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DOS MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS Á MULTITERRITORIALIDADE
Rogério Haesbaert
Porto Alegre, Setembro de 2004
O objetivo deste trabalho é aprofundar o debate sobre uma noção proposta
anteriormente, a noção de multiterritorialidade (Haesbaert, 1997, 2001a, 2002a, 2004).
Ela aparece como resposta ao processo identificado por muitos como
“desterritorialização”: mais do que a perda ou o desaparecimento dos territórios,
propomos discutir a complexidade dos processos de (re)territorialização em que
estamos envolvidos, construindo territórios muito mais múltiplos ou, de forma mais
adequada, tornando muito mais complexa nossa multiterritorialidade. Assim, a
desterritorialização seria uma espécie de “mito” (Haesbaert, 1994, 2001b, 2004),
incapaz de reconhecer o caráter imanente da (multi)territorialização na vida dos
indivíduos e dos grupos sociais. Assim, afirmamos que, “mais do que a
desterritorialização desenraizadora, manifesta-se um processo de reterritorialização
espacialmente descontínuo e extremamente complexo”. (Haesbaert, 1994:214) Estes
processos de (multi)territorialização precisam ser compreendidos especialmente pelo
potencial de perspectivas políticas inovadoras que eles implicam.
1. Território(s)
Para falar em multiterritorialidade precisamos, em primeiro lugar, esclarecer o
que entendemos por território e por territorialidade. Desde a origem, o território nasce
com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão
próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a
ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo –
especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no
“territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer
que, para aqueles que têm o privilégio de usufrui-lo, o território inspira a identificação
(positiva) e a efetiva “apropriação”.
Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas
ao tradicional “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto,
de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. Lefebvre
distingue apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um
processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso, o
segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca. Segundo o autor:
O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica
“apropriação” e não “propriedade”. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos,
um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado,
tanto mais ele é dominado pelos “agentes” que o manipulam tornando-o unifuncional,
menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido,
aquele dos usuários, tempo diverso e complexo. (Lefebvre, 1986:411-412, grifo do
autor)
Como decorrência deste raciocínio, é interessante observar que, enquanto
“espaço-tempo vivido”, o território é sempre múltiplo, “diverso e complexo”, ao contrário
do território “unifuncional” proposto pela lógica capitalista hegemônica.
Podemos então afirmar que o território, imerso em relações de dominação e/ou
de apropriação sociedade-espaço, “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da
dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva
e/ou ‘cultural-simbólica’” (Haesbaert, 2004:95-96). Segundo Lefebvre, dominação e
apropriação deveriam caminhar juntas, ou melhor, esta última deveria prevalecer sobre
a primeira, mas a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a primeira
sobrepujasse quase completamente a segunda, sufocando as possibilidades de uma
efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-empresarial e/ou
completamente transformados em mercadoria.
Embora Lefebvre se refira sempre a espaço, e não a território, é fácil perceber
que não se trata de um espaço no sentido genérico, muito menos de um espaço natural.
Trata-se, isto sim, de um espaço-processo, um espaço socialmente construído, um
pouco como na distinção entre espaço e território feita por autores como Raffestin
(1993[1980]). De certa maneira podemos afirmar que o espaço trabalhado por Lefebvre
é “um espaço feito território” através dos processos por ele denominados de
apropriação (que começa pela apropriação da própria natureza) e dominação (mais
característica da sociedade moderna, capitalista).
A diferença é que, se o espaço social aparece de maneira difusa por toda a
sociedade e pode, assim, ser trabalhado de forma genérica, o território e os processos
de des-territorialização devem ser distinguidos através dos sujeitos que efetivamente
exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e, conseqüentemente, os
processos sociais que o(s) compõe(m). Assim, o ponto crucial a ser enfatizado é aquele
que se refere às relações sociais enquanto relações de poder – e como todas elas são,
de algum modo, relações de poder, este se configura através de uma noção
suficientemente ampla que compreende desde o “anti-poder” da violência1
até as
formas mais sutis do poder simbólico.
Enquanto “continuum” dentro de um processo de dominação e/ou apropriação, o
território e a territorialização devem ser trabalhados na multiplicidade de suas
manifestações – que é também e, sobretudo, multiplicidade de poderes, neles
incorporados através dos múltiplos agentes/ sujeitos envolvidos. Assim, devemos
primeiramente distinguir os territórios de acordo com os sujeitos que os constróem,
sejam eles indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas, instituições como a Igreja
etc. As razões do controle social pelo espaço variam conforme a sociedade ou cultura, o
grupo e, muitas vezes, com o próprio indivíduo. Controla-se uma “área geográfica”, ou
seja, o “território”, visando “atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e
relacionamentos” (Sack, 1986:6).
A territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz
respeito também às relações econômicas e culturais, pois está “intimamente ligada ao
modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e
como elas dão significado ao lugar”. Sack afirma também:
A territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para
criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do
contexto geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de
significado. (1986:219)
Portanto, todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes
combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para
realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território é funcional a começar
pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo (“lar” para o nosso repouso),
seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias-primas” que variam em importância
de acordo com o(s) modelo(s) de sociedade(s) vigente(s) (como é o caso do petróleo no
atual modelo energético capitalista).
