O discurso é um fenômeno complexo que envolve diversos aspectos, conforme definido por van Dijk. Algumas dessas definições destacam o caráter social e situacional do discurso, como evento comunicativo e de interação, que ocorre em determinado contexto sociocultural. Outras definições apontam para os aspectos cognitivos do discurso, como forma de fazer sentido, construção e interpretação de significados. Há também uma dimensão política do discurso, relacionada ao seu poder de influenciar mentes e ações, e de reproduzir ideologias.
1. UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
COLEGIADO DE LETRAS COM HABILITAÇÃO EM LÍNGUA PORTUGUESA E
LITERATURAS - LICENCIATURA
ANA GRACIELE DE OLIVEIRA MOTA
A REPRODUÇÃO DO DISCURSO SEXISTA E A DOMINAÇÃO
MASCULINA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO EXISTENCIAL ENTRE
DISCURSO E PODER
Conceição do Coité
2011
2. 1
ANA GRACIELE DE OLIVEIRA MOTA
A REPRODUÇÃO DO DISCURSO SEXISTA E A DOMINAÇÃO
MASCULINA: UMA ANÁLISE DA RELAÇÃO EXISTENCIAL ENTRE
DISCURSO E PODER
Monografia apresentada ao Departamento de Educação do
Estado da Bahia (UNEB), curso de Letras com Habilitação
em Língua Portuguesa e Literaturas - Licenciatura, como
parte do processo avaliativo para obtenção do grau de
Licenciado (a) em Letras.
Orientador: Prof. Ms. Robson Batista de Lima.
Conceição do Coité
2011
3. 2
“Dilaceradas por pertencerem, simultânea e
conflituosamente, ao espaço privado, ao mundo do
lar e da família, regidas pelas emoções, pelos
sentimentos e pela afetividade, e ao espaço público,
ao mundo do trabalho regido pela agressividade,
pela competividade e pelo princípio do rendimento,
as mulheres descobrem que o acesso às funções
masculinas não basta para assentar a igualdade e
que a igualdade, compreendida como interação
unilateral no mundo dos homens, não é liberdade.”
Rosiska Darcy de Oliveira
4. 3
AGRADECIMENTOS
Agradeço a Deus, meu Mestre maior, que em minha caminhada sempre iluminou os
meus passos, mostrando-me o verdadeiro sentido da vida. Que em muitos momentos
tenebrosos e difíceis, nos quais pensei em desistir, o Senhor, em sua qualidade de Pai sempre
me dizia: “Filha, não desanimeis, Eu sempre estarei contigo!”.
À minha família, que embora não tendo as mesmas oportunidades que eu, sempre me
estimulou nessa busca por conhecimentos, dando-me forças para suportar todas as
dificuldades.
Ao meu amor, amigo conselheiro e companheiro, que em todos os momentos
acompanhou o desenrolar da minha vida acadêmica, seguida de lamentações, inseguranças e
incertezas, transformar-se em alegrias e autoconfiança. Graças aos seus conselhos e sua auto-
afirmação positiva, pude transformar-me em uma pessoa muito mais capaz e segura para lidar
com os problemas e dificuldades, encarando-os como frutos dos anseios os quais busquei.
Aos mestres que contribuíram com o meu aprendizado, mostrando-me as facetas
implícitas da palavra e da literatura, já que são nas linhas submersas que o saber se refaz. Em
especial, ao meu orientador, Robson Lima, por ter contribuído com esse trabalho, pois sem ele
não teria o mesmo êxito.
Aos colegas, por compartilharem o conhecimento, as dificuldades, as alegrias e as
tristezas, nessa jornada que durou pouco, mas o suficiente para deixar marcas e saudades.
Neste momento de júbilo, olho para o passado e vejo quantos obstáculos foram vencidos
e quanto amarga foi a luta, mas apesar de tudo, o que mais vale é saborear o gosto doce da
vitória e lembrar-se de que: Deus só proporciona a cada um de nós aquilo que podemos
alcançar.
5. 4
RESUMO
Esta monografia se propõe investigar como o discurso constrói e reproduz ideologias
dominantes e de que modo o discurso sexista revela a dominação masculina. O objetivo principal
da pesquisa é fazer uma análise discursiva, a fim de identificar a relação existente entre discurso,
poder e dominação. Partindo-se do princípio de que a ordem masculina do Cosmo perpassa antes,
pela divisão sexual, que separa o universo em categorias distintas: o masculino e o feminino. A
análise será elaborada também em concomitância com as estratégias discursivas, que funcionam
como sustentáculos para a (re)produção de sentido. Os principais teóricos utilizados na pesquisa
foram: Prado (1979), Studart (1986), Viezzer(1989), Oliveira (19990, Bourdieu (2007) e Van Dijk
(2008) .O corpus que constitui o material de análise é composto por artigos selecionados na revista
Seicho-No-Ie: Pomba Branca, revista esta de cunho religioso e direcionada ao público feminino.
Verifica-se portanto, que a dominação masculina ocorre, sobretudo, por meio do controle
discursivo, pois aqueles que detêm o poder também controlam os discursos. E como afirma van
Dijk (2008): controlar o discurso significa controlar mentes e ações. Nesse contexto, o homem, que
é a elite simbólica, detém o poder, também simbólico, e promove, a partir do discurso sexista,
separatista e discriminatório, a superioridade masculina e a inferioridade feminina.
Palavras-chave: Discurso sexista. Dominação masculina. Estratégias discursivas.
6. 5
ABSTRACT
This work proposes to investigate how the speech builds and propagate dominant ideologies
and how sexist speech shows the male domination. The research main objective is to do a
discursive analysis, in order to identify the relationship between discuss, power and
domination. Based on the principle that, the masculine order of the Cosmus goes through
before, by the sexual division that separates the Universe on two distinct categories: male and
female. The analysis is going to be elaborated too concomitantly with the speeches strategies
that serve as underpinnings for the (re) production of meanings. The main theorists used in the
research were: Prado (1979), Studart (1986), Viezzer(1989), Oliveira (19990, Bourdieu
(2007) e Van Dijk (2008). The corpus that constitutes the material for analysis is composed
by selected articles on the Seicho-No-Ie: Pomba Branca, magazine which is of a religious
nature and directed at a female audience. It appears therefore, that male dominance occurs
mainly through control of discourse, because those in power also control the discourse. And
as stated by van Dijk (2008): speech control means controlling the minds and actions. In this
context, the man who is the elite symbolic, has the power, also symbolic, and promotes from
the sexist discourse, separatist and discriminatory, male superiority and female inferiority.
Keywords: Sexist speech. Male domination. Speeches strategies.
7. 6
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO
CAPÍTULO I: ANÁLISE SOCIOCOGNITIVA DO DISCURSO
1- Discurso, cognição e sociedade......................................................................09
2- Discurso, ideologia e poder............................................................................13
3- Elite simbólica, controle e acesso...................................................................17
4- Discurso e Dominação................................................................................... 20
5- Considerações gerais.......................................................................................21
CAPÍTULO II: DISCURSO SEXISTA E DOMINAÇÃO MASCULINA
1- Discurso sexista: masculino versus feminino................................................23
2- A dominação masculina.................................................................................31
3- Sexismo, religião e ciência............................................................................37
4- Considerações gerais.....................................................................................41
CAPÍTULO III: ANÁLISE DO MATERIAL DISCURSIVO
1- A revista Seicho-No-Ie ...................................................................................42
2- As estratégias do controle discursivo e da dominação masculina...................43
2.1- Considerações gerais sobre a revista Pomba Branca...................................44
2.2- Análise crítica do discurso da revista Pomba Branca..................................45
3- Considerações gerais.......................................................................................54
CONSIDERAÇÕES FINAIS...........................................................................55
REFERÊNCIAS
ANEXOS
8. 7
INTRODUÇÃO
O discurso é uma cadeia expressa de múltiplos sentidos. Esses sentidos são produzidos
mediante uma série de aspectos que envolvem o discurso, a saber: o que, onde, como, para que e
para quem o discurso é expresso. Além disso, o discurso por si mesmo não significa, mas a
construção do significado perpassa antes pelas interpretações pessoais e sociais, isto é, os modelos
mentais construídos socialmente.
Existe uma relação entre discurso e poder, no entanto, essa relação encontra-se implícitas nas
práticas discursivas orais e escritas. Diante dessa perspectiva, faz-se necessário investigar como as
práticas discursivas da mídia impressa contribuem para a reprodução e perpetuação da ideologia
machista, assim também como se institui o processo de manipulação através do discurso.
A pesquisa tem como objetivo geral, investigar a relação entre o discurso, o poder e a
reprodução ideológica em práticas discursivas da mídia impressa, acerca do discurso sexista. E
como objetivos secundários: descrever como o controle do discurso e os modos de reprodução
discursiva se estabelecem para alcançar a manipulação; mostrar como o discurso controla mentes e
manipula ações que condizem com o pensamento do dominante e analisar a inter-relação do
discurso, do poder, da manipulação e, em especial, a dominação masculina em artigos veiculados
na revista Seicho-No-Ie, através das estruturas organizacionais do discurso.
Os Estudos Críticos do Discurso tem um papel crucial no desvendamento das facetas
implícitas do discurso, proporcionando percepções de grande relevância: como o discurso e o
abuso de poder se instituem a fim de disseminar ideologias manipulativas do dominador, de que
forma esses discursos levam à doutrinação do dominado e à desigualdade social e principalmente, a
visualização da interface discurso-cognição que explica como as ideologias e os preconceitos
étnicos são expressos, transmitidos, compartilhados e reproduzidos na sociedade. A escolha da
teoria crítica do discurso é importante, pois, esta promove o aprimoramento da consciência crítica
dos cidadãos no que se referem aos discursos das elites dominantes e ao modo como as práticas
discursivas em geral podem influenciar ou manipular atitudes e/ou ações.
Para a exposição de tais abordagens, serão discutidos os conceitos: discurso, ideologia, poder,
dominação e sexismo, tendo como bases teóricas as perspectivas de van Dijk (2008), Pierre
Bourdieu(2007), Moema Viezzer (1989), Rosiska Oliveira (1999), Danda Prado (1979), Heloneida
Studart (1986) entre outros, com a finalidade de explorar de forma ampla as teorias que alicerçam
os estudos críticos do discurso e da dominação masculina.
9. 8
A metodologia adotada foi a pesquisa bibliográfica, englobando análise dos conceitos que
envolvem o discurso, bem como a sua relação com a dominação de gênero e por fim a análise do
material discursivo.
A monografia está estruturada em três capítulos: o primeiro apresenta os princípios que
intermedeiam o discurso; o segundo refere-se aos aspectos que compõem e influenciam a
dominação masculina e o terceiro corresponde à análise das práticas discursivas contidas na
revista.
