem unidade ao con
junto, em grau crescente de categorias jurídicas, institutos jurídi
cos e ramos do Direito; constroem-se teorias explicativas e críti
cas, que oferecem subsídios novamente ao trabalho do legisla
dor. A construção jurídica se desdobra em construção técnica e
em construção criadora46.
Toda essa atividade não poderia deixar de ser extremamen
te valiosa para o crescimento do conhecimento jurídico, para a
- São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 1991-
46 Çf. CLAUDE DU PASQUIER, op. cit., pp. 167/172. Especificamente sobre a
técnica de construção teórica de agrupamentos normativos, v. CARLOS
MOUCHET - RICARDO ZORRAQUIN BECU, Introduccion al Derecho, Oc-
tava Edicion, Buenos Aires: Editorial Penot, 1975, pp. 149/167, sobre a
elaboração do conceito, v. RAJFAEL BIELSA, Metodologia Jurídica, Santa Fé:
Librería y Editorial Castellví S.A, 1961, pp. 133/206, e RADBRUCH, op.
cit., p. 188 e s.
35
35. aplicação de seus resultados, pelos próprios juristas, e para a
oferta desses resultados, no plano da atividade da criação e da
aplicação do Direito47.
2.5. O AUXÍLIO DA LÓGICA
2.5.1. MITIFICAÇÃO E DESMITIFICAÇÃO
Algumas palavras sobre o auxílio da lógica, na Ciência, e,
conseqüentemente, na ciência do Direito Processual, serão úteis
para os temas discutidos neste trabalho. Essa utilidade é avalia
da, tanto em relação ao prisma pelo qual muitos dos temas são
visualizados, como para o aclaramento de algumas conclusões,
referentes não só a esta "técnica e teoria do processo" que agora
se escreve, mas, também, a algumas teses doutrinárias que des
pertaram polêmicas.
Foi corrente, no século passado (e neste século, ainda se
encontra esse argumento), a discussão em torno da afirmação de
que a aplicação do Direito pelo juiz resumia-se a um raciocínio
silogístico, em que a lei comparecia como premissa maior, o caso
concreto como premissa menor e a sentença como conclusão48.
47 Sobre o indiscutível valor dessas construções cf. JOSÉ CARLOS BARBOSA
MOREIRA: "Na verdade, o processo é e sempre será, de certo ponto de
vista, um mecanismo técnico, que só em termos técnicos pode ser explica
do.^..) Uma técnica esmerada constitui, em regra, penhor de segurança na
condução de qualquer pesquisa científica, e não há supor que o direito
processual faça aqui exceção." "Os Temas Fundamentais do Direito Brasi
leiro nos Anos 80: Direito Processual Civil". In Temas de Direito Proces
sual: quarta série - São Pauto: Saraiva, 1989, p. 12. Sobre a dignidade da
dimensão prática do Direito Processual, discorre JOSÉ OLYMPIO DE CAS
TRO FILHO, lembrando Carnelutti, que se orgulhava de se incluir entre os
práticos, e Redenti, que punha como questão de primeira ordem a neces
sidade de que o Direito se fizesse concreto: Maprim a di tutto bisogna chc
il códice si apprenda e si applichi. Questo è che urge, Cf. JOSÉ OLYMPIO
DE CASTRO FILHO - Prática Forense, vol. I, 4~ ed., 2~ tiragem, Rio de
Janeiro: Forense, 1989, pp.7118.
48 A discussão é gerada pela Escola da Exegese, não porque se houvesse
36
36. É compreensível que, na falta de uma construção científica
mais aprimorada, em uma época em que o Direito "da aplicação"
estava se "reconstruindo", pela elaboração de seus conceitos, o
pensamento jurídico, necessitando de um ponto de apoio para
explicar o procedimento da aplicação, houvesse recorrido ao
silogismo.
As reações ao silogismo da aplicação vieram, e vieram muito
fortes, mas não atacaram o ponto que merecia o pronunciamento
mais incisivo. Contornaram o problema com argumentos sobre a
complexidade dos casos concretos, a liberdade da interpretação do
juiz, a opção implícita na aplicação pela escolha da norma aplicável,
a questão axiológica que permeia todo o direito49.
O "silogismo da aplicação" poderia ter tido seu golpe de
misericórdia com o auxílio da própria lógica. Não porque fosse
verdadeiro ou falso, correto ou incorreto, provável ou imprová
vel, conveniente ou inconveniente, mas simplesmente porque
era logicamente inviável. Não havia, na verdade, sequer silogis
mo, no modelo proposto, porque não havia como se estabelecer
as premissas para a inferência da conclusão, já que não seria
dedicado à construção do silogismo da aplicação, mas pelos princípios que
defendia, sobretudo em sua primeira fase, sobre a interpretação. Tais
princípios foram bem expostos por CH. PERELMAN epi Théories relatives
au raisonnementjudiciaire, surtoüt en droit continental, depuis le Code
Napoléon jusqu'à nos jours, primeira parte de sua obra Méthode du
Droit-Logique Jurídique-Nouve/le Rhêtoríque, Paris: Dalloz, 1979,
pp. 19/96. O modelo do silogismo da aplicação é exposto por CLAUDE DU
PASQUIER, que, no capítulo destinado à L’application dn Droit, estuda os
mecanismos da aplicação: Le syllogisme juridique; Syllogisme à faits juri-
diques multiples; Syllogismes successifs. A operação de subsunção do fato
à norma é descrita segundo aqueles esquemas, porque "Appliquer une
règle, c ’est transposer sur un caspartiadier et concret la décision incluse
dans la règle abstraite" ..."Cette application comporte donc unpassage de
l'abstrait au concret, du general auparticulier, bref une déduction, Son
instrument est le syllogisme" in op. cit., p. 126.
