2. Institution de la Religion Chrestienne – As Institutas ou Instituição da Religião Cristã
Da edição original francesa de 1541 – Conforme publicação feita pela Société les Belles Letres,
Paris, 1936, com a colaboração da Société du Musée historique de la Réformation.
1ª edição em português 2002 – 3.000 exemplares
TRADUÇÃO e LEITURA DE PROVAS
Odayr Olivetti
REVISÃO e NOTAS DE ESTUDO E PESQUISA
Hermisten Maia Pereira da Costa
FORMATAÇÃO
Rissato
CAPA
Publicação autorizada pelo Conselho Editorial:
Cláudio Marra (Presidente), Alex Barbosa Vieira, Aproniano Wilson de Macedo, Fernando
Hamilton Costa, Mauro Meister, Ricardo Agreste e Sebastião Bueno Olinto
Superintendente: Haveraldo Ferreira Vargas
Editor: Cláudio A. Batista Marra
3. CAPÍTULO VII
[1539] Expus anteriormenteb
, na medida em que me foi possível, um resumo da
doutrina cristã sobre o conhecimento de Deus e de nós mesmos, pela qual obte-
mos a salvação. Agora temos necessidade de acrescentar um artigoc
que é um
bom recurso para ajudar-nos a estabelecer a veracidade daquela doutrina que
previamente ensinamos. É que todos os homens que desde o princípio do mundo
Deus chamou para a companhia do Seu povo chegaram a alcançar tal graça medi-
ante essa doutrina e se uniram a Deus pelos seus laços. Bem certo está que os
a. Este capítulo de 1539 não tem equivalente em 1536.
No Sumário (Sommaire) de Farel (cap. XV, Sobre a Escritura Sagrada), lê-se: “O que designou e
simbolizou as figuras e os mandamentos cerimoniais da lei encobertamente e em sombra, Jesus Cristo
ensinou claramente, como também os Seus apóstolos”; mas este capítulo não tem mais que quatro páginas.
Na Instrução de 1537, Calvino explicou resumidamente “que a lei é um degrau para se chegar a Cristo”
(Opera selecta, I, 389).
Comentando Hebreus: “Quanto mais elevada é a dignidade de Cristo da dignidade dos anjos, tanto mais
reverência se deve prestar ao evangelho do que à lei. É a pessoa de seu Autor que enobrece a doutrina. Se a
alguém parece absurdo que ambas as doutrinas, a lei e o evangelho, provêm de Deus, e que uma deve ser
preferível à outra, como se a majestade de Deus fosse apoucada ao ser a lei relegada a segundo plano, a
resposta é simples, a saber: Deus deve ser sempre ouvido com a mesma atenção, toda vez que fala; sempre
que se nos manifesta com mais plenitude, tanto mais reverência e mais desejo de obedecer à sua revelação
devem crescer proporcionalmente. Não é que sucede de Deus deixar de ser o que é em si mesmo, mas é
porque sua grandeza nem sempre se manifesta na proporção.”95
b. Acima, capítulos I, II e VI.
c. vice appendicis.
95
João Calvino, Exposição de Hebreus, São Paulo, Paracletos, 1997, (Hb 2.1), p. 52.
4. 4 As Institutas – Edição Especial
testemunhos que juntamos, tanto da Lei como dos Profetas, para mostrar o que
dizíamos, mostram suficientemente que jamais o povo de Deus teve outra regra
de santidadea
e de religião; entretanto, como os doutoresb
freqüentemente fazem
longos debates sobre a diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos, discus-
sões que poderiam gerar algum escrúpulo, ou seja, alguma inquietação de consci-
ência, em pessoas simples, pareceu-me bem fazer um tratado especial para discu-
tir melhor este assunto. Ademais, isso é muito útil e necessário por causa da
importunação feita por alguns anabatistasc
, que consideram o povo de Israel como
uma manada de porcosd
, visto que pensam que o Senhor só o quis engordar na
terra, como que numa manjedoura, sem nenhuma esperança da imortalidade
celestialc
. Por isso, a fim de tirar todos os fiéis desse erro pestilente, e igualmente
livrar as pessoas simples de todas as dificuldades introduzidas em sua mente
quando se faz menção de alguma diversidade entre oAntigo e o Novo Testamen-
tos, consideremos resumidamente o que tem de semelhante ou de diferente a
aliança que o Senhor fez com o povo de Israel antes do adventof
de Cristo, e a que
Ele fez conosco, depois que se manifestou em carne.
Ora, ambos os aspectos podem ser resolvidos com uma palavra: É que a
aliança feita com os pais antigos, em sua substância e em sua verdade é tão seme-
lhante à nossa que se pode dizer que ambas são somente uma; só existe diferença
na ordem da dispensação de cada uma delas. Mas, visto que com tal brevidade ao
falar deste assunto ninguém poderia entendê-lo bem, é necessário dar-lhe seqüência
mais ampla, se é que desejamos ter algum proveito. Ao explicar a sua semelhan-
ça, ou melhor, a sua unidade, seria supérfluo tratar novamente de todas as exten-
sas partes que já definimos. Restrinjamo-nos aqui a três artigos
Três artigos sobre a unidade existente entre o
Antigo e o Novo Testamentos
Primeiro, o Senhor não propôs aos judeus uma felicidade ou opulência terrena
como uma meta à qual eles devessem aspirar, mas os adotou com vistas à espe-
a. pietatis.
b. scriptores.
c. Calvino, em 1538, em Estrasburgo, pôde conhecer melhor as doutrinas anabatistas, como, por exemplo, as
de Th. Münzer (que ele chama Monetarius). No colóquio ou conferência de Poissy (1561), P. Vermigli tinha
exposto o mesmo argumento: “Anabaptistæ vetus testamentum pertinere ad Christianos infitiantur” (Opera
Calv., XVIII, 769).
d. Essa questão das relações entre o Antigo e o Novo Testamento, que ganha atualidade em nossos dias pela
presença de certos movimentos anti-semitas, ocupa a ardorosa atenção de Calvino, não somente por seu
desejo de demonstrar a unidade do plano redentor de Deus através do desdobramento da história, mas
também para refutar aquilo que se poderia chamar de “tolstoísmo” dos anabatistas do seu tempo, que consis-
tia em se apoiarem na monarquia israelita e na “administração terrena” do povo de Deus, e para estabelecer,
face aos mesmos sectários, a legitimidade do batismo de crianças, semelhante sob a Nova Aliança ao que era
a circuncisão sob a antiga.
e. Christi adventum (1541 tem, por erro: advencement).
f. administratio.
5. 5
rança da imortalidade, e lhes revelou e testificou essa adoção, tanto por visões
como em Sua Lei e em Seus Profetas.1
Segundo, a aliança pela qual eles foram
ligados a Deus não se fundou nos méritos deles, mas unicamente na misericórdia
de Deus. Terceiro, eles tinham e reconheciam Cristo como o seu Mediador, pelo
qual estavam unidos a Deus e foram feitos participantes das Suas promessas.
O segundo ponto nos deve ser notório, visto que provamos claramente, com
muitos testemunhos dos profetas, segundo os quais todo o bem que o Senhor fez
ou prometeu a Seu povo proveio de Sua pura bondade e clemência. O terceiro
também já demonstramos aqui e ali com facilidade; mesmo no primeiro tocamos
um pouco, de passagem. Mas, como este foi tratado mais ligeiramente que os
outros, e é o que tem sofrido mais debates e controvérsias, devemos explicá-lo
mais diligentemente. Mas precisamos deter-nos aí de tal maneira que, se faltar
alguma coisa à correta exposição dos outros pontos, os resolvamos sucintamente.
Decisiva palavra apostólica
Certamente o apóstolo nos tira toda a dúvida quanto aos três artigos, quando
declara que “o Senhor há muito tempo prometeu o Evangelho de Jesus Cristo,
por meio dos seus profetas em suas Sagradas Escrituras, o qual agora ele deu a
conhecer no tempo por ele determinado”.2
E também: que agora “se manifestou
a justiça de Deus testemunhada pela lei e pelos profetas”.3
Certo é que o Evan-
gelho não mantém o coração dos homens com uma alegria da vida presente,
mas o eleva à esperança da imortalidade; e não os liga aos prazeres terrenos,
mas, demonstrando a esperança que lhes está preparada no céu, transporta-os
às alturas. Porquanto a isso nos leva a definição que ele insere noutro lugar.
“Em quem também vós, depois que ouvistes a palavra da verdade”, diz ele, “o
evangelho da vossa salvação, tendo nele também crido, fostes selados com o
Santo Espírito da promessa; o qual é o penhor da nossa herança”, etc. E mais:
“Ouvimos da vossa fé em Cristo Jesus e do amor que tendes para com todos os
santos; por causa da esperança que vos está preservada nos céus, da qual antes
ouvistes pela palavra da verdade do evangelho”.4
E ainda: O Senhor “vos cha-
mou mediante o nosso evangelho, para alcançardes a glória de nosso Senhor
Jesus Cristo”.5
1
“Somente os crentes genuínos conhecem a diferença entre este estado transitório e a bem-aventurada eternidade,
para a qual foram criados; eles sabem qual deve ser a meta de sua vida. Ninguém, pois, pode regular sua vida
com uma mente equilibrada, senão aquele que, conhecendo o fim dela, isto é, a morte propriamente dita, é
levado a considerar o grande propósito da existência humana neste mundo, para que aspire o prêmio da voca-
ção celestial.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, São Paulo, Parakletos, 2002, Vol. 3, (Sl 90.12), p. 440].
2
Rm 1.1,2 [tradução direta].
3
Rm 3.21.
4
Ef 1.13,14; Cl 1.4,5.
5
2Ts 2.14.
6. 6 As Institutas – Edição Especial
Daí também procede que o Evangelho é chamado doutrina da salvação,
poder de Deus, para salvar todos os que crêema
, e reino dos céus.6
Ora, se a
doutrina do Evangelho é espiritual e nos dá acesso à vida incorruptível, não pen-
semos que aqueles aos quais o Evangelho foi prometido e pregado se divertem
como animais, deixando-se dominar por suas volúpias carnais, sem se preocupa-
rem com suas almasb
. E não é preciso que ninguém teça cavilações neste ponto,
supondo que as promessas que Deus na antigüidade fez do Evangelho, por meio
dos Seus profetas, foram destinadas ao povo do Novo Testamento. Porque o após-
tolo, pouco depois de haver inserido a declaração de que o Evangelho foi prome-
tido na Lei, acrescenta igualmente que “tudo o que a lei diz, aos que vivem na lei
o diz”.7
Reconheço que o seu propósito era outro. Mas ele não era tão esquecido
que, ao dizer que tudo o que a Lei ensina pertence aos judeus, não pensasse no
que tinha dito antes, quanto ao Evangelho prometido na Lei. O apóstolo demons-
tra claramente, pois, nessa passagemc
, que o Antigo Testamento tinha em vista
principalmente a vida futurad
, uma vez que ele afirma que as promessas do Evan-
gelho estão nele incluídas. Por igual razão segue-se que ele se baseia na miseri-
córdia gratuita de Deus e tem sua firmeza em Cristo. Porque a pregação do Evan-
gelho não proclamae
outra coisa senão que os pobres pecadores são justificados
pela clemência paternal de Deus, sem terem eles mérito algum. E a soma total
disso tudo está contida em Jesus Cristo.8
Portanto, quem se atreverá a privar os judeus de Cristo? Sendo que ouvimos
que a aliança do Evangelho foi feita a eles, aliança cujo único fundamento é
Cristo. Quem ousará pô-los foraf
da esperança da salvação gratuita? Visto que
ouvimos que a doutrina da fé lhes foi ministrada, a qual nos traz justiça gratuita.g
Sublime palavra do Senhor Jesus
E para não fazer longo debate sobre uma coisa tão clara, temos para isso uma
sentença notável do Senhor Jesus. Diz Ele: “Abraão... alegrou-se por ver o meu
dia, viu-o e regozijou-se”.9
O que aí se diz de Abraão o apóstolo mostra que era
a. fideles.
b. Era um dos motivos de queixa contra os anabatistas.
c. Acréscimo a 1539.
d. Calvino sublinha aqui o caráter escatológico da mensagem dos homens do Antigo Testamento. Com efeito,
as promessas dos profetas se centralizam menos nas bênçãos temporais que no “dia do Senhor” e na vida do
Messias.
e. pronunciat.
f. alienos reddere.
g. 1539 tem somente: justitiæ fidei doctrinam.
6
“Felizes, porém, são aqueles que abraçaram o evangelho e firmemente permanecem nele! Porque ele – o
evangelho –, fora de qualquer dúvida, é a verdade e a vida.” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos,
1998, (Ef 1.13), p. 35-36].
7
Rm 3.19.
8
“Cristo é o fim da lei e a suma do Evangelho” [João Calvino, Efésios, São Paulo, Paracletos, 1998, (Ef 2.20), p. 78].
9
Jo 8.56.