Para Raffestin, “um recurso não é uma coisa”, a matéria em si, ele “é uma
relação cuja conquista faz emergir propriedades necessárias à satisfação de
necessidades”. (1993:8) Como “meio para atingir um fim” (p. 225), não é uma relação
1
. Souza (1995), comentando Hannah Arendt, afirma que, enquanto o poder demanda
“legitimidade” e é “inerente à existência de qualquer comunidade política”, a dominação pela
violência aparece à medida que o poder está sendo perdido. (p. 80)
estável, pois surge e desaparece na história das técnicas e da conseqüente produção
de necessidades humanas. Milton Santos prefere distinguir o território como recurso,
prerrogativa dos “atores hegemônicos”, e o território como abrigo, dos “atores
hegemonizados” (Santos et al., 2000:12). Embora reconheçamos a enorme relevância
desta distinção, podemos divergir em relação aos termos, já que, na verdade, são duas
formas distintas de produção do território enquanto recurso: os dominantes privilegiando
seu caráter funcional e mercantil, os dominados valorizando-o mais enquanto garantia
de sua sobrevivência cotidiana.
Para os “hegemonizados” o território adquire muitas vezes tamanha força que
combina com intensidades iguais funcionalidade (“recurso”) e identidade (“símbolo”).
Assim, para eles, literalmente, retomando Bonnemaison e Cambrèzy (1996), “perder
seu território é desaparecer”. O território, neste caso, “não diz respeito apenas à função
ou ao ter, mas ao ser”. É interessante como estas dimensões aparecem geminadas,
sem nenhuma lógica a priori para indicar a preponderância de uma sobre a outra:
muitas vezes, por exemplo, é entre aqueles que estão mais destituídos de seus
recursos materiais que aparecem formas as mais radicais de apego às identidades
territoriais.
Assim, poderíamos falar em dois grandes “tipos ideais” ou referências
“extremas” frente aos quais podemos investigar o território, um mais funcional, outro
mais simbólico. Enquanto “tipos ideais” eles nunca se manifestam em estado puro, ou
seja, todo território “funcional” tem sempre alguma carga simbólica, por menos
expressiva que ela seja, e todo território “simbólico” tem sempre algum caráter
funcional, por mais reduzido que ele seja. Num esquema genérico dos extremos deste
já aludido continuum entre funcionalidade e simbolismo, podemos caracterizá-los da
seguinte forma:
“Território funcional” “Território simbólico”
Processos de Dominação Processos de Apropriação (Lefebvre)
“Territórios da desigualdade” “Territórios da diferença”
Território sem territorialidade Territorialidade sem território
(empiricamente impossível) (ex.: “Terra Prometida” dos judeus)
Princípio da exclusividade Princípio da multiplicidade
(no seu extremo: unifuncionalidade) (no seu extremo: múltiplas identidades)
Território como recurso, valor de troca Território como símbolo, valor simbólico
(controle físico, produção, lucro) (“abrigo”, “lar”, segurança afetiva)
Mais importante, contudo, do que esta caracterização genérica e aparentemente
dicotômica, é fundamental perceber a historicidade do território, sua variação conforme
o contexto histórico e geográfico. Os objetivos dos processos de territorialização, ou
seja, de dominação e de apropriação do espaço, variam muito ao longo do tempo e dos
espaços. Assim, as sociedades tradicionais conjugavam a construção material
(“funcional”) do território como abrigo e base de “recursos” com uma profunda
identificação que recheava o espaço de referentes simbólicos fundamentais à
manutenção de sua cultura. Já na sociedade “disciplinar” moderna (até por volta do
século XIX) vigorava a funcionalidade de um “enclausuramento disciplinar”
individualizante através do espaço – não dissociada, é claro, da construção da
identidade (individual, mais do que de grupo). Mais recentemente, nas sociedades “de
controle” ou “pós-modernas” vigora o controle da mobilidade, dos fluxos (redes) e,
conseqüentemente, das conexões – o território passa então, gradativamente, de um
território mais “zonal” ou de controle de áreas para um “território-rede” ou de controle de
redes. Aí, o movimento ou a mobilidade passa a ser um elemento fundamental na
construção do território.
Podemos, simplificadamente, falar em quatro grandes “fins” ou objetivos da
territorialização, acumulados e distintamente valorizados ao longo do tempo:
- abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de
produção;
- identificação ou simbolização de grupos através de referentes
espaciais (a começar pela própria fronteira).
- disciplinarização ou controle através do espaço (fortalecimento
da idéia de indivíduo através de espaços também
individualizados);
- construção e controle de conexões e redes (fluxos,
principalmente fluxos de pessoas, mercadorias e
informações).
É importante que ressaltemos agora, então, dentro dessa multiplicidade
territorial em que estamos mergulhados, quais os traços fundamentais que distinguem a
atual fase des-territorializadora, mais flexível, do capitalismo ou da modernidade – para
alguns “pós-modernidade”, para outros “modernidade radicalizada” (Giddens, 1990) ou
“líquida” (Bauman, 2001). Entendemos que uma marca fundamental é, ao lado da
existência de múltiplos tipos de território, a vivência cada vez mais intensa daquilo que
denominamos multiterritorialidade.