49 Grandes contribuições para a axiologia jurídica surgiram em torno desses
argumentos, como as de COÍNG, em Gnmdzüge der Rechtsphilosophie,
sobre as "situações-tipos".
37
37. üüOUÜÜUUOOGOÜüOOODODOÜüOOOüÜUUJUüUt
possível se estabelecer previamente a distribuição dos termos
dos juízos. Nos três juízos, "a lei é a premissa maior", "o caso
concreto é a premissa menor" e "a sentença é a conclusão", não
há meio de se identificar onde está o termo maior e o termo
menor. E essa identificação seria de absoluta necessidade para o
modelo de raciocínio que se postulava, pois o termo maior é o
termo predicado da conclusão, e a premissa maior deve contê-lo;,
o teimo menor é o termo sujeito da conclusão, e a premissa
menor deve contê-lo. Não há como se identificar, igualmente, o
termo médio, que não aparece na conclusão, mas comparece nas
premissas. Apenas depois de proferida a sentença, seria possível
encontrar as proposições que lhe teriam servido de base, mas
não antes. Pelo modelo do silogismo, poder-se-ia pensar em
estranhos arranjos e estranhas seriam as conclusões deles inferi
das. «
É claro que não se nega que o "argumento", no sentido
estrito da lógica, como cadeias de proposições, estruturadas em
premissas e conclusões, possa auxiliar os fundamentos da deci
são judicial, mas não se pode (por pura impossibilidade lógica)
conceber a existência de um silogismo naquele modelo proposto
para se inferir a sentença.
De qualquer forma, dentre as conseqüências provocadas
pelo "silogismo da aplicação" houve uma especialmente evidente
em diversos campos do Direito: um certo, ou acentuado, ranço
dirigido contra a lógica. Era natural, e não só a doutrina do
Direito olhou a lógica de viés. Se se meditar, por exemplo, na
lógica de Port-Royal, que "ensina" condutas e que compôs a
formação cultural de tantos nomes ilustres por longo tempo, ou
na função que lhe foi atribuída de "arte de pensar", ela deveria
aparecer como algo aterrador.
A lógica passou, no Direito, por um crivo ideológico, para
ser julgada e condenada a ser excluída, ou quando nada, ser
relegada a permanecer à margem de uma ciência qiie se propôs
a trabalhar com as coisas humanas, sob uma perspectiva huma
38
38. na, e não sob aquela fria argumentação gerada nos "gabinetes" da
razão.
Mas algo muda em nosso tempo. Começa-se a descobrir que
a lógica pode ser outra coisa que não comandos para o pensa
mento e para a conduta ou prisão para uma razão vital, de que
fala ORTEGAY GASSET50, ou camisa-de-força para o Direito.
Fazer o inventário do que mudou exigiria um incomensurá
vel esforço. Mas podem ser apontados alguns fatos e conquistas,
que ajudaram a desmitificar o mito sobre as leis do pensamento,
da verdade e da conduta, e tornar a lógica uma aliada na verifica
ção e na correção dos temas de qualquer argumento da ciência.
2.5.2. UMINSTRUMENTO PARA UMRACIOCÍNIO
Alógica passou pelas vicissitudes históricas que toda ciência
experimenta em seu processo da construção. "De Aristóteles a
Bertrand Russell"51, sobre ela se formaram grandes sistemas que
foram tateando caminhos, em um processo muito humano, que
é a busca do conhecimento.
ROBERT BLANCHÉ, em "História da Lógica de Aristóteles a
Bertrand Russell", faz o levantamento desses sistemas utilizando
o critério temporal como metodologia da exposição, para pene
trar nas especificidades de cada um, começando pelos precurso
res da lógica, dos chamados pré-socráticos à dialética de Platão,
e prosseguindo pela lógica aristotélica, pela lógica dos estóicos,
pela lógica medieval, pela chamada "lógica de Port-Royal"52, pela
lógica clássica, iniciada por LEIBNIZ, pela lógica moderna, cuja
construção começa na segunda metade do século XIX, pela logís
50 JOSÉ ORTEGA Y GASSET - Origem e Epílogo da Filosofia, trad. de Luís
Washington Vita, Rio de Janeiro: Livro Ibero-Americano, 1963.
51 Esse é parte do título da obra de ROBERT BLANCHÉ que será referida a
seguir.
52 Denominação devida ao tratado publicado anonimamente em 1662 La
Logique ou ia rt de Penser, mas da autoria de dois religiosos, ANTOINE
ARNAUD e PIERRE NICOLE, da Abadia de Port-Royal.
39
39. tica, da primeira metade do século XX, que pretendia compreen
der, com essa denominação, a lógica algorítmica, a lógica simbó
lica e a lógica matemática, e pela lógica contemporânea, que,
"agora que a nova lógica se substituiu suficientemente à antiga
para que a confusão já não seja possível"53, volta à antiga deno
minação de lógica formal, ou simplesmente lógica, englobando
as lógicas paralelas que renovam e alargam antigos sistemas, até
a paralógica, que se propõe como uma linguagem da lógica.
A lógica, referida nos próximos tópicos, é a lógica formal
contemporânea, mas máis do que o nome, é conveniente esclare
cer alguns dos pontos por ela estabelecidos.