7. 7
universal quanto a todo o povo crente, quando declara que “Jesus Cristo, ontem e
hoje, é o mesmo e o será para sempre”.10
Porque ele não fala somente da divinda-
de eterna de Cristo, mas também do conhecimento do Seu poder, que é sempre
dispensado aos que nele crêem. Essa é a razão pela qual Maria e Zacarias, em
seus cânticos, à salvação revelada em Cristo chamam cumprimento das promes-
sas que Deus fez a Abraão e aos patriarcas.11
Se Deus, ao manifestar Seu Filho,
cumpriu a Sua antiga promessa, não se pode dizer que a finalidade do Antigo
Testamento não estava em Cristo e na vida eterna. Ademais, o apóstolo não so-
mente assemelha e iguala Israel a nós na graça da aliança, mas também na signi-
ficação dos sacramentos. Pois, querendo atemorizar os coríntios pelo exemplo
dos israelitas, para que não caíssem nos mesmos pecados que Deus tinha punido
neles, faz uso deste prefácio: “Não temos nenhuma prerrogativa ou dignidade
que nos possa livrar da vingança de Deus que sobreveio a eles”.12
Vê-se que
assim é, pois não somente o Senhor lhes fez os mesmos benefícios que nos faz,
mas também ilustrou Sua graça entre eles com os mesmos sinais e sacramentosa
,
como se Paulo dissesse: Parece-lhes que vocês estão fora de perigo, por causa do
Batismo, com o qual vocês foram assinalados, e da Ceia do Senhorb
, cujas pro-
messas são singulares; entretanto, desprezando a bondade de Deus, vocês vivem
dissolutamente. Mas, continua o apóstolo, vocês devem entender que os judeus
não estavam desprovidos dos mesmos sacramentosc
; nem por isso o Senhor dei-
xou de exercer contra eles o rigor do Seu juízo. Eles foram batizados na passa-
gem do Mar Vermelhod
e pela nuvem que os defendia do ardor do sol.
Os que repudiam essa doutrina dizem que esse foi um batismo carnal,
correspondendo ao nosso espiritual por alguma semelhança. Mas, se isso lhes
for concedido, o argumento do apóstolo não procederá, sendo que ele quis cor-
tar dos cristãos esta vã confiança de pensar que eram mais excelentes que os
judeus, por causa do Batismo. E ainda mais, quanto ao que se segue de imedia-
to, não há lugar para sofismas, pois, eles “comeram do mesmo manjar espiritu-
al e beberam da mesma bebida que a nós foram dados13
, ficando explícito que a
referência é a Jesus Cristo.
Cristo contra Paulo?
Mas, para derribar a autoridade do apóstolo Paulo, eles ainda objetam citando
estas palavras de Cristo: “Vossos pais comeram o maná no deserto e morreram...
a. Uma só palavra em 1539: symbolis.
b. 1539 acrescenta: quam quotidie suscipitis.
c. symbolis. “Ele declara que os sacramentos antigos da Lei tinham um poder semelhante ao que os nossos têm
hoje em dia”, dirá Calvino em seu Comentário sobre esta passagem, publicado em latim em Estrasburgo, em
1546, e em francês em Genebra, em 1547.
d. transitum illum.
10
Hb 13.8.
11
Lc 1.46-55 e 67-79.
12
1Co 10 [tradução direta].
13
1Co 10.3,4 [tradução direta].
8. 8 As Institutas – Edição Especial
Quem comer a minha carne e beber o meu sangue tem a vida eterna”.14
Mas
ambos se harmonizam facilmente. O Senhor Jesus, porque dirige a Sua palavra a
ouvintes que só procuravam saciar seus estômagos, não se importando nenhum
pouco com a verdadeira nutrição da alma, acomoda de algum modo Suas pala-
vras à capacidade deles,15
e, principalmente, faz essa comparação do maná com o
Seu corpo, segundo o entendimento deles. Eles exigiam que, para ter autoridade,
Ele comprovasse o Seu poder com algum milagre, como o que Moisés tinha feito
no deserto, quando fez chover maná do céu.
Ora, com o maná eles não captaram nada mais que um remédio para suprir
a indigência físicaa
, pela qual o povo estava premido no deserto. Não se elevaram
a. carnalis inediæ.
14
Jo 6.49,54.
15
Calvino entendia que Deus, na Sua Palavra, “se acomodava à nossa capacidade” [J. Calvino, Exposição de
1 Coríntios, (1Co 2.7), p. 82. Ver: João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 1.19), p. 64], balbuciando
a Sua Palavra a nós como as amas fazem com as crianças. Calvino usou deste recurso hemenêutico para
explicar assuntos aparentemente contraditórios na Bíblia. Falando sobre os antropomorfismos bíblicos, diz
em lugares diferentes: “Pois quem, mesmo que de bem parco entendimento, não percebe que Deus assim
conosco fala como que a balbuciar, como as amas costumam fazer com as crianças? Por isso, formas de
expressão que tais não exprimem, de maneira clara e precisa, tanto quê Deus seja, quanto Lhe acomodam o
conhecimento à paucidade da compreensão nossa. Para que assim se dê, necessário Lhe é descer muito
abaixo de Sua excelsitude.” (J. Calvino, As Institutas, I.13.1). “A descrição que dEle se nos outorga tem de
acomodar-se-nos à capacidade, para que seja de nós entendida. Esta é, na verdade, a forma de acomodar-se:
que tal se nos represente, não qual é em Si, porém, qual é possível de ser de nós apreendido.” (J. Calvino, As
Institutas, I.17.13). Ver também: João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 13.3), p. 265; Vol. 2, (Sl
50.14), p. 409; John Calvin, Commentary on the Book of Psalms, Grand Rapids, Michigan, Baker Book
House (Calvin’s Commentaries, Vol. V), 1996 (Reprinted), (Sl 78.65), p. 274; As Institutas, 1.14.3,11;
I.16.9; IV.17.11. Disto, ele tirou um princípio pedagógico: “Um sábio mestre tem a responsabilidade de
acomodar-se ao poder de compreensão daqueles a quem ele administra o ensino, de modo a iniciar-se com
os princípios rudimentares quando instrui os débeis e ignorantes, não lhes dando algo que porventura seja
mais forte do que podem suportar” [J. Calvino, Exposição de 1 Coríntios, (1Co 3.1), p. 98-99]. Deiz que
“... Deus, acomoda-se ao nosso modo ordinário de falar por causa de nossa ignorância, às vezes também, se
me é permitida a expressão, gagueja.”[ John Calvin, Commentary on the Gospel According to John,
Grand Rapids, Michigan, Baker Book House (Calvin’s Commentaries, Vol. XVIII), 1996 (Reprinted), (Jo
21.25), p. 299] Resumindo: “Em Cristo, Deus, por assim dizer, tornou-se pequeno, para acomodar-se à
nossa compreensão”. [John Calvin, Calvin’s Commentaries, Grand Rapids, Michigan, Baker Book House
Company, 1996 (Reprinted), Vol. XXII, (1Pe 1.21), p. 54]. Portanto, quando lemos as Escrituras, “somos
arrebatados mais pela dignidade do conteúdo que pela graça da linguagem.” [João Calvino, As Institutas,
I.8.1. Calvino continua: “Ora, e não sem a exímia providência de Deus isto se faz, que sublimes mistérios do
reino celeste fossem, em larga medida transmitidos em termos de linguagem apoucada e sem realce, para
que houvessem eles de ser adereçados em mais esplendorosa eloqüência, os ímpios não alegassem
cavilosamente que a só força desta aqui impera.
“Agora, quando essa não burilada e quase rústica simplicidade provoca maior reverência de si que qual-
quer eloqüência de retóricos oradores, que é de julgar-se, senão que a pujança da verdade da Sagrada Escritura
tão sobranceira se estadeia, que não necessite do artifício das palavras?” (J. Calvino, As Institutas, I.8.1).
No entanto, ele também entendia que “alguns Profetas têm um modo de dizer elegante e polido, até
mesmo esplendoroso, assim que a eloqüência lhes não cede aos escritores profanos.” (J. Calvino,As Institutas,
I.8.2)]. Esses pontos tornam o homem inescusável e realçam a relevância das Escrituras para a vida cristã.
Ele diz: “Ora, primeiro, com Sua Palavra nos ensina e instrui o Senhor; então, com os sacramentos no-
la confirma; finalmente, com a luz de Seu Santo Espírito a mente nos ilumina e abre acesso em nosso
coração à Palavra e aos sacramentos, que, de outra sorte, apenas feririam os ouvidos e aos olhos se apresen-
tariam, mas, longe estariam de afetar-nos o íntimo.” [João Calvino, As Institutas, IV.14.8. Vd. também
João Calvino, Exposição de Romanos, (Rm 10.16), p. 373-374].
9. 9
o bastante para considerar o mistério de que Paulo fala. Por isso Cristo, para
demonstrar que eles deveriam esperar dele um maior e mais excelente benefício
que aquele que eles achavam que os seus pais tinham recebido de Moisés, faz
esta comparação: Se foi um milagre tão digno, na opinião de vocês, o fato de que
o Senhor enviou a Seu povo um manjara
celeste pela mão de Moisés para que não
perecesse de fome, mas fosse sustentado por algum tempo, desse mesmo fato
vocês ficam sabendo quão mais precioso é o manjar que nos supre da imortalida-
de. Vemos por que foi que o Senhor deixou para trás o que no maná é o elemento
principal, só fazendo uso da sua utilidade menor. Foi porque os judeus, como se
quisessem censurá-lo, lhe tinham apresentado Moisés como sua objeção, pois
Moisés tinha socorrido o povo de Israel em sua necessidade, alimentando-o mila-
grosamente com o maná.
Respondo que Cristo é despenseiro de uma graça bem mais preciosa, em
comparação com a qual, o que Moisés fez ao povo de Israel não é quase nada,
embora eles lhe dedicassem tão alta estima. Paulo, considerando que o Senhor,
quando fez chover o maná do céu, não quis apenas enviar manjar físico ou mate-
rial a Seu povo, mas também lhe quis dar um mistério espiritual, para representar
a vida eterna que Seu povo devia esperar de Cristob
, trata deste argumento com a
boa explicação que ele merece. Portanto, podemos concluir sem vacilar que as
mesmas promessas da vida eterna que hoje nos são apresentadas, não somente
foram comunicadas aos judeus, mas também foram seladas e confirmadas por
intermédio de sacramentos verdadeiramente espirituais.
A revelação da aliança espiritual no Antigo Testamento
Se os leitores quiserem contemplar melhor na Lei e nos Profetas esta revelação
da aliança espiritual de Deus que, pela boca de Jesus Cristo e dos Seus apóstolos,
nós mostramos que faz parte do seu conteúdo, alegra-me satisfazê-los aqui; e
com tanto maior desejo o farei, esperando que assim os adversários sejam mais
plenamente convencidos, a fim de que não tenham como tergiversar, ou seja, que
não possam inventar desculpas ou pretextos.
Começaremos com uma demonstração que, embora sem dúvida pareça fútil
e quase ridícula aos anabatistas (lembrando que eles costumam desprezar altiva-
mente todas as razõesc
), terá entretanto grande importância para todas as pessoas
dóceis e de são juízo. Consideremos o seguinte: Visto que Deus se comunicou
a. cibum.
b. Calvino, ao falar das “figuras” do Antigo Testamento, situa-se evidentemente, como o apóstolo Paulo, no
ponto de vista da significação que as figuras podem ter para nós, cristãos. Porque antes de Jesus Cristo essas
figuras não eram nada explícitas, e bem se pode perguntar se os hebreus foram capazes de captar o sentido
espiritual da passagem pelo Mar Vermelho, ou o do maná.
c. Frase acrescentada em 1541.
10. 10 As Institutas – Edição Especial
por Sua Palavra de Vidaa
a todos os que Ele recebeu por Sua graça, disso deve-
mos inferir que os fez participantes da vida eterna. Eu digo que na Palavra de
Deus há uma tal eficácia de vida que a sua comunicação é uma segura e certa
vivificação da alma. Entendo por comunicação não a geral e comum, que se pro-
paga por céus e terra e sobre todas as criaturas do mundo. Porque, conquanto esta
vivifique todas as coisas conforme a sua respectiva natureza diversa, todavia não
livra nada nem ninguém da corrupção. Mas a comunicação a que me refiro é
especial,16
e por esta a alma dos crentes é iluminada no conhecimento de Deus e
de algum modo é ligada a Ele.
Sendo, pois, que Abraão, Isaque, Noé, Abel, Adão e os outros pais foram
unidos a Deus por tal iluminação da Sua Palavra, afirmo sem nenhuma dúvida que
ela foi para eles uma entrada no reino eterno de Deus. Porque ela constitui uma
verdadeira participação de Deus, a qual não pode existir sem a graça da vida eterna.
Se o que acima foi dito parece muito obscuro por isto ou por aquilo, passe-
mos a examinar o próprio formulário da aliança. Este não somente vai satisfazer
a todos os espíritos pacíficos, mas também servirá para redargüir ou contestar
suficientemente a ignorância dos que se esforçam para fazer oposição.