2. Múltiplos territórios
Inicialmente é necessário distinguir aquilo que denominamos “múltiplos
territórios” e “multiterritorialidade” – a multiplicidade de territórios como uma condição
sine qua non, necessária mas não suficiente, para a manifestação da
multiterritorialidade. Rompendo com a dicotomia entre fixidez e mobilidade, território e
rede, propusemos uma primeira distinção, muito importante na constituição dos
“múltiplos territórios” do capitalismo, entre territórios-zona, mais tradicionais, e
territórios-rede, mais envolvidos pela fluidez e a mobilidade.
Poderíamos mesmo, generalizando ao extremo, afirmar que o capitalismo se
funda, geograficamente, sob estes dois grandes “paradigmas” territoriais – um mais
voltado para a lógica estatal, controladora de fluxos pelo controle de áreas, quase
sempre contínuas e de fronteiras claramente delimitadas; outro mais relacionado à
lógica empresarial, também controladora de fluxos, porém prioritariamente pela sua
“canalização” através de determinados dutos e nódulos de conexão (as redes). Arrighi
(1996), de forma geograficamente questionável, distinguiu dois “modos opostos de
governo ou de lógica do poder” em relação à dinâmica entre capital (ou espaço
econômico) e a “organização relativamente estável do espaço político”, duas estratégias
geopolíticas (e geoeconômicas) que ele denomina de “capitalismo” e “territorialismo”:
Os governantes territorialistas identificam o poder com a extensão e a densidade
populacional de seus domínios, concebendo a riqueza/o capital como um meio ou um
subproduto da busca de expansão territorial. Os governantes capitalistas, ao contrário,
identificam o poder com a extensão de seu controle sobre os recursos escassos e
consideram as aquisições territoriais um meio e um subproduto da acumulação de
capital. (p. 33)
O autor destaca, contudo, que são duas lógicas não-excludentes, pois
historicamente funcionariam em conjunto, “relacionadas entre si num dado contexto
espaço-temporal”. (p. 34) Desde o exemplo dado por Arrighi como “protótipo do Estado
capitalista”, a Veneza do final da Idade Média e outras cidades-Estado do norte italiano,
percebe-se com clareza a constituição de “territórios-rede” onde o controle era exercido
ao mesmo tempo sobre o que o autor denomina de “enclaves anômalos” (as cidades-
Estados), loci principais das poderosas oligarquias mercantis, quanto sobre suas redes
de atuação, que envolviam tanto o domínio direto ou indireto (pelo comércio) sobre
outras áreas (territórios-zona), seja dominando as rotas marítimas que permitiam a sua
interconexão.
Bourdin (2001), comentando Balligand e Maquart, afirma:
(...) sempre houve territórios descontínuos, os dos comerciantes e seus balcões,
os das peregrinações e de suas igrejas de romaria, “territórios-rede” de que o Império
de Veneza oferece uma perfeita ilustração. Hoje, este tipo de território domina, dando
um outro significado aos recortes tradicionais, sobretudo políticos. (p. 167)
Assim, dentro da diversidade territorial do nosso tempo devemos levar em conta,
em primeiro lugar, esta distinção crescente entre uma lógica territorial zonal e uma
lógica territorial reticular2
. Elas se interpenetram, se mesclam, de tal modo que a efetiva
hegemonia dos territórios-zona estatais que marcaram a grande colcha de retalhos
política, pretensamente uniterritorial (no sentido de só admitir a forma estatal de controle
político-territorial) do mundo moderno, vê-se obrigada, hoje, a conviver com novos
circuitos de poder que desenham complexas territorialidades, em geral na forma de
territórios-rede, como é o caso da territorialidade do narcotráfico globalizado.
Dentro dessa complexa relação entre redes e áreas ou zonas como os dois
elementos fundamentais constituintes do território (para Raffestin, duas das três
“invariantes” territoriais – a terceira seriam os pólos ou nós, que no nosso ponto de vista
são, juntamente com os “dutos”, constituintes indissociáveis das redes), devemos
destacar a enorme variedade de tipos e níveis de controle territorial. Se o território é
moldado sempre dentro de relações de poder, em sentido lato, ele envolve sempre,
também, no dizer de Robert Sack, o controle de uma área. Este controle, contudo,
dependendo do tipo (mais funcional ou mais simbólico, por exemplo) e dos sujeitos que
o promovem (a grande empresa, o Estado, os grupos locais, etc.), adquire níveis de
intensidade os mais diversos. Assim, com base em propostas anteriores (Haesbaert,
2
. Para uma discussão mais aprofundada desta temática, bem como da noção de território-rede, ver o item
7.1 (Territórios, redes e territórios-rede) em nosso livro “O mito da desterritorialização” (Haesbaert, 2004,
pp. 279-311).