1. Ela não é, nem uma "arte de pensar", nem uma ciência
normativa54. Não tem qualquer pretensão de estabelecer ou de
recolher as "leis do pensamento"55. O pensamento, como proces
so mental, a psicologia já o revelou, e utilizou tal achado para
construir o método da livre associação, pode passar por movi
mentos bastante complexos, nem sempre sujeitos à descrição,
que não se submetem a leis. Ela não é, também, uma "ciência do
raciocínio", porque este pode se formar por intrincadas vias, não
alcançadas por critérios objetivos de descrição.
2. A lógica preocupa-se apenas com o raciocínio, que é uma
espécie de pensamento em que se inferem ou se derivam conclu
sões a partir de premissas, entretanto, não para estabelecer leis
para seu desenvolvimento, mas tão-somente para verificar a cor
reção do resultado já completado56. Propõe-se, assim, "a estabe
lecer e enunciar explicitamente as leis da dedução, apresentan
53 Cf. ROBERT BLANCHÉ - História da Lógica de Aristóteles a Bertrand Rus
sell, Trad. de Antônio J. Pinto Ribeiro-Lisboa: Edições 70, s/d, p. 309.
54 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.
55 Sobre esse sistema de lógica que se dá como objeto presidir "as leis formais
do pensamento" cf. RONALDO CALDEIRA XAVIER - Português no Direito -
Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1991, 8- ed., p. 297 e s.
56 Cf. IRVING M. COPI - Introdução à Lógica, Trad. de Álvaro Cabral. 2a ed. -
São Paulo: Mestre Jou, 1978, p. 21.
40
40. do-as elas próprias sob a forma de uma teoria dedutiva axiomati-
zada57."
3- Alógica não pretende estabelecer critérios de verdade ou
falsidade sobre o conteúdo das proposições, enquanto simples
enunciados ou juízos. Essas podem ser verdadeiras ou falsas,
mas são afirmações ou negações que podem ser formuladas
sobre qualquer tema, sobre qualquer campo do conhecimento, e
apenas à ciência do respectivo domínio compete o controle de
sua verdade ou falsidade. A lógica não pretende ser onisciente,
também o problema do enunciado vazio, pelo critério da existên
cia, é deixado à ciência. Já não se repudia a tautologia, porque o
que é evidente em um campo do conhecimento póde não o ser
em outro, e isso vale também para um só campo, quanto a temas
diferentes.
4. Os critérios de verdade e falsidade interessam à lógica
apenas na estrutura formal das proposições, por isso pode-se
falar não em "enunciados falsos", mas em "falsos enunciados", em
sua estrutura, e quando estes são tratados como proposições da
dedução. Asverdades da lógica são formais, porque referidas não
ao conteúdo das proposições mas a elas na estrutura do argu
mento, como um sistema proposicional de premissas e conclu
sões. Por isso, no argumento dedutivo, o valor de verdade e
falsidade é substituído pelos predicados de "validade e invalida
de", e pela forma de relações entre proposições que são premis
sas e proposições que são conclusões.
5. O processo de inferência já não incide sobre a relação dos
termos de um juízo, nos moldes da antiga lógica formal58, mas se
57 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p. 348.
58 As relações entre o sujeito e o predicado que lhe era atribuído, no enuncia
do, foram construídas sobre vários critérios, dentre eles o da quantidade,
em que se quantificava o sujeito para se formular a relação de inclusão. As
dificuldades causadas pela célebre trilogia resultante da quantidade, em
KANT, em que aos juízos universais, particulares e singulares cor
respondiam as categorias da unidade, pluralidade e totalidade, (Cf. Crítica
da Razão Pura, Trad. de Manuela Pinto dos Santos e Alexandre Fradique
41. UOOUUOUÜOOGOOUOOOUOÜÜÜUOÜOOÜÜÜUJÜUÍ
desenvolve em uma relação que se dá entre classes de objetos,
no argumento59.
6. O argumento dedutivo tem como ponto de partida uma
premissa (uma proposição que será usada como base para se
inferir uma conclusão). Essa premissa é um juízo ou uma propo
sição, em uma posição de relação, e deve conter os elementos do
juízo: S (sujeito) - cópula - P - (predicado).
7. Uma premissa é uma proposição não isolada, mas rela-
Morujão, Lisboa: Ed. da Fundação Calouste Gulbenkian, 1985,
pp. 104/111), são percebidas em seus intérpretes que oscilam em relacionar
às suas correspondentes categorias os juízos universais e os individuais, ou
singulares. Assim, GEORGES PASCAL: "singular, para Kant, é o juízo que
refere o predicado à totalidade do sujeito, e tão-somente a ele" e explica:
"Pensar é estabelecer, na multiplicidade dada pela intuição, certas relações
que façam dessa multiplicidade uma unidade" "a unidade que a análise
descobre nos juízos supõe uma unidade sintética introduzida pelo entendi
mento nas intuições" - Cf. O Pensamento de Kant, trad. de Raimundo Vier,
3" ed. Petrópolis: Vozes, 1990, pp.64/65, e GARCIA MORENTE, relacionan
do-o à categoria da totalidade: "teremos que os juízos individuais que
afirmam de uma coisa singular, seja o que for, contém no seu seio a
unidade; os juízos particulares que afirmam de várias coisas algo, contém
em seu seio a pluralidade; os juízos universais contêm em seu seio a
totalidade" Cf. Fundamentos de Filosofia I - Lições Preliminares, Trad. de
Guilhermo da Cruz Coronado, São Paulo, Editora Mestre Jou, 1970, p.240;
no mesmo sentido JOHANNES HESSEN - Teoria do Conhecimento, Trad.