O Senhor sempre fez este pacto com os Seus servos: “Serei o vosso Deus, e
vós sereis o meu povo”.17
Sob essas palavras os profetas apregoavam a vida e a
salvação, e elas contêm a súmula de toda a bem-aventurança. Porque não é sem
motivo que Davi várias vezes declara que “é feliz a nação cujo Deus é o Senhor,
e o povo que ele escolheu para sua herança”.18
Não se trata aqui de uma felicida-
de terrena, mas sim do fato de que, como Deus opera resgate ou libertação da
morte, Ele preserva e mantêm por Sua misericórdia todos quantos recebeu na
companhia do Seu povo. Como também é dito pelos outros profetas: “Tu és o
nosso Deus; não morreremos”.19
E também: “O Senhor é o nosso juiz, o Senhor é
o nosso legislador, o Senhor é o nosso Rei; ele nos salvará”.20
E mais: “És muito
feliz, Israel, pois em Deus tens salvação”.21
Consideração fundamental
Mas, para não nos ocuparmos muito de coisas supérfluas, a admoestação que por
todo lado a Escritura nos faz e que comentaremos a seguir deve deixar-nos satis-
a. Para apreendermos o alcance dessa frase e da subseqüente, devemos lembrar-nos de que a expressão “pala-
vra da vida” designa aqui não uma simples declaração de Deus, mas o próprio Verbo, portanto Jesus Cristo
preexistente, como nos é ensinado no prólogo do Evangelho Segundo João. O raciocínio de Calvino é o
seguinte: Os homens da antiga aliança receberam a Palavra de Deus; ora, esta Palavra é Jesus Cristo; portan-
to, eles receberam Jesus Cristo e todos os benefícios que Ele comunica, entre os quais a vida eterna.
16
“De nenhum efeito é a Palavra sem a iluminação do Espírito Santo.” (João Calvino, As Institutas, III.2.33).
17
[Cf. Êx 6.7; Lv 26.12; etc.]
18
“Sl 33.12 e 144.15. [Ver também Sl 89.15.]
19
Hc 1.12 [tradução direta].
20
Is 33.22.
21
Dt 33.29 [tradução direta].
11. 11
feitos. É que nada nos impede de possuirmos abundância de todo bem e a certeza
da salvação, desde que tenhamos o Senhor como o nosso Deus.22
E isso com toda
a razão. Porque, se basta que o Seu rosto brilhe para que haja uma firme e certa
segurança da salvação, como se poderia levar alguém a conhecer o seu Deus, que
Este não lhe abrisse na mesma hora os tesouros da salvação? Porquanto Ele é
nosso Deus em tal condição que “ele habita no meio de nós”, como Ele próprio
testificou por meio de Moisés.23
Ora, não é possível obter tal presença sem pos-
suir igualmente a vida.
******
E mesmo que já lhes tivesse sido dito mais que o necessário, eles tinham
claras promessas da vida espiritual nestas palavras: “Eu sou o vosso Deus”. Por-
que Ele não anunciou que seria Deus dos seus corpos, mas principalmente das
suas almas. Pois bem, se as almas não estiverem unidas a Deus pela justiça, sendo
estranhas a Ele e para Ele, permanecerão na morte. Por outro lado, se tiverem
essa reconciliação e união com Deus, isso lhes trará a vida perpétuaa
.
E ainda mais: Ele não somente dizia ser o seu Deus, mas prometia que
sempre o seria, a fim de que a sua esperança, não contenteb
com as coisas presen-
tes, tivesse duração perpétua, ou se estendesse à perpetuidade. Agora, que essa
locução adverbial de tempo referente ao futuro tem esse sentido transparece das
numerosas declarações dos crentes, onde eles se consolam, assegurando-se de
que Deus jamais falharác
. Além disso, havia outro elemento na aliança, um se-
gundo membro, que os confirmava ainda mais amplamente no fato de que a bên-
ção de Deus lhes estava preparada fora e além dos limites da vida terrena. Pois
Ele havia dito: “Estabelecerei a minha aliança... para ser o teu Deus e da tua
descendência”.24
Porque, se o Senhor quis manifestar a Sua bondade para com
eles fazendo o bem aos seus sucessores, com mais forte razão era necessário que
a Sua bondade fosse manifestada para com eles mesmos. Porquanto Deus não é
como os homens, os quais transferem o amor que tinham pelos que faleceram
para os seus filhosd
por não terem condições de lhes fazer o bem após a morte.
Mas Deus, cuja benignidade não é impedida pela morte, não negou o fruto da Sua
misericórdia a eles,e
por amor dos quais Ele a mostrouf
a mil gerações dos seus
a. perpetuam salutem.
b. non contenta.
c. defuturus.
d. 1539 tinha – por erro, sem dúvida – ad amicorum filios.
e. mortuis.
f. transfundit.
22
“Certamente que, embora, com respeito a nós mesmos, nossa salvação esteja ainda oculta na esperança,
todavia em Cristo já possuímos a bem-aventurada imortalidade e glória.” [João Calvino, Efésios, São Paulo,
Paracletos, 1998, (Ef 2.6), p. 36].
23
Lv 26.11,12 [tradução direta].
24
Gn 17.7.
12. 12 As Institutas – Edição Especial
descendentes. Por isso Ele quis mostrar, dessa forma, a infinita abundância da
Sua bondade, a qual os Seus servos haveriam de gozar mesmo depois do seu
passamento. E o Senhor selou a veracidade dessa promessa, como também reve-
lou o seu cumprimento, dando a Si mesmo o nome de “Deus deAbraão, de Isaque
e de Jacó”25
muito tempo depois da morte deles. Ora, esse nome de Deus não
seria ridículo se eles tivessem perecido? Porque seria como se Ele dissesse: “Eu
sou o Deus dos que não existem”. Entretanto, os evangelistas registram que os
saduceus foram convencidos por Cristo, bastando esse argumento, de modo que
eles não puderam negar que Moisés tinha testificado a ressurreição dos mortos
naquela passagem. E de fato eles haviam aprendido também de Moisés26
que
todos os santos estão nas mãos de Deus; disso é fácil concluir que eles não são
dados como mortos, pois Aquele que tem em Seu poder a vida e a morte os rece-
beu sob a Sua tutela e proteção.
O principal ponto desta controvérsia
Consideremos agora o principala
ponto desta controvérsia, qual seja, a questão
sobre se os crentes do Antigo Testamento foram ou não instruídos por Deus no
sentido de que reconhecessem que teriam uma vida diferente e melhor que a da
terra, para pensarem nela, desprezando esta vida corruptível. Primeiro, a maneira
de viver que lhes foi concedida nada mais é que um constante exercício pelo qual
Deus os admoestava, advertindo-os de que seriam os seres mais miseráveis do
mundo, se tivessem a sua felicidade na terra.
Adão, Abel e Noé
Adão, que certamente se sentia tanto mais infeliz pela simples recordação da
felicidade perdida, teve grande dificuldade em sustentar-se pobrementeb
, traba-
lhando quanto pôde. E, para que o mal que o deveria perseguir não se restringisse
a isso, foi atingido por uma espantosa afliçãoc
, da qual por certo não teve nenhu-
ma consolação. De dois filhos que teve, um foi morto pela mão cruel do outrod
.
Caime
sobreviveu ao irmão, sendo que todos têm todos os justos motivos para
repudiá-lo e abominá-lo. Abel, tendo sido morto daquela maneira, e na flor da
idade, para nós é um exemplo da catastrófica maldade humana. Noéf
consumiu
grande parte da sua vida na construção da arca, debaixo de muita luta e amolaçãog
,
a. præcipuus cardo. As idéias deste parágrafo são repetidas e desenvolvidas no capítulo XVII, acrescentado
em 1539.
b. egestatem.
c. luctum.
d. fratris patricidio.
e. eum.
f. 1541, por erro, tem: Noël; 1539: Noe.
g. 1539 tem somente: fatigatione.
25
Êx 3.15; Mt 22.32.
26
Dt 33.
13. 13
enquanto todo o mundo se alegrava em delícias e prazeresa
. Aquilo que serviu
para que ele evitasse a morte tornou-se para ele maior causa de aflição do que
se tivesse que morrer cem vezes, Porque, além do fato de que a arca lhe foi
como um túmulo durante dez meses, haverá coisa mais molestab
que ficar no
meio dos excrementos e da sujeira dos animais, e num recinto não arejadoc
? E,
depois de livrar-se de tanta dificuldade, tornou a cair noutra causa de tristeza.
Viu-se objeto da zombaria do seu próprio filho, e se sentiu constrangido a amal-
diçoar com sua própria boca aquele que Deus lhe tinha preservado do Dilúvio
como grande bênção.
Abraão, Isaque e Jacó
Abraão, quando foi originariamente chamado por Deus, foi tirado do seu país,
deixando atrás os seus pais e amigos27
, e foi privado das coisas mais desejáveis
deste mundo. Como se Deus, de propósito e deliberadamente, o quisesse despo-
jar de toda alegria terrena. Assim que ele entrou na terra onde tinha recebido
ordem para habitar, foi premido pela fome. Saiu de lá e foi buscar socorro num
país onde, para salvar sua vida, foi forçado a abandonar sua mulher – o que lhe
causou mais tristeza que se sofresse muitas mortes. Voltou para o lugar onde
devia morar? De novo foi de lá expulso pela fome. Que felicidade haveria em
morar numa terra onde mais de uma vez esteve na miséria e por pouco não mor-
reu de fome? E de novo teve que abandonar sua mulher no país de Abimeleque.
Após haver vagadod
por todo lado e durante vários anos sem nenhuma cer-
teza e segurança, foi constrangido a pôr fora de casa seu sobrinho, a quem tinha
como filho, por causa de discussões e brigas dos servos de ambos. Não há dúvida
de que essa separação foi para ele como se lhe arrancassem um braço ou uma
perna. Pouco tempo depoise
, ele soube que os inimigos o tinham feito prisioneiro.
Tendo chegado a extrema velhice, viu-se sem filhos, que era a coisa mais duraf
que podia suceder naquela época. Por fim, gerou Ismael, fora da linhagem da sua
esperança; mas ainda o nascimento desse filho custou-lhe bem caro28
. Isso por-
que sua mulher Sara foi humilhada como se, pelo fomentog
dado ao orgulho da
sua serva, aí estivesse a causa do problema que havia naquela casa. Já em seus
últimos tempos de vida, foi-lhe dado o filho Isaque, mas com a triste compensa-
ção de que o seu filho [Ismael] fosse deixado em plena matah
, como se fosse um
a. secure delitiatur.
b. insuavius nihil.
c. Frase acrescentada em 1541.
d. vagatur; 1541, por erro, tem: vaugué.
e. sectionem passus.
f. insuavissimum et acerbissimum.
g. fovendo.
h. Imagem acrescentada em 1541 (1539: pro derelicto pæne hostiliter).
27
Gn 12.
28
Gn 16.
14. 14 As Institutas – Edição Especial
pobre cão. Depois que só ficou Isaque, o qual deve ter sido todo o consolo da sua
velhice, recebeu ordem para matá-lo.29
É possível imaginar coisa mais infeliz que
dizer a um pai que seja o carrasco do seu próprio filho? Se fosse morto por doen-
ça, quem já não consideraria infeliz esse pobre velho, por tê-lo recebido por tão
pouco tempo, como que por zombaria, para que tivesse sofrimento em dobro e se
visse destituído de linhagem própria? Se fosse morto por um estranho, a calami-
dade seria então bem maior. Mas sobrepuja toda desgraça dizer que morra pela
mão do seu pai!
Em resumo, toda a vida de Abraão foi de tal modo atormentada e afligida
que, se alguém quisesse representar numa pintura um exemplo de vida miserável,
não encontraria nada que fosse mais apropriado. Se alguém objetar dizendo que
ao menos ele não foi totalmente infeliz porque escapou de tantos perigos e supe-
rou tantas tempestades, respondo que não diremos que é feliz a vida que chega a
uma avançada velhice tendo passado por infindas dificuldades, mas sim a vida na
qual o homem é sustentado e mantido em situação tranqüila e afortunadaa
.
Passemos ao caso de Isaque, que não sofreu tantas calamidades, mas que,
todavia, com grande sofrimento e muito labor, pouco ou nenhum prazer ou ale-
gria teve em sua existência. E, por outro lado, experimentou dificuldades que de
forma alguma tornam feliz o homem na terra. A fome o perseguiu na terra de
Canaã, como tinha acontecido com seu pai. Sua mulher foi tirada do seu convício.
Por onde quer que andasse, os moradores vizinhos o molestavam e o atormenta-
vam de muitas maneiras; tanto que ele se via obrigado a lutar30
por águab
. As
mulheres de Esaú causaram muito desgosto à sua família. Ele sofreu extraordiná-
ria aflição, causada pela discórdia dos seus filhos, e o grande mal só foi remedi-
ado com o banimento daquele que tinha recebido a sua bênção.