10. 9
CAPÍTULO I
ANÁLISE SOCIOCOGNITIVA DO DISCURSO
Este capítulo tem por objetivo abordar os princípios constitutivos do Discurso. A análise
teórica desses princípios está pautada na linha sociocognitiva desenvolvida por Teun van Dijk,
influente pesquisador dos Estudos Críticos do Discurso (doravante ECD).
Essa abordagem baseia-se no pressuposto de que há uma relação de interdependência entre
discurso, cognição e sociedade. A análise também discorre sobre a elite simbólica, o controle
discursivo e o modo como o acesso ao discurso é regulado por aqueles que detêm o poder. Sendo
assim, a referida pesquisa centra-se na análise dos meios pelos quais o discurso percorre para
alcançar a dominação. É importante salientar que a análise a qual me propõe-se realizar apresenta o
discurso de modo mais social, ou seja, a maneira como o discurso se constitui, significa e é
significado dentro de um determinado contexto social.
1- Discurso, cognição e sociedade
Os seres humanos são seres sociais que se constituem por linguagem e através da linguagem.
A todo instante somos convocados a exercer papéis comunicativos que se estabelecem de forma
ampla e situada num determinado contexto e não de modo restrito e fechado entre emissor e
receptor de textos como defendiam alguns linguistas. Assim, van Dijk (2008, p.12) afirma que: “O
discurso não é apenas analisado como objeto verbal autônomo, mas também como interação
situada, como uma prática social ou como um tipo de comunicação numa situação social, cultural,
histórica e política”. Portanto, para os ECD, a ideia de discurso como enunciado fechado é abolida
e o discurso é encarado como um evento comunicativo, no qual se observa uma série de aspectos
que o circunda, tais como os contextos situacionais e temporais, o veículo usado para propagar os
eventos comunicativos, os papéis sociais e comunicativos que os envolvidos no evento discursivo
assumem, entre outros. Os ECD enfatizam a análise de ações sociais que permeiam a prática do
discurso, como o controle social, o abuso do poder, a dominação, as desigualdades sociais ou a
marginalização e a exclusão social. De acordo com Rojo & Whittaker (apud IÑIGUEZ, 2004,
p.119): “[...] o discurso é sobretudo uma prática social, já que não é contemplado como uma
11. 10
‘representação’ ou reflexo dos processos sociais; ao contrário, seu caráter constitutivo é que é
ressaltado”.
O discurso para van Dijk (2010)1 é um fenômeno complexo.Dessa maneira, ele apresenta as
seguintes definições:
1- Discurso é o uso da linguagem
2- É um evento de comunicação
3- É ato de fala
4- É uma forma de interação
5- É uma maneira de fazer sentido, símbolo, semiótica
6- É uma forma de cognição, construção, interpretação
7- É uma mensagem
8- É um evento multimodal
9- É arte
10- É capital simbólico (pode ser vendido ou comprado)
11- É conhecimento
12- É texto e contexto
Portanto, discurso é a combinação de aspectos econômicos, sociológicos, linguísticos,
cognitivos e pragmáticos. Desse modo, para compreender os discursos é preciso conhecimento de
mundo e dos aspectos contextuais que envolvem a prática discursiva. Além disso, a significação do
discurso no âmbito local e global depende das experiências pessoais, pois a construção do discurso
se estabelece na mente.
Assim, a cognição, que é o ato de adquirir conhecimento, desempenha um papel crucial na
realização do seguimento discursivo. A teoria cognitiva pressupõe que os processos mentais e
pragmáticos são estruturas decisivas no processo de compreensão, acumulação e reprodução dos
discursos. Tal estrutura previamente adquirida é particular de cada pessoa que favorece o processo
de interação comunicativa, tornando, assim, variáveis o modo de interpretar e exteriorizar uma
mesma prática discursiva:
[...] as condições sociais relevantes envolvidas nas formulações das regras pragmáticas,
como nas relações de autoridade, poder, papel, polidez, operam sobre bases cognitivas.
Isto é, elas são relevantes na medida em que o participante tem conhecimento dessas
regras, podem usá-las e são capazes de relacionar suas interpretações sobre o que está
ocorrendo na comunicação às características sociais do contexto (VAN DIJK, 2004,
p.76).
1
van Dijk. Discurso e poder. Palestra apresentada no auditório do PAF - UFBA, Campus de Ondina, em 03-12-
10, Salvador. (DVD).
12. 11
Assim, muitas das relações que se estabelecem entre discurso e sociedade perpassam por um
fio condutor, antes de processar-se concretamente, isto é, as crenças, os valores, as condutas e os
costumes dos participantes no processo comunicativo são acionados, a fim de produzir ou
reproduzir sentidos, estejam estes ligados a aspectos de dominação ou reprodução ideológica. Ou
seja, um mesmo evento comunicativo é lido ou ouvido por pessoas diferentes, que, por sua vez,
irão interpretá-lo e absorvê-lo de forma distinta, a depender das condições contextuais e
situacionais nas quais o indivíduo se insere. Além disso, as diferenças culturais também
influenciam o modo como a reprodução discursiva se processa, pois os discursos serão
compreendidos, usados e compartilhados de modo distintos, variando de uma cultura para outra.
Para van Dijk (2008, p.27): “[...] os discursos e as maneiras como reproduzem o poder são
diferentes em diferentes culturas, como também o são as estruturas sociais e as cognições sociais
que estão envolvidas nesse processo de reprodução [...]”.
Em geral, os ECD estabelecem uma relação direta entre sociedade, discurso e as práticas
sociais, em especial, poder e dominação, desconsiderando, portanto, as experiências e as ideologias
que o indivíduo já possui.
Na busca pelo desvendamento das relações de poder que envolve o discurso, van Dijk
estabelece um quadro teórico-metodológico tridimensional, em que a análise do discurso se
materializa nas práticas textuais da sociedade e nas condições de produção em que essas práticas
estão mergulhadas e nos meios cognitivos de processamento e compreensão discursivos. Dessa
forma, na análise sociocognitiva do discurso de van Dijk, não há relação direta entre discurso e
sociedade. Ele propõe um estudo da tríade discurso, cognição e sociedade (ver fig. 1 p.7) por
acreditar que existe uma relação interdependente entre esses conceitos. Para compreender a análise
cognitiva do Discurso é oportuno expor dois conceitos fundamentais apresentados por van Dijk
(apud AZEVEDO, 2008), revelando, portanto, que a teorização do discurso depende dos aspectos
sociais e cognitivos para tornar-se completa:
[...] i) a cognição é uma propriedade desenvolvida individual e socialmente, pois é
adquirida, aprendida, formada e transformada tanto em processos de interações sociais,
como em processos individuais de percepção, inferenciação etc.; ii) a sociedade é uma
construção humana e resulta de interações coordenadas e negociadas entre atores sociais.
Essas interações só podem ser realizadas a partir de crenças, conhecimentos, normas e
valores compartilhados [...] (p. 23-4).
Objetivando entender como as relações sociais e discursivas influenciam o sistema cognitivo
dos envolvidos no processo comunicativo, van Dijk adota a noção de modelos mentais como
elementos intermediário entre as estruturas sociais e o indivíduo. Esses modelos são as
13. 12
representações cognitivas pessoais que envolvem as experiências, interpretações, conhecimentos e
opiniões. Os modelos mentais também são caracterizados pelas crenças gerais e abstratas,
incluindo os processos cognitivos sociais. Dessa maneira, quando ouvimos ou presenciamos um
acontecimento, nossos processos cognitivos constroem um modelo mental de compreensão dos
eventos, portanto, os modelos mentais funcionam como fator aliado da compreensão textual.
Campos (2010, p.2) afirma que: “Os modelos mentais formam, portanto, a interface entre
representações sociais generalizadas, por um lado, e o uso individual dessas representações na
percepção social, interação e discurso, por outro”.
Sociedade, cognição e discurso são três dimensões que se encontram intimamente
interligadas. Sem considerarmos a cognição, por exemplo, não podemos entender satisfatoriamente
as demais dimensões. Isso porque os indivíduos precisam, primeiramente, observar, experimentar,
interpretar e representar as estruturas sociais como fazendo parte de suas interações cotidianas. Os
discursos, assim como as demais práticas sociais desses indivíduos, sofrem a influência dos
modelos mentais construídos para os eventos específicos. Dessa forma, a cognição (social e
pessoal) funciona como uma ponte entre o discurso e a sociedade.
Os discursos, por sua vez, vão além de práticas interacionais ou sociais. São estruturas que
expressam e transmitem sentidos. A construção e a interpretação desses sentidos perpassam pelos
modelos mentais (crenças, valores, conhecimentos, atitudes etc.) que se diferenciam de pessoa para
pessoa. Portanto, os discursos não são cadeias estáticas de sentidos ou significados que se realizam
diretamente na sociedade, antes são estruturas que influenciam nossas mentes, transmitindo,
transformando e reproduzindo ideologias. É desse modo que a tríade (sociedade, cognição e
discurso) está intrinsecamente relacionada. Observe a figura a seguir que representa a tríade
discursiva proposta por van Dijk, a qual mostra os três vértices da pirâmide como partes
inseparáveis:
COGNIÇÃO SOCIAL
Interpretação
Atitudes
Ideologia
DISCURSO ---------------------------- SOCIEDADE
14. 13
Figura 1: A Tríade da Análise Cognitiva do Discurso2
Através dessa figura, observa-se que na análise sócio-cognitivista do Discurso, proposta por
van Dijk, é impensável que a prática social do discurso se estabeleça sem os aspectos cognitivos,
pois discurso, sociedade e cognição se relacionam de modo constitutivo. Desse modo, van Dijk
(2006) afirma que: “A cognição opera na interface da relação entre discurso e sociedade”.
2- Discurso, ideologia e poder
De modo amplo, os discursos que circulam socialmente são controlados por aqueles que
detêm o poder. Este fato ocorre não por acaso, pois os discursos, em sua maioria, referem-se a
textos de ordem persuasiva que influenciam comportamentos, atitudes e modos de pensar e agir das
pessoas. Embora uma pequena parcela da sociedade acredite que dispõe de total liberdade e se ache
isenta da reprodução ideológica, engana-se, pois há, em todos os setores da sociedade, uma
dependência maior que rege toda essa amplitude. São as leis, as normas e os códigos que
estabelecem padrões a serem seguidos. É por meio dessa aparente liberdade que a ideologia
dominante se “esconde”.