2002b e 2004), propomos identificar “múltiplos territórios” através das seguintes
modalidades:
a) Territorializações mais fechadas, quase “uniterritoriais” no sentido de
imporem a correspondência entre poder político e identidade cultural,
ligadas ao fenômeno do territorialismo, como nos territórios defendidos
por grupos étnicos que se pretendem culturalmente homogêneos, não
admitindo a pluralidade territorial de poderes e identidades.
b) Territorializações político-funcionais mais tradicionais, como a do
Estado-nação que, mesmo admitindo certa pluralidade cultural (sob a
bandeira de uma mesma “nação” enquanto “comunidade imaginada”,
nos termos de Anderson, 1989), não admite a pluralidade de poderes.
c) Territorializações mais flexíveis, que admitem a sobreposição
territorial, seja sucessiva (como nos territórios periódicos ou espaços
multifuncionais na área central das grandes cidades) ou
concomitantemente (como na sobreposição “encaixada” de
territorialidades político-administrativas).
d) Territorializações efetivamente múltiplas – uma “multiterritorialidade”
em sentido estrito, construídas por grupos ou indivíduos que
constróem seus territórios na conexão flexível de territórios
multifuncionais e multi-identitários.
Precisamos então, a partir daí, distinguir entre “múltiplos territórios” e
“multiterritorialidade”. O antropólogo colombiano Zambrano (2001), numa perspectiva
semelhante, traz contribuições muito interessantes. Ele distingue entre “territórios
plurais” e “pluralidade de territórios”3
. Com base na complicada realidade sócio-política
e cultural da Colômbia, Zambrano reconhece a multiplicidade de territórios através dos
próprios movimentos sociais e das lutas travadas por diferentes grupos e instituições.
Assim, afirma ele:
No âmbito político o pertencimento gera o sentido de domínio sobre um lugar,
sentido que estimula o aparecimento de formas de autoridade e tributação sobre o
espaço, configurando a real perspectiva territorial: percepções de atores diversos,
3
. O autor parte da definição de território como “o espaço terrestre, real ou imaginado, que um povo (etnia
ou nação) ocupa ou utiliza de alguma maneira, sobre o qual gera sentido de pertencimento, que confronta
com o de outros, e organiza de acordo com os padrões de diferenciação produtiva (riqueza econômica),
social (origem de parentesco) e sexo/gênero (divisão sexual dos espaços) e [sobre o qual] exerce
jurisdição”. (Zambrano, 2001:29)
geralmente alheios aos contornos territoriais locais (Estado, guerrilhas, ONGs etc.) que
inserem suas visões, confrontando-se com as dos residentes (organização social,
formas de parentesco, uso do espaço etc.) que devem lutar pela hegemonia de um
modo particular de exercer legitimamente o domínio ou estabelecê-lo com as pautas de
dominação intervenientes que lhes são alheias. A propriedade da terra como
fundamento do território é deslocada pela noção de soberania que é ação de domínio
sobre o espaço de pertencimento, real ou imaginado. Sem as amarras da propriedade,
o territorial surge com mais nitidez enquanto espaço de relações políticas entre as
distintas representações que legitimam as ações de domínio sobre ele; por isto é que
em cada território se encontram diversos sentidos de domínio, históricos e complexos –
na maioria das vezes produzidos para além das fronteiras locais – diminuindo o caráter
aberto, submetido a formas jurisdicionais. A jurisdição tem fronteiras difusas que não
são físicas, isto é, são desterritorializadas, política e socialmente falando, razão pela
qual o sentido de domínio se translada com os atores que deixam suas marcas nas
localidades. Aparecem assim as jurisdições guerrilheiras, paramilitares, municipais,
indígenas, afro-colombianas, ecológicas, judiciais, eclesiásticas etc., num mesmo lugar,
configurando nele uma arena própria para a luta territorial. (p. 17, tradução nossa)
Ainda que questionemos este caráter “desterritorializado” das jurisdições (cujo
termo pode muitas vezes ser substituído por “territorialidades”), é evidente, na análise
do autor, a multiplicidade de territórios – e territorialidades – que podem conviver num
mesmo espaço, alimentando ou não as lutas pelo território. É o próprio Zambrano quem
afirma, mais adiante, que o espaço pode ser concebido como “um cenário de pugna
entre territorialidades, isto é, entre jurisdições, reais e imaginadas, que incidem sobre os
territórios estruturados e habitados”. Sugere então que “os territórios plurais são uma
multiplicidade de espaços diversos, culturais, sociais e políticos, com conteúdos
jurisdicionais em tensão, que produzem formas particulares de identidade territorial”. (p.
18)
Distingue-se assim entre “pluralidade de territórios” e “territórios plurais”, que,
longe de uma “armadilha semântica”, permite enfocar duas qualificações distintas:
A pluralidade de territórios indica sua multiplicidade: “a superfície terrestre como
suporte está sujeita a um processo permanente de organização/diferenciação, processo
central para a reprodução sistêmica. (...)” Os territórios plurais, além de conceberem a
multiplicidade descrita anteriormente, concebem todo espaço terrestre ocupado por
distintas representações sobre ele, que tendem a legitimar a jurisdição sobre os
habitantes que nele residem, configurando a série de relações sociais entre as
diferentes percepções de domínio. (....) Os territórios plurais permitem perceber, em
cada unidade do múltiplo, a pluralidade de percepções territoriais estruturadas [a
cotidianeidade dos habitantes], estruturando [processo de construção] e estruturantes
[ex.: judiciais, eclesiásticas e algumas guerrilheiras, formadas pela progressiva ação
dos movimentos sociais]. (p. 29-30)
Contendo a pluralidade de territórios, os territórios plurais se manifestariam pelo
menos de duas formas (p. 31):
- multiplicidade de territórios: território plural como reunião de vários territórios;
- pluralidade de jurisdições (ou, na nossa interpretação, de territorialidades):
território plural por abranger diferentes jurisdições (incorporando-as parcialmente ou por
sobreposição).
