1. NÃO MATEM OS JACARÉS
Augusto César Proença
Agora o homem vem voltando.
Volta a tempo de comer o necessário para forrar o
estômago, que o filho da mãe só ficar vazio desanda a
ferver; borbulha, anunciando a dor.
Do olho vazado do homem, sempre que o vento bate
de frente cai um líquido viscoso, então tem de desabar a aba
do chapéu na testa, baixar a cabeça, proteger o olho
arruinado.
Antes, pegava a ruana e ia ligeiro até a sede da
fazenda comprar os mantimentos da semana, mas depois que
a dor começou a bater a mulher o alertou: “Agora de quê-
que vai continuar nessa andação pra lá e pra cá – acompanha
seu pai, guri”. E o filho, já grandinho, que andava
peralteando pelas beiradas do rancho, passou a ir também,
um na égua e outro no burrinho, cumprir com a obrigação de
toda a semana: três quilos de arroz, um de feijão...
O homem ergue o rosto. Apesar da distância vê um
gavião pousado no topo de um jatobeiro. Tivesse ânimo, não
aqueles dois cambitos de braços cansados, pegava a
espingardinha, aprumava ela no ombro, mirava, apertava o
gatilho e pá terra! Era ver o bicho tombar num baque surdo,
estremecer na terra até estrebuchar de morte. “Êta caolho
desgraçado de bão pra atirá, sô” – não era assim que o
capataz falava?
Falou: “Deixa de cabeçudagem, compadre, tenho
servicinho mais rendoso pro senhor, melhor que esse de
ficar trabalhando a troco de ninharia”.
2. No dia seguinte, apareceu com a canoa aproada, a
espingarda 22 automática, munição da boa, lanterna novinha
e disse: “É pro senhor sair por aí e vê se traz uns couro pra
nós”.
Desde esse dia passou a se ocupar só com jacarés.
Chovesse, ventasse, fizesse sol, lá estava ele remando nos
corixos, nos riozinhos, nas baías, procurando atalhos no
silêncio daqueles brejos.
Vez por outra, varava noites focando os bichos
alinhados na praia. A lanterna alumiava centenas de
estrelinhas ao rés do chão, quase amontoadas em bancos de
areia desmoronados pelas pequenas crateras escuras. Então
atirava! Descarregava o pente de balas contra os olhinhos
redondos, vivos, que, de repente, perdiam o brilho e se
embaçavam de morte: atirava! Muitos corriam num rebolado
desengonçado e se metiam ligeiros dentro d’água. Outros,
ali mesmo, ficavam imóveis, como que dormind, estendidos
sobre as crateras escuras da praia.
Mais de três anos nesse servicinho rendoso – e como
rendia! Toda semana um acerto. O capataz aparecia
mastigando a ponta de um charuto guarani, o riso reabrindo
o rosto redondo, contava os couros, pagava e perguntava:
“Satisfeito, compadre?...
Ora se estava! Nem precisava de responder, então era
pra reclamar de coisa nenhuma?... Tinha do bão e do
melhor: casa alugada na cidade, mulher requintada de
perfume, filharada tudo na escola, dinheiro nunca que
faltava, corria que nem rio, entrava e saía do bolso: bão
demais!
Se o sol esquentava, ele embicava a canoa numa
sombra e ali mesmo cozinhava o peixe, ali mesmo
descansava o corpo, ali mesmo ligava o radinho de pilhas e
escutava as notícias: falavam de uma guerra?...
3. A guerra contra os coureiros, afirmavam, caçadores de
jacarés, homens que traziam na pele a cor do bronze e
deslizavam silenciosos nas suas canoas feitas com a metade
de um tronco escavado. Falavam que iam prender esses
homens e combater o contrabando de couros. O Exército, a
Marinha, a Aeronáutica, a polícia, entrariam em ação com
seus soldados, embarcações e helicópteros. Às vezes, o rádio
fraquejava nas pilhas, falhava, fazia menção de parar, ele
não entendia bem o que vinha a ser tal de “cologia”, que a
Operação Pantanal se armava para defender.
Se a tarde caía, trazendo o coaxar dos sapos, a
sinfonia de pássaros, o rugido das onças pintadas nas
cordilheiras de acuris que rodeavam o brejo, ele pegava o
rumo de uma boca de corixo e esperava a noite chegar. Mas
a noite chegava diferente, sem o silêncio de antes, vinha
cheia de percalços, de sinistras surpresas, de mistérios e
rumores de motores de popa cruzando o Taquari, fazendo-o
pressentir a invisível presença dos novos soldados, subindo-
descendo o rio, revistando os esconderijos.
Os homens ordenavam: “Não matem os jacarés! Não
matem os jacarés!
Foi aí, que de tanta preocupação, começou a sentir a
dor. De primeiro uma dorzinha enjoada, quase nada,
friozinho percorrendo o estômago. Bastava comer alguma
coisa, logo passava. Depois veio a quentura, o borbulho, a
dor crescendo forte e com ela a vontade de quebrar das
carnes: cansava demais... Passou a se recolher mais cedo,
não varava mais as noites à procura de jacarés, coisa
nenhuma. Voltava moído, quebradito, querendo cama.
