Este capítulo discute como as práticas clientelistas do coronelismo brasileiro da República Velha ainda permanecem na política contemporânea, apesar de terem se adaptado a um novo contexto. O autor argumenta que embora o coronel tradicional tenha desaparecido, suas práticas de manipulação política e uso do poder público em benefício próprio continuam presentes, como evidenciado pelo mesmo grupo político se manter no poder em Conceição do Coité por quase quatro décadas. O capítulo busca demonstrar que a herança clientelista do
à Sombra de velhas práticas o exercício da docência numa sociedade de clientelas
1. 0
UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA – UNEB
DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO – CAMPUS XIV
LICENCIATURA EM HISTÓRIA
ANTONIA GISLAINE COSTA CARNEIRO
À SOMBRA DE VELHAS PRÁTICAS
O EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA NUMA SOCIEDADE DE CLIENTELAS
CONCEIÇÃO DO COITÉ
2010
2. 1
ANTONIA GISLAINE COSTA CARNEIRO
À SOMBRA DE VELHAS PRÁTICAS
O EXERCÍCIO DA DOCÊNCIA NUMA SOCIEDADE DE CLIENTELAS
Trabalho de conclusão de curso apresentado à
Universidade Estadual da Bahia – UNEB, como
requisito parcial para a obtenção da graduação em
História, sob a orientação do professor Rogério
Silva.
CONCEIÇÃO DO COITÉ
2010
4. 3
À
Professores da rede municipal de ensino de
Conceição do Coité.
5. 4
AGRADECIMENTOS
A Deus, meu guia ao longo dessa caminhada;
Ao meu esposo, minha fortaleza nos momentos mais difíceis;
A minha família, pelo apoio e paciência;
Aos meus professores, e em especial ao professor Rogério Silva por sua brilhante orientação;
Aos meus colegas, pelo auxílio, e pelos momentos felizes que me proporcionaram;
Aos professores que tão prontamente me concederam o seu testemunho;
Aos funcionários do Sindicato dos Professores, pela valorosa colaboração.
6. 5
“Só teme quem tem que perder;
quem mais tem que perder mais teme;
quem mais teme mais obedece.”
J. J. de Azeredo Coutinho
7. 6
RESUMO
O presente trabalho tem como objetivo demonstrar a permanência na política brasileira, e em
especial Conceição do Coité, de relações baseadas em laços clientelísticos. Tal permanência
se evidencia no fato de que o mesmo grupo político se mantém no poder municipal desde o
início da década de 1970, mas também, e principalmente na existência de práticas tipicamente
clientelísticas, baseadas em trocas de favores e retaliações, as quais se verificam
especialmente no sistema municipal de ensino, sob a forma de barganha de cargos e de
prejuízos ao professor, como exonerações, perda de carga horária e transferências.
Palavras-chave: Conceição do Coité - Política – Clientelismo - Educação
8. 7
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO.........................................................................................................................9
CAPÍTULO I - POLÍTICA BRASILEIRA: UMA ADEQUAÇÃO DE VELHAS
PRÁTICAS..............................................................................................................................12
CAPÍTULO II - TOMA LÁ, DÁ CÁ PROFESSOR!..........................................................21
CAPÍTULO III – UMA TOMADA DE CONSCIÊNCIA?.................................................34
CONSIDERAÇÕES FINAIS.................................................................................................42
REFERÊNCIAS......................................................................................................................45
ANEXOS.................................................................................................................................48
FONTES..................................................................................................................................75
9. 8
LISTA DE ANEXOS
ANEXO A – MODELO DE QUESTIONÁRIO......................................................................48
ANEXO B - PROJETO DE LEI Nº 034/2007..........................................................................50
ANEXO C - LEI COMPLEMENTAR Nº 02 DE 30 DE JUNHO DE 1998............................54
ANEXO D - LEI Nº 192 DE 30 DE JUNHO DE 1998............................................................62
ANEXO E - ARTIGOS 4º E 5º DA LEI COMPLEMENTAR Nº 14 DE 06 DE ABRIL DE
2004...........................................................................................................................................72
ANEXO F – ARTIGO 2º DO PROJETO DE LEI COMPLEMENTAR Nº01/2007...............73
10. 9
INTRODUÇÃO
O coronelismo ainda é uma constante na sociedade brasileira, principalmente em
municípios interioranos. Apesar de Vítor Nunes Leal1 ter anunciado o seu fim, suas práticas
permanecem muito vivas e evidentes no caráter coercitivo da política nestas localidades. È
notório que não vivemos hoje o coronelismo da República Velha, o qual se caracterizava
essencialmente pelo voto de cabresto e pelo compromisso entre os coronéis locais e os líderes
políticos estaduais. Não podemos, pois, negar que os típicos coronéis agrícolas ficaram no
passado, mas, por outro lado, não devemos ocultar que suas práticas vêm se perpetuando ao
longo dos anos e são visíveis em nossa cidade.
Conceição do Coité é um município do interior do nordeste, marcado pelos longos
períodos de estiagem e pelas poucas alternativas de trabalho aos seus cidadãos, o que propicia
um terreno fértil ao florescimento e a perpetuação de práticas clientelísticas. Percebem-se
aqui, um conjunto de relações através das quais o grupo político atualmente filiado ao Partido
Progressista se mantém no poder há quase quatro décadas, relações estas baseadas na troca de
benefícios mútuos e pessoais, e na exclusão de uma parcela da população das benesses que
democraticamente deveriam ser destinadas a todos.
Entre as já mencionadas poucas alternativas de trabalho em Coité, o serviço público se
afigura como uma interessante opção, principalmente para aqueles que têm oportunidade de
fazer um curso superior. Isso se aplica principalmente a área da educação, visto que é uma das
que mais empregam em nosso município, e também se considerarmos que a única
universidade pública aqui existente, a UNEB – Universidade do Estado da Bahia tem dentre
os seus cursos, sejam eles presenciais ou à distância, uma maioria indiscutível de
licenciaturas. Temos desse modo, atuando no serviço público e especialmente na docência,
um grande número de eleitores que infelizmente não estão alheios a essa rede de relações
clientelísticas, pelo contrário, são alvo dos mais diversos mecanismos de manipulação
política.
Nesse sentido, é perceptível em nosso sistema de ensino uma enraizada política de
trocas de favores, onde o âmbito público adquire um caráter privado ao ser utilizado como
barganha política. Cargos de confiança são distribuídos como recompensa a alguns servidores
que numa incansável busca por votos, preenchem o pré-requisito para tal posto: a confiança. É
1
LEAL, Victor Nunes. Coronelismo, enxada e voto: o município e o regime representativo no Brasil. 3. ed. Rio
de Janeiro: Nova Fronteira, 1997.
11. 10
estabelecido assim um compromisso de fidelidade entre eleito e eleitor. No outro extremo, há
uma série de meios de punição àqueles que decidem se opor ao poder local, numa aberta
demonstração de total descompromisso com a democracia. A necessidade de permanecer no
poder gera uma rede de relações de retaliações e favorecimentos que tolhe em nossos
profissionais da educação o exercício pleno da cidadania.
O coronel de hoje não vive num sistema coronelista que envolvia os três níveis de
governo, não derruba governadores, não tem seu poder baseado na posse de terra e
no controle da população rural. Mas mantém do antigo coronel a arrogância e a
prepotência no trato com os adversários, a inadaptação às regras de convivência
democrática, a convicção de estar acima da lei, a incapacidade de distinguir o
público e o privado, o uso do poder para conseguir empregos, contratos,
financiamentos, subsídios e outros favores para enriquecimento próprio e de sua
parentela. (CARVALHO, 2001, p. 4)
Assim, o objetivo do presente trabalho é identificar os mecanismos através dos quais
nossos professores são influenciados e manipulados a fim de possibilitar a um determinado
grupo sua perpetuação no poder. O período de tempo pesquisado vai desde 1973 a 2008. Em
1973 o grupo político que ainda hoje se mantém no poder ingressa na prefeitura municipal.
Dessa maneira, pretendemos aqui demonstrar sua permanência no poder por tão prolongado
período como evidência de uma herança coronelista. No ano de 2001 foi fundado o sindicato
dos professores de Conceição do Coité, de modo que analisando a instituição nos oito anos
seguintes a sua fundação, verificaremos a sua atuação no sentido de coibir e denunciar
ameaças e concretas retaliações sofridas pelos professores.
Para isso, foram analisados documentos da prefeitura, especificamente portarias de
exoneração e admissão, buscando entender as reais motivações para o número expressivo de
demissões após as eleições e verificando o total desamparo desses profissionais numa época
em que o concurso público ainda não era uma prática em nosso município.
Foram realizadas, ainda, entrevistas com vice-diretores e professores, alguns deles
atuando no Sindicato dos Professores. Como afirma Verena Alberti, “a História oral permite o
registro de testemunhos e o acesso a „histórias dentro da história‟ e, dessa forma, amplia as
possibilidades de interpretação do passado.” (2006, p. 155). Buscamos, pois, através desses
testemunhos do passado elucidar aquilo que não nos foi, e nem seria possível através dos
documentos escritos, visto que se tratam de vivências, de experiências particulares, porém ao
mesmo tempo inseridas e desenroladas num amplo e intrincado contexto.
Especificamente no Sindicato, analisamos atas de reuniões, ofícios e diários de
anotações, os quais demonstraram a atualidade de questões que muitos afirmam estar no
12. 11
passado, mas que insistem em permanecer vivas em nosso meio. São indícios muito recentes
de que, infelizmente, as retaliações ainda são uma constante no sistema de ensino coiteense.
O trabalho está dividido em três capítulos. No primeiro capítulo “Política Brasileira:
uma adequação de velhas práticas”, buscamos demonstrar que embora já estejamos no século
XXI, o “coronelismo” permanece enraizado em nossa tradição política, através de práticas
que se perpetuam sob novas roupagens, mas com a essência totalmente preservada e adequada
a um contexto diverso da República Velha, seu lugar de origem e manifestação plena. Talvez
a utilização do termo em nossos dias não seja conveniente, mas o fato é que herdamos muito
da política dos antigos coronéis.
No segundo capítulo, “Toma lá, dá cá professor”, estabelecemos uma relação entre
essa herança clientelística e o nosso sistema de ensino, demonstrando como professores e
demais funcionários são manipulados, seja através de beneficiamentos ou de represálias. Há
no serviço público como um todo um sistema de troca de favores que demonstram a total
ausência de separação entre o âmbito público e privado, onde a máquina pública é
frequentemente utilizada em benefício próprio.