A pluralidade de territórios, característica que pode se confundir com a noção
aqui proposta de múltiplos territórios, pode estar compreendida de duas formas nos
“territórios plurais” (noção mais próxima de nossa concepção de multiterritorialidade) –
uma, vista a partir do “território plural” como conjunto justaposto de diversos territórios
compreendidos no seu interior, outra, a partir do “território plural” como conjunto
superposto de vários territórios (ou territorialidades) cuja abrangência pode ir bem além
dos seus limites.
É como se fossem duas perspectivas distintas: na primeira, o olhar vai mais dos
limites do “território plural” para o seu interior, na segunda o olhar prioriza as relações
deste território com aqueles que se encontram para além ou “acima” dele. Tanto num
caso como no outro o convívio de múltiplas territorialidades implica sempre disputas.
Como afirma Zambrano, “o território se conquista”, sendo assim “luta social convertida
em espaço”. (2001:31)
Aqui é importante fazer uma breve distinção entre território em sentido estrito e
territorialidade. Alguns autores, numa visão mais estreita, reduzem a territorialidade à
dimensão simbólico-cultural do território, especialmente no que tange aos processos de
identificação territorial. Na maioria das vezes, porém, os autores não fazem esta
distinção, a territorialidade sendo concebida como “aquilo que faz de qualquer território
um território” (Souza, 1995:99), ou seja, as propriedades gerais necessárias à
construção territorial – que variam, é claro, de acordo com o conceito de território ao
qual estejamos nos referindo.
A territorialidade, no nosso ponto de vista, é “algo abstrato”, como diz Souza,
mas não no sentido radical que a reduz ao caráter de abstração analítica. Ela é uma
“abstração” também no sentido ontológico de que, enquanto “imagem” ou símbolo de
um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia político-cultural,
mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado – como
no conhecido exemplo da “Terra Prometida” dos Judeus. Ou seja, o poder no seu
sentido simbólico também precisa ser devidamente considerado em nossas
concepções de território. É justamente por fazer uma separação demasiado rígida entre
território como dominação (material) e território como apropriação (simbólica) que
muitos ignoram e a complexidade e a riqueza da “multiterritorialidade” em que estamos
mergulhados.
3. Multiterritorialidade
Para entendermos a multiterritorialidade contemporânea é preciso remontar às
suas “origens”. Na verdade, especialmente levando em conta as concepções de
território e de territórios múltiplos anteriormente discutidas, podemos afirmar que
sempre vivemos uma multiterritorialidade:
(...) a existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos
no sentido de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí,
formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma novidade,
pelo simples fato de que, se o processo de territorialização parte do nível individual ou
de pequenos grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um
entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma
“multiterritorialidade”. (Haesbaert, 2004:344)
Um dos primeiros cientistas sociais a falar de multi-pertencimento territorial e
multiterritorialidade é o sociólogo francês Yves Barel. Ele parte de uma noção
demasiado ampla de território, definido como o “não-social dentro do qual o social puro
deve imergir para adquirir existência” (Barel, 1986:131), para afirmar que:
(...) o homem, por ser uma animal político e um animal social, é também um
animal territorializador. Diferentemente, talvez, de outras espécies animais, seu trabalho
de territorialização apresenta, contudo, uma particularidade marcante: a relação entre o
indivíduo ou o grupo humano e o território não é uma relação biunívoca. Isto significa
que nada impede este indivíduo ou este grupo de produzir e de “habitar” mais de um
território. (...) é raro que apenas um território seja suficiente para assumir corretamente
todas as dimensões de uma vida individual ou de um grupo. O indivíduo, por exemplo,
vive ao mesmo tempo ao seu “nível”, ao nível de sua família, de um grupo, de uma
nação. Existe portanto multipertencimento territorial. (p. 135)
Trata-se, contudo, daquilo que denominamos multiterritorialidade em sentido
lato, mais tradicional, resultante da sobreposição de territórios, hierarquicamente
articulados, “encaixados”. Os exemplos citados por Barel, um pouco como na
espacialidade diferencial de Yves Lacoste, comentada logo a seguir, deixam claro que
se trata de uma multiterritorialidade pelo “encaixe” de territórios em diferentes
dimensões ou escalas.
Assim, Barel dá como exemplo de “multiterritorialidade contemporânea” a
política de emprego – exemplo coerente com sua ampla concepção de território. A luta
pelo desemprego não pode mais ficar subordinada às iniciativas de caráter estatal-
nacional, pois se trata de um fenômeno internacional ou mesmo global. As políticas
nacionais, assim, “se tornam políticas locais, freqüentemente ineficazes por causa de
seu localismo”. (p. 137-138)
Seria então a multiterritorialidade uma questão de escala ou, nos termos de
Lacoste, uma questão de espacialidade diferencial? Neste sentido, é interessante que
reflitamos um pouco sobre as relações entre multiterritorialidade e espacialidade
diferencial.