Nos ECD, a ideologia e o poder desempenham papéis cruciais para a compreensão da
maneira como a dominação se instaura na sociedade e o papel que o discurso desenvolve na
mesma. Há uma enorme variedade de conceitos que permeiam a ideologia; entretanto, de acordo às
bases que sustentam a análise do discurso, ideologia é uma forma de cognição social que pode
servir tanto à legitimação quanto à resistência ao poder e à dominação, em que a estrutura cognitiva
abrangente controla a formação, transformação e reprodução de outras estruturas cognitivas
específicas, como as ações, conhecimentos e as opiniões em modelos mentais e comportamentais
que resultam numa representação social, como o preconceito de cor e de gênero.
A estrutura ideológica constitui-se de uma gama de metas previamente selecionadas e
aplicadas que favorecem implicitamente os interesses dos dominantes. A disseminação dessa
ideologia não ocorre de modo particular e unilateral, mas abarca uma estrutura complexa. Dessa
forma, os pilares de sustentação e propagação do discurso são acionados: as instituições religiosas
e educacionais e os meios de comunicação, que, por sua vez, dão credibilidade e veracidade aos
discursos.
2
Retirado da tese de Karina Falcone Azevedo (2008, p. 25)
15. 14
As bases da reprodução ideológica são regidas pelas estruturas do poder, que controlam e
estabelecem os padrões sociais e comportamentais da sociedade. Em épocas remotas, o poder era
exercido de modo vertical, isto é, sobre o controle de classe e dos meios de produção. Com o
desenvolvimento tecnológico e a possibilidade de ascensão social mais abrangente, atualmente a
prática do poder tem sido amplamente modificada, o controle passa a ser sobre as mentes das
massas e, para que o controle se realize, é preciso que haja o controle sobre os discursos públicos
nas diversas esferas sociais. O controle é exercido basicamente através da persuasão ou do medo
das punições impostas pela classe dominante.
Segundo van Dijk (2008, p.87): “Poder é uma propriedade das relações entre grupos,
instituições ou organizações sociais [...]”. Assim, a Análise do Discurso considera apenas o poder
social, e não o poder individual como critério de análise. Dessa maneira, o poder passa a ser
analisado a partir das várias formas de resistência e contrapoder dos grupos dominados.
A sociedade atual é regida por dois tipos de poder: o simbólico e o material. O primeiro
refere-se ao poder de acesso ou controle dos discursos públicos, por exemplo, as figuras sociais que
se destacam no mundo da fama ou os que possuem status na sociedade, juízes, jornalistas,
advogados, militares etc. Já o poder material refere-se a termos econômicos, isto é, os que se
concentram no topo da pirâmide social, os grandes empresários, banqueiros e milionários.
.
Nota-se que há uma relação existencial entre poder social e controle social, pois o poder é
exercido, principalmente, por meio do discurso, sendo este realizável através da interação social,
isto é, o controle de membros de um grupo sobre outros indivíduos. A análise das estruturas que
regem o exercício do poder percorre algumas dimensões que se relacionam de modo contínuo. Em
primeira instância, encontram-se as instituições que representam o poder na sociedade: os órgãos
públicos, as forças armadas, os meios de comunicação de massa, as instituições religiosas,
políticas, jurídicas e de ensino. Em segundo nível, encontra-se a hierarquização de autoridade que
existe no epicentro de cada uma dessas instituições, o que possibilita que existam diferentes atos de
falas entre quem comanda e quem obedece. Em terceiro nível, observa-se a relação de poder entre
grupos que se distanciam de modo antagônico: brancos e negros, homens e mulheres, ricos e
pobres, heterossexuais e homossexuais entre outros. Essas variações de poder promovem
desigualdade do controle do discurso, isto é, aqueles que possuem controle ativo dos discursos,
portanto, uma auto-apresentação positiva -Nós- controlam os que possuem acesso limitado aos
discursos, sendo estes referidos nos discursos através da apresentação negativa - Eles. Em quarto
nível, encontra-se a análise da abrangência, do domínio e do teor de influência que o exercício do
poder exerce sobre as pessoas, sendo estes controlados pelos atos discursivos e o modo como esses
16. 15
discursos são propagados e selecionados previamente pelas instituições que regulam o nível do
impacto da influência a depender do objetivo que se almeja alcançar.
A sociedade só se mantém ordenada e controlada graças às relações legítimas de poder, que,
por sua vez, impõem regras, ordens e limites. Sem esses aspectos, a sociedade seria um verdadeiro
caos. Na medida em que o poder é exercido, obedecendo a sua legitimidade, proporciona
benefícios para a sociedade. No entanto, há ainda assim regras e leis que aparentemente traçam um
parâmetro de igualdade, porém as diferenças de poder existem de modo que nos faz acreditar que
as desigualdades de conhecimento e de acesso são normais, variando, portanto, de acordo com a
posição que ocupamos na sociedade. Como, por exemplo, as relações de poder entre o médico e o
paciente, os pais e os filhos, o empresário e seus funcionários, os padres e os fiéis etc.
O que interessa aos analistas críticos do discurso são justamente os usos e as práticas do
poder que ultrapassam o limite de sua legitimidade, portanto, o abuso de poder. Essas práticas
abusivas do poder acarretam consequências sociais negativas como a dominação, a doutrinação, as
desigualdades, as injustiças.
O abuso de poder revela-se quando ocorre a transgressão de regras e normas que regulam os
direitos sociais e civis das pessoas em prol dos interesses particulares daqueles que têm poder. A
ilegitimidade do poder se realiza concretamente quando as pessoas têm o acesso limitado a uma
educação de qualidade, a informações importantes que desenvolvam sua criticidade, e o
impedimento de ascender socialmente entre outras variáveis. Essas ações ilegítimas do poder
promovem formas desiguais de tratamento e de parâmetros de vida. Segundo van Dijk (2008) os
usos ilegítimos do poder podem proporcionar consequências sociais e mentais negativas
provenientes da dominação discursiva, entre elas estão: desinformação, estereótipos e o
preconceito, que, por sua vez, resultam em modelos mentais que influenciam o processo social
negativo: a discriminação.
A análise da dominação discursiva, no que se refere as suas consequências positivas ou
negativas, varia de acordo com a cultura e as ideologias de cada indivíduo, bem como os padrões
de justiça e liberdade de cada país.
Finalmente, observa-se que a execução e reprodução do poder ocorrem no discurso e através
dele. Desse modo, tanto a escrita quanto a fala desempenham papéis decisivos no exercício do
poder. O poder discursivo também se manifesta de forma indireta, por meio das representações,
modelos de expressão, descrição ou legitimação das ações e ideologias dos que têm poder.
Van Dijk (2008) afirma que existe uma correlação direta entre a abrangência do discurso com
a estrutura abrangente do poder, pois poderosos possuem acesso ilimitado a uma gama de
17. 16
discursos. Enquanto os sem-poder controlam apenas uma parcela ínfima dos discursos, em geral as
conversações cotidianas, e nos mais variados discursos assumem posturas de receptores passivos.
É através do exercício do poder e do controle discursivo que os atores do discurso transmitem
ideologias, influenciando e manipulando as mentes das pessoas e consequentemente controlando a
formação das cognições sociais que satisfazem os seus anseios, pois para van Dijk é pelo discurso,
principalmente, que as ideologias são expressas, adquiridas e representadas, por meio de estruturas
e estratégias textuais. Logo, entende-se que há um elo entre discurso, poder e ideologia, assim a
realização de qualquer um desses aspectos depende dos outros.
3- Elite simbólica, controle e acesso
A definição de elite simbólica está centrada no poder. Os que possuem poder na sociedade e,
consequentemente, dominam a ação discursiva são caracterizados como elite simbólica. Esta
categoria pode ser exemplificada pelos seguintes grupos sociais: político, empresarial, jornalístico,
policial, midiático, alguns profissionais da área da saúde e da educação entre outros.
A análise do poder simbólico não deve ser feita a partir do poder de uma pessoa, mas o modo
como a influência que a posição social ocupada por tal, relaciona-se com um poder organizado e
abrangente. Um exemplo claro dessa abrangência e organização do poder se institui quando um
deputado elabora e propõe leis, no entanto, essas leis por si mesmas não possuem significação e
aprovação, precisam passar por votação de uma comissão parlamentar para serem sancionadas ou
reprovadas.
A classificação de elite simbólica está intimamente ligada ao poder simbólico, ou seja, ao
poder de acesso e controle dos discursos públicos, que por sua vez, regulamentam o controle
social, pois controlar discursos significa controlar mentes. É por meio desse controle que objetiva-
se perpetuar os propósitos e interesses dessa elite.
Para van Dijk (2008), o poder simbólico pode ser originado de outros tipos de poder. Desse
modo, um professor possui poder simbólico, portanto, acesso especial aos discursos, por recorrer às
fontes do conhecimento, e os políticos por possuírem regalias que o poder político lhes fornece.
A maneira como os discursos são articulados e controlados influenciam não só mentes como
também promovem o estabelecimento de formas desiguais de poder. Esse poder simbólico que é
exercido pela elite simbólica é posto em prática quando as decisões sobre gênero, estilo e forma de
apresentação dos discursos são controladas por aqueles que detêm poder:
18. 17
[...] Esse poder não se limita à articulação em si, mas também inclui o modo de
influência: eles podem determinar a agenda da discussão pública, influenciar a relevância
dos tópicos, controlar a quantidade e o tipo de informação, especialmente quanto e quem
deve ganhar destaque publicamente e de que forma. Eles são os fabricantes do
conhecimento, dos padrões morais, das crenças, das atitudes, das normas, das ideologias e
dos valores públicos [...] (VAN DIJK, 2008, p. 45).
Essas articulações existentes entre poder, controle e acesso resultam na prática do poder
ideológico, ou seja, a elite simbólica (tais como: políticos, jornalistas, advogados, diretores de
emissoras etc., através do seu poder social e econômico) controla o acesso aos discursos
proporcionando a manutenção da ideologia dominante.
A gama de estratégias utilizadas pelos agentes discursivos com objetivo de promover a
hegemonia ideológica ultrapassa o limite da legitimidade. Assim, um mesmo evento comunicativo
pode privilegiar um grupo da sociedade, apontando ações positivas e desprestigiar outro grupo,
acentuando os pontos negativos que os circundam. Um bom exemplo disso são as reportagens
tendenciosas e preconceituosas que apresentam o negro como cúmplice do crime e do tráfico,
aquele que precisa ser excluído da sociedade para acabar com a marginalidade e suas reais
condições de sobrevivência são banalizas, em contraponto apresenta o branco como sujeito
socialmente correto, que necessita de proteção e se encontram envolvidos em ações ilícitas são
vítimas do sistema que o corrompe.