O terceiro e último capítulo, “Uma tomada de consciência?”, analisa especificamente a
atuação do Sindicato dos Professores, no sentido de defender o professor das inúmeras
práticas que vêm sido usadas ao longo do tempo como instrumentos de manipulação política,
proporcionando assim uma maior autonomia a esses profissionais, além de ser um espaço de
discussão e propostas de melhorias para a classe. Assim, aparentemente temos um processo de
conscientização por parte dos docentes, que já não mais estão resignados as deliberações da
Secretaria de Educação, mas que, por outro lado, mesmo com os vários meios legais que o
amparam, continuam a temer as consequências da defesa pública de suas convicções políticas
quanto estas vão de encontro ao poder municipal, de forma que, ainda falta muito para uma
efetiva tomada de consciência do professor de seus direitos e deveres como cidadão.
13. 12
CAPÍTULO I
Política Brasileira: Uma Adequação de Velhas Práticas
Quando nos foi colocada a necessidade imediata de escolha de um tema para pesquisa,
tive, a princípio, uma grande dificuldade. Não poderia ser um tema qualquer, deveria ser algo
que me provocasse inquietação e com o qual eu pudesse provocar a mesma inquietação nos
outros. Algo prazeroso de ser pesquisado e discutido, e que para tanto precisava de um
sentido, um por quê. Em meio a esse dilema, surgiu a idéia de pesquisar as influências
políticas na educação de Coité, e desde então eu tive a certeza, aquele seria o tema.
A História positivista, em sua eterna busca pela objetividade pregava o maior
distanciamento possível entre o pesquisador e seu objeto de pesquisa. Devo confessar que este
não é o caso, e acredito que não seja tampouco o das demais pesquisas mundo afora. Desde a
escolha do tema, uma pesquisa se acha permeada de valores, anseios e preferências. De forma
que, embora tenha me esforçado para realizá-la de maneira imparcial, não posso negar que
esta pesquisa diz muito acerca dos meus valores, das minhas vivências.
Esta confiança na objetividade sofreu, é verdade revezes. De há meio século para cá,
os historiadores tomaram consciência da ilusão positivista: sabem que a sua
curiosidade é orientada pelas inclinações do seu tempo e que a sua apreensão do
passado é tributária da cultura da sua geração. (RÉMOND, 1987, p. 288 -289)
Nasci numa família tradicionalmente de oposição, não necessariamente de esquerda, e
nem tampouco baseada numa ideologia partidária, era apenas oposição ao grupo político que
se mantinha à frente do governo municipal desde 1973, nesse caso, o grupo liderado por
Hamilton Rios e hoje filiado ao Partido Progressista. Essa ausência de ideologia partidária,
aliás, não se restringe apenas a minha família em particular, mas é uma característica da
cultura política brasileira, onde a frequência com que alguns políticos trocavam de partido
pode ser comparada à que “trocam de roupa”. Hoje, podemos dizer que houve mudanças
nesse sentido, graças a criação da Lei de Fidelidade Partidária, que proíbe essas migrações
constantes de políticos, mas que infelizmente não altera a consciência política da população
em geral. Pois bem, em Conceição do Coité não podia ser diferente, onde até pouco tempo,
14. 13
não era o partido político que interessava, mas se você se denominava “azul” ou vermelho”.2
Desde cedo, aprendi a me acostumar com as derrotas nas eleições municipais, e as
consequências dessas derrotas para a oposição. Comecei a perceber a importância para
algumas pessoas de ter um padrinho político numa cidade de interior que oferece poucas
alternativas a seus moradores. Ter influência com “os homens”, os chefes do município, era, e
ainda é fundamental. Necessidades básicas, como um remédio, água, uma cesta básica, um
botijão de gás, dependiam muito da “boa vontade” do prefeito ou de um vereador. E até
acredito que não seja interessante para alguns desses homens públicos que o povo possa
“caminhar com seus próprios pés”, a relação de dependência é bastante conveniente. Há
pouco, ouvi de uma pessoa que tinha ido pedir uma ajuda a um vereador, que a resposta dele
havia sido negativa e a justificativa era a de que ela não tinha ”ajudado ele” e que
provavelmente os seus eleitores não iriam ficar contentes caso ele a ajudasse. Confesso que,
embora este trabalho tente demonstrar a existência, hoje, de políticos como este, ainda
consigo me surpreender com tamanha agressão à democracia.
De acordo com Sérgio Buarque de Holanda3, o Estado nasce da transgressão da
família, Estado e família são opostos, incompatíveis. Um governante precisa estar apartado de
seus laços familiares, a fim de que exerça suas funções com a impessoalidade que exige um
Estado burocrático. Entretanto, de acordo com o mesmo autor, no Brasil, com sua tradicional
família patriarcal, os laços entre o indivíduo e sua família não são abolidos no âmbito
administrativo, o que leva a uma confusão entre o público e o privado, interesses particulares
se sobrepondo aos da sociedade. O funcionário público no Brasil assume, pois o caráter de um
funcionário patrimonial, onde, de acordo com Weber (ano apud Holanda, 1988, p.106),
[...] a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular;
as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere, relacionam-se a direitos
pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro
Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço
para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos.
2
O azul correspondia à oposição, representado pela ARENA 1 no período militar, e posteriormente, pelos
partidos: PL, PTB, PSDB. O vermelho correspondia inicialmente a ARENA 2, à aliança PFL/PPB, e, a partir de
2000 ao PP. Há várias hipóteses para o surgimento de tal denominação. A mais comum é apontada por
Vanilson Lopes de Oliveira, em sua obra “Conceição do Coité – A Capital do Sisal”. Ela teria surgido quando
correligionários de Hamilton Rios, se dirigindo para um comício no povoado de Juazeiro, passam pelo povoado
de Onça, onde, por sua vez, ocorreria um comício de Misael Ferreira. Os adeptos deste ao perceberem que a
caravana de Hamilton estava caracterizada de vermelho, logo passam a chamá-los “vermelhos” ao que estes
revidam chamando-os de “azuis” pois, coincidentemente, estavam todos vestidos de azul.
3
HOLANDA, Sérgio Buarque de. Raízes do Brasil. 20. ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1988.
15. 14
Como parte da tradição política brasileira, em Conceição do Coité vê-se perfeitamente
este cenário: interesses particulares se sobrepondo aos interesses da sociedade. O poder
público utilizado em proveito próprio, onde a pessoalidade é que determina a direção da
política municipal. De fato, o indivíduo que tem certa proximidade com o prefeito, o
vereador, ou outra pessoa que tenha alguma ligação com os primeiros, certamente terá grande
facilidade em conseguir benefícios próprios e para os seus, benefícios esses que deveriam ser
garantidos a toda a população, mas seguem critérios bastante específicos de distribuição. Tais
critérios se assentam numa política de troca de favores, de consideração, onde as leis que
determinam que todos somos iguais estão submetidas ao jeitinho, à intimidade social. É, pois,
no âmbito da intersecção entre o público e o privado que figura a política em Conceição do
Coité.
Matta4, ao analisar a distinção entre pessoa e indivíduo no Brasil, demonstra que
enquanto indivíduos estamos submetidos à legislação, e somente ela nos ampara, ao passo que
a pessoa além do âmbito legal tem a seu favor um leque de relações pessoais que lhe trazem
algumas facilidades diante da hierarquia social tão marcante em nosso país. O que importa é o
lugar que você ocupa na sociedade, sua posição social, pois, “somos muito mais
substantivamente dominados pelos papéis que estamos desempenhando do que por uma
identidade geral que nos envia às leis gerais que temos que obedecer, característica dominante
da identidade de cidadão” (MATTA, 1990, p.161).
Pois bem. Em nosso município os simples indivíduos estão totalmente e unicamente
dependentes do aspecto legal, enquanto que há muitas pessoas amparadas por uma rede de
relações baseadas em benefícios, trocas, retribuições. Isso fica muito evidente quando se
observa o sistema municipal de ensino. A ausência de eleições para diretores 5 abre espaço
para um grande número de cargos de confiança, que como o próprio nome já diz, tem como
única exigência de admissão a confiança do político no funcionário, que na maioria das vezes
é demonstrada às vésperas da eleição, como indicam as entrevistas realizadas com professores
da rede pública. “A escolha dos homens que irão exercer funções públicas faz-se de acordo
4
MATTA, Roberto da. Você Sabe com Quem Está Falando? Um ensaio sobre a Distinção entre Indivíduo e
Pessoa no Brasil. In__Carnavais Malandros e Heróis: Para uma Sociologia do Dilema Brasileiro. 5. ed. Rio de
Janeiro: Guanabara. 1990.
5
A realidade das escolas municipais infelizmente ainda é esta: a escolha dos gestores se dá meramente por
critérios políticos, através de uma barganha, onde os eleitos para ocupar cargos “privilegiados” têm que
demonstrar na época das eleições sua capacidade de cooptar mais e mais eleitores.
16. 15
com a confiança pessoal que mereçam os candidatos, e muito menos de acordo com suas
capacidades próprias”. (HOLANDA, 1988, p.106)
Além disso, até pouco tempo, era muito comum a perda de carga horária de alguns
professores após as eleições ou ainda a transferência sem o consentimento dos mesmos.
Percebe-se, portanto que aqueles funcionários que têm relações pessoais, que fazem parte da
clientela dos representantes municipais têm uma gama de benefícios ao seu dispor, ao passo
que aqueles onde esse vínculo não existe ou que se opõem aos mesmos, tem no âmbito
jurídico seu único amparo.
Assim, às vésperas das eleições o que se percebe no comportamento dos funcionários
do município é a torcida acalorada de uns para com o candidato da situação ou o silêncio
daqueles que preferem esperar o resultado das eleições para se manifestar. Não defendo aqui a
idéia de que todos os eleitores devam declarar seu voto, afinal ele é secreto e só declara quem
quer, entretanto entendo que alguns eleitores não o fazem por medo de que o resultado das
eleições possa lhes trazer novidades desagradáveis. Desde 1973 o poder no município
encontra-se nas mãos de um grupo político conhecido como “vermelhos”, definição esta mais
importante no município do que o partido que representam como já fora mencionado acima.
Na verdade a identificação com o grupo não está relacionada a nenhum princípio partidário,
mas à figura de Hamilton Rios como seu líder; bem como identificar-se como “azul”, não
significava adotar a ideologia do PL/PTB/PSDB, mas se considerar membro da clientela de
Misael Ferreira.
Quando me refiro à clientela o faço assinalando a permanência em Conceição de Coité
de relações políticas e sociais baseadas em laços coronelísticos. Nesse sentido, como mostra
parte da historiografia, o coronelismo sobreviveu ao fim da Primeira República, pois suas
estruturas continuam muito vivas em nosso município. A denominação “coronel” remete ao
Império, onde indivíduos eram assim nomeados pela Guarda Nacional para proteger a ordem
local. A distribuição das patentes se baseava na estrutura local, a hierarquia militar
obedecendo à hierarquia social e econômica. De modo que, esses coronéis eram, na maioria
das vezes, economicamente influentes o que resultou na identificação do coronel como aquele
que detém o poder político e econômico. Quando o coronel perdeu sua função de guardião da
ordem local, ele já havia conquistado seu lugar enquanto chefe político. Munido desde sempre
do poder econômico ele agora tinha em suas mãos um sistema de dominação baseado na
proteção aos seus, na cordialidade.