Quanto a Jacó, veio a ser um modelo e figurac
da maior infelicidade que se
poderia descrever. Enquanto viveu na casa dos pais, em sua infância, vivia ator-
mentado pela inquietação causada pelas ameaças do seu irmão, e acabou tendo
que fugir para longe dos seus pais e do seu país. Além da angústia que lhe trouxe
o banimento, foi tratado rudemente por seu tio Labão. Não bastou que trabalhas-
se sete anos debaixo de dura e desumana servidão; no fim desse período lhe foi
dada outra mulher, não a que ele queria. E, para tê-la, teve que renovar a sua
servidão, na qual sofria o ardor do sol de dia, e a umidaded
e o frio de noite;
suportava chuva, vento e tempestade31
, sem dormir e sem descansar, como ele
mesmo se queixoue
. Depois de vinte anos, ainda na pobreza, teve que suportar
a. sine malorum sensu præsentibus bonis fruatur.
b. A propósito de poços cavados por seus servos.
c. insigne exemplar.
d. pervigil urgeatur.
e. Acréscimo feito em 1541.
29
Gn 22.
30
Gn 26.
31
Gn 31.
15. 15
diariamente os abusos do seu sogro. Em sua casa, era consumido pelo ódio, pelas
brigas e pelo ciúme das suas mulheres. Quando Deus lhe ordenou que voltasse
para a sua terra, precisou usar astúcia e partir como se estivesse empreendendo
uma humilhante fuga. E mesmo assim não pôde evitar a maldade do sogro, que o
perseguiu e o deteve na jornada. E, embora Deus não permitisse que lhe sucedes-
se o pior, viu-se oprimido por muitas afrontas vergonhosas e por muitos ultrajes,
coisas que lhe deram forte motivo para lamentar-se.
Logo depois, Jacó passou por uma tristeza maior, porque, ao aproximar-se
do seu irmão, viu tremendamente a morte diante dos seus olhos, como a que se
pode esperar de um inimigo cruel. Seu coração foi terrivelmente atormentado e
dilacerado pela angústia, enquanto aguardava a chegada de Esaú. Quando o viu,
lançou-se aos seus pés como se estivesse para morrer, até ver que ele o recebia
com inesperada brandura.
Mal Jacó entrou em seu país, perdeu sua esposa Raquel, que morreu durante
um parto – perdeu a mulher que ele amava singularmente.32
Tempos depois, conta-
ram-lhe que o rapaz que lhe tinha sido dado por Raquel havia sido devorado por
um animal feroz. A notícia dessa morte encheu o seu coração de tanto amargor e
aflição que, mesmo depois de muito pranto, ele não quis ser consolado; queria
morrer de tanta angústia, e a sua única vontade era seguir seu filho na sepultura.
Além dessa tristeza, desse fato horrível e dessa angústia, como achamos
que ele ficou, quando soube que sua filha [Diná] tinha sido violentadaa
? E mais
ainda, quando viu que os seus filhos saquearam uma cidade para vingar a irmã?
Com isso eles não somente o fizeram odioso aos habitantes de toda aquela região,
mas também puseram em perigo a sua vida. A seguir houve o horrível pecado de
Rúben [Gn 35.22] que, sem dúvida, causou-lhe assombrosa angústia. Pois, se
uma das maiores desgraças que um homem pode sofrer é que sua mulher seja
violentada, que diremos nós quando essa maldade é cometida por seu próprio
filho? Pouco tempo depois, sua família foi maculada por outro incesto [Gn 38], o
que nos leva a pensar que tantos atos desonrosos poderiam romper o coração
mais firme e mais paciente do mundo.
Já em sua extrema velhice, Jacó mandou seus filhos a um país estranho em
busca de trigo.33
Um deles foi feito prisioneiro, e o pai julgou que corria perigo de
morte. Para resgatá-lo, foi forçado a enviar Benjamim, que era toda a sua alegria.
Quem pensaria que numa tal multidão de desgraças esse homem pôde ter um
minuto para respirar com satisfação ou alívio? Foi o que ele declarou ao faraó,
quando lhe disse que os dias da sua vida foram “poucos e maus”.34
Ao declarar
que tinha sofrido desgraças contínuas, não admitiu que tivesse recebido a prospe-
ridade prometida por Deus. E então, ou Jacó foi ingrato e mau para com Deus, ou
a. deflorata.
32
Gn 35.
33
Gn 42.
34
Gn 47.9.
16. 16 As Institutas – Edição Especial
declarou a verdade quando disse que tinha tido vida miserável. Se ele disse a
verdade, conclui-se que a sua esperança não tinha sido posta em coisas terrenas.
Se todos esses santos pais esperaram uma vida muito feliz (o que é
indubitável), certamente conheceram e aguardaram outra bem-aventurança, qual
seja, a da vida não terrena. O que o apóstolo demonstra muito bem. “Abraão”, diz
ele35
, “peregrinou na terra da promessa como em terra alheia, habitando em ten-
das com Isaque e Jacó, herdeiros com ele da mesma promessa; porque aguardava
a cidade que tem fundamentos, da qual Deus é o arquiteto e edificador... Todos
estes morreram na fé, sem ter obtido as promessas; vendo-as, porém, de longe, e
saudando-as, e confessando que eram estrangeiros e peregrinos sobre a terra”.
Com isso queriam dizer que buscavam outro país. Ora, se o anseio deles fosse
pelo país natural que tinham abandonado, poderiam muito bem voltar para lá.
Mas eles esperavam uma pátria melhor, a saber, o céu. Por isso Deus não se
envergonha de se chamar seu Deus, pelo que lhes preparou uma habitação. E de
fato eles teriam sido mais cabeças-duras que pau ou pedra se persistissem em
seguir as promessas, das quais não tinham nem sequer uma amostra na terra, a
não ser que esperassem outro tipo de cumprimento.
Também não é sem motivo que o apóstolo insiste principalmente no fato de
que eles são chamados estrangeiros e peregrinos neste mundo. Como o próprio
Moisés diz [quando fala das “peregrinações” de Jacó]36
Pois bem, se eles foram
estrangeiros na terra de Canaã, onde está a promessa de Deus, pela qual eles
foram constituídos herdeiros? Isso demonstra que o que Deus lhes tinha prometi-
do dizia respeito a algo que estava além da terra. Por isso não receberam em
Canaã nenhuma herança, “nem sequer o espaço de um pé”,37
e só adquiriram
terreno para as suas sepulturas. Com isso testificaram que só tinham esperança de
gozar a promessa depois da morte.
Essa é também a causa pela qual Jacó deu tanta importância a ser enterrado
em Canaã que fez seu filho prometer com juramento que tomaria as providências
para que o seu corpo fosse transportado para lá. Esse mesmo pensamento José
seguiu, ordenando que as suas cinzas fossem levadas, o que aconteceu cerca de
quatrocentos anos após a sua morte. Em suma, vê-se claramente que, em todas as
suas obras, eles sempre tinham em vista a bem-aventurança da vida futura. Por-
quanto, com que propósito Jacó desejou a primogenitura, que não lhe trouxe
nenhum bem e causou a sua saída da casa do seu pai, trazendo-lhe, não obstante,
uma bênção mais alta? Ele até declarou esta aspiração quando estava prestes a
exalar os últimos suspiros, exclamando: “A tua salvaçãoa
espero, ó Senhor!”.38
a. salutare.
35
Hb 11.9-16.
36
Gn 47.9.
37
At 7.5.
38
Gn 49.18.
17. 17
Pois, sabendo que ia render o espírito, que salvação esperava, se não visse na
morte o começo da uma nova vida?
Balaão, testemunha a seu contragosto
E por que discutir sobre os filhos de Deusa
, se mesmo aquele que se esforçava
para impugnar ou contestar a verdade teve o mesmo sentimento e a mesma per-
cepção em seu entendimento? Porque, que terá desejado Balaão quando disse:
“Que eu morra a morte dos justos, e o meu fim seja como o deles”,39
senão que ele
sentia em seu coração o que Davi escreveu depois, a saber, “Preciosa é aos olhos
do Senhor a morte dos seus santos” e que a morte dos ímpios é infeliz40
? Se a
meta final dos homens estivesse na morte, não se poderia notar nela nenhuma
diferença entre o justo e o injusto. É necessário, pois, distingui-los pelo que espe-
ra um e outro na era vindoura.
Moisés e outros profetas testificam a aliança espiritual
Ainda não vamos deixar Moisés e ir adiante, o qual certos sonhadores, contra os
quais já falamosb
, acham que não tinha outro ofício que não o de induzir o povo a
temer e honrar a Deus prometendo-lhe propriedades férteis e abundância de bens.
Ainda que alguém queira apagar a luz que se apresenta, já temos ali uma revelação
clara e patente da aliança espiritualc
. E, se formos aos profetas, encontraremos
neles plena claridade, que nos permite contemplar a vida eterna e o reino de Cristo.
Davi e outros profetas
Consideremos primeiro Davi que, visto ser anterior aos demais, fala dos mistérios
celestiais mais obscuramente que aqueles. Contudo, com que perspicácia e segu-
rança ele dirige toda a sua doutrina a esse alvo! Qual é a sua avaliação das mora-
das terrenas ele demonstra com esta sentença: “Sou forasteiro à tua presença,
peregrino como todos os meus pais o foram. Na verdade, todo homem, por mais
firme que esteja, é pura vaidade. Com efeito, passa o homem como uma sombra...
E eu, Senhor, que espero? Tu és a minha esperança”.41
Certamente, depois de
confessar que neste mundo não existe coisa alguma que seja firme e permanente,
ele todavia mantém firmeza de esperança em Deus, contemplando a sua felicida-
de noutro lugar, não neste mundo. Por isso ele próprio costumava conclamar os
a. de sanctis ac filiis Dei.
b. Os anabatistas.
c. Provavelmente não é por acaso que Calvino passa tão rapidamente pelo caso de Moisés, pois é certo que as
promessas de “terras férteis e abundância de bens” têm um papel a desempenhar na pregação de Moisés,
sem se omitir o que consta no quinto mandamento.
39
Nm 23.10.
40
Sl 116.15 e 34.21.
41
Sl 39.5-7,12.
18. 18 As Institutas – Edição Especial
crentes a essa contemplação, todas as vezes que os queria consolar. Porque, nou-
tra passagem depois de demonstrar quão breve e frágil é esta vida, acrescenta:
“Mas a misericórdia do Senhor é de eternidade a eternidade sobre os que o te-
mem”.42
O que se assemelha ao que ele diz nesta outra passagem:43
“Em tempos
remotos, lançaste os fundamentos da terra; e os céus são obra das tuas mãos. Eles
perecerão, mas tu permaneces; todos eles envelhecerão como um vestido, como
roupa os mudarás, e serão mudados. Tu, porém, és sempre o mesmo, e os teus
anos jamais terão fim. Os filhos dos teus servos habitarão seguros, e diante de ti
se estabelecerá a sua descendência”. Se com a eliminação do céu e da terra os
crentes não deixarão de ser estabelecidos diante de Deus, segue-se que a salvação
deles está ligada à Sua eternidade.
A promessa feita por meio de Isaías
E, de fato, esta esperança não poderia subsistir, se não estivesse fundada na pro-
messa exposta no Livro de Isaías, onde lemos: “Os céus desaparecerão como a
fumaça, e a terra envelhecerá como um vestido, e os seus moradores morrerão
como mosquitos, mas a minha salvação durará para sempre, e a minha justiça não
será anulada”.44
Nessa passagem a perpetuidade é atribuída à salvação e à justiça.
Não no sentido de que as coisas permanecem em Deus, mas que Ele as comunica
aos homens. E, na realidade, não se pode tomar ao pé da letra as coisas que ele
vez por outra diz sobre a felicidade dos crentes, a não ser colocando-as em termos
da manifestação da glória celestial. Como quando ele diz: “Ele [o Senhor] guar-
da a alma dos seus santos, livra-os das mãos dos ímpios. A luz difunde-se para o
justo, e a alegria, para os retos de coração”.45
“A sua justiça permanece para
sempre, e o seu poder se exaltará em glória. ...o desejo dos perversos perecerá”
[Sl 112.9,10]. E também: “Os justos renderão graças ao teu nome; os retos habi-
tarão na tua presença”. E mais: O justo “será tido em memória eterna”. E ainda:
“O Senhor resgata a alma dos seus servos”.46
Os justos nas garras dos ímpios
Ora, o Senhor não somente permite que os Seus servos sejam atormentados pelos
ímpios, mas também muitas vezes deixa que eles sejam dissipados e destruídos
pelos maus. Deixa que os retos desfaleçam nas trevas e no infortúnio, enquanto
os ímpios brilham como as estrelas do firmamento. E não mostra o fulgor do Seu
rosto aos Seus servos fiéis o bastante para deixá-los gozar alegria por muito tem-
po. Por isso Davi mesmo não esconde o fato de que, se tivermos os olhos postos
42
Sl 103.17.
43
Sl 102.25-28.
44
Is 51.6.
45
Sl 97.10,11.
46
Sl 140.13; 112.6; 34.22.