É a partir do controle dos discursos e das limitações de acesso que a ideologia se reproduz na
sociedade, pois o controle do discurso resulta no controle da mente. Van Dijk (2008, p.18) afirma
que: “Se o discurso controla mentes, e mentes controla ação, é crucial para aqueles que estão no
poder controlar o discurso em primeiro lugar [...]”. Esse controle discursivo ultrapassa o limiar do
evento comunicativo, isto é, controla-se as estruturas de produção do discurso, que envolve a
superestrutura: o que falar (quais tópicos são significativos e quais são irrelevantes); como é
formulado, exposto (a escolha lexical, a elaboração e ordenação precisa das orações); onde o
evento comunicativo é realizado ou propagado; para quem é direcionado (adequação dos atos de
fala para alcançar a compreensão dos participantes); e para que (quais os níveis de impacto ou
influencias que os discursos pretendem alcançar). Além dessas estruturas que envolvem o contexto
e a produção do discurso, há também o controle dos níveis retóricos, estilístico, semântico e
pragmático.
Portanto, o poder é definido como o controle do outro, sobre as ações do outro, com a
finalidade de promover a manipulação, reprodução ou transformação de ideologias. A relação
controle, discurso e poder se caracteriza na sociedade, entre outros exemplos, quando o homem,
em seus discursos patriarcalistas, reserva à mulher um lugar inferior ao seu, seja no âmbito
19. 18
político, econômico, profissional e familiar, objetivando, desse modo, torná-la submissa a ele. A
perpetuação desse discurso machista se revela por meio da influência mental baseada nos discursos
que promovem informações, ensinamentos e sugestões que moldam as ações e opiniões das
pessoas: “[...] A esposa deve tomar a decisão de se integrar completamente no marido e de passar a
atender às vontades dele, conscientizando-se de que ela e o marido constituem um só ser [...]”
(SEICHO-NO-IE, 2007, p.14). Nesse exemplo, podemos observar um discurso fortemente marcado
pela ideologia machista. O ato de linguagem realizado pelo autor do texto é o aconselhamento: “A
esposa deve tomar a decisão de...”. Trata-se, portanto, de um conselho da revista Seicho-No-Ie para
suas leitoras sobre como se tornarem esposas ideais para seus maridos. Por meio desse discurso, a
revista busca influenciar o modelo mental que suas leitoras têm sobre o papel da esposa no
casamento, fazendo-as acreditar que marido e mulher tornam-se um único ser. Se adotarem tal
modelo idealizado de esposa, essas mulheres possivelmente agirão conforme o recomendado, ou
seja, buscarão atender todas as vontades de seus maridos. Dessa forma, o discurso machista
propagado pela revista ajuda a manter a dominação masculina.
Não é difícil notar que o controle discursivo perpassa pelo viés do controle da mente, e este
se dá por meio do controle do texto e do contexto, objetivando, assim, controlar os modelos
mentais sociais.
As bases do acesso são definidas por meio do poder de controle que a elite simbólica exerce
nos mais variados discursos, sejam escritos ou orais. Os níveis do acesso são distribuídos de modo
desigual e excludente. Por exemplo, os telespectadores possuem acesso restrito ou limitado a
algumas informações de um determinado acontecimento, em contrapartida o diretor da emissora
tem acesso livre, isto é, detêm o poder discursivo, por isso estabelece regras e limitações que
definem o processo comunicativo: o que e quem pode falar ou escrever, para quem e onde o evento
comunicativo deve se processar, quais tópicos devem ser enfatizados e quais devem ser omitidos.
Essas estratégias de limitação de acesso ocorrem nas mais variadas práticas discursivas,
desde uma conversação habitual até situações mais formais. Tais limitações se estabelecem e se
diferenciam segundo os diversos aspectos sociais, econômicos, profissionais, culturais e de gênero.
Assim, em uma determinada situação discursiva que envolve o ambiente familiar, o homem possui
o poder discursivo, isto é, tem acesso mais ativo na conversação, enquanto a mulher segue algumas
limitações de acesso. No entanto, em um julgamento o homem é o réu e a autoridade maior da
sessão jurídica é uma mulher, as limitações de acesso serão guiadas segundo o critério profissional
e situacional. Desse modo, as definições dos padrões de acesso possuem ligação entre o discurso e
o poder social.
20. 19
4- Discurso e dominação
Os ECD se propõem a estudar e discernir as relações de poder que envolvem a sociedade.
Nesse sentido, busca-se examinar até que ponto o poder é exercido de forma legítima e
principalmente o modo como o abuso de poder é praticado e como o uso ilegítimo do poder
prejudica as pessoas, promovendo desigualdades sociais, produção e reprodução de ideologias,
manipulação e dominação.
O abuso de poder comunicativo, usado de modo intencional para atingir um determinado
objetivo se realiza de forma previamente elaborada, ou seja, quando a mídia se propõe a apresentar
fatos ou acontecimentos que ocorrem nas favelas, em vez de informar na tentativa de minimizar o
problema social decorrente da estrutura capitalista e mostrar as reais condições de vida que os
envolvidos nas drogas e crimes enfrentam cotidianamente, vítima desse sistema excludente e
desigual, apresentam reportagens racistas e preconceituosas, ignorando, portanto, a condição
marginal que os indivíduos se encontram e o visível descaso das autoridades para com este
problema social.
Van Dijk (2008) define como dominação as práticas de abuso de poder, que implicam não só
dimensões negativas como a injustiça e a desigualdade, mas também todos os usos ilegítimos do
poder que proporcionam a violação dos direitos constitucionais das pessoas. A prática da
dominação está presente em nossa sociedade desde os primórdios, quando os povos de cultura
ágrafa foram dominados por aqueles que detinham a prática da escrita. Atualmente a dominação se
espalha por todos os âmbitos sociais: familiar, político, jurídico, profissional, econômico etc.
A dominação nem sempre é observada segundo a verticalização do poder, isto é,
dominante dominado, esta é analisada como forma de cooperação, interação discursiva entre os
participantes da prática discursiva e nem sempre apresenta-se de modo explícito. A dominação
atualmente, se realiza através do controle das mentes das pessoas, portanto, ela se apresenta de
maneira muito mais indireta.
As relações de gênero entre homem e mulher, no que diz respeito ao enfoque da dominação
se apresentam de modo concomitante, isto é, a dominação não se revela apenas por parte do
homem, ela se apresenta também nas mulheres, quando estas reafirmam as suas condições
inferiores e permanecem subjugadas ao controle masculino, tais reafirmações se dão devido aos
modelos mentais previamente definidos e perpetuados pela cultura patriarcal, portanto, tem-se
nesse caso, a dominação atrelada a um conceito cultural e histórico.
21. 20
O exercício da dominação se relaciona imbricamente com as estruturas do poder, pois os
grupos dominantes possuem o nível de poder estabelecido de acordo com o grau de influência e
controle que são capazes de exercer sobre os atos e as mentes dos grupos dominados. Para van Dijk
(2008), o exercício da dominação se realiza por meio da existência de uma base de poder, sendo
esta, o viés que possibilita o acesso privilegiado a uma série de recursos sociais escassos que
proporcionam diferenças sociais, tais como o dinheiro, o status, a fama, a força, o conhecimento, a
informação etc.
Os grupos dominantes podem exercer maior ou menor controle sobre outros grupos ou
podem também controlá-los somente em situações sociais específicas. Do mesmo modo, os grupos
dominados podem ter um grau variado (maior ou menor) de aceitação, consentimento, legitimação
ou resistência desse domínio, podendo também, achá-lo “natural”, aceitando-o sem apresentar
nenhuma manifestação de contrapoder.
Segundo Gramsci (apud VAN DIJK, 2008), a hegemonia do poder dos grupos dominantes
pode estar associada a leis, regras, normas, hábitos e ao consenso geral. Dessa maneira, são
exemplos típicos dessa hegemonia, o domínio de classe, o sexismo e o racismo. Posto que, nem
sempre o exercício do poder se realiza por meio de ações e/ou atos abusivos executados pelos
grupos dominantes; podem também estar presentes nas inúmeras ações consideradas normais do
cotidiano.
Van Dijk (2008) aponta que atualmente a dominação, na maioria dos casos, não é exercida
pelos poderosos através da força, mas por meio da aceitação do próprio dominado. Ou seja, é
através da hegemonia de uma determinada ideologia que os dominadores conseguem exercer o
poder, por meio do assentimento e participação dos dominados. Isso porque, a hegemonia se dá a
partir do controle das mentes. Nota-se, portanto, que a supremacia dominante ganha
sustentabilidade mediante as ideologias que são reproduzidas e do modo como as pessoas podem
agir, de acordo com seu próprio livre-arbítrio, no interesse dos possuidores de poder.
5- Considerações gerais
Neste capítulo analisei os principais elementos constituintes que envolvem o processo
discursivo, segundo a análise sociocognitiva do discurso. A ancoragem dessa teoria centra-se no
estudo triangular que relaciona sociedade, discurso e cognição social como fatores constitutivos
entre si. Dessa forma, a construção e compreensão das práticas discursivas perpassam antes de
processar-se, pela cognição, pois as representações cognitivas pessoais e sociais dos participantes
22. 21
do processo comunicativo influenciam diretamente no modo como o discurso é significado nas
mentes das pessoas e na sociedade.
Além disso, observa-se que na dimensão discursiva existem as relações de poder que
resultam em estratégias de acesso e controle discursivo. Em geral, o poder social exerce grandes
influências nos processos comunicativos, ou seja, os detentores do poder discursivo controlam o
discurso, por meio do controle do material de produção, formulação e distribuição desses
discursos, objetivando assim, produzir e reproduzir as representações ideológicas desejadas.
A prática do poder é exercida direta ou indiretamente na sociedade. O uso legítimo do poder,
portanto, o modo direto como o poder é exercido se realiza por meio das leis, regulamentações e
padronizações que regem a sociedade. Em contraponto, os usos ilegítimos de poder se concentram
nas representações, expressões e ideologia definidas e propagadas na sociedade pelos atores do
poder, com a finalidade de atingir seus interesses. Esses usos abusivos de autoridade resultam em
consequências sociais negativas como as desigualdades sociais, a dominação e a manipulação.
Outro fator importante da teoria crítica do discurso apresentado, neste capítulo, refere-se à
ideologia que é um sistema unificado de ideias que estão associadas aos interesses de grupos ou
instituições sociais que possuem o poder simbólico ou econômico. Dessa maneira, a ideologia está
associada ao uso da linguagem e ao exercício da produção e reprodução de representações
cognitivas que satisfazem os anseios da elite simbólica. Nessa abordagem, verifica-se que a
dominação se revela através do uso da ideologia, afinal atualmente o exercício da dominação
tornou-se mais contundente, através do controle mental.
Conclui-se que o poder e a ideologia são expressos na sociedade pelo discurso e no discurso.