17. 16
Já se disse, numa expressão feliz, que a contribuição brasileira para a civilização
será de cordialidade – daremos ao mundo o “homem cordial”. A lhaneza no trato, a
hospitalidade, a generosidade, virtudes tão gabadas por estrangeiros que nos visitam,
representam, com efeito, um traço definido do caráter brasileiro, na medida, ao
menos, em que permanece ativa e fecunda a influência ancestral dos padrões de
convívio humano, informados no meio rural e patriarcal. (HOLANDA, 1988, p. 106)
A “benevolência” do coronel para com os seus é, pois um traço marcante do sistema,
visto que o processo de submissão se disfarça sob uma idéia de lealdade. Com seus aliados ele
estabelece uma relação de igualdade, numa aparente ausência de barreiras sociais. Os outros,
porém sofrem as mais variadas retaliações e perseguições.
É impossível, pois, não ver Conceição do Coité nesse contexto. O que se percebe no
período posterior à eleição é que um grande número de pessoas se beneficiam com as
retribuições do grupo vencedor pelo esforço ao longo do período eleitoral. A merecida
retribuição é concedida aos que bravamente defenderam a causa, aqueles, porém “ingratos”,
que se “bandearam” para a oposição que fiquem entregues a própria sorte, e se for possível
garantir que tal sorte seja das piores, assim será feito. É interessante ressaltar que essa relação
de troca, é algo muito natural para todos, de modo que raramente os interesses coletivos são
levados em conta. Outro aspecto a ser analisado é o fato de que as pessoas buscam auferir o
máximo de benefícios possíveis antes da eleição. Esse é o período em que sem dúvida as
pessoas se sentem mais amparadas pelos homens públicos. Remédios, cestas básicas, botijões
de gás, sacos de cimento são suficientes para garantir o voto a um candidato, afinal, a regra
básica é ajudar a quem ajuda, principalmente se levarmos em consideração que essas pessoas
só serão lembradas novamente nas próximas eleições. A descrença nas promessas eleitoreiras
geralmente esquecidas ainda antes da posse explica esse fenômeno.
Temos, pois, a máquina pública utilizada em proveito próprio. Essa indistinção entre o
público e o privado é uma clara evidência da permanência de práticas coronelísticas. Algumas
entrevistas realizadas com os professores da rede municipal demonstram que isso é encarado
até com certa naturalidade. A proteção, o favorecimento, a retaliação são práticas tão comuns
que as pessoas não se espantam, apenas reagem, quando podem, ou quando acham que
devem. De acordo com Santos (2000, p. 32), o eleitor teme as perseguições pessoais, sendo
que,
A mais comum delas é a demissão do emprego público ou mesmo de uma empresa
privada cujo proprietário tenha relações com o político que teve o interesse
contrariado. Quando não é possível demitir, os “coronéis” impõem a transferência
do funcionário que lhe é “infiel” [...] Nos dois governos do prefeito Hamilton Rios
[...] vários coiteenses foram obrigados a mudar de cidade ou abandonar o serviço
público. (grifo do autor)
18. 17
As pesquisas no Sindicato dos Professores, bem como na prefeitura ilustram muito
bem isso. É muito comum, por exemplo, encontrar nas portarias da prefeitura, logo no início
de um mandato e em uma única portaria várias rescisões contratuais de professores
municipais. Visto que até a década de 1990 não eram realizados concursos para o provimento
dos cargos municipais, o prefeito recém eleito tinha em suas mãos a possibilidade de demitir
ao mesmo tempo um grande número de professores, que provavelmente se opuseram a ele nas
eleições - o que é indicado também por algumas entrevistas realizadas. Como não havia
profissionais suficientes para substituí-los, o prefeito via-se obrigado a readmitir muitos
desses funcionários. Várias anotações do Sindicato, inclusive bastante recentes já que este só
fora fundado no ano de 2001, e as mesmas só passaram a ser feitas em 2007, em caráter de
diário, demonstram como professores ficam receosos no período anterior e posterior à eleição.
Há registros de vários professores que entram em contato com o órgão e relatam ameaças,
geralmente de diretores, de diminuição de carga horária, ou mesmo de transferências.
Diante disso, podemos afirmar que a própria permanência do grupo – hoje filiado ao
PP – no poder por tão longo período é uma evidência de que práticas coronelísticas estão
muito presentes na política coiteense. Isso se explica pelo fato de que os órgãos públicos estão
sob seu controle desde a década de 70, e os mesmos são utilizados como provedores de
barganhas políticas as quais são a garantia da vitória nas eleições. Entretanto, estaria sendo
reducionista se acreditasse que este é o único fator explicativo. É preciso ressaltar o carisma, o
paternalismo presente na figura de Hamilton Rios, que, graças a uma política assistencialista
conseguiu romper, em 1973, o domínio de quarenta anos do influente Wercelêncio Calixto da
Mota (OLIVEIRA, 2002). A popularidade de Hamilton, mais conhecido como “Mitinho” é de
fato indiscutível, e tem grande responsabilidade na permanência de seu grupo no poder por
tão longo período.
Desse modo, a liderança coronelística, que era sempre uma liderança econômica e
uma liderança de parentelas, assumia além de tudo um aspecto nitidamente
carismático, pois o escolhido... só chegava a grande chefe se apresentasse aquela
inexplicável qualidade que despertava a adesão afetiva e entusiástica dos homens,
levando-os espontaneamente à obediência, qualidade que concorria também para
reforçar a solidariedade interna do grupo. (QUEIROZ, 1974, p. 198)
Vemos, pois a permanência do coronelismo, muito embora Vítor Nunes Leal 6 tenha
assinalado o seu fim. O crescimento urbano e as transformações daí advindas levaram a um
6
LEAL, Victor Nunes. op.cit.
19. 18
enfraquecimento do coronel agrícola, o que por sua vez não significou uma crise no sistema
coronelista. Houve uma adequação, onde as novas camadas dominantes da sociedade foram se
tornando os novos coronéis. Essa sobrevivência se justifica na grande desigualdade existente
em nosso país. Apesar de moderno e industrializado, grande parte da população não tem
acesso a condições básicas de sobrevivência, não há uma consciência política formada, o que
há é uma total dependência do povo, usada em prol de barganha política. É aí que se verifica
hoje o voto de cabresto, nas necessidades e na dependência do povo.
Mas essa relação de dependência entre político e eleitor não se assenta somente em
nível de necessidades básicas, vai além disso. Se assenta ainda numa rede de interesses
ligados a empregos, cargos, salários, horas extras. E assim, a troca não se restringe ao voto
individual ou ao da família, mas a busca incessante de mais e mais votos, a uma incansável
campanha, uma verdadeira caçada por eleitores. Essa é a garantia, por exemplo, de
permanência de diretores e vice-diretores de escolas em seus cargos. Não basta declarar o
voto aos “quatro ventos”, não adianta somente decorar sua casa e carro com adesivos de
campanha, é preciso mais do que isso para ser merecedor de tal privilégio, é preciso “ir pra
campo”, conquistar eleitores, até porque a derrota de seu candidato significa a imediata perda
do cargo, o retorno para sala de aula. Várias entrevistas assinalam esse fenômeno, de quatro
em quatro anos os diretores que desejam permanecer como tal, praticamente se afastam de
suas funções para trabalharem como cabos eleitorais.
Nunca é de mais [sic] lembrar que em todo período de campanha eleitoral as escolas
públicas coiteenses ficam acéfalas porque seus dirigentes acham mais interessante
dedicar-s inteiramente à conquista de votos para seus padrinhos. São unânimes em
afirmar que fazem isso voluntariamente, por “amizade” e/ou “convicção”.
(SANTOS, 2000, p. 61.)
Isso é mais grave ainda se pensarmos no grau de autonomia que esses diretores têm
para fazer cobranças ao poder público municipal, se é que há alguma autonomia. Será
possível para esses dirigentes lutar por melhorias para suas escolas junto à Secretaria de
Educação? Acredito que não. A menos que o seu nível de intimidade com o chefe político seja
alto, ou então que suas cobranças não se choquem com os interesses do mesmo, é mais seguro
manter-se quieto, subserviente, afinal, estamos falando de um sistema onde os interesses
pessoais estão bem acima dos coletivos. De acordo com Franco (1997, p. 91) na vida política
brasileira do século XIX, “estavam em jogo objetivos básicos como apoio político versus
auxílio econômico”. Percebe-se, a partir do que fora descrito acima que a política nos dias
atuais não difere muito do passado.
20. 19
Mas afinal, qual a origem político – ideológica do grupo dominante que há quase
quatro décadas mantém em Conceição do Coité essa rede de relações clientelísticas? A
ascensão do grupo se dá em meio a Ditadura Militar, onde, através Ato Institucional nº 2
foram extintos os partidos políticos. Em consequência, duas frentes se organizam: a ARENA,
que apoiava o regime e o MDB, frente de oposição. Na Bahia, esse golpe adequou-se
sobremaneira aos interesses do grupo político liderado por Antônio Carlos Magalhães, o qual
apoiando os militares golpistas obtivera inúmeras vantagens que lhe proporcionaram
consolidar-se no poder baiano. A sobrevivência do carlismo na redemocratização do país se
deve ao próprio caráter desse processo: realizado de cima para baixo ele fora lento e gradual,
de modo a acomodar as lideranças políticas provenientes do sistema anterior.
O cenário político coiteense estava então dividido entre dois grupos governistas:
ARENA 1 e ARENA 2, a este ligava-se o prefeito Hamilton Rios. Com o retorno dos partidos
ao cenário político, os dois grupos se organizaram em partidos que apoiavam a situação no
estado, a ARENA 1 migrou para o PL e o PTB e a ARENA 2 para o PFL e PPB. Desse modo,
percebe-se que embora houvesse uma disputa no âmbito local, todos estavam bem
acomodados ao lado do grupo governista. Essa necessidade dos chefes locais em apoiar a
situação no governo do estado é sem dúvida mais uma evidência do sistema coronelista.
Nas eleições municipais de 1992 ocorre algo inusitado em Conceição do Coité. O
então vice-prefeito Diovando Carneiro rompe com o grupo - PPB/PFL – se candidatando a
prefeitura ao lado de Misael Ferreira, liderança proveniente da ARENA 1, que estava então
filiado ao PSDB. Concorre com o principal líder político da cidade, Hamilton Rios, vencendo
as eleições. Essa foi a única derrota sofrida pelo grupo até então, e logo nas eleições seguintes
o mesmo se restabelece no poder.