Lacoste (1988) ressalta a diferença entre a espacialidade aldeã ou rural e a
espacialidade urbana. Mesmo sem usar o termo, ele já antecipa a “compressão tempo-
espaço” (Harvey, 1992), profundamente diferenciada entre os grupos sociais (Massey,
1993), ao afirmar que “nos dias de hoje, (...) tudo aquilo que está longe sobre a carta é
bem perto por determinado meio de circulação. (...) Hoje, nós nos defrontamos com
espaços completamente diferentes, caso sejamos pedestres ou automobilistas (ou, com
mais razão ainda, se somarmos o avião)”. Assim, na nossa vida cotidiana, referimo-nos,
“mais ou menos confusamente, a representações do espaço de tamanhos
extremamente não-semelhantes (...) ou, antes, a pedaços de representação espacial
superpostos, em que as configurações são muito diferentes umas das outras”.
Essa “multi-escalaridade” das práticas socioespaciais implica a vivência de
múltiplos “papéis” que “se inscrevem cada um em migalhas de espaço”, descontínuo,
multiescalar:
Vivemos, a partir do momento atual, numa espacialidade diferencial feita de uma
multiplicidade de representações espaciais, de dimensões muito diversas, que
correspondem a toda uma série de práticas e de idéias, mais ou menos dissociadas
(...).(Lacoste, 1988:49)
O autor reconhece então as diferentes representações do espaço referidas à
nossa mobilidade mais restrita, cotidiana (a nível de bairro, cidade, deslocamentos de
fim de semana); as configurações espaciais não-coincidentes das redes das quais
dependemos (redes administrativas, de comercialização, de influência urbana,
financeiras); e as representações espaciais de mais ampla escala, veiculadas pela
mídia e pelo turismo, e que freqüentemente abarcam o globo no seu conjunto. Assim:
O desenvolvimento desse processo de espacialidade diferencial se traduz por
essa proliferação de representações espaciais, pela multiplicação das preocupações
concernentes ao espaço (nem que seja por causa da multiplicação dos deslocamentos).
Mas esse espaço do qual todo mundo fala, ao qual nos referimos todo tempo, é cada
vez mais difícil de apreender globalmente para se perceber suas relações com uma
política global. (Lacoste, 1988:50)
A dificuldade em “apreender globalmente” nossa experiência espacial
contemporânea, destacada por Lacoste, tem a ver com a descontinuidade dos espaços
– e dos territórios, organizados muito mais em rede do que em termos de áreas.
Provém daí um sério dilema político, a ser retomado no item final deste artigo: como
organizar movimentos políticos de resistência através de um espaço tão fragmentado e,
em tese, multi-escalar e... desarticulado?
Se para Lacoste “as práticas sociais se tornaram mais ou menos confusamente
multiescalares” (p. 48-49), muitos de nós, contudo, encarregamo-nos de desfazer a
confusão deste novelo e, retomando seus fios, tecemos nossa própria rede, ou melhor,
nosso(s) próprio(s) território(s)-rede(s) – que implicam, sem dúvida, assim, a vivência de
uma multiterritorialidade, pois, como já salientamos, todo território-rede resulta da
conjugação, em outra escala, de territórios-zona, descontínuos. Além disso, mais do
que de superposição espacial, como enfatiza o autor, trata-se hoje, principalmente com
o novo aparato tecnológico-informacional à nossa disposição, de uma
multiterritorialidade não apenas por deslocamento físico como também por
“conectividade virtual”, a capacidade de interagirmos à distância, influenciando e, de
alguma forma, integrando outros territórios.
Distinguimos então pelo menos duas grandes perspectivas de tratamento da
multiterritorialidade:
(...) aquela que diz respeito a uma multiterritorialidade “moderna”, zonal ou de
territórios de redes, embrionária, e a que se refere à multiterritorialidade “pós-moderna”,
reticular ou de territórios-rede propriamente ditos, ou seja, a multiterritorialidade em
sentido estrito. (Haesbaert, 2004:348)
Multiterritorialidade inclui assim uma mudança não apenas quantitativa – pela
maior diversidade de territórios que se colocam ao nosso dispor (ou pelo menos das
classes mais privilegiadas) – mas também qualitativa, na medida em que temos hoje a
possibilidade de combinar de uma forma inédita a intervenção e, de certa forma, a
vivência, concomitante, de uma enorme gama de diferentes territórios.
A chamada condição pós-moderna inclui assim uma multiterritorialidade:
(...) resultante do domínio de um novo tipo de território, o território-rede em
sentido estrito (...). Aqui, a perspectiva euclidiana de um espaço-superfície contínuo
praticamente sucumbe à descontinuidade, à fragmentação e à simultaneidade de
territórios que não podemos mais distinguir claramente onde começam e onde terminam
ou, ainda, onde irão “eclodir”, pois formações rizomáticas também são possíveis. (...)