Sem o uso da linguagem esses elementos não podem ser exercidos ou legitimados. Diante disso,
observa-se que as estruturas básicas que envolvem a dimensão discursiva: poder, ideologia e
dominação estão presentes na maioria dos discursos orais ou escritos que circulam socialmente e
que, por sua vez, influenciam o modo de pensar e agir das pessoas.
23. 22
CAPÍTULO II
DISCURSO SEXISTA E DOMINAÇÃO MASCULINA
Este capítulo discorre acerca dos aspectos que compõe a dominação masculina. Em primeira
instância, a abordagem mostra como o discurso sexista promove a discriminação, as desigualdades
e sustenta a dominação masculina. Pois, ser homem ou mulher vai muito além dos hormônios e
órgãos sexuais que diferenciam o macho da fêmea, mas também em assumir papéis sociais
definidos pela sociedade como masculinos e femininos, e que, por sua vez, classificam as mulheres
como seres inferiores e, consequentemente, subordinadas aos homens.
O conjunto das considerações apresentadas neste capítulo está centrado na reprodução do
discurso da dominação masculina. Nesse discurso, a mulher é caracterizada como sexo frágil,
devendo, portanto, servir o sexo forte, o homem. Este oprime e domina a mulher, assim, se produz
a ideologia masculinizante.
Em última instância, a abordagem se apresenta segundo os pilares de sustentação do discurso:
a religião e a ciência, que, por meio dos seus dizeres, promovem e disseminam ideologias que
favorecem o status quo da sociedade.
1- Discurso sexista: masculino versus feminino
As relações desiguais de gênero na sociedade se justificam por meio do binarismo
homem/mulher. As visíveis estruturas biológicas que diferenciam o homem da mulher são
consideradas como elemento distanciador entre o universo masculino e o universo feminino.
A dicotomia sexual surge antes mesmo do nascimento. A determinação do sexo acarretará
numa série de escolhas que determinarão os padrões de masculinidade ou feminilidade: escolha do
nome, cor do enxoval, os tipos de brinquedos e de roupas entre outros detalhes, serão referenciais
para marcar a desigualdade entre homem e mulher. Oliveira (1999, p.33) afirma que: “[...] Desde o
nascimento, o sexo determina o lugar do indivíduo de um lado ou de outro da fronteira, primeira
seleção que será formada pela prática social”.
24. 23
Segundo Bourdieu (2007), a diferença socialmente estabelecida entre os gêneros e,
especialmente, a divisão social do trabalho se justifica a partir da diferença biológica entre os
sexos. O princípio da divisão sexual do mundo é também abordado por Almeida (2010, p.21):
“Nascidos machos ou fêmeas, mas socializados como homem e mulher todos se deparam com o
processo histórico de construção de identidade diferenciada de um e de outro gênero”. Ambos
apresentam a relação existencial entre as diferenças sexuais e as posições e funções definidas pela
sociedade.
As dimensões bipolares que circundam a divisão sexual e a divisão das coisas seguem um
modelo de oposições que fortalece a visão androcêntrica. Para Bourdieu (2007), o conjunto de
oposições que organizam o cosmo é revestido de significação social. Assim, o movimento para o
alto está associado ao homem, à ereção, ou à posição superior no ato sexual e na vida profissional.
No quadro abaixo, o sistema de oposições equivalentes sugeridas por Bourdieu (2007), sociólogo
francês, aponta como esse modelo de contrariedades sustenta o discurso sexista:
Quadro 1: As oposições homólogas
HOMEM MULHER
Alto Baixo
Na frente Atrás
Direta Esquerda
Seco Úmido
Duro Mole
Temperado Insosso
Claro Escuro
Fora (público) Dentro (privado)
Subir Descer
Magro Gordo
Grande Pequeno
Forte Fraco
Grosso Fino
Mente Corpo
Produção Reprodução
25. 24
Ativo Passivo
Objetivo Subjetivo
Racional Emocional
Na representação sexista, o homem é portador de um órgão sexual com configuração externa
e visível, que, por sua vez, penetra um órgão sexual interno e praticamente implícito. Daí a
existência do ato ativo e passivo, que, na cultura androcêntrica, estabele como ativo a ação
masculina e passiva a ação feminina. Alves (2001, p.3) define que: “O ativo significa atuante,
intenso, vivo, ágil e enérgico. [...] ativo que dizer bens e direito a receber. Passivo é o contrário [...]
é quem ou o que recebe uma ação, que não atua, inerte, indiferente, [...] significa dívidas e
obrigações a pagar”.Todas essas definições surgem para reafirmar a cultura e a ideologia machista.
O corpo torna-se portanto, o lugar onde são inscritas as disputas pelo poder, isto é, o sexo
definirá quem ocupará a posição de dominante e quem ocupará a de dominado. Souza3 (p.2) afirma
que: “[...] O corpo é a materialização da dominação, é o lócus do exercício do poder por
excelência”. Sayão (2003) defende que:
[...] a simples observação dos órgãos externos ‘diagnostica’ uma condição que deve
valer para toda a vida. Passamos a ser homens ou mulheres e as construções
culturais provenientes dessa diferença evidenciam inúmeras desigualdades e
hierarquias que se desenvolveram e vêm se acirrando ao longo da historia humana,
produzindo significados e testemunhando práticas de diferentes matizes (apud
SOUZA, p.2).
Observa-se, portanto, que as reações e representações do corpo suscitam em formas
hierarquizantes de poder. A representação social do corpo e a interpretação social de certos objetos
e ações revelam esquemas de percepções dominantes que levam as mulheres a terem uma
representação negativa do seu próprio sexo.
Bourdieu (2007) afirma que a divisão entre os sexos está presente de modo inevitável na
‘ordem das coisas’, ou seja, encontra-se em todo o mundo social e incorporado nos corpos e nos
habitus4 dos agentes, de modo que funcionam como sistema de percepção, que influenciam o
pensamento e a ação dos mesmos. As aparências biológicas, fortemente defendidas pelo modelo
masculinizante, produziu nos corpos e nas mentes das pessoas a inversão da relação entre as causas
e os efeitos e naturalizou a construção social sexuada. Desse modo, Bourdieu (2007, p. 9) lança
3
Sem notificação de ano. Confira a referência
4
O conceito de habitus é fundamental para entender como a prática da dominação adquire caráter natural.
Segundo Bourdieu (2007) o habitus pressupõe um conjunto de noções que antecede a ação, esta por sua vez,
constitui-se nas práticas dos agentes, dentro do âmbito social.
26. 25
mão do conceito de habitus: “[...] (os ‘gêneros’ como habitus sexuados), como o fundamento in
natura da arbitrária divisão que está no princípio não só da realidade como também da
representação da realidade [...]”.
A elaboração e a compreensão do conceito de naturalidade, que perpassa a divisão das coisas
e do mundo, só são possíveis, segundo Bourdieu, por meio da consonância das estruturas objetivas
e cognitivas:
[...] a concordância entre as estruturas objetivas e as estruturas cognitivas, entre a
conformação do ser e as formas do conhecer, entre o curso do mundo e as expectativas a
esse respeito, que torna possível esta referência ao mundo que Husserl descrevia com o
nome de ‘atitude natural’ [...] deixando, porém, de lembrar as condições sociais de sua
possibilidade [...] (2007, p.17).
Portanto, essas experiências proporcionam ao mundo social e a sua divisão arbitrária, caráter
natural e evidente, assim, promove-se o reconhecimento da legitimação da ordem social que
funciona como sustentáculo da dominação. Destarte, é por meio das estruturas cognitivas e
objetivas que esta realidade se apresenta e se reproduz. Segundo van Dijk (2004), as estruturas
cognitivas funcionam como elementos preponderantes para a construção e a interpretação dos
discursos, do mesmo modo que o discurso interfere diretamente nessas estruturas cognitivas e, por
meio delas, interfere indiretamente nas estruturas sociais.
É por meio das diferenças anatômicas, que essas oposições homólogas entre homem e mulher
surgem como princípio da dominação masculina. Os esquemas estruturais que regem a percepção
dos órgãos sexuais fazem surgir outras oposições que fundamentam o princípio constitutivo da
dominação: o positivo e o negativo, o direito e o averso5. Dessa maneira, o homem e a mulher são
vistos como duas variantes que se distanciam entre si, superior e inferior. As diferenças biológicas
trasladam para o plano da cultura, estabelecendo dicotomias que apresentam características
negativas às mulheres e positivas aos homens6. Para Van Dijk (2008), as estratégias de auto-
apresentação positiva (nós = homens) e negativa (elas = mulheres) funcionam como estratégias de
controle e das relações de poder.
O discurso da dominação masculina é exorbitantemente discriminatório, pois se sustenta nos
estereótipos de gênero para ratificar as hierarquias sociais. Segundo Alves (2001), as dicotomias
são estabelecidas de acordo com dois pólos que se unem de modo antagônico. Em um dos pólos se
concentra a superioridade e a dominação, portanto, o homem - que é caracterizado pela atividade,
objetividade, racionalidade, virilidade e força. Por ter todos esses méritos, localiza-se na esfera
5
.Pouchelle (apud BOURDIEU, 2007, p.23).
6
Esse processo é denominado por Alves (2001) de Dimorfismo cultural.
27. 26
pública, isto é, fora do lar, em contraponto, no outro pólo, encontra-se a inferioridade e a
submissão, ou seja, a mulher, representada pela passividade, subjetividade, emocionalidade,
frigidez e fragilidade, portanto, situada no espaço privado (doméstico).
A dinâmica lei do dualismo sexual se concentra no paradigma da diferenciação e da
contrariedade, objetivando modelar a imagem e a função de cada sexo:
O universo cultural e social humano se organiza em torno do eixo da
dicotomia sexual, associando cada pólo a um campo de atributos e qualidades em que se
exprime diferença e complementaridade: quente/frio, [...], duro/mole, sol/lua,
potência/fertilidade [...]. A “ordem da vida” se fundamenta nessa oposição entre os sexos,
nessa “lei da união dinâmica das diferenças dos contrários” [...] (OLIVEIRA, 1999, p. 29-
30).
No âmbito do pensamento masculino, as mulheres não são vistas como seres diferentes, mas
principalmente como segundo sexo, portanto, inferiores. Definidas por Balandier (apud
OLIVEIRA 1999, p. 30) como a: ”[...] metade perigosa da sociedade [...]”. A mulher é definida
desse modo, pois nela se concentra a fertilidade, isto é, a reprodução da espécie, torna-se, portanto,
uma ameaça para a ordem social e para a cultura firmada, caso rompa a relação com os homens.