19. 19
no presente estado deste mundo, sofreremos com isso forte tentação para deixar-
nos vacilar; como se não recebêssemos nenhuma recompensa por nossa integri-
dade. A esse ponto a impiedade prospera e floresce, ao passo que os justos são
oprimidos pela ignomínia, pela pobreza, pelo desprezo e por outras espécies de
calamidade. “Quase me resvalaram os pés”, diz o salmista; “pouco faltou para
que se desviassem os meus passos. Pois eu invejava os arrogantes, ao ver a pros-
peridade dos perversos.” Depois de fazer uma descrição disso, ele conclui: “Em
só refletir para compreender isso, achei mui pesada tarefa para mim; até que
entrei no santuário de Deus e atinei com o fim deles”.47
Lição deduzida
Aprendamos, pois, dessa confissão de Davi, que os santos pais, sob o Antigo
Testamento, não ignoravam quão pouco e quão poucas vezes Deus cumpriu, ou
plenamente jamais cumpriu, neste mundo as coisas que Ele promete aos Seus
servos. E que por essa causa elevavam o seu coração no santuário de Deus, onde
encontravam o que lá estava reservado e que não lhes era manifesto nesta vida
corruptível. Esse santuário era o juízo final que esperamos, o qual eles se conten-
tavam em entender pela fé, embora não o captassem com os olhos. Munidos
dessa confiança, fosse o que fosse que lhes adviesse neste mundo, eles não duvi-
davam que chegaria o dia em que as promessas de Deus seriam cumpridas. Isso
demonstram muito bem estas declarações:48
“Na justiça contemplarei a tua face;
quando acordar, eu me satisfarei com a tua semelhança”. E também: “Sou como
a oliveira verdejante, na Casa de Deus”. E ainda: “O justo florescerá como a
palmeira, crescerá como o cedro do Líbano. Plantados na Casa do Senhor, flores-
cerão nos átrios do nosso Deus. Na velhice darão ainda frutos, serão cheios de
seiva e de verdor”. Onde estarão essa beleza e esse vigor, senão quando a aparên-
cia deste mundo for substituída pela manifestação do reino de Deus? Por isso,
tendo os olhos postos na eternidade e desprezando o amargor das calamidades
presentes, que eles viam que são transitórias, gloriavam-se confiantemente nes-
tas palavras: “Jamais permitirás, ó Senhor, que o justo pereça eternamente, mas
afundarás o ímpio no abismo da destruição”.49
Onde está neste mundo o abismo
de destruição que devora os ímpios, sobre cuja felicidade se diz noutra passagem
que eles morrem sem longoa
enfraquecimento e sem demorada agonia? [Sl 73.4].
Onde estão a firmeza e a fortaleza dos santos, sobre os quais o próprio Davi diz
várias vezes (queixosamente) que eles não somente são abalados, mas são total-
mente oprimidos e abatidos? É, pois, necessário que se ponha diante dos olhos
não aquilo que traz a incerteza deste mundo, visto que este é como um mar agita-
a. in puncto.
47
Sl 73.2,3,16,17.
48
Sl 17.15; 52.8; 92.12-14.
49
Sl 55.22,23 [tradução direta].
20. 20 As Institutas – Edição Especial
do por diversas tempestades, mas sim o que o Senhor vai fazer quando se assentar
em juízo para estabelecer o estado permanente do céu e da terraa
.
Como ele descreve muito bem noutro lugar:50
“...dos que confiam nos seus
bens e na sua muita riqueza se gloriam? Ao irmão, verdadeiramente, ninguém o
pode remir, nem pagar por ele a Deus o seu resgate (Pois a redenção da alma
deles é caríssima, e cessará a tentativa para sempre.), para que continue a viver
perpetuamente e não veja a cova; porquanto vê-se morrerem os sábios e perecem
tanto o estulto como o inepto, os quais deixam a outros as suas riquezas. O seu
pensamento íntimo é que as suas casas são perpétuas e, as suas moradas, para
todas as gerações; chegam a dar seu próprio nome às suas terras. Todavia, o
homem não permanece em sua ostentação; é, antes, como os animais, que pere-
cem. Tal proceder é estultícia deles; assim mesmo os seus seguidores aplaudem o
que eles dizem. Como ovelhas são postos na sepultura; a morte é o seu pastor;
eles descem diretamente para a cova, onde a sua formosura se consome51
; a se-
pultura é o lugar em que habitam”.
Consideremos:
Primeiro, zombando dos tolos porque descansam e condescendem em seus
prazeres mundanos, transitórios que são, ele demonstra que a sabedoria consiste
em buscar outra felicidade. Mas, em segundo lugar, ele proclama de maneira
mais clara o mistério da ressurreição quando erige o reino dos justos predizendo
a ruína e a desolação dos ímpios. Porquanto, que é que entendemos pela expres-
são “alvorecer do dia” de que ele fala [ver nota], senão uma revelação da nova
vida, após o fim da presente existência? Disso também decorre esta reflexão: Os
crentes daquela época tinham o costume de se consolar e de se fortalecer para a
paciente perseverança dizendo que “não passa de um momento a sua ira; o seu
favor dura a vida inteira”.52
Mas, como poderiam pôr fim às suas aflições, visto
que eram afligidos a vida inteira? Onde consta que eles viam uma tão longa dura-
ção da bondade de Deus, a qual a duras penas eles tinham escassa ocasião de
usufruir? Certamente, se eles buscassem duradoura alegria na terrab
, não teriam
encontrado nenhuma. Mas, quando elevavam os olhos ao céu, compreendiam
que todo bem terreno não passa de um sopro de ventoc
, que os santos têm que
suportar tribulaçãod
, e que as bênçãos que devem receber são eternas.
a. Apega-se aqui à viva escatologia (esperança das coisas finais) presente no Antigo Testamento, e Calvino está
de acordo com o autor da Epístola aos Hebreus em sublinhá-la. Tem-se feito falsa acusação contra o reformador
de que ele negligencia a escatologia. Ao contrário, a sua mensagem é totalmente impregnada dela, e ele
insiste em dizer que os discípulos eram essencialmente “peregrinos” nesta terra.
b. si in terra hæsissent.
c. punctum temporis.
d. 1539 acrescentou: “per crucem”, após “miserationes seculi esse, quibus colliguntur”: caso raro, no qual um
elemento completo de frase não foi traduzido.
50
Sl 49.6-14.
51
No original francês: “No alvorecer do dia os justos terão domínio sobre eles” (N. do T.).
52
Sl 30.5.
21. 21
Por outro lado, previam que a desgraça dos ímpios não teria fim, embora se
considerassem muito felizes, como que vivendo de sonhos. Daí vinham estas
declarações, que eles conheciam bem: “A memória do justo é abençoada, mas o
nome dos perversos cai em podridão”.53
E também: “A morte dos santos é preci-
osa diante do Senhor; a morte do pecador é terrivelmente funesta” [tradução dire-
ta. Cf. Sl 116.15 e Ez 28.8]. E mais: “[O Senhor] guarda os pés dos seus santos,
porém os perversos emudecem nas trevas da morte”.54
Uma conclusão tranqüilizadora
Vê-se, pois, que as palavras acima transcritas demonstram que os pais do Antigo
Testamento sabiam muito bem que, fosse qual fosse o infortúnio que os crentes
tivessem que sofrer neste mundo, seu fim seria vida e salvação. Por outro lado,
sabiam que a felicidade dos ímpios é um caminho belo e aprazível que leva à
desgraça. Por essa causa eles chamavam a morte dos incrédulos “morte de
incircuncisos” [ou, literalmente, “ruína dos incircuncisos”]55
, querendo com isso
indicar que a esperança da ressurreição lhes é cortada. Por isso Davi não poderia
ter imaginado maldição mais grave sobre os seus inimigos que a seguinte, que ele
pediu em oração a Deus: “Sejam riscados do livro da vida, e não sejam inscritos
com os justos”.56
O vibrante testemunho de Jó
Mas a seguinte declaração de Jó é mais notável que as outras: “Eu sei que o meu
Redentor vive e por fim se levantará sobre a terra. Depois, revestido este meu
corpo da minha pele, em minha carne verei a Deus. ...de saudade me desfalece o
coração dentro em mim”.57
Os que querem exibir a sua sutileza argumentam com
rodeios e sofismas dizendo que não se deve entender essa passagem como uma
referência à ressurreição final, mas sim ao período em que Jó esperava que o
Senhor lhe seria mais brando e mais amigável. Ainda que concordássemos com
eles em parte, sempre teríamos esta verdade (querendo eles ou não), que Jó não
poderia alcançar uma esperança tão alta se pensasse em repouso na terra. Portan-
to, devemos reconhecer e confessar que ele elevou os seus olhos para contemplar
a imortalidade futura, pois esperava o seu Redentor como quem está na sepultu-
ra, ou seja, como estando ele, Jó, na sepultura. Porque a morte é um desespero
extremo para aqueles que só pensam na vida presente, e, todavia, a morte não
pôde eliminar a esperança de Jó. “Ainda que ele [Deus] me mate”, disse ele,
“nele esperarei” [Almeida, Revista e Corrigida, semelhante ao original francês].
53
Pv 10.7.
54
1Sm 2.9.
55
Ez 28.10; 31.18; etc.
56
Sl 69.28 [tradução direta].
57
Jó 19.25-27.
22. 22 As Institutas – Edição Especial
Se alguém for bastante teimoso para murmurar que as sentenças acima citadas
são de pouca gente e que com elas não se pode provar que essa doutrina era
comum entre os judeus, responderei incontinenti que tais sentenças, em pequeno
número, não pretendem mostrar alguma sabedoria oculta, que só os espíritos su-
periores poderiam entender. Porque os que assim falaram foram constituídos
mestres do povoa
pelo Espírito Santo. Por isso, segundo o seu ofício, eles divul-
garam abertamente a doutrina que deveria ser sustentada pelo povo todob
. Quan-
do, pois, ouvimos tão evidentes oráculos do Espírito Santo, pelos quais Ele
testificou antigamente a vida espiritual com vistas à igreja dos judeus e a estes deu
indubitável esperança, seria obstinação por demais exorbitante só deixar ao povo
uma aliança carnal, na qual só se faz menção da terra e da felicidade mundana.
Outros profetas
Se eu descer aos profetas posteriores, terei matéria ainda mais ampla e mais fácil
de debater na causa em foco. Porque, se a vitória não nos parece difícil demais
em Davi, Jó e Samuel, para nós será muito mais fácil. Pois o Senhor mesmo
seguiu este modo de agir ao dispensar a aliança da Sua misericórdia, no sentido
de que, à medida que se aproximava o dia da revelação completa, a Ele aprouve
aumentar cada vez mais a clareza da Sua doutrina. Porque, quando a primeira
promessa foi feita no princípio a Adão, ele apenas teve como que algumas cente-
lhas para a sua iluminação. De lá para cá, pouco a pouco a luz foi crescendo e
aumentando dia após dia, até que o Senhor Jesus Cristo, que é o Sol da justiça,
fazendo desvanecer todas as nuvens, iluminou plenamente o mundoc
. Se quiser-
mos valer-nos dos testemunhos dos profetas para comprovar a nossa causa, não
devemos temer que eles nos falhem. Mas, visto que noto que este assunto já se
estendeu demaisd
, devemos restringir ainda mais o que pretendíamos fazer (por-
que daria para encher um grosso volume). Ademais, como penso que fiz acima
uma apresentação para todos os leitores de médio entendimento de maneira que
eles poderão ter suficiente compreensão do conteúdo, vou evitar ser prolixo, a
não ser que haja grande necessidade.
A chave para abrir o estudo
Limito-me a admoestar os leitores a que se sirvam da chave que lhes dei para
abrir o estudo. É que, todas as vezes e quantas os profetas relembram a bem-
aventurança dos crentes (da qual só se vê uma pequena sombrae
neste mundo),
a. plebis.
b. quæ communiter ediscenda essent Dei mysteria, et popularis religionis principia.
c. Calvino admite a idéia de uma progressão na revelação através dos séculos. Mas atribui essa progressão às
dispensações de Deus, e não, como os evolucionistas modernos, ao desenvolvimento do sentimento religio-
so de Israel.
d. ingentem materiæ sylvam.
e. mínima vestigia.