do Dr. Antônio Correia, Coimbra - Portugal-Arménio Amado-Editora, 1987,
pp. 169/170. Não é difícil de se entender a oscilação, porque tudo que é
individual e único é absoluto em si, e o que se pode afirmar ou negar do
sum m um genus? Esses juízos e categorias, que se encontram em ARISTÓ
TELES, com algumas diferenças de KANT, em razão da forma de se conce
ber o conhecimento, em uma perspectiva ontológica ou gnoseológica,
geraram dentre as múltiplas discussões aquelas sobre os universais, na
Idade Média, e as posturas diferentes entre o realismo de Paris e o nomina-
lismo de Oxford iriam se refletir sobre o Direito.
59 "A estrutura interna da proposição é analisada não já em termos de sujeito
e atributo unidos por uma cópula, mas em termos de função e argumento.
E aí que se encontra a lógica das classes, e a teoria das funções proposicio-
nais de um argumento e a lógica das relações, correspondendo à teoria das
funções proposicionais de dois ou vários argumentos". Cf. ROBERT BLAN-
CHÉ, op. cit. pp.310/311.
42
42. ciónada. Nenhuma proposição tomada isoladamente é uma
premissa. Também a conclusão é uma proposição, mas não isola
da, porque nenhum juízo tomado isoladamente é uma conclu
são60.
8. O argumento é um grupo de proposições dentro de uma
estrutura, em que as proposições são premissas ou conclusões.
O argumento dedutivo pretende a certeza de uma conclusão, e o
argumento indutivo pretende oferecer apenas uma pro
babilidade da afirmação da conclusão61.
9. Adedução se faz entre classes, que é apenas uma coleção
de objetos que possuem algumas características específicas co
muns. O que é necessário na identificação dos objetos para
integrá-los a uma classe é que compartilhem de características,
qualidades, determinações específicas. Assim como o problema
da proposição vazia é deixado à ciência de cada campo do co
nhecimento, a lei da implicação, que rege a relação de inclusão
entre classes, não se detém mais sobre o problema das classes
vazias62, mas incide apenas sobre o modelo formal da inclusão.
<50 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., p. 23-
61 Cf. IRVING M. COPI, op. cit., pp.23/39-
62 ROBERT BLANCHÉ mostra como a aflição de FREGE, que é considerado o
criador da lógica moderna, e de BERTRAND RUSSELL, seu grande divulga
dor, girava, sem solução, em torno do problema das classes vazias: "De
falsas premissas não se pode, de uma maneira geral, concluir nada. Um
puro pensamento, não reconhecido como verdadeiro, não pode ser uma
premissa. É só quando eu reconheci como verdadeiro um pensamento que
ele pode ser para mim uma premissa; puras hipóteses não podem ser
empregadas como premissas". (FREGE, Carta a Jourdain, 1910, em BO-
CHENSKI, F.L. p. 336, citado por BLANCHÉ) Cf. op. cit., pp.307/308. "A
lógica e a matemática forçam-nos a admitir que há um mundo dos univer
sais e das verdades que não incidem diretamente sobre tal ou tal existência
particular". (RUSSELL, Vimportante philosophique de la logique, Rev. de
métaph., 1911, pp.289/290, citado por BLANCHÉ) in op. cit., p.309. E
sublinha o quanto este era um dogmatismo lógico, que supõe um mundo
inteligível, lugar das idéias e das verdades eternas, verdades estranhas ao
mesmo tempo ao mundo sensível fora de nós e, em nós, à consciência que
dele podemos tomar, mas que se impõem a nós quando as apreendemos.
Existência supõe localização espácio-temporal, e como tanto o "dogmatis-
43. 10. Uma classe pode ser incluída numa classe mais vasta,
segundo determinadas características de que compartilham, mas
pode também pertencer a uma outra classe, de elementos dife
rentes, quando uma característica é tomada como totalidade
dessa outra classe, e a classe incluída possui tal característica na
sua individualidade própria. Mas deve haver uma hierarquia d^s
classes para a validade da inclusão. A classe a que pertence o
indivíduo deve ser de tipo imediatamente superior ao seu63.
A preocupação com o levantamento desses dez tópicos,
escolhidos dentre as conquistas que a lógica alcançou, em seu
desenvolvimento, teve em mira os temas que serão discutidos
adiante e obedeceu apenas a um propósito: o de "explicitar o
implícito", em razão da multiplicidade dos sistemas de lógica que
convivem no tempo presente. Como diz BLANCHÉ, "a lógica tem
a obrigação de esclarecer o implícito"64. Houve uma época em
que se dizia que "a clareza é a cortesia do gênio", brocardo que
legitimava as obscuridades dos gênios. Os gênios podem ser
como quiserem, obscuros ou claros, assim como o próprio pen
samento que, em sua liberdade de expressão, escolhe livremente
a forma de se exprimir. Mas a clareza nunca prejudica a ciência,
e o esforço para se obtê-la sempre pode resultar em algum
benefício para seu desenvolvimento.
mo lógico" de Frege, quanto o "realismo platonizante" de Russell consti
tuíam posições que seriam superadas no ulterior desenvolvimento da
lógica. Cf. op. cit., pp.309/310.