Para manter a dominação, os homens não hesitam em apresentar, por meio do discurso a
inferioridade da mulher, esta definição intencionalmente estabelecida, está pautada nas diferenças
fisiológicas entre ambos os sexos:
[...] baseado nas diferenças fisiológicas entre a mulher e o homem, o inferior e o superior,
propagandeia que a mulher seja confinada na reprodução biológica e nas correspondentes
funções da personalidade feminina, deixando para os homens o papel de cuidar da
produção de bens e de comandar a religião, a ciência, a tecnologia e o militarismo e as
próprias mulheres. (VIEZZER, 1989, p.104).
É natural que existam aspectos corporais distintivos entre homem e mulher, pois ambos são
dotados de genitálias diferenciadas. O que se torna inaceitável é a transformação dessa diferença
fisiológica em diferenças sociais e caracterizações inferiores. Os estereótipos sexuais estabelecidos
pela cultura masculinizante promovem uma construção social excludente atrelada às diferenças e
desigualdades sociais que se transformam em relações de gênero e de poder.
A promoção da masculinidade sexista inicia-se desde o nascimento da criança, com a
construção de homens onipotentes, dominadores, portanto, superiores. O rito da iniciação, isto é, a
definição do sexo é apresentada por Oliveira (1999, p. 34) como o momento de: “[...] ritualizar e
confirmar a dominação dos homens sobre as mulheres por intermédio da criança do sexo
masculino [...]”. Segundo a autora o processo de iniciação se constrói pioneiramente a partir do
esquecimento da infância feminina do jovem, vivida junto às mulheres, assim ele sairá do espaço
28. 27
sagrado (o lar), e será submetido a viver à margem da sociedade, onde passará por dores e
sofrimento, a fim de comprovar sua virilidade.
Em todos os âmbitos da sociedade, verifica-se que a construção da masculinidade é vista
como ponto de partida para a perpetuação da dominação masculina. Assim, Asturias (1997) mostra
que, de acordo com os valores socialmente determinados, a construção da masculinidade está
associada a regras previamente estabelecidas: os homens estão impedidos de expressar ternura,
carinho, tristeza ou dor, sendo permitido como representação da masculinidade ideal: a ira, a
agressividade, a audácia e, também, o prazer. Dessa forma, constrói-se um “macho” castrado de
sensibilidade e sem amor, dotado de comportamentos agressivos. Em contrapartida, para as
mulheres são reprimidas as manifestações de agressividade, de ira e de prazer, sendo exaltadas as
manifestações de ternura, de dor e de sofrimento. Por meio dessas limitações, por um lado, e
exarcebações, por outro, é que se constroem mulheres sofridas, relegadas, desprovidas de audácia e
caricaturizadas em expressões de tristeza e dor.
Nossa sociedade, imbuída de valores patriarcais e notadamente marcada por valores da
cultura masculinizante, continua ensinando que existe um mundo diferenciado para o homem e
outro mundo que é comum para as mulheres. De acordo com este guia socialmente determinado e
disseminado cotidianamente pela ideologia machista, as meninas e os meninos aprendem, cada vez
mais precocemente, a não ultrapassar os limites divisórios entre o mundo masculino e o feminino.
Assim, Asturias (1997, p.2) pontua que: “[...] el mundo de la mujer es la casa y la casa do hombre
es el mundo [...]”7. Essa divisão sexuada do mundo proporciona tratamentos desiguais, no campo
social e profissional, homofobia e a violência contra a mulher. A construção da masculinidade
dominante resulta diretamente em discriminação (homofobia), sexismo e injustiças. E as relações
diferenciadas de gênero promovem relações desiguais de poder. Para van Dijk (2008), a
dominação, isto é, a prática abusiva do poder implica dimensões negativas como injustiças,
desigualdades sociais e discriminação.
A pretensa vontade de mudança de vida, ou seja, a busca por certo nível de independência das
mulheres e, consequentemente, sua inserção no mundo dito dos homens, isto é, as realizações de
atividades profissionais são acompanhadas do sentimento de culpa. O jogo contraditório entre
sucesso e fracasso se traduz se aplica quando a mulher sente-se incapaz ou limitada de
desempenhar seus papéis afetivos com a família. Assim, a mulher pagará o preço por invadir o
universo masculino, sendo esta demarcação definida de acordo com os padrões dominantes da
sociedade, que definem o espaço público e as áreas do poder destinado ao homem e o espaço
7
O mundo da mulher é a casa e a casa do homem é o mundo.
29. 28
privado, destinado à mulher. Oliveira (1999, p.72) afirma que: “[...] o discurso masculino sempre
definira o que é uma mulher normal, seu lugar, seu papel, sua imagem e sua identidade. As
dissidentes desse modelo eram rejeitadas para fora do campo de visibilidade social”.
Ainda segundo Oliveira (1999), a culpa é o sentimento que justifica o “erro” cometido pelas
mulheres, pois o espaço público não é apenas lugar de transgressão, mas também lugar de
expiação. Dessa maneira, essa autora define que: “Feminilidade e êxito aparecem como dois pólos
desejados, mas mutuamente excludentes [...] (1999, p.85)”.
O êxito, visivelmente alcançado pelas mulheres no mercado de trabalho, busca dissimular as
desigualdades existentes dentro da divisão hierarquizante das profissões, pois as mudanças da
condição feminina seguem o modelo tradicional diferenciador entre o masculino e o feminino.
Segundo Editoral do Valor (2006): “São destinados aos homens os melhores cargos e salários. [...]
5,5% dos homens ocupados chegaram a um cargo de direção, e apenas 3,9% das mulheres”. Elas
são excluídas das profissões públicas que possuem conotação de poder e do setor econômico. Às
mulheres são destinadas profissões que possuem caráter intensificador da dominação, isto é,
profissões consideradas tradicionalmente “femininas” direcionadas para o campo do ensino, da
assistência social, atividades secundárias da medicina, entre outras profissões intermediárias.
Embora exista um número ínfimo de mulheres que ocupam altos cargos no espaço profissional e
político, é notório que esse número decresce ao passo que se atinge posições mais elevadas dentro
de um setor. Bourdieu (2007, p.110) afirma que: “[...] em cada nível, apesar dos efeitos de uma
super-seleção, a igualdade formal entre os homens e as mulheres tende a dissimular que, sendo as
coisas em tudo iguais, as mulheres ocupam sempre posições menos favorecidas [...]”.
Além das mulheres terem oportunidades diferenciadas em relação aos homens, elas possuem
nível mais baixo de remuneração, por mais que ocupem as mesmas posições. Barested8 alerta que,
embora tenha ocorrido avanços legislativos a partir de 1988 com a promulgação da Constituição,
como a criação de políticas públicas que visavam promover a igualdade entre homens e mulheres,
assim como direitos concedidos especialmente à mulher como: I-Licença-maternidade, sem
prejuízo do emprego e do salário; II-Proteção do mercado de trabalho da mulher; III-Proibição de
diferença salarial entre os sexos e IV-Proibição da dispensa da empregada gestante, desde a
confirmação da gravidez até 5 meses após o parto, ainda prevalecem estupidamente valores e
atitudes discriminatórios. Elas estudam mais e ganham menos. É importante pontuar também que a
mulher brasileira, ainda desempenha a dupla jornada de trabalho, embora tenha conquistado um
melhor nível de escolaridade e maior inserção no mercado profissional.
8
Confira referência
30. 29
Barested aponta alguns dados que demonstram a diferenciação de salários e a exclusão das
mulheres: “[...] as mulheres recebem, em média, apenas 63% do salário dos homens. Na esfera
política do total dos deputados federais, eleitos em 1998, apenas 7,6% eram mulheres, o mesmo
ocorre no Senado Federal [...]”. Segundo Dimenstein9 o primeiro balanço sobre a situação da
mulher no Brasil, lançado pelo governo em 2008, 40% das mulheres trabalhadoras ocupam
posições precárias. Na esfera governamental, a igualdade ainda encontra-se distante, embora 43,8%
dos cargos políticos federais sejam ocupados por mulheres, o índice diminui para 13% nos cargos
comissionados mais importantes. E segundo o IBGE, as mulheres ocupam menos de 10% dos
cargos políticos existentes.
Esses dados mostram a contrariedade e o não cumprimento da lei constitucional referida no
Art. 5º da Carta Magna (2007, p.15) que determina: “homens e mulheres são iguais em direitos e
obrigações, nos termos desta Constituição”.
As desigualdades de gênero são fortalecidas, ainda mais, quando somada as desigualdades de
classe, etnicidade e raça, o que vem agravar consideravelmente as discriminações e subordinações
sofridas pelas mulheres. Desse modo, as mulheres que se encontram mergulhadas nesse obscuro e
inconcebível universo, enfrentam o desafio de conquistar a igualdade mesmo sendo diferente
segundo os padrões determinados pela sociedade.
Portanto, as relações de gênero funcionam por meio de um sistema de signos e símbolos que
representam valores, normas e práticas, e que, por sua vez, transformam as diferenças sexuais de
homens e mulheres em desigualdades sociais, visto que as relações de gênero ocorrem de maneira
hierárquica, de modo que, há a valorização do masculino sobre o feminino. Assim, os valores
masculinos estão presentes no inconsciente cultural e coletivo e são resgatados por práticas
discursivas com viés sexista.
2- A dominação masculina
A dominação masculina segue padrões do patriarcalismo capitalista, sistema este que envolve
uma complexa estruturação hierárquica capaz de manter e prolongar o seu exercício de poder.
O discurso da dominação se sustenta nas diferentes noções biológicas e mais fortemente no
nível cultural, no qual homem e mulher comportam-se e fazem uso dos signos culturais e do meio
social de modo diferenciado. Segundo Almeida (2010, p. 19): “[...] Sua caracterização se dá ao
9
Ver referência
31. 30
nível dos elementos distintivos na produção do masculino e feminino, reproduzidos na
metalinguagem dialética dos gestos, das roupas, do uso do corpo, das emoções, dos sentimentos
[...]”. Tais elementos funcionam como linhas de demarcação, em que homem e mulher
permanecem imersos em um universo imutável e fixo, isto é, separados artificialmente. Oliveira
(1999, p.30) aponta que: “Para o homem a mulher é, antes de mais nada, a outra, [...] muito mais
que a parceira; essa estranheza se exprime nos sistemas simbólicos [...] e se realimenta, reforçando
a fronteira [...] que separa fazeres e saberes de homens e mulheres”
Para Bourdieu (2007), a análise da dominação do homem sobre a mulher tem fundamento no
processo evolutivo do ser humano. Assim, segundo Viana (2010, p.6): “[...] A origem da
dominação masculina não precede a dominação de classe pelo simples fato de que nas sociedades
primitivas, assim como nas sociedades indígenas, não existe dominação da mulher [...]”.