Em 1996, a aliança PPB/PFL ainda vigorava em Conceição do Coité. Porém o então
PPB é transformado em PP – Partido Progressista. Na campanha eleitoral desse ano ocorre
um debate entre os candidatos Éwerton Rios de Araújo (PP/PFL), sobrinho de Hamilton Rios,
e Misael Ferreira (PSDB) – então prefeito interino em face a morte de Diovando. Nesse
debate o candidato Misael Ferreira é questionado sobre como pretendia governar, já que não
possuía o apoio do governo estadual. Tal incidente, bem como a derrota do candidato,
demonstram a importância para o líder político local do apoio do governo do estado. É
importante ressaltar que tanto Hamilton Rios, líder da coligação PP/PFL, quanto Misael
Ferreira historicamente opositor àquele, estavam sempre do mesmo lado no que diz respeito
às eleições presidenciais e de governo do Estado, exceto em 1986 e 1994, quando Misael
apoiara respectivamente Waldir Pires e João Durval, ao passo que Hamilton Rios apoiara
21. 20
Josaphat Marinho e Paulo Souto, candidatos de ACM. Desse modo, o que contava não eram
as motivações ideológicas, mas unicamente a necessidade de estar ao lado da situação,
obtendo os privilégios necessários à manutenção da clientela.
Nas eleições de 2000, o PFL rompe com o PP e lança candidato próprio, sem sucesso.
O prefeito seria Wellington Rios, candidato pelo PP e filho de Hamilton Rios. Um aspecto
interessante nesta eleição é o fato de que Misael Ferreira apóia o filho de Hamilton, que se
elege com uma frente de 5.983 votos. Nas eleições de 2004, apesar da desastrosa atuação de
seu primo, Éwerton Rios de Araújo (PP) era eleito pela segunda vez prefeito de Coité, e na
eleição seguinte seu vice-prefeito, Renato Souza, apesar de não fazer parte da família Rios, se
candidata e vence as eleições. Perpetua-se assim a dominação do grupo político liderado pelos
Rios em Conceição do Coité.
Em face ao exposto, pode-se afirmar que o nosso município é, adequando-se aqui e ali,
a expressão daquilo que So Pang (1979, p. 40) define como sendo uma Oligarquia
Familiocrática.
Caracteristicamente organizada pelo chefe de uma única família, ou clã, a esfera de
influência existia dentro de um município. A participação numa oligarquia (nesse
caso um clã) incluía a família em si, pessoas da mesma linhagem, parentes por
afinidade, afilhados de batismo ou de casamento e, às vezes, o povo dependente do
ponto de vista sócio-econômico.
Temos, pois há mais de três décadas, uma única família controlando o poder no
município. Os laços de parentela vêm determinando ao longo desse período a escolha dos
candidatos a prefeito, os quais têm alcançado sucesso, graças a uma política assentada na
troca de favores, na retribuição ou retaliação, dependendo do caso. E o sistema municipal de
ensino é um exemplo gritante de tais práticas. Enquanto alguns profissionais não se sentem à
vontade para declarar-se oposição, outros não hesitam em se tornar efetivos cabos eleitorais a
fim de manter seus privilégios.
22. 21
CAPÍTULO II
Toma lá, dá cá professor!
De acordo com o que fora mencionado acima, a política brasileira permanece
associada a uma rede de relações de troca, de relações pessoais, numa clara indistinção entre o
público e o privado. Nossos representantes têm no cargo público uma oportunidade de obter
uma série de privilégios para si mesmos e para os seus. Poderíamos dizer que a permanência
de um indivíduo, ou grupo no poder obedece a um “ciclo vicioso”, de constante dívida entre
candidato e eleitor, visto que caso o candidato eleito almeje permanecer no cargo ele precisa
distribuir entre os “seus” as merecidas retribuições pelo esforço nas eleições, o que funciona
também como uma garantia de fidelidade nos próximos pleitos.
Assim, o poder público passa a ter um caráter privado, visto que não há entre a
população em geral e principalmente entre a classe política do nosso país a consciência de que
vivemos numa democracia, e que, embora os representantes sejam eleitos por uma maioria
eles estão a serviço de todos. Não há unanimidade, pelo contrário, há um processo de escolha
que provavelmente não agradará a todos, mas que será para todos. Como então escolher “a
dedo” aqueles que serão beneficiados levando-se em conta suas posições políticas? Afinal de
contas, não são escolhidos para representarem a todos, sem distinção?
Pois bem. Talvez o nosso sistema democrático tenha algumas falhas, ou melhor, talvez
não haja ainda uma consciência política democrática entre nossos eleitos e eleitores. Talvez
sejam resquícios de uma recente história política marcada pelo autoritarismo do Regime
Militar. O que se sabe ao certo, é que ainda hoje, vigora entre nós uma política mesquinha,
que tem como fundamento principal a utilização de benefícios públicos como uma moeda de
troca, onde os interesses de poucos estão acima de quaisquer escrúpulos.
Assim, percebe-se uma grande expectativa em torno da escolha eleitoral, que,
dependendo do caso culmina com vantagens ou desvantagens. Infelizmente, isso é uma
constante principalmente em municípios interioranos e nordestinos, onde a necessidade da
população é o sustentáculo de uma política assistencialista e dependente. Desse modo,
prosperou em nosso meio uma relação de compromisso entre eleitor e eleito que implica uma
série de obrigações mútuas, desde que ambos cumpram com seu papel estabelecido. Nesse
sistema, a máquina pública é utilizada como provedora dessas vantagens devidas no pós-
eleição.
23. 22
A política coiteense não é e nem poderia ser diferente. A educação é um dos vários
setores do nosso município onde se pode perceber claramente a vigência de práticas baseadas
em retribuições, ameaças, retaliações. Assim como é perceptível a existência de um grupo
privilegiado, o qual poderíamos chamar clientela, é também perceptível que a situação
daqueles que decidem pela oposição e o fazem abertamente não é tão confortável assim. A
princípio parece pouco provável a existência ainda hoje de retaliações políticas, afinal - pelo
menos é o que se pensa - todos são conhecedores dos seus direitos e deveres. Entretanto,
quando falamos em retaliação não nos referimos apenas a suas modalidades mais explícitas,
ela pode estar – e está – presente de uma forma tão sutil que na maioria das vezes não é
notada, pelo menos pelos que vêem de fora, de maneira que fica muito mais difícil identificar
e coibir legalmente essas práticas.
Temos, pois, mesmo que de maneira imperceptível, práticas de retaliação provenientes
do rompimento ou da inexistência do compromisso entre eleito e eleitor, neste caso o
profissional da educação. Mas já que existem, quais seriam essas retaliações? São inúmeras e
com as mais diversas roupagens. Perda de carga horária, transferências, dificuldade no
processo de efetivação, e até a exoneração, prática comum há alguns anos quando ainda não
havia concurso público. Entretanto, o peso da decisão do professor começa muito antes disso,
ainda no período pré-eleição. Há toda uma pressão sobre o profissional no sentido de coibi-lo
a aderir a causa do grupo. A menos que esse profissional seja conhecedor das leis que o
amparam, e ainda assim, que não esteja numa situação de vulnerabilidade - a ausência de
efetivação em uma carga horária que ocupa, mas para a qual não é concursado, por exemplo -
ele fica à mercê das ameaças do diretor, do coordenador, etc. e nesse caso ou declara seu voto
em favor do grupo, ou fica calado e torce para que não seja identificado como oposição. O
Plano de Carreira do Magistério municipal, alterado em 2007, prevê a efetivação em 40 horas,
de professores concursados para 20, mas que estejam trabalhando com 40 horas durante 08
unidades letivas consecutivas ou 12 intercaladas. Entretanto, o que se verifica em alguns casos
é que alguns professores perdem sua carga horária um pouco antes de completar o prazo, ou
são colocados numa substituição, impossibilitando assim a sua efetivação. Isso fica claro no
trecho a seguir, retirado de uma das entrevistas realizadas com professores municipais:
[...] eu tinha 40 horas na escola, e, com a lei do Plano de Carreira, em que o
professor ficava trabalhando dois anos consecutivos aí se efetivava com 40 horas.
24. 23
Eu já vinha trabalhando há muito tempo 40 horas, quando foi no momento de me
efetivar me deram uma substituição, aí eu não me efetivei.7
A grande maioria dos professores, senão todos, tem conhecimento de leis que
com o apoio do Sindicato foram criadas a fim de diminuir a suscetibilidade do profissional da
educação em face aos diversos mecanismos de manipulação. Entretanto, às vezes fica difícil
provar que determinada situação se configura uma represália política, de modo que muitos
profissionais ficam com receio de declarar-se oposição, ou mesmo votar no grupo de
oposição. Muitos, embora sejam concursados, preferem aliar-se ao grupo no poder, garantindo
assim uma situação confortável na escola, principalmente junto à direção. Existe uma série de
coisas que podem facilitar ou dificultar o trabalho do professor. Todos sabem quão
dispendiosa é essa profissão, de forma que coisas simples como uma carga horária bem
distribuída já são uma grande ajuda. Não se pode suprimir, pois, o fato de que o horário de um
professor declaradamente de oposição poderá não ser tão bem distribuído e organizado quanto
o da situação. São situações do dia-a-dia, e como fora mencionado acima, mecanismos quase
imperceptíveis de retaliação.
Há algum tempo a situação era ainda mais grave. Além de muitas vezes não terem
conhecimento dos seus direitos, os professores não eram concursados, o que dava margem à
situações bem mais claras de perseguição. È muito comum, ao se analisar as portarias da
prefeitura, perceber como era grande a quantidade de profissionais em geral demitidos ou
transferidos. Listas de nomes de pessoas que ficavam desempregadas sem justificativa
aparente. Em muitos casos, quando havia a justificativa, a alegação era de abandono de
serviço ou solicitação do servidor. Como, porém, explicar o fato de que muitos desses
profissionais eram logo readmitidos, voltando a seus antigos postos? Presume-se que o
indivíduo que abandona o seu trabalho o faz por não estar satisfeito ou qualquer outra situação
que o impediria de retornar. A professora Maria Quitéria Costa de Lima, 64 anos, hoje
aposentada, é uma das várias pessoas que tem suas exonerações justificadas com o abandono
de serviço. A portaria nº 3 de 02 de janeiro de 1985 traz esse pretexto como razão de sua
exoneração. A mesma situação se repete na portaria de nº 53 de 19 de fevereiro de 1987.
Assim, temos entre 1985 e 1987, num curto espaço de tempo, duas situações onde a mesma
professora é demitida em circunstâncias onde sua readmissão não é lógica, já que abandonar
7
Entrevista realizada com Marly Nascimento de Lima , 30 anos, em 06/05/2009 às 10h10min, na Escola João
Paulo Fragoso, onde leciona.