63 Cf. ROBERT BLANCHÉ, op. cit., p.329 - A inclusão de uma classe em várias
classes, pelas características compartilhadas entre objetos individualmente
diferentes, é exemplificada por BLANCHÉ com a classe das dúzias, que
permite incluir a classe dos meses do ano, a classe dos apóstolos, e uma
variedade de outras classes.
64 Cf. ROBERT BLANCHÉ op. cit., p.287, p.304, e, no mesmo sentido, "a lógica
tem a obrigação de enunciar explicitamente tudo que fica implícito no
pensamento", p.256.
44
44. CAPÍTULO III
CIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL
E TÉCNICA PROCESSUAL
3.1. ACIÊNCIA DO DIREITO PROCESSUAL E SEU OBJETO
Nos sistemas jurídicos que alcançaram certo grau de racio
nalidade, a aplicação do Direito é referida a critérios objetiva
mente definidos e delimitados pelas normas integrantes do pró
prio sistema.
O mais alto grau de racionalidade atingido pelos ordena
mentos jurídicos contemporâneos, que se seguiu à conquista das
garantias constitucionais, importa na superação do critério de
aplicação da justiça do tipo salomônico, inspirada apenas na
sabedoria, no equilíbrio e nas qualidades individuais do julga
dor, ou na sensibilidade extremada do juiz, simbolizada pelo
"Fenômeno Magnaud”65. Esse critério é substituído por uma
65 Le phénom ène Magnaud é expressão de GÉNY, quando, na segunda edi
ção do Méthode d'Interprétation et Sources en Droit Privé Positif, analisou
os possíveis efeitos dos métodos empregados pelo Juiz Magnaud, que
presidiu, de 1889 a 1904, o Tribunal de primeira instância de Château-
Ttiierry, cujas decisões se celebrizaram (e o celebrizaram como le bonjuge
45. üüUUUOuGOõGüOOOOüOOOOüüOOOOuüOUJüOi
, técnica de aplicação do direito que se vincula a elementos não-
subjetivos, a uma estrutura normativa que possibilita aos mem-
bros da sociedade, que vão a Juízo, contarem com a mesma
Isegurança, no processo, quer estejam perante um juiz dotado de
inteligência, cultura é sensibilidade invulgares, quer estejam
|diante de um juiz que não tenha sido agraciado com os mesmos
predicados.
A aplicação do Direito pelo Poder Judiciário, que, em fins
do século passado, despertou na teoria do Direito um intenso
interesse em torno da figura do juiz, de sua missão e de seus
deveres perante a lei injusta, passou, também, por sua fase de
racionalização, no plano do Direito positivo e da doutrina que
sobre ele se desenvolvia.
Aciência do Direito Processual teve, como qualquer ciência,
sua fase de construção, que lhe permitiu desenvolver suas técnir-
cas para investigar o seu objeto, constituído pelas normas que
organizam e disciplinam a própria técnica da aplicação do Direi
to pelo Estado, através dos órgãos da jurisdição.
Sobre essa realidade normativa, dada pelas leis que organi
zam e disciplinam a jurisdição e o instrumento de sua manifesta
ção, o Direito Processual — enquanto ciência, na acepção de
atividade que produz conhecimento — trabalha, elabora seus
conceitos, unifica pontos dissociados e fragmentados, descobre
semelhanças não aparentes em seu campo de investigação, de
senvolve sua tarefa de racionalização, de construção, reúne, no
mesmo conjunto, normas, pelos critérios específicos da conexão
da matéria, criando, assim, categorias e institutos jurídicos, e
organiza, a partir desses dados, os campos de seu desdobra
Magnaud) e foram recolhidas e editadas em dois volumes: LesJugem ents
du Président Magnaud (1900) e Les Nouveaux Jugem ents du Président
M agnaud (1904). Como diz PERELMAN, o Presidente Magnaud queria ser
o bom juiz favorável aos miseráveis e severo com os privilegiados. Não se
preocupava com a lei, nem com a jurisprudência, nem com a doutrina, e se
comportava como se fosse a encarnação do direito. Cf. CH. PERELMAN
LogiqueJuridiqtte -NouvelleRhétorique, Paris: Dalloz, 1979, pp.71/72.
46
46. mento que podem, sob o aspecto didático-metodológico, consti
tuir-se em novas disciplinas autônomas.
Na reflexão sobre a Ciência e a Técnica do Processo, convém
relembrai- com EDUARDOJ. COUTURE, que "a ciência do processo
não é só a ciência das petições, das provas, das apelações, das
execuções, das formas e dos prazos. Seria difícil construir uma
ciência de conhecimento do real, com validade universal, servindo-
se, apenas, desses elementos. Antes, porém, de chegar a eles, a
ciência do processo necessita assentar uma série de proposições de
conteúdo real e legitimidade universal, independentemente de
tempo e de espaço, sem as quais o objeto da ciência — o processo
— não pode ser concebido, nem chegar a ser realizado"66.
3.2.A NECESSIDADEDA DISTINÇÃO ENTRE
A CIÊNCIA E SEU OBJETO
Como a expressão "direito processual" é utilizada para de
signar mais de um objeto, sendo empregada para denotar tanto
uma ciência, ou seja, uma atividade de conhecimento ou um
conhecimento organizado, quanto para designar o próprio com
plexo normativo que constitui o seu objeto, surgem alguns pro
blemas no seu uso.