A dominação do masculino sobre o feminino é exercida de forma indireta e implícita, ou seja,
por meio da violência simbólica, como define Bourdieu (2007), é uma violência sutil, insensível e
invisível as suas próprias vítimas, sendo exercida e propagada pelas vias simbólicas do discurso, do
conhecimento e por fim do sentimento. A violência simbólica se fundamente de modo
concomitante entre dominado (mulher) e dominante (homem), ou seja, o dominado não deixa de
conceder obediência ao dominante, é por intermédio dessa concessão que a relação de dominação
se instaura. Assim, essa relação de dominação passa a ser encarada como natural.
Tal naturalidade passa a ser critério da dominação que é definida segundo a ideologia
machista, a qual reafirma a condição inferior das mulheres, ao passo que as apresentam como seres
capazes apenas de exercer papéis e funções pré-estabelecidas como femininos. Dessa maneira,
Viezzer (1989) menciona que o argumento da naturalidade é pilar de sustentação da ideologia
masculinizante que aponta a mulher como naturalmente inferior, e por isso a trata desse modo.
Esse modelo naturalista da dominação separa homens e mulheres em grupos hierárquicos distintos,
dando privilégio aos homens em detrimento das mulheres. Portanto, as desigualdades vividas pelas
mulheres são frutos das vantagens dadas aos homens.
Na medida em que uma parcela desse grupo, que se apresenta como dominante, ameaça os
esquemas de virilidade estabelecidos, sofre também com a dominação masculina, como é o caso da
homofobia. A aversão gerada pela dominação masculina para com o mesmo sexo, se traduz
teoricamente devido às demarcações do ser homem ou mulher, assim, ao se apresentar na
sociedade com um determinado sexo e comportar-se como o outro gênero10 é punido e reprimido.
10
O vocábulo sexo e gênero apresentado por Stoller (apud VIEZZER, 1989), mostra que sexo se refere aos
aspectos biológicos que distingue o macho da fêmea na espécie humana. E o gênero corresponde aos papéis e
32. 31
Segundo Viezzer (1989, p.108): “[...] a sociedade está organizada para aceitar a execução dos
papéis sociais atribuídos de acordo com as diferenças biológicas que marcam os indivíduos ao
nascer, e não com as diferenças psicológicas e culturais [...]”.
A situação da dominação e da subordinação11 feminina ocorre de modo generalizado e pré-
estabelecido segundo os interesses da classe dominante, que sustenta o seu status quo, assumindo,
assim, as normas culturais da masculinidade. Enfim, a autora supracitada (1989, p.115) expõe que:
[...] as relações homem-mulher nos mais variados tipos de sociedade permitiu
compreender que a subordinação da mulher ao homem, através da divisão social do
trabalho, sempre respondeu aos interesses econômicos e políticos institucionalizados e
transmitidos de geração a geração [...].
A subordinação da mulher ao homem está sempre presente nas relações sociais e ocorre de
modo contínuo e perverso, ou seja, varia segundo a situação em que a mulher se encontra na
sociedade. De acordo com Viezzer (1989), a dimensão da subordinação abrange também as
contradições de classe e de etnias, além dos diferentes tipos de relações sociais. Dessa maneira,
uma mulher pobre sofre conjuntamente discriminação e exploração, por ser mulher e por ser pobre;
ao passo que uma mulher negra e pobre, sofre discriminação em três níveis, no que se refere ao
gênero, a etnia e a classe social.
Segundo Bourdieu (2007) a visão androcêntrica é legitimada por meio de agentes específicos,
que contribuem para a reprodução de tal ideologia, são eles, a violência física e simbólica cometida
pelos homens e pelas instituições familiar, religiosa, educacional e política.
Os homens não hesitam em manter o seu poder de domínio sobre a mulher, e ao se depararem
com o término do relacionamento ou sentir-se traído pela esposa, considerada por ele objeto de
posse, não aceita perdê-la para outro homem e utiliza-se da violência física para atingir a mulher,
que segundo o discurso sexista é a parte fraca, indefesa e sensível, a quem agride, oprime e até
mata de forma brutal.
Apesar de a dominação masculina ter suas raízes nos planos cultural e histórico, ela se
instaura na sociedade através das relações sociais de gênero, o que ocasionou relações desiguais de
gênero percebidas universalmente. Os homens estão sempre impondo seu poder social, econômico
e político sobre as mulheres. Viezzer (1989, p.103) afirma que: “O mundo que conhecemos é deles,
regulado por eles. São eles que nos impõe as leis limitadas e limitantes, para prosseguir com seu
funções desempenhadas e assumidas nas relações com outras pessoas que a sociedade aponta como sendo
masculinos e femininos.
11
“[...] a subordinação é o conceito geral da dominação masculina, enquanto a exploração, a igualdade, a
opressão, a repressão, o machismo, a discriminação e outras formas de dominação são tipos diferentes de
subordinação” (VIEZZER, 1989, p.110).
33. 32
projeto de desenvolvimento, suas universidades, suas religiões, seus meios de comunicação para as
massas [...]”. Os homens têm em todas as partes do mundo maior acesso e maior mobilidade física
e menor responsabilidade do que as mulheres no espaço doméstico. A elas são reservadas tarefas
do lar ou extensões dessas tarefas como assistência à saúde, ao ensino e ao serviço social, que são
profissões e atividades sem qualificação ou status. Em contrapartida, os homens se concentram nas
profissões e/ou posições onde se exerce o poder.
Conforme Bourdieu (2007), a dominação masculina encontra sua primazia nas estruturas
sociais e nas atividades de produção e reprodução, que se apresentam baseadas na divisão sexual
do trabalho, que, por sua vez, confere aos homens profissões e posições privilegiadas no âmbito
profissional e social. Convergindo com esse pensamento, Welzer-Lang (2001, p.2) pontua que: “Os
homens dominam coletiva e individualmente as mulheres. Esta dominação se exerce na esfera
privada ou pública e atribui aos homens privilégios materiais, culturais e simbólicos [...]”.
O efeito da dominação masculina se institui por intermédio das estruturas sociais do corpo,
que revela a visão de que a mulher é um ser frágil e inferior, portanto, submisso, tal conceito,
largamente disseminado, tornou-se um fator demarcador da violência simbólica. Bourdieu (2007)
pontua que o princípio da visão dominante não é simplesmente uma representação mental, mas um
sistema de estruturas inscritas de modo grotesco nas coisas e nos corpos, assim, o discurso
machista é culturalmente pregado na sociedade.
A elite simbólica, objetivando disfarçar o poder e a fim de perpetuar a ação dominatória,
utiliza a estratégia do convencimento e do assentimento. Tais ações proporcionam aos dominados
aprovação, sem questionamento do poder que lhes é imposto, por acreditarem que agindo assim,
favorecem os seus interesses. A noção de consentimento, apresentada pelo sociólogo francês
(2007) caracteriza mais fortemente o conceito de dominação, visto que anula a responsabilidade da
opressão por parte do dominante e faz o oprimido sentir-se culpado pela sua condição de
submissão em relação ao poder onipresente dos homens. Um exemplo característico dessa situação
ocorre no Iemem, onde as mulheres obedecem aos homens por acreditarem que são obrigadas a tal,
isto é, algo pré-destinado e, no caso, se desobedecerem, poderão sofrer severos castigos. Portanto,
a ideologia masculinizante ratifica e fortalece a dominação.
Anterior ao processo de industrialização e a inserção da mão de obra feminina no mercado de
trabalho, a submissão da mulher era definida pioneiramente devido à dependência financeira. Hoje,
a mulher tem alcançado níveis louváveis de independência econômica. No entanto, a dominação
masculina, baseada na divisão sexual do mundo tem se tornado mais severa, pois os índices de
34. 33
opressão e agressão têm atingido números alarmantes em todo o mundo. De acordo com a Rede
Saúde12, em muitos países a opressão e a violência contra a mulher, ainda são preocupantes:
Nos Estados Unidos, pesquisas indicam que 20% das mulheres sofrem pelo menos um
tipo de agressão física infligida pelo parceiro durante a vida. Por ano, entre 3 e 4 milhões
de mulheres são agredidas em suas casas por pessoas de sua convivência íntima.
Na Índia, 5 mulheres são assassinadas por dia em conseqüência de disputas relacionadas
ao dote.
Na África, cerca de 6 mil meninas sofrem mutilação genital a cada dia.
Na América Latina e Caribe, de 25 a 50% das mulheres são vítimas de violência
doméstica.
Na maioria dos países do Leste Europeu e da ex-União Soviética, a situação das
mulheres piorou desde o colapso do comunismo, com um aumento do desemprego e de
abusos contra seus direitos.
No Brasil, levantamento realizado pelo Movimento Nacional dos Direitos Humanos
indica que, em 1996, 72% do total de assassinatos de mulheres foram cometidos por
homens que privavam de sua intimidade. (REDE SAÚDE, 2003).
De acordo com Welzer-Lang (2001) a cosmogonia gerada pela divisão hierarquica sexual, se
mantém e é regulada por violências múltiplas e variadas, a saber: violência simbólica, estupros,
violências no trabalho e a violência social ou simbólica, esta por sua vez, reserva a mulher um
lugar inferior na sociedade. Essas múltiplas violências preservam os poderes dos homens à custa da
opressão sofrida pelas mulheres. Segundo uma pesquisa da Fundação Perseu Abramo/2001(apud
MATTOS 2007): “A cada 15 segundos uma mulher é agredida no Brasil; a cada ano são mais de 2
milhões de mulheres vítimas de violência [..]” Esses dados revelam que milhares de mulheres
sofrem os efeitos devastadores da dominação masculina, elas são violentadas verbalmente,
fisicamente e sexualmente.
As estruturas sociais que regulam o sistema patriarcalista altamente discriminatório produz e
reproduz nos homens e nas mulheres por meio do discurso, o princípio de divisão de todo universo,
em que a inferioridade e a exclusão da mulher são ratificados e ampliados. Assim, a divisão
biológica do universo revela a dominação masculina, e esta se traduz mais fortemente por meio do
matrimônio. Segundo Bourdieu (2007, p.55), no mercado matrimonial: “[...] as mulheres só podem
aí ser vistas como objetos, [...] como símbolos cujo sentido se constitui fora delas e cuja função é
contribuir para a perpetuação ou o aumento do capital simbólico em poder dos homens [...]”.
Desse modo, ao passo que o casamento se torna concreto, o homem transforma a mulher no
seu objeto de posse, que deve satisfazer suas necessidades pessoais e sexuais, na outra parte
perdida que lhe pertence. Em virtude desses aspectos, o matrimônio apresenta-se como extensão da
dominação masculina, pois é na vida conjugal que as ações e atitudes dominantes são mais
fortemente demarcadas e visivelmente aplicadas.
12
Página da Mulher - Estatísticas (confira referência).