25. 24
seu posto tornara-se uma prática recorrente. Em entrevista realizada com a mesma, ela afirma
o seguinte:
[...] quando o candidato perdia a eleição, o candidato ganhou, o meu perdia e o outro
ganhava, por exemplo, mesmo que eu não fizesse política, e nem declarasse meu
voto, mas alguns, algumas pessoas do grupo diziam, “ah, ela não votou em você, e
tal e tal, e por isso vamos, vamos perseguir”, já cheguei até ficar sem ensinar. [...]
eles me demitiam, depois voltava, admitia novamente, e por isso foi várias vezes,
várias vezes aconteceu isso comigo.8
Temos, ainda nas portarias da prefeitura, um fenômeno no mínimo inusitado no que
concerne às durações das licenças maternidade. Como explicar que algumas professoras que
deram à luz em mesmo ano, têm diferentes durações de licença? Só há uma explicação
plausível: o velho e bom sistema de troca de favores, claro na generosidade explícita para uns
e na improbidade para com os demais. Isso se verifica nos anos de 1974 e 1975, onde tais
variações aparecem de maneira intercalada, variando entre 90, 60 e 30 dias. A portaria nº 67
de 11 de julho de 1974, concede uma licença de 90 dias à professora Maria Silveira de Brito
“em decorrência do seu estado de gestação”. Logo, na portaria de nº 75 de 08 de outubro do
mesmo ano, temos uma licença de 60 dias concedida à também professora Joselita Ferreira
Cordeiro, pelo mesmo motivo. Ainda no mesmo ano, no dia 03 de dezembro, temos a portaria
de nº 81, que concede a Maria Nunes de Almeida uma licença maternidade de 90 dias. No ano
seguinte a situação se repete. A portaria nº 138 do dia 03 de outubro concede à Bertulina
Araújo Santos 60 dias de licença, ao passo que sua colega Cebna Mota recebe apenas 30 dias,
na portaria nº 151 de 16 de dezembro.
É realmente interessante analisar as primeiras portarias logo após as eleições, pois, fica
difícil não notar a quantidade de profissionais que perdem seus empregos com a posse do
novo prefeito. No ano de 1983, por exemplo, ano de transição do governo de Walter Ramos
Guimarães para o de Hamilton Rios de Araújo, temos inúmeras exonerações. Somente no dia
10 de fevereiro, na portaria de nº 105, 36 professores têm seus contratos rescindidos. Ainda
no mesmo dia, uma nova portaria, de nº 107, exonera seis professores, e no dia 21, a portaria
de nº 112 exonera mais 10, isso sem falar nos outros professores que, isoladamente tiveram
seus contratos anulados entre os dias 02 e 03 do mesmo mês. Desses professores que tiveram
seus contratos rescindidos 15 foram readmitidos somente na portaria nº 121 de de 31 de
8
Entrevista realizada em 14/04/2009, às 17h30min, em sua residência.
26. 25
agosto do mesmo ano, afinal, não havia pessoas suficientes para substituir esse grande número
de docentes exonerados.
Não se pode suprimir ainda outra característica muito comum no processo de mudança
de prefeito: o fato de que o (a) Secretário(a) de Educação geralmente é substituído. No ano de
1892, a Secretária de Educação Maíse Mascarenhas das Mercês Resedá é exonerada pelo
então prefeito Walter Ramos Guimarães. Em 1983, uma das primeiras providencias do
prefeito Hamilton Rios é a readmissão de Maíse, que ocupa então o cargo durante todo o seu
governo, sendo dispensada em 1989, pelo então prefeito Ewerton Rios D‟Araújo Filho,
quando passa ao cargo de Supervisora de Educação. Percebe-se assim uma necessidade de
acomodação por parte dos líderes políticos do município de sua clientela nos cargos
municipais. A cada eleição há novas necessidades no sentido de quem merece ocupar os
melhores cargos. Mas porque Ewerton substituiria Maíse, já que ele era o sucessor político de
Hamilton, seu tio? Na verdade, quando a Secretária deixa o cargo em 1989, quem o ocupa em
seu lugar é seu esposo, o Sr Emério Vital Pinto Resedá. Garante-se desse modo, a satisfação
do casal, ela como supervisora e ele como Secretário.9
A situação dos professores municipais há duas ou três décadas se afigurava pois, bem
difícil. Era uma situação de completa submissão e desamparo. Isso só começa a mudar na
década de 1990, com a realização do primeiro concurso público. Além disso, temos em 1998,
a instituição do Estatuto do Magistério10, durante o governo de Éwerton Rios. Apesar de
desconhecido por grande parte dos docentes, esse Estatuto era uma garantia de amparo legal,
de modo que, embora no nível da pessoalidade muitos continuassem desvalidos, pelo menos
juridicamente poderiam fazer valer os seus direitos, ainda que isso pareça não ser suficiente
para a maioria das pessoas, visto que vivemos numa sociedade baseada em relações pessoais e
notadamente hierarquizada.
[...] para os adversários, basta o tratamento generalizante e impessoal da lei, a eles
aplicada sem nenhuma distinção e consideração, isto é, sem atenuantes. Mas, para os
amigos, tudo, inclusive a possibilidade de tornar a lei irracional por não se aplicar
evidentemente a eles. (MATTA, 1990, p. 177).
Assim, a partir da década de 1990 já se percebem algumas mudanças favoráveis ao
profissional da educação, apesar de que, na maioria das vezes, o fato de não ter consciência
9
Portarias da Prefeitura, respectivamente: nº 02 de 20 de janeiro de 1982, nº 52 de 02 de fevereiro de 1983,
nº 2 de 02 de janeiro de 1989, nº3 de 02 de janeiro de 1989 e nº 4 de 02 de janeiro de 1989.
10
Lei nº192 de 30 de junho de 1998 . Ver anexo D.
27. 26
dos seus diretos dava margem à permanência de antigas práticas. Desse modo, assim como
permaneceram os coronéis, embora com novas roupagens, também se perpetuaram suas
práticas, adequadas aqui e ali a um novo cenário, que não se afigurava tão confortável assim,
mas que possuía algumas brechas necessárias aos mecanismos de manipulação do eleitorado,
nesse caso, os professores.
O concurso público era, de fato, um empecilho para os líderes políticos do município,
afinal de contas, o grande trunfo de manipulação do professor não mais existia: a
possibilidade de demitir indiscriminadamente. Como fora mencionado acima, a exoneração de
professores era uma prática recorrente e expressiva logo no início de um mandato. Na maioria
das vezes sequer uma justificativa era dada para tais exonerações, simplesmente demitia-se e
pronto. Caso não houvesse substituto – o que era comum em função da pouca demanda por
emprego – esse funcionário retornava para seu antigo posto, o que não impedia novas
demissões em eleições futuras. Tais atitudes prejudicavam muitas pessoas que provavelmente
não possuíam outra fonte de renda, e que, caso tivessem a chance de retornar ao seu antigo
cargo, com certeza não colocariam em risco novamente sua estabilidade econômica em
função de preferências políticas. Além do mais, isso servia ainda como um alerta para os
demais professores: caso quisessem manter-se empregados, deveriam agir de acordo com o
nosso maior princípio político - “é dando que se recebe”.
Mas, sejamos justos, não é só de “maldade” que sobreviveram e sobrevivem os nossos
coronéis. De maneira alguma. Há, de fato, um “quê” de generosidade nos chefes políticos do
município ao longo dessas quatro décadas, pelo menos para com sua clientela. Afinal de
contas, faz-se necessário retribuir aos favores prestados, os quais, longe de se resumirem ao
simples ato de votar, envolvem todo um conjunto de situações que vão desde a defesa
ardorosa até a mais empenhada campanha política. É dessa maneira que funcionava – e
funciona ainda hoje - nosso processo democrático. O voto, na maioria das vezes, assume uma
característica mercadológica.
“Votar num candidato indicado por um coronel não é aceitar passivamente a vontade
deste; é dar conscientemente um voto a um chefe poderoso, de quem já se obteve
algo, ou se almeja obter algo. O voto é, pois consciente, mas orientado de maneira
diversa do que o voto de um cidadão de sociedade diferenciada e complexa; no
primeiro caso, o voto é um bem de troca; no segundo caso, o voto é a afirmação
pessoal de uma opinião.” (QUEIROZ, 1975. p. 182, grifo do autor)
Dentre as retribuições dos chefes políticos para professores que “votam certo e
trabalham” nas eleições a mais comum foi, e continua sendo, o cargo de diretor de uma escola
28. 27
municipal. Embora as incumbências de um gestor escolar não sejam poucas, nem tampouco
fáceis de solucionar, este ainda é considerado um cargo privilegiado, e, por esse motivo, está
destinado àqueles que são, de fato, merecedores. Mas, o que é preciso para alcançar o mérito
necessário a tal cargo? A resposta correta pode ser resumida a uma única palavra: confiança.
A confiança estabelecida no cumprimento do compromisso da troca de favores, o qual é
renovado a cada eleição. Os diretores escolhidos precisam dessa maneira, demonstrar a cada
quatro anos seu interesse e disponibilidade para continuar em seu cargo de confiança, e, para
isso, dedicar-se quase que exclusivamente a uma incansável busca por votos.
Quando questionados acerca dos critérios de escolha dos gestores municipais, os
professores são unânimes em afirmar que o critério primeiro e indispensável para a
investidura no cargo é a afinidade política. Assim, a competência fica em segundo plano, o
que não significa dizer que esses profissionais não sejam competentes, mas que esse deveria
ser o critério principal e não é. Outro atributo é o comodismo. O que se verifica é que esses
profissionais, não possuem autonomia alguma pra realizar cobranças junto à Secretaria de
Educação, como demonstra o depoimento do professor Ezaú Cordeiro Ferreira, então
disponibilizado ao Sindicato dos Professores, onde atua como vice-presidente:
Eu trabalhei numa escola, no ano passado, em 2007 digo, que eu trabalhava com
ensino infantil, crianças de 4 anos, 5 anos, que tinha que estudar em cadeiras de
adultos. Eu conversava com a minha direção da escola e ela dizia pra mim que não
tinha poder de cobrar, que já tinha falo [sic], os móveis da escola estava[sic] lá. Um
diretor escolar, sendo eleito pela comunidade escolar, um diretor é... escolhido pela
gestão democrática, jamais isso vai acontecer, porque ele tem plenos poderes. Se
cobrar, não for executado, procurar o Ministério Público, os órgãos competentes pra
fiscalizar, e a gente sabe que os recursos das escolas que são geridos, que são
enviados pelo governo federal, governo estadual, até pelo próprio governo
municipal, terão uma fiscalização mais ampla, com mais cuidadosa[sic], e as pessoas
que estão na gestão, terão responsabilidade com esses recursos. 11
Muitas vezes, os diretores estão comprometidos com seu trabalho, com as
necessidades da escola. Mas, como atuar com autonomia num cargo de confiança? O meio de
ingresso no cargo não abre espaço para cobranças, afinal o compromisso firmado não inclui
favores à escola, o que o político “devia” a este eleitor fora pago no momento em que ele
alcança o posto ou permanece nele. No extremo oposto, será que todos os diretores estão
atuando de maneira competente, fazendo corretamente o seu trabalho? É possível haver uma
fiscalização do trabalho do diretor, já que ele cumprira direitinho sua parte no trato, indo “pra
11
Entrevista realizada em 03/05/2009 às 19h30min, em sua residência.