O Direito Processual, no sentido de ciência, enquanto con
junto de conhecimentos, organizado como disciplina, no senti
do didático-metodológico, que se insere entre outras disciplinas,
classificadas no campo do Direito Público, não "governa a ativi
dade jurisdicional", e não "cria órgãos jurisdicionais", não "cria"
ou "regula o exercício dos remédios jurídicos que tornam efetivo
todo o ordenamento jurídico"67, porque a ciência, considerada
66 Cf. EDUARDO J. COUTURE - Interpretação das Leis Processuais, Trad. da
Dra. Gilda Maciel Corrêa Meyer Russomano, São Paulo: Max Limonad,
1956, p. 157.
67 A discordância se manifesta aqui em relação aos conceitos expostos na
valiosa obra de ANTÔNIO CARLOS DE ARAÚJO CINTRA, ADA PELLEGRINI
47
47. com o atividade de conhecim ento, ou considerada com o conjun
to organizado de conhecim entos, não tem essa função.
Considerado com o com plexo de norm as, objeto do co
nhecim ento da ciência que dele se ocupa, o Direito Processual
tem a função criadora que toda norm a possui, no sentido de
conferir significado jurídico a determinadas situações produzi
das por fatos e atos que recebem a valoração normativa.
3.3. A NORMA PROCESSUAL
As norm as jurídicas são classificadas com base em diversos
critérios, que permitem sejam recolhidas e sistematizadas, den
tre outros, os referentes a sua form a de produção, a seu âm bito
de validade, a seu grau de obrigatoriedade, à garantia de sua
exigibilidade, à m atéria por ela regulamentada, ao objeto de sua
disciplina, a sua posição na hierarquia do sistema normativo.
Tom ando o objeto de sua regulam entação com o ponto de
referência, a doutrina desdobra os critérios de classificação pela
pluralidade da matéria disciplinada. Nesse sentido fala em nor
mas de direito material, ou substancial, e em norm as de Direito
Processual. Relacionando as duas categorias, com base em crité
rios ditos de com plem entação, denom ina as norm as de direito
m aterial com o norm as substantivas, norm as primárias, norm as
de prim eiro grau, e as norm as processuais norm as secundárias,
norm as de segundo grau, norm as instrumentais.
É interessante verificar que as teorias, em bora utilizando a
m esm a denom inação, nem sem pre falam a mesma linguagem
sobre essa classificação. Alguns autores invertem a posição das
norm as, dentro do quadro definido pelo critério, e denom inam
norm as de primeiro grau, norm as primárias, as norm as proces
GRINOVER e CÂNDIDO R. DINAMARCO - Teoria Geral do Processo, 8a ed.
rev. e atual. - São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 1991, p- 48.
48
48. suais, e reservam a qualificação de normas secundárias, de se
gundo grau, às normas materiais68.
E, ainda, oportuno ressaltar que as duas categorias de nor
mas são plenas de substância, de conteúdo, de matéria.
Essas constatações são suficientes para que se dê razão a
FAZZALARI quando afirma que a qualificação das normas em
normas de primeiro grau e de segundo grau é meramente con
vencional69.
Ambas disciplinam condutas, inserem-se no mesmo ordena
mento jurídico e se complementam mutuamente. ‘
A distinção entre elas se mantém pelo conteúdo que com
portam, e não pela referibilidade a qualquer hierarquia, pois
enquanto as normas materiais se destinam a valorar a conduta,
qualificando-a como lícita e como ilícita, tendo como matéria ás
68 Nessa posição encontra-se LÉON DUGUIT, que distingue as regras estabe
lecidas pelo grupo social em normativas e construtivas ou técnicas. As
primeiras são imperativos que impõem uma abstenção ou uma ação, cons-
tituindo-se como condição da manutenção da vida em sociedade. Delas,
conforme expõe, tem consciência cada indivíduo que, por mais primitivo
que seja, sabe que, se não se conformar a elas, o grupo reagirá contra ele.
O grupo pode estabelecer regras para assegurar diretamente ou indireta
mente a execução da norma. Normas construtivas ou técnicas são aquelas
estabelecidas para assegurar na medida do possível o respeito e a aplicação
das regras normativas. As normas construtivas ou técnicas organizam, fixam
competências, criam as vias para a aplicação de sanções jurídicas, fixam
condições sob as quais os detentores da força podem intervir, determinam
o poder e o alcance das decisões. A regra construtiva é en somme le règle
organique de la contmínte e por ela se define a própria existência do
Estado: il n'y a d'Etat que s ’ily a monopole de la contrainte, et il y a État
des que ce monopole existe. Cf. LÉON DUGUIT - Traité de Droit Constitu-
tionnel, Paris: Ancienne Librairie Fontemoing & Cie Éditeurs, 1927, v.I,
pp. 106/108. HANS NAWIASKI entende que as normas de direito material
são apenas seminormas, normas parciais, que só em conjunto com as
normas processuais e executivas se convertem em normas jurídicas com
pletas. Cf. HANS NAWIASKI - Teoria General del Derecho, traduccion de la
segunda edicion en lengua a/emana por el Dr. Jose Safra Valverde, Ma
drid: Ediciones Ria/p S.A, 1962, pp.35/38.
69 Cf. ELIO FA22ALARI - Istituzioni di Diritto Processuale, quinta edizione,
Padova: CEDAM - Casa Editrice Dott. Antonio Milano, 1989, pp.91/96.
49. UüuUUOU^L/vuuUUuuuuuOUUUüOOOuüJüüüUÍ
situações jurídicas de gue decorrem direitos e deveres, as nor
mas processuais disciplinam a jurisdição: o exercício da função
jurisdicional e õ ínstr.umenFõrpeIõ^~quãI_eía se manifesta, o
processo.