Um dia, procurou o capataz e falou que não ia mais
continuar no servicinho rendoso. “Quá! O senhor tá é com
cagaço, isso sim”, foi a resposta.. E avisou: “Então devolve
tudo o que te emprestei e vê se fica de bico calado”.
4. Mas os dias passavam lentos, a aflição crescia: como
que ia continuar mantendo a mulher e os filhos com casa
alugada na cidade se não tinha mais o servicinho rendoso?
Para aliviar a despesa mandou chamar a mulher.
Desembarcou da lancha numa madrugada de domingo,
quando as aranquãs da mata lançavam gritos desesperados.
Chegou de paviu curto, implicantezinha, reclamadeira de
tudo, só ela e o caçula, o resto da filharada ficou lá na
cidade: João, caçando emprego no comércio; Mariazinha,
trabalhando no puteiro da Eunice.
Agora o homem vem voltando.
Não tem mais de 40 anos e parece um velho. Por trás
da pele esverdeada esconde um mundo primitivo e áspero.
Aquele olho vazado, fundo, empretecido, é a marca da
pedrada da funda que um dia lhe atingiu de cheio o rosto.
Volta entanguido, encurvado debaixo da chuva
chiadeira que começa a apertar com o vento frio,
empurrando nuvens grossas e negras para escurecer todo o
céu nesse final de tarde.
Em vez de proteger o seu corpo com o poncho, ele
cobre o sapicuá de mantimentos preso na garupa do arreio.
Vira-se para o filho e fala: Apura guri, mete reio nesse
burro, anda!
Os dois atravessam o largo do cocho da figueira, onde
o gado, encolhido de chuva, prepara-se para passar a noite
na malhada. Escutam berros de bezerros desgarrados,
barulho de chifres se roçando, tosses gosmentas de
ruminantes e aí penetram no varadouro do capão comprido,
sombrio àquela hora, com a chuva gotejando entre as folhas,
escorrendo pelos troncos das árvores, abrindo pequenos
buracos redondos na areia úmida do chão.
De repente lhe chegam as vozes, as pisadas dos cascos
dos cavalos que rompem os bamburros, estalando nos
5. galhos: o capataz surge à frente. Vem do fundo do capão e
avança, impedindo a passagem do pai e do filho.
-- O senhor vai ter que pagar, compadre.
O homem não entende. Difícil compreender o que
aquela gente barbuda, que acompanha o capataz, faz com
armas grandonas a tiracolo.
-- Pagá o quê?
O rosto do capataz sorri um segredo, em seguida
prossegue. :
-- Entrar numa guerra é fácil, compadre, sair dela que é
difícil.
-- Já falei que vou ficá de bico calado.
-- Quem vai acreditar nisso?...
Os cavalos pisoteiam na terra úmida, resfolegam,
bufam... Um vulto enorme e escuro avança devagar, com
segurança. O homem repete:
-- Já falei que vou ficá de bico calado.
-- É tarde, compadre, falei e tá falado, o senhor é o
único culpado. Todo mundo sabia que matava jacaré pra
vender o couro do bicho.
-- O senhor que mandava.
-- Mentira!
O homem sente a raiva no corpo. Uma força estranha,
parecendo vir de outras eras toma conta dele como um
relâmpago de fogo. O olho arde. O estômago queima. É
ensurdecedor o barulho que agora lhe chega ao ouvido,
ressoando um segredo de fundo de mata. Olha o olho do
capataz, o bigodinho dele grisalho, a cara de porco sovado e
grita: Seu filho da puta!!!
O vulto avança com sua sombra escura e gigantesca. O
capataz ordena.
-- Não. Ainda não, calma, espera a hora da legítima
defesa.
6. O homem continua com a raiva estremecendo-lhe a
alma. Uma tosse reprimida arranha-lhe o céu seco da boca.
São os tais homens da guerra que estão ali como sombras?...
As caras angulosas, as capas molhadas, brilhosas: cada olho
carregando uma chama?...
Um espasmo de cólera ferve em todas as suas veias.
Furioso, agarra o cano da velha espingardinha e num
movimento brusco, quase inacreditável, faz menção de
aprumar a arma no ombro, mas o vulto gigantesco consegue
ser mais rápido, reaparece das sombras e dispara o tiro
certeiro no peito magro do homem.
A bala rompe a pele, vara os ossos, penetra no corpo e
ele tomba num baque surdo e abafado. O filho grita de
horror: paaaaai!...
Nesse momento um uivo de animal selvagem chega até
eles, semelhante a de um gato agourento e raivoso, que se
repete em ecos e segue pelas distâncias até se perder nas
macegas encharcadas.
Então a mulher do homem deixa cair a colher de pau
para dentro da panela com arroz que estava mexendo.
Assustada, atravessa o pequeno espaço do rancho e vai
olhar. Não vê ninguém. A cancela da cerca estava cerrada,
tal qual o marido tinha deixado. Bota atenção. Não escuta
outro tiro, nem outros ecos do uivo que estremeceu as palhas
do rancho. No ar apenas alguma coisa movia como se
tivesse acabado de passar por ali, voando ou correndo
naquele silêncio, naquele lusco-fuso cinzento, que rastejava
pelas beiradas do capão sujo, sorrateiro, feito bicho.