29. 28
12
campo”, “suando a camisa na época da eleição” ? Acredito que não. Enquanto isso, nossas
escolas ficam a mercê da impotência e dos desmandos de seus gestores. A comunidade
escolar, alunos, professores, funcionários e pais, os mais interessados numa escola de
qualidade, não tem oportunidade de ver sua opinião contemplada num processo democrático
de escolha. Afinal de contas, quem realmente conhece as necessidades da escola? O prefeito e
seus informantes, ou a comunidade escolar? Quem está mais preocupado no futuro dessas
crianças, em seu desenvolvimento intelectual e crítico? Com certeza não é o político. Ao
contrário, o que vemos é que quanto mais acríticos os eleitores melhor para certos candidatos.
Felizmente, o sistema de eleição direta para diretor já foi implantado nas escolas
estaduais baianas, sendo que, no finalzinho de 2008, a grande maioria das escolas que tinha
professores aptos para o cargo13 teve um bem sucedido processo eletivo. Em conceição do
Coité esse ainda parece ser um sonho distante, visto que nossos representantes parecem não
querer abrir mão de um dos mais eficientes meios de obtenção de votos. Ao longo do seu
mandato como vereador – entre 2004 e 2008 – Francisco de Assis Alves dos Santos, o
popular Assis da Caixa, propôs diversas vezes, na Câmara dos Vereadores, a votação de um
projeto de sua autoria que visava à implantação de eleições diretas para diretores, mas sem
sucesso14. Como grande parte dos projetos apresentados pela oposição em nosso município,
este fora rejeitado sem serem avaliados os benefícios advindos para o sistema de ensino,
mesmo porque tais benefícios iam de encontro aos interesses de grande parte dos vereadores e
também do prefeito municipal.
Dessa forma, ainda que os objetivos verbalizados do sistema de ensino visem a
atender aos interesses da sociedade como um todo, é sempre inevitável que as
diretrizes realmente assumidas pela educação escolar favoreçam mais as camadas
sociais detentoras de maior representação política nessa estrutura. Afinal, quem
legisla, sempre o faz segundo uma escala de valores próprios da camada a que
pertence, ou seja, segundo uma forma de encarar o contexto e a educação, forma que
dificilmente consegue ultrapassar os limites dos valores inerentes à posição ocupada
pelo legislador na estrutura social. (ROMANELLI, 2006. p. 29)
12
As expressões “(ir) pra campo” e “suando a camisa na época da eleição” foram retiradas de entrevistas
realizadas respectivamente com as professoras Iranildes Lima dos Santos, em 15/04/2009 ás 17:45 e Marly
Nascimento de Lima, em 06/05/2009 às 10:10, quando questionadas acerca dos critérios de escolha dos
diretores das escolas municipais.
13
A exigência para que o professor se candidate ao cargo é que ele tenha feito um curso de gestão, de modo
que nas escolas onde não havia nenhum professor habilitado, permaneceu o sistema de indicação política.
14
O projeto fora apresentado pela última vez em 29 de outubro de 2007 – Projeto de lei nº 034/2007. Ver
anexo B.
30. 29
Defendo, pois, o processo de eleição para diretor não como um sistema isento de
interferências político-partidárias, mas como um meio de promover o exercício da cidadania
no interior das nossas escolas. Reconheço, pois os limites dessa prática, afinal de contas o
objetivo do presente trabalho é demonstrar a permanência de práticas clientelísticas no seio da
democracia brasileira, e mais especificamente em Conceição do Coité, seria, portanto,
ingenuidade crer que no âmbito escolar as coisas evoluiriam de outra maneira. Assim, as
falhas provenientes da eleição, que surge com uma necessidade advinda do processo de
redemocratização do país, já foram vivenciadas em diversas escolas, e estão longe de ser
esgotadas e suprimidas, já que são uma característica própria da dinâmica política brasileira,
como demonstra Paro (2001, p. 66):
O fato, entretanto, de a incipiente prática política introduzida pelas eleições de
diretores não ter sido capaz de eliminar por completo essas expectativas e
comportamentos clientelistas não pode levar a que se impute às eleições as causas
desses males que nada mais são, na verdade, do que remanescentes de uma cultura
tradicionalista que só a prática da democracia e o exercício autônomo da cidadania
poderá superar.
Essas práticas clientelísticas estão de maneira tão profunda enraizadas em nossa
sociedade, que se percebe até certa naturalidade em admiti-las. Isso é perceptível no discurso
de alguns profissionais entrevistados para este trabalho. A ex-professora e atual auxiliar de
secretaria da escola Luiz Viana Filho, em Salgadália, Antônia Maria Costa Freitas 15, 53 anos,
responde da seguinte maneira, quando questionada se já passara por alguma situação de
retaliação:
Não, é aquela questão. Eu já passei antes, da vez do pró-leigo16, porque na verdade
é... quem me botou lá na Samambaia ele chegou pra mim pessoalmente e me disse
que ia me tirar da escola que eu trabalhava por motivo de eu ter sido contra o
partido. Ou seja, não... eu não, na verdade foi até ele citou o nome de meu marido.
Eu disse “não fulano, se realmente você quer fazer isso comigo faça com ele porque
eu preciso do meu trabalho”, mas houve realmente uma perseguição. Eu achei
assim. Por questão da pessoa [sic] ter se declarado entendeu, se ele se tivesse
mantido tranquilo e calmo, e tivesse agido assim na base da tranquilidade, eu até não
acreditaria, mas como a pessoa se expôs a falar, aí eu acreditei mais que foi assim,
um termo de uma perseguição né?
15
Entrevista realizada em 26/04/2009 às 09h16min, em sua residência.
16
O pró-leigo foi um curso oferecido pela prefeitura na década de 1990, aos professores leigos do município,
ou seja, àqueles professores que só estudaram até a quarta ou a oitava série. Assim, para continuar ensinando,
esses professores precisavam ser aprovados neste curso e, aqueles que foram reprovados acabaram sendo
remanejados para outros setores, como a limpeza, secretaria, etc., como é o caso de D. Antonia Maria que
passou a ser zeladora, e depois, quando concluiu a oitava série regular passou a ser auxiliar de secretaria.
31. 30
Fica claro no depoimento de D. Antônia Maria, que sua rejeição à retaliação está
ligada ao fato de ter sido o marido e não ela quem declarou o voto no candidato de oposição,
de modo que se alguém merecia ser punido era ele e não ela. Percebe-se assim, uma relativa
aceitação dessa prática por parte da mesma, desde que seja de maneira “justa”, aplicada à
pessoa correta. Do mesmo modo, percebe-se essa naturalidade por parte daqueles que se
sujeitam aos chefes políticos locais, visto que, como demonstra Faoro “não é possível a
descoberta de que sua vontade está presa à do superior, pois o processo de sujeição tem lugar
como se fosse natural e espontâneo. (2001, p. 714)
Percebe-se assim, certa acomodação das pessoas para com essa situação. Ninguém
está totalmente seguro em seu trabalho, em sua carga horária e principalmente em seu cargo
de confiança, se não tiver ligação direta com o prefeito ou com alguém que tenha alguma
influência na prefeitura. As relações se dão no nível pessoal, onde o que conta é você ter um
17
“peixe” , como muitos dizem. Como demonstra Holanda em sua análise sobre a
cordialidade marcante no Estado brasileiro, “falta a tudo a ordenação impessoal que
caracteriza a vida no Estado Burocrático.” (1988, p. 106). Não há entre as pessoas a confiança
na lei, no direito comum a todos, há sim há necessidade constante de sentir-se protegida,
apadrinhada. Desse modo se o candidato que eu apoio perde a eleição, resignadamente eu
preciso aceitar as conseqüências do meu “erro”. Isso é muito evidente nos depoimentos dos
professores, como é o caso de Maria Helena de Oliveira Costa18, 33 anos, que afirma o
seguinte:
Inclusive eu tive o desprazer de ouvir de um membro da secretaria da educação,
quando eu fui reivindicar, pedir é... pra que eu ficasse mais as vinte horas pelo fato
de eu estar fazendo pós-graduação, tendo muitos gastos, tal, ela disse “é assim
mesmo, essas coisas acontecem, se meu grupo também tivesse perdido, ó, eu tenho
filho na faculdade, também estaria prejudicada”. Então quem ganha na verdade tem
que ter os prestígios [...] infelizmente a gente tem que ouvir dessas pessoas “perdeu,
você não votou com a gente”, é o mesmo que estar dizendo isso, “vai ser
prejudicado”. E aí é quando muita gente se inibe pra não ficar dessa forma e resolve
ou votar pra o grupo ou se calar, não havendo assim uma conscientização e piorou
uma democratização.
17
Expressão muito usada pela população para designar uma personalidade politicamente influente.
18
Entrevista realizada em 02/04/2009 às 20h30min, em sua residência. Segundo Maria Helena, isso ocorreu no
ano de 2004, no início do terceiro mandato de Ewerton Rios D’Araújo, quando ela perdeu vinte horas e esteve
na iminência de ser transferida para zona rural, o que só não ocorreu, de acordo com a mesma, porque ela
conseguiu provar que se tratava de perseguição.
32. 31
Assim, muitos profissionais preferem não divulgar o voto, pelo menos não antes do
resultado das eleições, visto que embora tenham diminuído significativamente os casos de
perseguição, ainda se percebem práticas recentes, principalmente entre professores que ainda
não obtiveram efetivação de sua carga horária. Mais recentemente ainda, nas eleições de
2008, temos o caso de outro profissional que também perde sua carga horária, prestes a se
efetivar:
Perdi 20 horas, um dia depois da eleição. Eu tinha 20... , eu tinha 40 horas até a
sexta-feira da eleição e quando foi na terça-feira quando a gente voltou, eu liguei pra
secretaria de educação e Alderlene tinha confirmado que minha portaria tava na
mesa da secretária, só pra ser assinada. Quando foi a tarde que eu cheguei na escola,
o diretor disse que a minha portaria não ia sair mais porque disseram que não
precisavam mais dos meus serviços. Eu fiz “bom, precisou até sexta, no final de
semana, depois não precisa mais?” Aí, eu sou professor de matemática, os alunos
passaram quase um mês na escola sem professor. Não tinha nenhuma outra
desculpa, a não ser política. Mas é assim mesmo.19
Percebe-se, desse modo, que indiretamente o profissional é coibido a votar em
determinado candidato. A ameaça na maioria das vezes não se dá de maneira explícita, e nem
é necessário que seja assim, afinal, quem perde a eleição já sabe os possíveis prejuízos
advindos de sua escolha. Poderíamos dizer então, que a troca de favores, o beneficiamento, a
retaliação, são práticas tão antigas e recorrentes que não podem ser dissociadas e dificilmente
serão extintas da cultura política brasileira.