(Haesbaert, 2004 :348)
Esta flexibilidade territorial do mundo “pós-moderno”, embora não seja uma
marca universalmente difundida (longe disso), permite que alguns grupos, em geral os
mais privilegiados, usufruam de uma multiplicidade inédita de territórios, seja no sentido
da sua sobreposição num mesmo local, seja da sua conexão em rede por vários pontos
do mundo. Aqui podemos lembrar a multiterritorialidade mais funcional da organização
terrorista Al Qaeda, analisada em trabalho anterior (Haesbaert, 2002a), e a
multiterritorialidade funcional e simbólica da elite ou da “burguesia” globalizada.
Ao contrário da “extraterritorialidade” dos globetrotters ou “turistas” globalizados
de Bauman (1999), destacamos a “multiterritorialidade” da nova elite planetária.
Partindo do pressuposto de que todo poder social é um poder sobre o espaço, os
sociólogos Pinçon e Pinçon-Charlot (2000) afirmam que a “burguesia” contemporânea
se reproduz ao mesmo tempo pela proximidade residencial (em bairros e/ou
condomínios seguros e plenos de amenidades) – que poderíamos denominar de
território-zona no seu sentido mais tradicional – e pela multiterritorialidade, ou seja, pelo
usufruto de múltiplos territórios, reveladores de uma dupla inserção social, tanto no
sentido de uma profunda memória familiar quanto de uma intensa vida mundana. Esta
multiterritorialidade também seria visível através do caráter de “classe internacional”,
tanto no sentido da internacionalização da vida profissional ou de negócios quanto de
lazer, via turismo internacional.
O sociólogo Ulrich Beck (1999) chega mesmo a forjar o termo “topoligamia” para
se referir a este fenômeno de “casamento com diversos lugares”, para ele muito
difundido, mas que aqui restringimos como uma característica dos grupos mais
privilegiados. Citando o caso de uma senhora que divide sua vida entre uma casa na
Alemanha e outra no Quênia, ele constata que ela “tem uma vida topoligâmica, está
afeiçoada a coisas que parecem excludentes, África e Tutzing. Topoligamia
transnacional, estar casado com lugares que pertencem a mundos distintos: esta é a
porta de entrada da globalidade da vida de cada um (...)”. (p. 135) Num sentido mais
amplo do que o nosso para multiterritorialidade, ele trabalha com processos de “pluri” ou
“multilocalização”, “a alternância e a escolha dos lugares” como “padrinhos da
globalização”. (p. 137)
É importante acrescentar a esta mobilidade física extremamente facilitada de
que usufrui a classe hegemônica contemporânea, a sua “mobilidade virtual”. Como diz
Bauman, a maioria das pessoas “está em movimento mesmo se fisicamente parada”
(1999:85). Para estes, o espaço enquanto distância parece importar muito pouco. Por
outro lado, a acessibilidade geográfica ampliada de que dispõe a elite planetária não
impede que ela tenha não só de se “proteger” em termos de espaço residencial como
também de manter as conexões, físicas e/ou informacionais, entre os múltiplos
territórios que, combinados, conformam a sua multiterritorialidade.
Tal como afirmamos em trabalho anterior (Haesbaert, 2004), dentro dessas
novas articulações espaciais em rede surgem territórios-rede flexíveis onde o que
importa é ter acesso, ou aos meios que possibilitem a maior mobilidade física dentro
da(s) rede(s), ou aos pontos de conexão que permitam “jogar” com as múltiplas
modalidades de território existentes, criando a partir daí uma nova (multi)territorialidade.
Trata-se assim de vivenciar essas múltiplas modalidades, de forma
concomitante (no caso da mobilidade “virtual”, por exemplo) ou sucessiva (no caso da
mobilidade física), num mesmo conjunto que, no caso dos indivíduos ou de alguns
grupos, pode favorecer mais uma vez, agora não mais na forma de territórios-zona
contínuos, um novo tipo de “experiência espacial integrada”. Esta nova experiência, que
é a experiência da multiterritorialidade em sentido estrito (ou “pós-moderna”), inclui:
- uma dimensão tecnológico-informacional de crescente complexidade, em torno
daquilo que podemos denominar uma reterritorialização via ciberespaço (e não uma
desterritorialização, como defende Lévy, 1996, 1999), e que resulta na extrema
valorização da densidade informacional de alguns pontos altamente estratégicos do
espaço;
- como decorrência desta nova base tecnológico-informacional, uma
compressão espaço-tempo de múltiplos alcances ou “geometrias de poder” (Massey,
1993), com o fenômeno do alcance planetário instantâneo (dito em “tempo real”), com
contatos globais de alto grau de instabilidade e imprevisibilidade;
- uma dimensão cultural-simbólica cada vez mais importante dos processos de
territorialização, com a identificação territorial ocorrendo muitas vezes no/com o próprio
movimento e, no seu extremo, referida à própria escala planetária como um todo (a
“Terra-pátria” de Morin e Kern, 1995).