23. 23
eles sempre voltam a esta distinção: Os profetas, para demonstrar melhor a bon-
dade de Deus, usaram os benefícios terrenos como figuras, como imagens repre-
sentativas, mas, entretanto, quiseram com esses quadros elevar os corações aci-
ma da terra e dos elementos deste mundo e deste século corruptível, e induzi-los
a meditar na felicidade da vida espiritual.58
Um exemplo
Um exemplo nos basta. É o seguinte: Tendo o povo de Israel sido transportado
para a Babilônia, considerava o seu exílio e a desolação em que se encontrava
como uma morte. Não havia como fazê-lo crer que tudo o que Ezequiel prometia
quanto à sua restauração não era fábula nem mentira. Porque o povo pensava que
fosse como se ele dissesse que um corpo já putrefacto haveria de ressuscitar. O
Senhor, para mostrar que nem mesmo essa dificuldade O impediria de levar a
cabo [o propósito da] Sua graça em Seu povo, revelou por visão ao profeta um
campo cheio de ossos59
, aos quais Ele deu espírito e vigor num momento, somen-
te pelo poder da Sua palavra. Essa visão serviu para corrigir a incredulidade do
povo. Todavia, ao mesmo tempo serviu para admoestá-lo quanto ao poder de
Deus de ir além da restauração prometida, pois unicamente a Seu mandado Lhe
foi fácil devolver à vida as ossadas espalhadas por todo lado. Mas, para comparar
com essa passagem, temos outra semelhante em Isaías, onde se diz que os mortos
viverão e ressuscitarão com os seus corpos.60
A seguir lhes é dirigida esta exorta-
ção: “Despertai e exultai, os que habitais no pó, porque o teu orvalho, ó Deus,
será como o orvalho de vida, e a terra dará à luz os seus mortos. Vai, pois, povo
meu, entra nos teus quartos e fecha as tuas portas sobre ti; esconde-te só por um
momento, até que passe a ira. Pois eis que o Senhor sai do seu lugar, para castigar
a iniqüidade dos moradores da terra; a terra descobrirá o sangue que embebeu e já
não encobrirá aqueles que foram mortos”.
Bem que eu gostaria de dizer que devemos enquadrar todas as outras passa-
gens nesta regra. Pois há algumas que, sem nenhuma figura nem obscuridade,
demonstram a imortalidade futura, a qual é preparada para os crentes no reino de
Deus, como já dissemos. E em muitas outras, mas principalmente em duas, a
mesma promessa está presente. Uma delas é Isaías, onde o profeta diz:61
“Como
os novos céus e a nova terra, que hei de fazer, estarão diante de mim, diz o Se-
nhor, assim há de estar a vossa posteridade e o vosso nome. E será que, de uma
Festa da Lua Nova à outra e de um sábado a outro, virá toda a carne a adorar
perante mim, diz o Senhor. Eles sairão e verão os cadáveres dos homens que
58
“Ora, essa é uma tentação muito grave, ou seja, avaliar alguém o amor e o favor divinos segundo a medida da
prosperidade terrena que ele alcança.” [João Calvino, O Livro dos Salmos, Vol. 1, (Sl 17.14), p. 346].
59
Ez 37.
60
Is 26.19.
61
Is 66.22-24.
24. 24 As Institutas – Edição Especial
prevaricaram contra mim; porque o seu verme nunca morrerá, nem o seu fogo se
apagará; e eles serão um horror para toda a carne”. A outra acha-se em Daniel.
“Nesse tempo”, diz ele62
, “se levantará Miguel, o grande príncipea
, o defensor dos
filhos do teu povo, e haverá tempo de angústia, qual nunca houve, desde que
houve nação até àquele tempo; mas, naquele tempo, será salvo o teu povo, todo
aquele que for achado inscrito no livro. Muitos63
dos que dormem no pó da terra
ressuscitarão, uns para a vida eterna, e outros para vergonha e horror eterno”.
Dois pontos que dispensam comprovação
Quanto aos dois outros pontos, quais sejam, que os antigos pais tinham Cristo
como penhor e garantia das promessas a eles feitas por Deus, e que eles punham
nele toda a sua confiança quanto à esperada bênção, não vou me esforçar para
provar, porque são fáceis de entender, e sobre eles já houve muita controvérsia.
Conclusão desta parte
Concluiremos, pois, que o Antigo Testamento, ou seja, a aliança que Deus fez
com o povo de Israel, não se limitava a coisas terrenasb
, mas também abrangia
certas promessas da vida espiritual e eterna, a esperança da qual devia estar im-
pressa no coração de todos os que se aliavam a esse Testamento. Não há maqui-
nação do Diabo que possa derrubar essa conclusão. Portanto, fique longe de nós
esta opinião insanac
e perniciosa, qual seja, que Deus não ofereceu aos judeus, ou
que estes não esperavam da Sua mão, nada mais que satisfazer seu estômago,
viver em prazeres carnais, ter abundantes riquezas, ser exaltados em honra, ter
numerosa descendência, e outras coisas semelhantes, que os mundanos desejam.
Porque Jesus Cristo não promete hoje aos que nele crêem outro reino dos céus,
senão aquele no qual eles descansarão com Abraão, Isaque e Jacó64
. O apóstolo
Pedro lembrou aos judeus do seu tempo que eles eram herdeiros da graça evangé-
lica, visto que eram sucessores dos profetas, estando incluídos na aliança que
Deus tinha feito nos tempos antigos com Israel65
. E para que não fosse testemu-
nho só de palavras, o Senhor também o comprovou de fato. Porque na mesma
a. princeps magnus.
b. Calvino reconhece aqui a dupla significação das promessas feitas aos judeus: uma imediata e temporal,
outra mais distante e espiritual.
c. insanam.
62
Dn 12.1,2.
63
Segundo o original francês: “Os que descansam...”. Schröder, no comentario editado por Lange, sobre
Daniel 12.2 diz numa nota de rodapé, entre outras coisas, o seguinte: “Cf. Calvino sobre esta passagem:
‘Multos hic ponit pro omnibus, ut certum est. Neque hæc locutio debet nobis videri absurda. ...; cfr.
Rom. V.15,19’. [Em tradução simplificada: “Muitos, aqui, vale por todos, o que está certo. E não conside-
remos essa locução absurda. ... ver Rm 5.12,19”.] O próprio Keil admite que [essa palavra] ‘só pode ser
corretamente interpretada à luz do contexto’. Stuart afirma claramente que o contexto lhe dá aqui o
sentido universal”. Nota do tradutor.
64
Mt 8.11.
65
At 3.11-26.
25. 25
hora em que ressuscitou, fez muitos santos participantes da Sua ressurreição, os
quais foram vistos em Jerusalém66
. Com isso nos é dada uma garantia de que tudo
o que o Senhor tinha feito e sofrido para adquirir salvação para o gênero humano
pertencia tanto aos crentes do Antigo Testamento quanto a nós. E, de fato, eles
tinham um mesmo espírito que nós temos, pelo qual Deus regenera os Seus para
a vida eterna. Portanto, como vemos que o Espírito de Deus, que é como uma
semente de imortalidade em nós (pelo que é chamado penhor da nossa herança),
habitava neles, como ousaríamos vetar a eles a herança da vida? Por isso o ho-
mem prudente nunca irá conseguir espantar-se o bastante com o fato de os saduceus
no passado terem caído em tão grande estupidez, que é a de negarem a ressurrei-
ção [do corpo] e a imortalidade da alma, sendo que tanto uma como a outra são
demonstradas com muita clareza na Escritura.
Grave erro do judaísmo atual
Em face da brutal ignorância que [com assombro] vemos hoje em todo o povo
judeu, no fato de esperar estultamente um reino terreno de Cristo, não devería-
mos espantar-nos menos ante o fato de que tenha sido predito que lhe sobreviria
tão grande castigo por ter desprezado Jesus Cristo e Seu Evangelho. Porque com
toda a razão Deus feriu os judeus de uma tal cegueira que, tendo eles apagado a luz
que lhes foi apresentada, eles preferiram as trevas. É certo que eles lêem Moisés e
meditam constantemente no que ele escreveu, mas têm o véu que os impede de
contemplar a luz do seu rosto67
. Véu que permanecerá para sempre, enquanto não
se converterem a Cristo, de quem eles agora se desviam quanto podem.
Não há diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos?
“E então?” dirá alguém. “Não restará nenhuma diferença entre oAntigo e o Novo
Testamentos? E que dizer de tantas passagens da Escritura que os opõem um ao
outro como coisas muito diferentes?” Respondo que admito de boa vontade todas
as diferenças que encontrarmos registradasa
na Escritura, mas com a condição de
que não tirem nada da unidade que já deixamos estabelecida. Será fácil ver isso
quando tratarmos delas na devida ordem. Ora, quanto me é possível constatar
examinando diligentemente a Escritura, as diferenças são quatro. Se alguém qui-
ser acrescentar-lhes a quinta, não direi nada contra.
Vou empenhar-me em mostrar que todas elas pertencem, e devem referir-se,
à maneira diversa que Deus empregou para dispensar Sua doutrina, e não ao seu
conteúdo substancial. Assim, não haverá empecilho bastante forte para a seme-
lhança existente entre as promessas do Antigo e as do Novo Testamento, e para
que Cristo seja considerado o fundamento único tanto destas como daquelas.
a. commemorantur.
66
Mt 27.50-53.
67
2Co 3 [notar os versículos 14 e 15].
26. 26 As Institutas – Edição Especial
A primeira diferençaa
é, então, a seguinte: Conquanto Deus sempre tenha
desejado que o Seu povo elevasse o seu pensamento à herança celestial, e pusesse
nisso o seu coração, todavia, para melhor manter a esperança das coisas invisí-
veis, ele o levava a contemplá-las sob Suas bênçãos terrenas, quase sempre lhe
dando algo que lhe agradava. Mas agora, tendo revelado claramente a graça da
vida futura pelo Evangelho, Ele dirige a nossa mente de maneira direta, levando-
nos a meditar nela, sem nos envolvermos com coisas inferiores, como fazia com
os israelitas. Os que não levam em consideração o conselho de Deus acham que
os antigos não subiam a nível mais alto que o de esperar e querer somente o que
se relaciona com a satisfação do corpo. Eles vêem que a terra de Canaã é menci-
onada várias vezes como a recompensa suprema, para remunerar os que obser-
vassem a Lei de Deus. Por outro lado, eles vêem que Deus não faz aos judeus
ameaças mais graves que a de exterminá-los da terra que lhes tinha dado, e de os
espalhar pelas nações estrangeiras. Finalmente, eles vêem que as bênçãos e as
maldições recitadas por Moisés têm, quase todas, esse objetivo. Disso tudo eles
concluem que Deus separou os judeus dos outros povos, não para proveito deles,
mas para o nosso, a fim de que a igreja cristã tivesse uma imagem exteriorb
na
qual pudesse contemplar as coisas espirituais. Vê-se, entretanto, que a Escritura
demonstra que Deus, por meio de todas as promessas terrenas que lhes fazia, quis
conduzi-los, como pela mão, na esperança da Suas graças celestiais. Não consi-
derar esse recurso, essa instrumentalidade, é cometer um erro grosseiro, para não
dizer uma tolicec
.
Debate sobre o significado de Canaã
Eis aqui o ponto que devemos debater contra esse tipo de gente: Eles dizem que
a terra de Canaã, considerada pelo povo de Israel como a sua felicidade suprema,
para nós representa a nossa herança celestial. Nós, ao contrário, sustentamos que,
na posse e no gozo desse bem terreno, o povo de Israel contemplou a herança
futura que lhe estava preparada no céu. Esclarece melhor isto a símile emprega-
da pelo apóstolo Paulo na Epístola aos Gálatas68
. Ele compara o povo judeu com
um herdeiro que ainda está na infância e que, não sendo capaz de se governar, está
sob as mãos do seu tutord
, ou do seu pedagogo69
. É bem verdade que nessa passa-
gem o apóstolo trata principalmente das cerimônias; mas isso não impede que apli-
quemos aquela declaração ao nosso propósito. Vemos, pois, que lhes foi destinada
a mesma herança que a nós, a qual, contudo, eles não puderam gozar plenamentee
.
a. Palavra acrescentada em 1541.
b. Idem.
c. imperitiæ, ne dicam hebetudinis.
d. pædagogi cujus custodiæ commissus.
e. adeundæ et tractandæ nondum capaces (termos do direito romano).
68
Gl 3 e 4 [mormente 3.23-26 e 4.1-7].
69
No sentido do termo grego respectivo: guia, protetor e instrutor ou preceptor de meninos; tutor (N. do T.).
27. 27
Havia entre eles a mesma igreja que a nossa, mas era como se ela estivesse em
sua infância. Por isso o Senhor os manteve com esta pedagogia [sob esta tutela
instrutiva e disciplinar]: Não lhes dar claramente as promessas espirituais, mas
oferecer-lhes alguma imagem e figura delas sob as promessas terrenas. Querendo
receber Abraão, Isaque, Jacó e toda a sua raça na esperança da imortalidade,
prometeu-lhes a terra de Canaã como herança, não para colocarem nela o seu
amor, mas antes para que, considerando-a, se fortalecessem na segura e certa
esperança da verdadeira herança, quea
ainda não lhes era manifesta. E, a fim de
que não abusassem, acrescentou-lhes também uma promessa mais alta, que lhes
testificava que aquela herança terrena não era o principal e supremo bem que Ele
lhes queria fazer. Assim Abraão, tendo recebido a promessa da posse da terra de
Canaã, não ficou enlevadob70
com o que viu, mas foi altamente elevado pela
promessa anexa, como disse Deus: “Não temas,Abrão, eu sou o teu escudo, e teu
galardão será sobremodo grande”.71
Em Deus estava o vero Galardão prometido a Abraão
Vemos que o fim do seu galardão estava em Deus, para que ele não se fixasse
num galardão transitório deste mundo, mas noutro, incorruptível no céu. Tam-
bém vemos que a posse da terra de Canaã não lhe foi prometida com outra finali-
dade senão a de que fosse um sinal da bondade de Deus e uma figura da herança
celestial. E de fato se vê, pelas declarações dos crentes, que eles tinham esse
sentimento. Dessa maneira, Davi foi incentivado pelas bênçãos temporais de Deus
a meditar em Sua graça soberana, como ele diz: “Meu coração e meu corpo des-
falecem de desejo de te ver, Senhor! O Senhor é a minha porção hereditária para
sempre”. E também: “O Senhor é a porção da minha herança e o meu cálice; tu és
o arrimo da minha sorte”. E mais: “Eu clamo ao Senhor, dizendo: Tu és a minha
esperança e a minha herança na terra dos viventes72
”.