V/'
/
3.4. AJURISDIÇÃO
O Estado exerce a função jurisdicional, sobre o mesmo
fundamento que o legitima a exercer, no quadro de uma ordem
jurídica instituída, as funções legislativa e administrativa.
As ordens jurídicas contemporâneas proclamam que todo
poder emana do povo e em seu nome é exercido, que a sobera
nia pertence ao povo ou à nação. O Estado, enquanto repre
sentante da áociedade politicamente organizada pelo Direito,
assume o poder em nome da nação, legisla, estatuindo deveres,
garantindo direitos, ordenando a vida social, administra, gerindo
os negócios públicos e exerce a função jurisdicional, pela qual
reage contra o ilícito e promove a tutela de direitos.
É preciso, entretanto, ressaltar que, nas ordens jurídicas
soberanas, ou seja, no Estado de Direito, o poder legitimamente
constituído se exerce nos limites da lei, e a função jurisdicional,
que traz implícito o poder uno e indivisível do Estado, que fala
pela nação, se exerce em conformidade com as normas que
disciplinam a jurisdição.
"Toda jurisdição, exercida em qualquer esfera, provém do
Estado" — diz NELSON SALDANHA — pelo que "o próprio pro
blema dos pressupostos processuais, vistos sob certo ângulo,
nos levaria a esse problema: o processo existe, com seus elemen
tos necessários, pelo fato de se darem sob a égide do Estado (ou
dentro do ordenamento jurídico demarcado pelo Estado) as
situações e os conflitos que pedem que o processo exista"70.
70 Cf. NELSON SALDANHA - Estado de Direito, Liberdades e Garantias. São
Pauló: Sugestões Literárias, 1980, p. 66.
50
50. O antigo conceito de Estado foi referido à junção de duas
noções.- status, no sentido original de situação, condição, e res
popu li-res pú blica, a coisa pública, que se sintetizaram no
Status-res p ú b lica, em que a situação de organização política
da sociedade se corporifica no Estado71. As doutrinas contra-
tualistas, dos séculos XVII e XVIII, com HOBBES, LOCKE e
ROUSSEAU, contrapuseram o estado de "natureza" ao estado
"social" ou "político", o direito natural ao direito positivo, civil,
adquirido — expressões utilizadas para designar o direito exis
tente no estado "social" ou "político" — na tentativa de estabe
lecer um fundamento racional para o poder. Embora divergin
do sobre o caráter social do estado pré-político, negado por
HOBBES, com violência a manifesta e latente do hom o lupus
hom ini, e afirmado por LOCKE e ROUSSEAU, sobre o caráter
cordial do ser humano, o seu ponto de convergência se deu na
construção teórica do "pacto social". Tais doutrinas são
expressões de uma época em que dominava o voluntarismo, e
a necessidade de se buscar um fundamento de legitimidade
para o poder, sem referi-lo a um direito "divino", que permitis
se de alguma forma limitar, teoricamente, seu exercício pelo
Direito, foi trabalhada sob as concepções disponíveis na épo
ca. Na época contemporânea, surgem várias teorias sobre o
Estado, e a tese da cisão entre Estado e sociedade, cuja formu
lação mais expressiva é devida a MARX — o Estado sendo
concebido como instrumento de opressão da classe dominan
te —, tem recebido várias análises da Ciência Política e da
Sociologia Jurídica. Uma delas tem se desenvolvido sobre o
conceito de racionalidade do Estado contemporâneo, baseada
na legitimação pelo procedimento em detrimento da comple
xidade social, o que caracterizaria a crise resultante da contra
posição entre a superlegalidade política e a legalidade consti
71 Essas expressões históricas são levantadas por ENRICO REDENTI, em Di
ritto Processuale Civile, 1 - Nozione e Regole Genemli, Bologna: Giuffrè
Editore, 1980, pp.3/4.
51
51. tucional72. O dimensionamento da "crise", sob a concepção da
"democracia" como espaço da liberdade que não anula mas per
mite a manifestação de conflitos, tem se expandido na reflexão
jurídica73, e é sob esse enfoque que a idéia do contraditório se
desenvolveu como elemento fundamental do conceito de
processo.
Os três enfoques mencionados, referidos a momentos his
tóricos distintos, foram escolhidos para demonstrar que a ques
tão da legitimidade do poder pode ser contemplada sob prismas
diferentes. Entretanto, quaisquer que possam ser as teorias de
senvolvidas sobre o Estado, dificilmente será possível concebê-lo
sem a função jurisdicional, ainda que se mudem as formulações
sobre os modelos instrumentais de sua atuação. E a função
jurisdicional, no Estado contemporâneo, não é apenas a expres
são de um poder, mas é atividade dirigida e disciplinada pela
norma jurídica.
No que tem de específico, a função jurisdicional substitui a
autodefesa, eliminando o recurso da autotutela, da vingança
privada, da represália. Do primitivo rito da religião doméstica,
do culto dos deuses lares, quando a represália era uma das
formas de obrigação para com os Manes, pela vingança de san
gue realizada pelo membro do clã ofendido contra qualquer
representante do clã de onde partira a ofensa, vingança neces
sária para o repouso da alma da vítima74, às mais antigas leis que
72 Cf. GUSTAVO GOZZI - Estado Contemporâneo, in Dicionário de Política -
NORBERTO BOBBIO, NICOLA MATTEUCCI e GIANFRANCO PASQUINO,
trad. de Carmen C. Varrialle, Gaetano Lo Mônaco, João Ferreira, Luis
Gerreiro Pinto Cascais e Renzo Dini, Brasília: Editora Universidade de
Brasília, 2a ed., 1986, pp.401/409.