35. 34
Por conseguinte, o discurso da dominação masculina evidencia as diferenças sociais
existentes entre homens e mulheres que são construídos culturalmente. Nesse sentido, Almeida
(2010) expõe que a definição do ser homem ou ser mulher sofre implicação da divisão social do
trabalho, isto é, quais atividades devem ser desenvolvidas pelo homem para mostrar sua virilidade
e quais funções são desenvolvidas pela mulher que enaltece a sua feminilidade. Tal divisão compõe
o sistema de organização hierárquica, no qual as categorias sexo e gênero são classificadas como
superior/inferior, ou seja, a mulher é duplamente dominada, enquanto estrato feminino e enquanto
classe.
Após o surgimento do movimento feminista em 1970, as sociedades atuais passaram por
inúmeras mudanças, no que se refere às questões de gênero. É por meio desse movimento, que a
contestação feminina busca provar que as mulheres não são inferiores aos homens e que podem
atuar nos mesmos espaços que eles. É a partir do movimento feminista e, também, do movimento
gay, que o modelo hegemônico de homem e a dominação masculina são fortemente questionados.
A mulher se modificou e o homem também. Este deixou de ser o provedor da família; aquela se
emancipou e passou, em muitos casos, a ocupar o papel de chefe de família. Fatalmente, a relação
entre gênero está sofrendo profundas transformações. Contudo, alguns representantes de ideologia
patriarcal continuam reagindo a essas mudanças e tentam manter a relação de dominação do
homem sobre a mulher e sobre o homoerótico.
Nesse contexto atual, as mulheres ultrapassam as fronteiras do universo privado e inserem-se
no universo público, na busca pela igualdade entre os sexos, isto é, a aceitação da diferença sem
hierarquia. Esse impulso que levou as mulheres a reivindicar seu acesso ao mundo privado dos
homens, surgiu com a finalidade de suprir muitos anseios que permeavam as vidas das mulheres
por muito tempo, além da necessidade de se tornar ativa na sociedade. Oliveira (1999) apresenta as
várias índoles que as mulheres buscavam:
[...] Certamente buscavam a independência econômica, posto que a submissão implícita
na dependência dos recursos ganhos pelos homens era evidente. Buscavam também o
acesso a outros horizontes, a outras experiências, buscavam convivência fora da família,
buscavam poder nas decisões da sociedade. Buscavam, enfim, o direito a fazer e rever as
escolhas sexuais, buscavam o direito ao controle sobre seus corpos (p. 98-9).
Ainda, segundo Oliveira (1999), o acesso das mulheres ao mercado de trabalho e o não
reconhecimento das atividades efetuadas por elas no lar, funcionam como fatores decisivos no
apagamento da fronteira entre o privado e público, entro o feminino e o masculino, em decorrência
desses fatores, há também o rompimento da identidade feminina, que se encontra pautada na ideia
de que a mulher se realiza tão somente nos saberes e fazeres domésticos.
36. 35
Assim, as mulheres buscaram e buscam continuamente, viver em um mundo, onde as
diferenças sexuais, não ultrapassem os limites biológicos, mas que os critérios de igualdade possam
ser executados.
3- Sexismo, religião e ciência
Desde os primórdios até ao dias atuais, a subordinação da mulher ao homem tem sido
figurada sob diferentes formas, variando em níveis de extremo rigor, a exemplo de alguns países do
Oriente, como é o caso do Afeganistão, que segundo dados do Partido Socialista dos Trabalhadores
Unificado (PSTU, 2003) a opressão das mulheres continua, em todo o país e, em especial nas
províncias, elas não podem sair de casa, frequentar a escola ou tirar documentos. Na Arábia
Saudita o sistema de opressão é também muito extremo, as mulheres são proibidas de dirigir
automóveis, essa proibição é secundária à religião Islamista, que prevalece no país, pois não existe
lei específica que determina tal limitação. A subordinação da mulher pode ser observada de forma
mais sutil e menos explícita, no Brasil, onde as leis determinam a igualdade de direitos, sendo que,
as mulheres possuem um certo nível de autonomia e de liberdade, no entanto, ainda permanecem
subordinadas ao sexo oposto. Essas variações dependem da cultura e dos padrões sociais
estabelecidos em cada país.
Na complexa busca pela explicação dos mistérios do universo, os seres humanos sempre
recorreram a fé e a razão, pois eles acreditam que essas duas instâncias são fontes seguras para
explicação de todo o Cosmo.
A questão da dominação do masculino sobre o feminino, se sustenta também nos princípios
da Religião e da Ciência, pois ambos servem como instrumentos, ou melhor, como aparelhos
ideológicos que promovem a perpetuação da subordinação da mulher e, consequentemente, a
permanência das bases da dominação, a saber: a opressão, o machismo e a discriminação.
A igreja é um dos pilares de sustentação no qual se sustenta a relação hierarquizante entre os
sexos. As religiões detêm o capital simbólico, a produção de sentidos, além de manipular as ações
dos dominados. Através das representações, da doutrina, dos discursos e das normas estabelecidas,
ocorre a sacralização do poder desigual entre homens e mulheres. Dessa maneira, a religião
naturaliza a dominação e a submissão feminina. Em muitas passagens bíblicas é possível observar
esta postura, a exemplo do livro de Efésios:
37. 36
Vós mulheres, sujeitai-vos a vossos maridos, como ao Senhor; Porque o marido é a
cabeça da mulher, como também Cristo é a cabeça da igreja; sendo ele próprio o salvador
do corpo. De sorte que, assim como a igreja está sujeita a Cristo, assim também as
mulheres sejam em tudo sujeitas a seus maridos[...] ( BÍBLIA SAGRADA, 2006, p. 188).
A submissão da mulher ao homem é levada para a esfera sagrada, pois a sujeição feminina é
equiparada com a obediência e a sujeição que se tem ao Senhor. Nos textos sagrados e nas
tradições religiosas, a visão androcêntrica encontra-se presente. Para tanto, as concepções
religiosas atribuem ao homem, o sagrado, enquanto que o pecado é relacionado ao elemento
feminino.
No livro de Gênesis, encontra-se a descrição da criação de todo o universo, assim como a
criação do homem e da mulher. Viezzer (1989, p. 95) afirma que: “[...] Deus se tornou masculino,
macho, e fez um homem parir uma mulher, pela costela, para que os intermediários da Revelação
Divina e seus parceiros subordinassem perpetuamente o seu próximo mais próximo, a mulher [...]”.
Nota-se que desde antes a valorização do masculino é exaltada, pois Eva (a mulher) é proclamada
como a outra parte, retirada do primeiro, o homem (Adão), portanto, a mulher é definida como
“segundo sexo” 13.
De acordo com o primeiro livro de Moíses, a mulher é a parte traidora, desobediente, aquela
que representa o pecado, ou seja, a outra metade que é perigosa. Por ter agido de modo
pecaminoso, carregará consigo as dores da culpa e de sua fraqueza. E assim Deus lhe disse: “[...]
Multiplicarei grandemente a tua dor e a tua conceição; com dor terás filhos; e o teu desejo será
para teu marido, e ele te dominará (grifos meus) [...]” (BÍBLIA SAGRADA, 2009, p. 5).
Observa-se que tal discurso está repleto de ideologia, que apresenta a mulher como ser subordinado
ao homem que lhe deve obediência. Por ser um livro canônico, portanto atemporal, ultrapassa
várias gerações e continua situado na atualidade, é reflexo da organização social e da mentalidade
da sociedade.
Embora a Igreja tenha realizado algumas reformas, estas não modificaram a visão patriarcal
da sociedade, visto que as questões relacionadas à maternidade, à sexualidade e à moralidade
continuam limitando os direitos civis das mulheres, estejam estes ligados a aspectos sociais ou
corporais. Viezzer (1989, p. 66) aponta que: “[...] No conjunto, a Igreja mantém a indissolubilidade
do matrimônio, natalidade e a condenação do abordo como crime”.
13
Definição apresentada por Beauvoir (1980 apud VIEZZER, 1989).
38. 37
Segundo Souza14 (p. 8) a Igreja é uma instituição formadora de sentido, que atua fortemente
na criação e na perpetuação das identidades de gênero, pois as ideias religiosas influenciam de
modo contundente nas relações sociais.
Ainda que a Ciência se posicione de forma contrária a religião no que se refere à explicação
dos fatos, há uma união entre Ciência e Religião, a fim de assumir e prolongar o modelo patriarcal
da sociedade, pois ambas se beneficiam com tal regime. É por meio desse modelo que os homens
apropriam-se das mulheres como se fosse objetos de sua propriedade, podendo, com isso, usar,
vender, comprar seus corpos e até matá-las.
Muitos pensadores de épocas remotas já apresentavam explicações extremamente
discriminatórias e que exprimiam severamente a ação dominante. Viezzer expõe alguns exemplos
de pensamento que configuram o machismo:
[...] o matemático Pitágoras (6º séc.a.C.) forneceu uma explicação cruel: “Há um
princípio bom, que criou a ordem, a luz e o homem; e um princípio mau, que criou o caos,
as trevas e a mulher”[...] Hipócrates (460-366 a.C.), [...] deixou uma sentença que
percorreu todo saber médico até a data recente: “O útero é a causa de todas as
doenças”.[...] o filósofo e cientista Aristóteles (384-322 a.C), pontificou: “A relação do
macho face à fêmea é naturalmente a do superior para o inferior; o macho é governante, a
fêmea, o súdito”(1989, p. 97).
Essas revelações mostram a construção de um mundo alicerçado segundo a mentalidade
masculina que não respeita a dignidade humana e a igualdade da mulher, e que por sua vez,
promove o estabelecimento de uma Ordem Universal que vai de encontro ao princípio da igualdade
humana.
O sistema de pensamento criado pela racionalização e pela religiosidade extrema levou
milhares de mulheres para as fogueiras da Inquisição. Essa ideologia masculinizante que apregoou
o patriarcalismo vem aprofundando cada vez mais o poder masculino sobre as mulheres.
Atualmente milhões de vidas humanas são subordinadas e vivem dentro de um verdadeiro cárcere,
no qual seus sonhos, anseios e suas próprias vidas são controladas, definidas e demarcadas por
aqueles que dizem ser seus “companheiros”.
De acordo com Viezzer (1989), o sistema patriarcal, construído a partir da combinação dos
mandamentos de Deus e dos parâmetros das leis naturais criou uma aparente ordem das coisas, na
qual não se encontra indícios que revelem respeito à dignidade e à igualdade da mulher. Pelo
contrário, a mulher continua sendo tratada como inferior e o mais grave sendo surrada pelos seus
maridos como prova de sua virilidade e de seu sentimento de possessividade.
14
Ver referência.