Certo é que todos os que assim falaram transcenderam este mundo e todas
as coisas presentes. Contudo, muitas e muitas vezes os profetas descrevem a
bem-aventurança do século futuro fazendo uso da imagem e figura que recebe-
ram de Deus. É dessa forma que devemos entender as declarações que se verão
a seguir, nas quais se diz que “os justos possuirão a terra em herança, e os
ímpios serão exterminados”. “Jerusalém terá abundância de riquezas, e Sião
terá fartura de bens”.73
a. 1541 tem, por erro do secretário: “qu’il”; 1539: “qua”.
b. torpere non sinitur.
70
A expressão latina (torpere non sinitur, cf. nota d) é rica, incluindo a idéia de deixar-se entorpecer, deixar-se
embotar. Abraão não ficou extasiado ou deslumbrado com a terra de Canaã ao ponto de ficar com os seus
sentidos embotados. Nota do tradutor.
71
Gn 15.1.
72
Sl 73.26 [tradução direta]; 16.5; 142.5 [tradução direta].
73
Sl 37.20,29; Jó 18; Pv 2.21,22; Is 62 e diversas outras passagens nesse livro. [Tradução direta.]
28. 28 As Institutas – Edição Especial
Entendamos bem: Essas passagens não se referem a esta vida mortal, que é
como uma peregrinação. E não são pertinentes à cidade terrestre de Jerusalém,
mas são pertinentes e se referem à verdadeira pátria dos que crêem, e à cidade
celeste, na qual Deus preparou venturosa bênção e vida para sempre.74
Mas por
isso mesmo [com tantas promessas em termos terrenais] os santos do Antigo
Testamento apreciavam esta vida mortal mais do que nos cabe fazê-lo hoje. Por-
que, embora soubessem muito bem que não se deviam fixar nas coisas da terra
como se constituíssem sua meta última, todavia, como por outro lado eles julga-
vam que Deus representava por elas a Sua graça para fortalecê-los na esperança,
tendo em vista a sua pequenez, eles se apegavam a elas com maior amor do que se
as considerassem pelo que elas realmente são.
Ora, assim como o Senhor, ao testificar a Sua bondade para com os Seus
fiéis mediante benefícios terrenos, representava por eles a bem-aventurança
espiritual, à qual eles deviam inclinar-se, assim também, por outro lado, as
penas e dores corporais que Ele enviava sobre os maus eram sinais do Seu juízo
futuro sobre os réprobos. Porque, assim como os benefícios de Deus eram en-
tão mais manifestos nas coisas temporais, também o eram as vingançasa
ou
punições. Os ignorantes, não tomando em consideração esta semelhança e con-
formidade entre as penas e as recompensas que havia naquele tempo, ficam
espantados, perguntando-se como pode haver tal variedade em Deus. Como se
antigamente Ele estivesse sempre prontob
para de súbito se vingar com rigorc
dos homens, imediatamente após O terem ofendido; já no presente, como se
Ele tivesse moderadod
a Sua cólera, pune mais brandamente e menos
freqüentemente. E daí pouco falta para imaginarem Deuses diferentes no Anti-
go e no Novo Testamentos.
Mas nos será fácil livrar-nos de todos esses [falsos] escrúpulos, se pensar-
mos na dispensação de Deus, como temos observado, isto é, se considerarmos o
tempo em que Ele fez Sua aliança com o povo de Israel e qual a sua abrangência.
Por um lado, Deus quis simbolizar e representar a bem-aventurança eterna, que
lhes prometeu sob as Suas bênçãos terrenas; e, por outro, a terrível condenaçãoe
,
que os ímpios deveriam esperar sob penas e sofrimentos corporais.
Segunda diferença
A segunda diferença entre o Antigo e o Novo Testamentos consiste nas figuras. É
que, no tempo em que a verdade [plena e concreta] ainda estava ausente, oAntigo
Testamento a representava por meio de imagens, e mostrava sombra em lugar de
a. pœnæ.
b. subitus.
c. sævis horrendisque suppliciis.
d. posito pristinæ iracundiæ affectu.
e. spiritualis mortis gravitatem.
74
Sl 132.
29. 29
corpo. O Novo Testamento contém a verdade presente, e a substânciaa
[real e
concreta]. E nesse sentido devem ser entendidas quase todas as passagens nas
quais, comparativamente, o Antigo Testamento se opõe ao Novo. Tenha-se em
conta, porém, que não há nenhuma outra passagem onde isto seja tratado mais
amplamente que na Epístola aos Hebreus. Ali o apóstolo contesta os que pensa-
vam que a religião ficaria totalmente arruinada se as cerimônias mosaicas fossem
abolidas. Para refutar esse erro, ele toma, em primeiro lugar, o que tinha sido dito
pelo profeta no tocante ao sacrifício de Jesus Cristo75
. Porque, depois que o Pai
constituiu o sacerdote eterno, é certo que os sacrifícios levíticos estão elimina-
dos, no sentido de que aquele sucede a estes. Ora, que este novo sacerdócio é
mais excelente que o outro ele prova, mostrando que foi estabelecido por jura-
mento. Logo a seguir ele acrescenta que, quando o sacerdócio foi assim transfe-
rido, houve transferência de aliança. Além disso, ele ensina categoricamente que
isso era também necessário porque havia tal fraqueza na Lei que ela não podia
levar à perfeição. Subseqüentemente, ele passa a dizer qual é essa fraqueza, de-
clarando que as suas justiças eram exterioresb
, e, por isso, não podiam tornar
perfeitos os seus praticantes, tendo-se em vista a consciência.A razão dada é que
o sangue de animaisc
não pode apagar pecados nem adquirir santidade. Ele então
conclui que na Lei havia uma sombra dos bens futuros, não uma viva presença, a
qual nos é dada no Evangelho.
Comparação da aliança da Lei com a do Evangelho
Aqui devemos considerar em que ponto ele compara a aliança da Lei com a alian-
ça evangélica, o ofíciod
de Moisés com o de Cristo. Porque, se essa comparação
se reportasse à substância das promessas, haveria um grande repúdio recíproco
entre os dois Testamentos. Mas, como vemos que o apóstolo tende para outro
lado, devemos acompanhar a sua intenção, para podermos encontrar a verdade
satisfatoriamente. Centralizemos, pois, a nossa atenção na aliança de Deus que,
uma vez feita, é para durar para sempre. Jesus Cristo é seu cumprimento e sua
consumação. Contudo, enquanto era necessário esperare
o seu cumprimento, o
Senhor, por meio de Moisés, ordenou as cerimônias, para que fossem sinais e
representações delaf
. Eis o ponto xis da controvérsia: Se era preciso que as ceri-
mônias ordenadas e estabelecidas na Lei cessassem, para darem lugar a Jesus
Cristo. Pois bem, embora elas não passassem de acidentes ou acessóriosg
do An-
a. corpus solidum.
b. externas carnis justitias.
c. 1539 tem somente: pecudum victimis.
d. ministerium.
e. dum expectatur.
f. solemnis confirmationis symbola.
g. 1539 acrescenta: ac annexa.
75
Hb, capítulos 8, 9 e 10.
30. 30 As Institutas – Edição Especial
tigo Testamento, não obstante, visto que eram instrumentos pelos quais Deus
mantinha Seu povo na sua doutrina, elas trazem o nome das coisas que represen-
tam, como a Escritura costuma fazer, atribuindo aos sacramentos o nome das
coisas representadas por eles. Porque, em resumo, o Antigo Testamento é aqui
mencionado da maneira solene como o Testamento do Senhor era sancionado ou
confirmado para os judeus, sendo ele constituído de ofertas sacrificiais e de ou-
tras cerimônias. Uma vez que, limitadas a si mesmas, elas nada têm de firmes e
sólidas, o apóstolo sustenta que deveriam ser finalmente ab-rogadas, para cede-
rem lugar a Jesus Cristo, sendo Ele penhora
e Mediador de uma aliança melhor.
Por esta a santificação eterna foi adquirida uma vez por todas para os eleitos, e as
transgressões, que permaneciam no Antigo Testamento, foram abolidas. Ou, se
alguém preferir, oferecemos esta definição.
Definição
O Antigo Testamento foi a doutrina que Deus deu ao povo judeu, doutrina envol-
ta em observância de cerimônias que não tinham nem eficácia nem solidez. Daí o
seu caráter temporal, pois estava como em suspense, até que se firmasse em seu
cumprimento e fosse confirmado em sua substância. Mas então ele foi feito novo
e eterno, quando foi confirmado e estabelecido no sangue de Cristo. Por essa
causa Cristo lhe chamou cálice, que Ele deu aos Seus discípulos na Ceia, o cálice
do novo testamento ou da nova aliança, para indicar que quando a aliança de
Deus foi selada em Seu sangue, cumpriu-se e consumou-se a sua realidade. E
assim foi feita a nova e eterna aliança.
Por aí se vê em que sentido o apóstolo Paulo afirma que os judeus foram
conduzidos a Cristo pela doutrina infantilb
da Lei, antes de Ele se manifestar em
carne. Paulo reconhece que eles eram filhos e herdeiros de Deus, mas, visto que
estavam como que na infância, declara que eles estiveram a cargo de um
pedagogo76
, de um preceptor. Pois é fácil concordar que, antes de elevar-se o Sol
da justiça, não havia grande claridade de revelação, nem entendimento muito
claro. Então o Senhor lhes dispensou a luz da Sua Palavra de modo que a vissem,
ainda que de longe. Foi por isso que Paulo, querendo fazer notar essa pequenez
de entendimento, fez uso de expressão referente à infânciac
, dizendo que o Se-
nhor os quis instruir nessa idade por meio das cerimônias, como que por rudi-
mentos, ou por aspectos elementares próprios da idade infantild
, até que Cristo
fosse manifestado, para aumentar o conhecimento dos Seus, confirmando-os e
fortalecendo-os de tal sorte que não estivessem mais na infância.
a. sponsor.
b. pædagogia.
c. pueritiæ.
d. 1539 tem somente: observatiunculis, tanquam regulis puerilis disciplinæ.
76
Gl 3 e 4.
31. 31
Distinção feita por Jesus Cristo
Esta foi a distinção que Jesus Cristo inseriu quando disse77
que “a lei e os profetas
existiram até João Batista”, e que desde o tempo dele “o reino de Deus é
divulgado”.a
Que foi que Moisés e os Profetas ensinaram em seu tempo? Eles
propiciaram certo gosto e sabor da sabedoria que haveria de ser revelada um dia,
e a mostraram à distânciab
. Mas quando Jesus Cristo pode ser mostrado com o
dedo, o reino de Deus fica aberto e exposto. Porque nele estão ocultos todos os
tesouros da sabedoria e da doutrina78
, e [por Ele] subimos pouco menos que aos
pontos mais altos do céu.
Menos luz, mas grandes exemplos de fé!
Ora, isso não contradiz o fato de que com muita dificuldade encontraremos uma
igreja cristã que mereça ser comparada comAbraão, quanto à firmeza de fé. Igual-
mente, os profetas tinham tão grande entendimento que ainda hoje seria capaz de
iluminar o mundo. O que acontece é que aqui não estamos considerando as gra-
ças e dons que Deus confere a alguns, mas sim a ordem [progressiva] seguida
então. Isso transparece até mesmo na doutrina dos profetas, embora tenham tido
singular privilégio, acima dos demais [servos de Deus]. Porque a doutrina deles é
obscura, como algo longínquo, e está encerrada em figuras ou tiposc
. Ademais,
apesar do fato de que receberam algumas revelações, todavia, como lhes era ne-
cessário submeter-se à pedagogia ou instrução elementar comum a todo o povo,
eles ficavam incluídos no número das crianças, como os outros [filhos de Israel].
Finalmente, jamais houve, naquele tempo, um entendimento tão claro que não
sofresse de algum modo a influência da obscuridade da época. Essa é a razão pela
qual Jesus Cristo disse: “Em verdade vos digo que muitos profetas e justos dese-
jaram ver o que vedes e não viram; e ouvir o que ouvis e não ouviram. Bem-
aventurados, porém, os vossos olhos, porque vêem; e os vossos ouvidos, porque
ouvem”.79
E, de fato, é mais que certo que a presença de Jesus Cristo teve privile-
giada ocasião de trazer ao mundo mais amplo entendimento dos mistérios celestiais,
como nunca antes.