Entretanto, embora comuns, essas práticas não são bem vistas pela população, de
maneira que se faz “vista grossa”, a maioria dos benfeitores e os beneficiados prefere negar a
sua existência. Assim, ao analisar o discurso dos entrevistados que abertamente apóiam o
governo municipal percebem-se divergências nesse sentido. Embora estejam ligados à
educação, os cargos ocupados por esses indivíduos não são os mesmos, o que pode explicar
essa divergência. O primeiro caso é o da professora e vice-diretora Cirlene da Silva Simões20
que, admite a existência, há dez anos, de perseguição política a professores, inclusive, a
mesma afirma ter sido vítima de perseguição. Ela não admite porém, a permanência hoje de
tais atitudes ao mesmo tempo que nega a existência em nosso município de uma política
19
Entrevista realizada com Marcos Antônio Araújo Silva, 26 anos, em 27/04/09 às 16h13min, no Sindicato dos
Professores Municipais.
20
Entrevista realizada em 19/04/2009 ás 09h10min, em sua residência.
33. 32
associada a troca de favores. Entretanto, quando questiono acerca dos critérios de escolha de
diretores e vice-diretores, ela afirma o seguinte: “Bem, como não há eleição para vice-direção
no município, ainda é escolhido através do grupo, né? Se você pertence ao mesmo grupo aí
escolhe um professor pra ser diretor. E se também ele agrada a comunidade, que também eles
21
observam isso, né?” . Percebe-se então a resistência em afirmar e, ao mesmo tempo, a
impossibilidade de negar a existência de uma política de barganha no município.
O segundo caso é o de uma professora, que por um longo período foi oposição ao PP,
mas que atualmente opta pelo apoio ao mesmo. Atuando com quarenta horas no município e
mais as horas extras que eventualmente lhe são concedidas, Iranildes Lima dos Santos 22 não
somente concorda com a existência hoje, de represálias principalmente a professores sem
efetivação, como afirma a existência de uma política de troca de favores, onde inclusive ela
acredita ser beneficiada.
Olhe, eu já fui favorecida sim. Porque antigamente, alguns anos atrás, a nossa
família só votava no “partido dos azuis”, né?, como todo mundo sabe. E o “partido
dos vermelhos” nunca me perseguiu, assim. Então depois que eu declarei meu voto
pra eles, aí eu fui beneficiada, porque eu adquiri mais quaren... mais 20 horas.
Quando tem hora extra eles me procuram pra me dar hora extra, então de certo modo
eu me sinto beneficiada em meu trabalho.
Assim, em face ao exposto, podemos afirmar que práticas clientelísticas se mantém
muito vivas na política brasileira e bastante explícitas em Conceição do Coité. Talvez essa
seja a razão pela qual um único grupo político se mantém no controle do município desde
1973. A concessão de cargos, a manipulação do eleitorado através de mecanismos de coerção
nem sempre explícitos, mas sempre muito eficientes, tudo isso proveniente do acesso à coisa
pública e de sua utilização como algo privado permite que se perpetue a dominação dos
“vermelhos” em Coité.
Tudo isso leva a um questionamento importante e interessante de ser feito por todos
nós brasileiros: até que ponto pode-se afirmar a eficácia do nosso sistema democrático? Até
que ponto o nosso regime representativo é válido? É conveniente que sejamos críticos o
suficiente para fazermos tais reflexões, mas também que tenhamos sabedoria para perceber
que apesar das falhas, vivemos um sistema democrático, mesmo que ainda dependente de um
processo de conscientização dos nossos eleitores para uma maior eficácia. É uma necessidade
21
Idem.
22
Entrevista realizada em 15/04/2009 às 17h45min, na residência de sua mãe.
34. 33
urgente que todos aprendamos a votar guiados por escolhas sensatas e dissociadas da imediata
necessidade de dar e receber, certos de que o bem que buscamos é um bem comum, coletivo e
não somente individual.
Esse processo de conscientização depende diretamente do acesso a uma vida digna e
principalmente a uma educação de qualidade, onde os profissionais da educação percebam o
seu importante papel no desenvolvimento crítico de nossas crianças e adolescentes. Mas como
isso é possível em face à tudo o que fora exposto acima? Como exigir dos professores que
formem cidadãos, quando muitas vezes lhes é podada sua própria cidadania? Há, sem dúvida,
que se pensar cada vez mais em mecanismos que proporcionem ao professor trabalhar e viver
com autonomia. E alguns significativos passos foram dados em Conceição do Coité nesse
sentido, através da criação do Sindicato dos Professores como veremos adiante.
35. 34
CAPÍTULO III
Uma Tomada de Consciência?
Podemos dizer que a fundação do Sindicato dos Professores Municipais de Conceição
do Coité - SPMCC foi um grande avanço rumo a uma conscientização por parte dos
professores, tanto de seus direitos quanto de seus deveres. Apesar de muito aquém do
necessário, as mudanças introduzidas pelo Sindicato são louváveis, afinal, em quase todas as
entrevistas realizadas há menção às leis propostas pelo mesmo e a sua atuação no sentido de
que elas sejam respeitadas.
O Sindicato é recente, foi fundado em 26 de janeiro de 2001. Em sua ata de fundação
vemos uma preocupação com a leitura e a discussão minuciosa do estatuto, a fim de
esclarecer “para que não surgisse [sic] futuras críticas no sentido de que o estatuto não fosse
visto como um ato de oposição política e sim um processo de segurança aos professores
municipais.”23 Há assim, uma necessidade de desvincular a instituição de uma posição
político-partidária, o que é algo lógico se levarmos em conta que o objetivo da mesma é
buscar melhorias para a classe que representa, o que só é possível através de negociações com
o gestor do município e a Secretaria de Educação. Entretanto, algumas entrevistas realizadas
com professores disponibilizados ao Sindicato, bem como também alguns documentos do
mesmo demonstram que a sua imagem junto ao poder público municipal é de uma declarada
oposição, o que, aliás, se aplica a qualquer órgão ou pessoa que se restrinja a discordar de
alguma diretriz ou posicionamento, ou que simplesmente cobre algo da prefeitura.
Geralmente as pessoas que estão aqui no sindicato, elas são, é... de certa forma mal
vistas pelos gestores né?, por defenderem a classe, por bater de frente com eles, por
enfrentá-los, aí eles acabam percebendo a gente com outro, com outro olhar, né?
Inclusive outros companheiros meus que já trabalharam aqui no sindicato também já
passaram por situações muito parecidas. Uma amiga minha, por exemplo, faltando
dois meses pra se efetivar acabou tendo sua vaga desaparecida, e aí justifica isso o
fato de ela ter também participado da diretoria do sindicato. 24
23
Ata de reunião do Sindicato dos Professores Municipais de Conceição do Coité, datada de 26 de janeiro de
2009.
24
Entrevista realizada com Fábio Carneiro Souza, em 03/06/09, às 11h30min, no Sindicato dos Professores.
Fábio estava então atuando como presidente do Sindicato.
36. 35
Apesar de suas relações um pouco conturbadas com a prefeitura, desde a fundação o
SPMCC vem atuando efetivamente no sentido de trazer melhorias para professores e outros
funcionários, tanto no referente a aumentos salariais quanto na criação de propostas de leis
que garantam uma maior segurança ao profissional da educação. Isso fica muito evidente nas
atas de reuniões, onde essas questões são frequentemente abordadas, e também nos ofícios
destinados à Secretaria de Educação, os quais contêm as pautas das reuniões. Questões
anteriormente decididas exclusivamente pela prefeitura e repassadas aos professores, hoje são
amplamente discutidas e questionadas se for o caso. Exemplo disso foram as alterações
propostas no Projeto de Lei Complementar do Plano de Carreira dos Professores do
Magistério Público Municipal25, o qual fora discutido e analisado de maneira detalhada numa
assembléia geral do Sindicato, resultando num novo projeto elaborado pelo mesmo e que teve
grande parte de suas modificações acatadas e inseridas na redação final. Um dos pontos
importantes abordados foi a questão do enquadramento em 40 (quarenta) horas para
professores admitidos para o regime de 20 (vinte) horas. Anteriormente o Plano de Carreira26
definia que para ser efetivado, o professor precisava estar ocupando uma vaga real durante o
prazo de dois anos letivos consecutivos ou três intercalados. Entretanto, caso esse professor
ingressasse após o início do ano letivo, por causa de turmas não fechadas, por exemplo, esse
ano não seria contabilizado. Desse modo, foi proposto que ao invés dois anos letivos ou três
intercalados, a efetivação ocorresse após oito unidades letivas ou doze intercaladas, o que
favorece o professor caso as aulas não se iniciem no período letivo regular27.
Outro aspecto importante analisado no projeto foi a questão da transferência, seja ela
de escola, disciplina, turno ou modalidade de ensino. Embora a sugestão dos professores de
que sejam avisados com uma antecedência mínima de 30 (trinta) dias em caso de
transferência não tenha sido aceita, pode-se dizer que um grande avanço foi obtido no sentido
de coibir a retaliação política através da mesma, visto que ficou assegurado o direito de opção
do professor, especialmente em caso de transferência de unidade de ensino.28
Verifica-se, pois, que os principais mecanismos de retaliação utilizados pelo poder
público municipal - a transferência e a perda de carga horária – foram contemplados nessa Lei
25
Projeto de Lei Complementar nº 001/2007, artigo 2º. Ver anexo F.
26
Lei Complementar nº 02 de 30 de junho de 1998. Ver anexo C.
27
Artigo 4º da Lei Complementar nº 014/ 2004, alterado pela Lei Complementar nº 01 /2007.Ver anexos E e F.
28
Artigo 5º da Lei Complementar nº 014/2004, alterado pela Lei Complementar nº 01 /2007. Ver anexos E e F.