73 Cf. JOSÉ EDUARDO FARIA - Sociologia Jurídica: Crise do direito e praxis
política, Rio de Janeiro: Ed. Forense, 1984, pp.56/58.
74 Cf. FUSTEL DE COULANGHS - A Cidade Antiga, Trad. de Jonas Camargo
Leite e Eduardo Fonseca, São Paulo: Heraus, 1975, pp.17132. Sobre as
primitivas sanções transcendentes à sociedade, derivadas do princípio da
retribuição, cf. KELSEN - Teoria Pura do Direito, cit., pp.53-59-
52
52. hoje são conhecidas, as da Cidade-Reino deEshnunna, tombado
sob o exército de H am m u rabf3, o Estado foi se organizando
juridicamente, e avocando, progressivamente, a repressão dos
atos repudiados pelo grupo social. Dentre as flutuações históri
cas da racionalidade e da irracionalidade, de que fala WEBER, o
Estado organizou sua função jurisdicional dirigida a dar respos
tas à sociedade sobre as condutas valoradas negatiyamente, que
seriam qualificadas de ilícitos, e, em conseqüência, assumiu a
tutela dos direitos da sociedade. "Direitos da sociedade" é
expressão intencionalmente escolhida, para que nela se introdu
zam os direitos individuais e coletivos, em suas várias clas
sificações: sociais, culturais, econômicos e políticos, cujo reco
nhecimento e ampliação se observa como uma tendência comum
nas sociedades contemporâneas.
Baseando-se na mesma concepção de RUDOLF VON JHE-
RING, a quem reconhece o título de le plus grandjurisconsulte
de VAllemagne m oderne, segundo a qual o Direito exa composto
de dois elementos: a regra (Norm) e a realização da regra pela
força (Zwang), DUGUIT conclui que, se o Estado tem o monopó
lio da força sobre seu território, não são regras de direito senão
aquelas que têm, atrás delas, a força estatal76.
O caráter de universalidade da sanção jurídica, frente a
outros tipos de sanção que estão presentes enj outras formas
normativas, é lapidarmente posto em evidência por MIGUEL
REALE, quando, discorrendo sobre a pluralidade de ordens nor
mativas, e de ordens jurídicas grupalistas. extra ou intra-estatais,
demonstra que se pode escapar às sanções grupais renunciando-
75 Cf. - As Leis de Eshntmna, Introdução, texto cuneiforme em transcrição,
tradução e comentário de EMANUEL BOUZON, Petrópolis: Vozes, 1981.
76 DUGUIT entende que o momento da organização do Estado coincide com
aquele em que as regras construtivas, ou técnicas, que estabelecem a via
para a repressão da conduta rejeitada pelo grupo se correlacionam com as
regras normativas. Cf. Traité de Droit Constitutionnel troisième édition,
Tome I -La Règle de Droit -Le Problème de L'État, Paris: Ancienne Libraire
Fontemoing& Cie, Éditeurs, 1927, p.101.
53. se aos grupos, mas não se pode renunciar ao Estado, porque
mesmo se se abandona o território nacional, junto ao retirante
segue uma série dê normas de seu sistema jurídico77.
Podem ser aparados os excessos das doutrinas que conce
bem o Direito tão-só com a garantia da sanção, pois mesmo ao se
investigar apenas o sistema jurídico positivo, sem o recurso a
outros critérios axiológicos78, que não sejam os dele decor
rentes, constata-se que uma pluralidade de preceitos (em evidên
cia comparecem os constitucionais), ainda que não assegurados
pelas sanções de normas do sistema, atuam como limite à ação
dos indivíduos e, sobretudo, como limite à atuação do Poder. O
sentido lógico de "princípio" — o que está posto como funda
mento e limite, para se evitar a regressão do raciocínio ao infinito
—, é perfeitamente aplicável ao Direito, quando se trata de
"princípios jurídicos". Os preceitos constitucionais, que se apre
sentam como princípios jurídicos, balizam o sistema normativo,
impedem sua projeção, através de normas que com ele possam
ser incompatíveis, em direção contrária aos fundamentos do
sistema, e limitam a atuação do poder, pois no Estado fundado
sobre o Direito, o poder se exerce nos "limites" determinados
pela lei. Os princípios constitucionais, mesmo quando tidos co
mo não-auto-aplicáveis, já possuem eficácia intrínseca porque,
obstando a criação de normas jurídicas infraconstitucionais que
os contrariem, não permitem possam as leis se projetar além do
sistema jurídico, em direção contrária a ele.
Pode-se confirmar, ainda, a cada instante, a observância do
Direito sem a manifestação da sanção, pois não se pode negar
77 Cf. MIGUEL REALE - Lições Preliminares de Direito, São Paulo, Saraiva,
1976, pp.76/78.
78 Não se nega que as doutrinas axiológicas têm sido extremamente preciosas
para provocar o "re-pensar" do papel da coação no Direito. Nesse sentido,
v. EDGAR DE GODÓI DA MATA-MACHADO - Direito e Coerção, Belo
Horizonte, 1956, que sustenta a tese de que apenas ao Estado Totalitário
pode-se atribuir o monopólio do "direito" como força, porque a lei pode
ter sua vis coativa, mas não é, em sua essência, a própria força.