Terceira diferença
Passemos agora à terceira diferença, com base nas seguintes palavras de Jeremias:
“Eis aí vêm dias, diz o Senhor, em que firmarei nova aliança com a casa de Israel
a. evangelizari. (O termo é mais literalmente traduzido: é forçado [ARA: “é tomado por esforço”], mas Calvino,
em seu Comentário sobre a Concordância, etc., diz: “As pessoas... recebem com impetuosidade veemente
a graça que lhes é apresentada”).
b. procul emicantem.
c. typis.
77
Mt 11.12,13 [tradução direta].
78
Cl 2.3.
79
Mt 13.56,57.
32. 32 As Institutas – Edição Especial
e com a casa de Judá. Não conforme a aliança que fiz com seus pais, no dia em
que os tomei pela mão, para os tirar da terra do Egito; porquanto eles anularam
minha aliança, não obstante eu os haver desposado, diz o Senhor. Porque esta é a
aliança que firmarei com a casa de Israel, depois daqueles dias, diz o Senhor: Na
mente lhes imprimirei as minhas leis, também no coração as inscreverei; eu serei
o seu Deus, e eles serão o meu povo.80
Não ensinará jamais cada um ao seu
próximo, nem cada um ao seu irmão, dizendo: Conhece ao Senhor, porque todos
me conhecerão, desde o menor até ao maior deles, diz o Senhor”.81
Dessa passa-
gem Paulo toma ocasião para a comparação que faz entre a Lei e o Evangelho,
descrevendo a Lei nestes termos:82
doutrina literal, pregação que mata e condena,
escrita em tábuas de pedra. Já o Evangelho ele descreve como doutrina espiritual,
que vivifica e justifica, e gravada no coração. Acresce que a Lei seria abolida, e
o Evangelho durará para sempre. Visto que a intenção do apóstolo Paulo era
expor o sentido do ensino do profeta, para nós bastará considerar as palavras de
um para entender os dois. Se bem que eles têm alguma diferença entre si. Porque
o apóstolo fala mais adversamente da Lei que o profeta. Isso ele faz, não simples-
mente considerando a natureza dela, mas, visto que havia alguns fulanos confusosa
que, por um zelo desordenadob
que tinham pelas cerimônias, esforçavam-se para
obscurecer a clareza do Evangelho, ele foi forçado a discutir segundo o erro deles
e seu apego insensato.
Devemos ter em mente esta particularidade em Paulo: Quando ele e Jeremias
estão de acordo, naquilo em que ambos opõem o Antigo Testamento ao Novo,
eles não consideram na Lei nada senão o que é próprio dela. Exemplo: A Lei
contém aqui e ali promessas da misericórdia de Deus; mas como tais promessas
são tomadas doutra parte, não entram em conta quando se trata da questão da
natureza da Lei. Eles só tratam das funções da Lei nas quais ela ordena o que é
justo e bom; proíbe toda maldade; promete recompensa aos que praticam a justi-
ça; ameaça os pecadores com a vingança de Deus – sem que ela possa mudar ou
corrigir a perversidade existente naturalmente em todos os homens.
Exame da comparação apostólica, parte por parte
Expliquemos agora, parte por parte, a comparação feita pelo apóstolo. O Antigo
Testamento, diz ele, é literal [é mera letra], porque foi publicado sem a eficácia
[interior] do Espírito; o Novo é espiritual, porque o Senhor o gravou no coração
dos Seus. Em vista disso, o segundo contraste que ele faz é com o fim de aclarar
a. nebulones.
b. kaxozhloi.
80
A parte impressa em tipo itálico, no original francês está: “...e lhes serei propício, perdoando os seus pecadosa
”.
Cf. parte final do versículo 34 (N. do T.).
a. propitiabor iniquitati. [Na tradução, ocorre na nota de rodapé.]
81
Jr 31.31-34.
82
2Co 3.1-11.
33. 33
o primeiro. Diz ele que o Antigo Testamento é mortal [mata] porque não pode
fazer nada senão envolver em maldição todo o gênero humano. O Novo é instru-
mento de vida porque, livrando-nos da maldição, remete-nos à graça de Deus. À
mesma finalidade visa o que ele declara em seguida: O primeiro é um ministério
de condenação, porque mostra que todos os filhos de Adão são culpados de ini-
qüidade. O segundo é um ministério de justiça, porque nos revela a misericórdia
de Deus, graças à qual somos justificados. A última parte da comparação deve se
reportar às cerimônias. Porque eram uma imagem de coisas ausentes, acontecia
que com o tempo se desvaneciam; como o Evangelho contém o corpo [o conteú-
do substancial], sua firme consistência dura para sempre. Jeremias também des-
creve a Lei moral como uma aliança fraca e frágil, mas por outro motivo, a saber,
que, por causa da ingratidão do povo, ela foi logo posta de lado e quebrantada.
Mas, visto que essa violação é um erro que vem de fora, não se deve atribuir
propriamente à Lei. Outra coisa: como as cerimônias, por sua própria fraqueza,
foram ab-rogadas quando do advento de Cristo, elas contêm em si mesmas a
causa da sua ab-rogação. Agora, a diferença assinalada entre a letra e o Espírito,
não deve ser entendida como se, no passado, o Senhor tivesse dado Sua Lei aos
judeus sem que ela produzisse nenhum fruto nem tivesse utilidade nenhumaa
, não
convertendo ninguém a si; mas isso é dito em termos de comparação, para en-
grandecer mais a abundância da graça, a qual aprouve ao Senhor mostrar na pre-
gação do Evangelho, para honrar o reino do Seu Cristo. Porque, se julgarmos a
multidão congregadab
de diversas nações pela pregação do Seu Evangelho e
graças à regeneração operada por Seu Espírito, veremos que o número dos que
receberam e acataram a doutrina da Leic
com verdadeiro amor e de coração foi tão
pequeno que não há termos de comparaçãod
. Se bem que, se se tomar o povo de
Israel sem considerar a igreja cristã, havia naquele tempo muitos crentes fiéis.83
Quarta diferença
A quarta diferença decorre e depende da terceira. Porque a Escritura dá aoAntigo
Testamento o título de aliança de escravidão, porquanto ele gera temor e terror no
coração dos homens; já o Novo é denominado aliança de liberdade, porque ele os
confirma na segurança e na confiança. Assim fala o apóstolo Paulo na Epístola
aos Romanos:84
“Porque não recebestes o espírito de escravidão, para viverdes,
a. Palavra acrescentada em 1541.
b. 1539 acrescentou: in ecclesiæ suæ communionem.
c. fœdus Domini.
d. 1539 tem somente: sine comparatione.
83
“A glória da lei é abolida quando produz o evangelho. Assim como a lua e as estrelas, ainda que elas mesmas
brilhem e espalhem sua luz sobre todo o orbe, todavia desvanecem diante do brilho mais intenso do sol,
assim também a lei, não obstante ser gloriosa em si mesma, não resplandece em face da maior grandeza do
evangelho.” [João Calvino, Exposição de 2 Coríntios, São Paulo, Paracletos, 1995, (2Co 3.10), p. 72-73].
84
Rm 8.15.
34. 34 As Institutas – Edição Especial
outra vez, atemorizados, mas recebestes o espírito de adoção, baseados no qual
clamamos:Aba, Pai”! [NVI: “Pois vocês não receberam um espírito que os escra-
vize para novamente temerem, mas receberam o Espírito que os adota como fi-
lhos, por meio do qual clamamos: Aba, Pai”!]. É isso também que o autor da
Epístola aos Hebreus quer dizer, quando afirma, a respeito dos crentes: “Ora, não
tendes chegado ao fogo palpável e ardente, e à escuridão, e às trevas, e à tempes-
tade, e ao clangor da trombeta”, quando o povo de Israel não viu nada que não lhe
causasse pavor e espanto. “Na verdade, de tal modo era horrível o espetáculo,
que Moisés disse: Sinto-me aterrado e trêmulo!”85
Também Deus não fala com
eles com voz terrível, como fazia então, pois o que se diz é: “Mas tendes chegado
ao monte Sião e à cidade do Deus vivo, a Jerusalém celestial, e a incontáveis
hostes de anjos, e à universal assembléia” etc. [versículos 22-24].
Essa declaração, que de passo foi tocada na passagem que citamos da Epís-
tola aos Romanos, é exposta mais amplamente na Epístola aos Gálatas, onde o
apóstolo Paulo tece uma alegoria dos dois filhos de Abraão, desta maneira:86
Hagar, a escrava, é uma figura do Monte Sinai, onde o povo de Israel recebeu a
Lei. Sara, a senhora, é uma figura de Jerusalém, de onde procede o Evangelho.
Como a linhagem de Hagar é escrava, não pode vir à herança; ao contrário, a
linhagem de Sara é livre, e deve vir à herança.Assim, a Lei não pode gerar em nós
nada mais que escravidão; o que não se dá com o Evangelho, que nos regenera
para a liberdade.
Sumário desta parte
Eis o resumo que disso se tem: que o Antigo Testamento foi dado para incutir
pavora
nas consciências, e o Novo, para que lhes fosse dada alegria e contentamentob
;
que o primeiro teve as consciências oprimidas e encerradas sob o jugo da servi-
dão, ao passo que o segundo nos liberta e nos declara livres. Se alguém objetar
dizendo que, visto que os pais doAntigo Testamentoc
tinham o mesmo espírito de
fé que nós temos, segue-se que eles participaram da mesma liberdade e alegria,
respondemos que nem uma coisa nem outra eles tiveram pelo benefício da Lei;
antes, vendo-se por ela cativos, em escravidão e com problema de consciência, o
recurso que tiveram foi o Evangelho. Pelo que se vê que a liberdade que eles
tiveram daquela miséria foi um fruto especial do Novo Testamento.
Além disso, negamos que eles, gozando grande liberdade e segurança, não
tenham sentido nada do temor e da escravidão que a Lei causava. Porque, embora
gozassem do privilégio obtido pelo Evangelho, ainda estavam sujeitos, em co-
mum com os demais [servos de Deus], a todas as observâncias requeridas, às
a. pavorem ac trepidationem incussisse.
b. 1539 tem somente: lætitiam.
c. ex populo israelitico sancti patres.
85
Hb 12.18-21.
86
Gl 4.21-31.
35. 35
acusações e aos laços então vigentes. Sendo, pois, assim, eles estavam obrigados
a observar as cerimônias, que eram como símbolosa
da pedagogia [da instrução
infantil], que o apóstolo Paulo afirmab
que era como uma escravidão, e igualmen-
te como cédulasc
pelas quais eles se confessavam culpados diante de Deus, sem
liqüidar os seus débitos. Com razão se afirma que, diversamente de nós, eles
estavam sob o Testamento da escravidão, quando se considera a ordem e o modo
de agir que o Senhor seguia naquele tempo com relação ao povo de Israel.
Classificação das comparações feitas
As três últimas comparações são da Lei e o Evangelho. Porque nelas, sob o nome
de Antigo Testamento devemos entender a Lei, como o nome Novo Testamento
significa o Evangelho. A primeira que apresentamos tem maior alcance. Porque
inclui também o estado dos antigos pais, anteriores à Lei. Agora, quanto ao que
Agostinho nega87
, que as promessas daquele tempo estavam sob o Antigo Testa-
mento, sua opinião é boa; e ele não quis dizer outra coisa senão o que nós ensina-
mos. Porque ele examinou as declarações que nós citamos de Jeremias e do após-
tolo Paulo, e aquelas que o Antigo Testamento opõe à doutrina da graça e da
misericórdia. Portanto, fala-se com propriedade quando se diz que todos os cren-
tes que foram regenerados por Deus, desde o princípio do mundo, e que seguiram
Sua vontade com fé e vero amor, pertencem ao Novo Testamento; e que eles
tinham sua esperança firmemente posta, não em bens carnais, terrenos e tempo-
rais, mas espirituais, celestes e eternos. E mais, que eles criam singular e exclusi-
vamente no Mediador, graças ao qual não duvidavam que o Espírito Santo lhes
tinha sido dado e que obteriam perdão todas as vezes e quantas tivessem cometi-
do pecado.
Foi isso que desejei sustentar, isto é, que todos os santos a respeito dos
quais lemos na Escritura que foram escolhidos por Deus, desde o princípio do
mundo, têm sido participantes conosco das mesmas bênçãos que nos são dadas
com a salvação eterna. Entre a divisão que coloquei e a de Agostinho há somente
esta diferença: eu quis distinguir entre a clareza do Evangelho e a obscuridade
que havia anteriormente, seguindo as declarações de Cristo registradas na passa-
gem em que Ele afirma que “a lei e os profetas duraram até João” e que “ nesse
tempo [a partir de João] o reino de Deus começou a ser pregado”.88
Ele se conten-
ta em distinguir entre a fraqueza da Lei e a firmeza ou solidez do Evangelho.
Também devemos notar que os antigos pais viveram de tal modo sob o Antigo
Testamento que não ficaram confinados a ele, mas sempre aspiraram ao Novo, e
a. symbola.
b. Acréscimo feito em 1541.
c. chirographa.
87
L. 3, ad Bonifac.
88
Mt 11.12,13 [tradução direta].