37. 36
Complementar a fim de garantir ao profissional maior estabilidade em seu trabalho. Mas isso
significa dizer que a partir de então todos os docentes passaram a divulgar abertamente seu
posicionamento político? Ou melhor, significa que não houve desde então evidencias de
práticas clientelísticas desse tipo? Infelizmente não é bem assim. Essa nova legislação entrou
em vigor em 21 de junho de 2007 e já no ano seguinte no período pré e pós eleição várias
relatos de ameaças dessa natureza são registrados nos diários de anotações do Sindicato dos
Professores. Esse assunto aparece também nos ofícios do mesmo, sejam eles pautas de
reuniões com a Secretaria de Educação, ou destinados a diretores que supostamente
pretendiam transferir um professor ou algo do gênero. Nestes casos o ofício traz trechos da lei
que amparam o professor, impedindo assim a direção de levar a cabo seu intento:
Tendo em vista os artigos acima citados, entendendo o contexto em que nos
encontramos e recebendo a procura para esclarecimento de dúvidas da professora
Alaíde da Hora Carneiro, e como relatado pela mesma encontra-se trabalhando na
Escola Rio Branco com o Projeto Horta, em contato direto com os alunos,
percebendo ainda o final da IV Unidade, venho através deste informar que por
amparo da lei, a professora encontra-se com segurança para permanecer onde está
trabalhando até o final do projeto citado, sendo amparada, tanto pela Lei do
FUNDEB quanto pelo Plano de carreira municipal, que lhe dá opção de escolher
permanecer, abandonar ou ser removida de seu local e modalidade de trabalho.
(grifo do autor)29
A professora estava então, amparada pela lei, além de ter buscado uma maneira de
demonstrar ao seu superior que tinha conhecimento disso. Mas, e quando se trata de uma
situação em que não há como se amparar na legislação? Infelizmente isso ainda é muito
comum. Como já fora mencionado anteriormente, professores não efetivados em regime de 40
(quarenta) horas, que ainda não completaram suas 08 (oito) unidades letivas consecutivas ou
12 (doze) intercaladas ficam completamente a mercê do seu diretor, ou de qualquer um que
não esteja satisfeito com sua posição política. Um caso interessante a ser citado é o da
professora Lucivane Carneiro da Silva. Ao ouvir alguns comentários de que perderia 20
(vinte) horas de sua carga horária por não ter votado nos candidatos da situação, a mesma
procura o Sindicato que verifica que a sua portaria de efetivação ainda não havia saído, de
modo que ela estava suscetível a perda de carga horária30.
29
Trecho do Ofício 046/2008, destinado em 13 de outubro de 2008 a Osvanilson Morais Carneiro, diretor da
escola Rio Branco. Os artigos a que o texto se refere são, respectivamente, o parágrafo único do artigo 1º da Lei
Complementar nº 002/98, e o artigo 5º da Lei Complementar nº 014/2004.
30
Diário de anotações do Sindicato dos Professores Municipais de Conceição do Coité: 07/10/2008 e
11/10/2008.
38. 37
È preciso deixar claro que muitas vezes essas ameaças não são realizadas diretamente
ao profissional. Eles ocorrem sob a forma de boatos, comentários entre funcionários que
acabam provocando um clima de receio nas escolas. Algumas vezes, porém, a ameaça é mais
concreta. No dia 11 de outubro de 2008 três professoras da escola João Paulo Fragoso
procuram o SPMCC afirmando que a escola já tinha até uma lista contendo os nomes das
pessoas que seriam transferidas. No dia 17 de dezembro do mesmo ano, novamente esses
professoram entram em contato com o Sindicato revoltados com a notícia da diretora de que
no ano seguinte haveria no município um rodízio de professores, o que significa que a cada
ano os professores seriam trocados de escola.31 É claro que isso não ocorreu, afinal, vai de
encontro à própria legislação, mas serve muito bem para ilustrar os meios pelos quais os
profissionais da educação são ameaçados nas escolas do município. Esse é retrato da
atmosfera escolar no período precedente e posterior as eleições municipais.
Uma afirmativa recorrente nas entrevistas é a de que vêm diminuindo muito os casos
concretizados de retaliação. A atuação do SPMCC aliado as leis criadas em defesa do
professor são as justificativas apontadas pelos mesmos para tal diminuição. Não se deve
suprimir, porém, o fato de que o docente continua se sentindo coibido e pressionado tanto
quanto antes. Será que a manipulação desse profissional está no ato concretizado de
perseguição ou no temor que o mesmo sente ao perceber-se vulnerável diante do seu diretor,
Secretaria de Educação ou prefeitura? Em uma entrevista já citada, realizada com o professor
e presidente do sindicato Fábio Carneiro Souza32 ele afirma o seguinte:
Depois da eleição, dessa última eleição, muitos professores vieram aqui, muitos até
chorando, se sentindo ameaçados, que foram é... que ouviram coisas de diretores
que não deveriam ter ouvido, se sentiram humilhados, e nós, como sindicato
entramos em ação, buscamos colocar em prática as leis que nos beneficiam e, muitos
desses casos foram, graças a Deus, resolvidos sem muito transtorno. Eu acho que
eles preferiram não passar por cima das leis, principalmente daqueles casos que
vieram nos procurar, que é o que o sindicato teve conhecimento.
Esse relato demonstra que o professor está mais consciente dos seus direitos, afinal,
busca meios de impedir que os mesmos sejam violados. Entretanto, isso não significa que haja
total confiança no respeito a esses direitos. Infelizmente - e isso não se aplica só a Conceição
31
Diário de anotações do sindicato dos Professores Municipais de Conceição do Coité.
32
Entrevista realizada em 03/06/09, às 11h30min, no Sindicato dos Professores.
39. 38
do Coité, mas é uma característica brasileira – o cidadão comum não se sente totalmente
seguro no amparo jurídico, ele não está acostumado a acreditar que a justiça é igual para
todos.
A gente tamos [sic] num país democrático, mas ainda precisa democratizar as nossas
leis. De que maneira eu falo? Não quer dizer que as nossas leis não são democráticas
não. Elas precisam ser respeitadas na sua ação de atuação. Então as pessoas não
acreditam muito na justiça, que vai fazer justiça, que ele vai ser amparado pela
justiça, então, as pessoas ainda se retraem, por muitos exemplos de perseguições até
de anos anteriores[...]33
Como demonstra Matta34, para nós brasileiros não bastam os meios legais, é
necessário mais que isso, um amparo pessoal, baseado na intimidade, na pessoalidade. É
difícil admitir, mas sabemos que na maioria das vezes aqueles que têm boas relações são
beneficiados no nosso moroso sistema jurídico. E o que significa ter boas relações em uma
cidade como Conceição do Coité? Quem são as pessoas influentes do município? São, sem
sombra de dúvida, aqueles que pertencem à elite, destacando-se dentro deste grupo os
políticos no poder. Parece, pois, lógico que um funcionário sentindo-se ameaçado exatamente
por suas escolhas políticas não tenha boas relações com esses indivíduos mais influentes. Sua
única opção é se apoiar na igualdade formal, mesmo sabendo que o que prevalece em nossa
sociedade é um sistema hierarquizado “em contraste com o domínio das relações impessoais
dadas pelas leis e regulamentos gerais”. (MATTA, 1990, p.158)
Em face ao exposto, conclui-se que, apesar de ainda parecer insuficiente, o professor
vêm obtendo nos últimos anos uma série de garantias legais à sua estabilidade profissional,
além de ter no Sindicato da categoria o suporte necessário às mesmas. Não se pode, porém,
suprimir o fato de que o SPMCC vem atuando não somente no sentido de proteger o
professor, mas também de fiscalizar e averiguar denúncias de irregularidades cometidas pelos
mesmos e pelas escolas. É possível encontrar nas atas de reuniões, por exemplo, discussões
acerca de substituições irregulares, excesso de carga horária, reduzido número de alunos nas
salas, entre outros. Após visitas às escolas a fim de verificar a procedência da informação, as
denúncias são encaminhadas pelo mesmo à Secretaria de Educação.
As irregularidades apontadas nas reuniões não se restringem ao seio das escolas, mas
também a prefeitura. Um tema polêmico e frequentemente discutido se refere a ausência de
33
Entrevista realizada com Ezaú Cordeiro Ferreira, 32 anos, em 03/05/2009 às 19h30min, em sua residência.
34
MATTA, Roberto da. op. cit.
40. 39
repasses das contribuições dos funcionários ao INSS, gerando assim problemas para
professores no momento da aposentadoria. Em uma reunião realizada em 05 de maio de
200635, o diretor de recursos humanos da prefeitura Jackson Oliveira é questionado acerca do
destino das contribuições descontadas mensalmente dos servidores, já que fora verificado em
consulta ao CNIS – Cadastro Nacional de Informações Sociais, que alguns meses ou anos
estão zerados. Na ocasião ele afirma que a prefeitura faz e paga regularmente a Guia da
Previdência Social – GPS, mas não explica a razão do problema, apenas pede um prazo de
três meses para solucioná-lo. Entretanto, até recentemente nada havia sido resolvido, visto que
esse continua a ser um assunto presente tanto nas reuniões quanto nos diários do sindicato.
Exemplo disso é o caso da servidora Maria Ferreira, que tem o pedido de aposentadoria
negado, pois no INSS só constam dois anos de contribuição, ao passo que ela garante já ter
25. A mesma é então encaminhada à advogada do SPMCC.36
A possibilidade de o profissional docente ter à sua disposição um advogado para
auxiliá-lo em problemas desse tipo era inimaginável. Se nos remetermos às três décadas
anteriores à fundação do Sindicato, veremos que só muito recentemente os professores
começaram a adquirir algumas conquistas importantes. O concurso público é novidade no
município, somente na década de 1990 temos o primeiro concurso para professores e, como já
fora mencionado anteriormente, a contratação dava margem a uma série de prejuízos aos
mesmos, visto que, estavam suscetíveis inclusive a demissões. Não havia nenhuma legislação
que protegesse e regulamentasse o servidor público até a criação em 1996 do Estatuto dos
Servidores Públicos do Município e, mais recentemente do Plano de Carreira dos Professores
do Magistério Público Municipal37. Desde então, muita coisa mudou, o que explica o fato de
que a maioria dos entrevistados para esta pesquisa mencionem a diminuição das práticas de
retaliação em relação a dez anos atrás.
Todas essas mudanças já discutidas suscitam uma questão: ao longo desse processo de
conquistas, houve por parte dos professores uma real conscientização dos seus direitos e
deveres enquanto professores? Será que todos os professores e demais funcionários da
educação conhecem efetivamente a legislação que os assegura? Talvez não, mas o que com
certeza eles sabem é que têm onde se amparar: o Sindicato dos Professores. Isso fica evidente
35
Ata de reuniões do Sindicato dos Professores Municipais de Conceição do Coité.
36
Diário de anotações do Sindicato dos Professores Municipais de Conceição do Coité: 13/10/2008
37
Lei Complementar nº 02/1998. Ver anexo C.