Nesse contexto:
A principal novidade é que hoje temos uma diversidade ou um conjunto de
opções muito maior de territórios/territorialidades com os/as quais podemos “jogar”, uma
velocidade (ou facilidade, via Internet, por exemplo) muito maior (e mais múltipla) de
acesso e trânsito por essas territorialidades – elas próprias muito mais instáveis e
móveis – e, dependendo de nossa condição social, também muito mais opções para
desfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade. (p. 344)
O mais importante a destacar na nossa experiência multiterritorial “pós-moderna”
é o fato de que não se trata simplesmente, como já ressaltamos, da imbricação ou da
justaposição de múltiplos territórios que, mesmo recombinados, mantêm sua
individualidade numa espécie de “todo” como produto ou somatório de suas partes. A
efetiva multiterritorialidade seria uma experiência profundamente inovadora a partir da
compressão espaço-temporal que permite
(...) pela comunicação instantânea, contatar e mesmo agir [como no caso de
grandes empresários que praticamente “dirigem” suas fazendas ou firmas à distância,
via Internet e outras modalidades informacionais] sobre territórios completamente
distintos do nosso, sem a necessidade de mobilidade física. Trata-se de uma
multiterritorialidade envolvida nos diferentes graus daquilo que poderíamos denominar
como sendo a conectividade e/ou vulnerabilidade informacional (ou virtual) dos
territórios. (Haesbaert, 2004:345)
A realização da multiterritorialidade contemporânea, fica evidente, envolve como
condições básicas a presença de uma grande multiplicidade de territórios e sua
articulação na forma de territórios-rede. Estes, como já vimos, são por definição,
sempre, territórios múltiplos, na medida em que podem conjugar territórios-zona
(manifestados numa escala espacialmente mais restrita) através de redes de conexão
(numa escala mais ampla). A partir daí se desenham também diferenciações dentro da
própria dinâmica de “multiterritorialização”. Embora nos propondo desdobrá-los em um
trabalho futuro, é necessário distinguir, por exemplo:
- os agentes que promovem a multiterritorialização e as profundas distinções em
termos de objetivos, estratégias e escalas, sejam eles indivíduos, grupos, instituições, o
Estado ou as empresas.
- o caráter mais simbólico ou mais funcional da multiterritorialidade – tal como no
território, ela aparece ora com uma maior carga simbólica (como no caso das grandes
diásporas de imigrantes), ora mais funcional (como no caso das redes do
megaterrorismo global); no primeiro caso é importante analisar também as múltiplas
identidades territoriais nela envolvidas.
- os níveis de compressão espaço-tempo (e, conseqüentemente, de “tele-ação”)
nela incorporados, ou seja, as múltiplas “geometrias de poder” da compressão espaço-
tempo, bem como o caráter potencial ou efetivo de sua execução.
- o caráter contínuo ou descontínuo da multiterritorialidade, até que ponto ela
ocorre pela superposição, num mesmo espaço, de múltiplos territórios, ou até que ponto
ela corresponde à conexão de múltiplos territórios, em rede (distinguindo então, tal
como na distinção entre territórios-zona e territórios-rede, uma multiterritorialidade em
sentido lato ou “zonal” e uma multiterritorialidade em sentido estrito ou “reticular”).
- a combinação de “tempos espaciais” incorporada à multiterritorialidade –
podendo existir assim, de certa forma, uma multiterritorialidade também no sentido das
múltiplas territorialidades acumuladas desigualmente ao longo do tempo (Santos,
1978)4
.
4. (Não) concluindo: implicações políticas do conceito
Numa breve (in)conclusão, que também pretendemos desdobrar em trabalho
futuro, podemos afirmar que o mais importante neste debate diz respeito às implicações
políticas do conceito de multiterritorialidade, suas repercussões em termos de
intervenção na realidade concreta ou como estratégia de poder. Como já afirmamos, é
necessário distinguir, por exemplo, entre a multiterritorialidade potencial (a possibilidade
dela ser construída ou acionada) e a multiterritorialidade efetiva, realizada:
As implicações políticas desta distinção são importantes, pois sabemos que a
disponibilidade do “recurso” multiterritorial – ou a possibilidade de ativar ou de vivenciar
concomitantemente múltiplos territórios – é estrategicamente muito relevante na
atualidade e, em geral, encontra-se acessível apenas a uma minoria. Assim, enquanto
uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os territórios que melhor lhe
aprouver, vivenciando efetivamente uma multiterritorialidade, outros, na base da
pirâmide social, não têm sequer a opção do “primeiro” território, o território como abrigo,
fundamento mínimo de sua reprodução física cotidiana. (Haesbaert, 2004:360)
4
. Milton Santos sugeriu a noção de tempo espacial para dar conta do “problema das superposições” tanto
no tempo quanto no espaço, já que “cada variável hoje presente na caracterização de um espaço aparece
com uma data de instalação diferente, pelo simples fato de que não foi difundida ao mesmo tempo”. Assim,
cada lugar seria “o resultado de ações multilaterais que se realizam em tempos desiguais sobre cada um e
em todos os pontos da superfície terrestre”. (Santos, 1978:211)
Pensar, como inúmeros autores nas Ciências Sociais, que estamos imersos em
processos de desterritorialização5
, é demasiado simples e, de certa forma, politicamente
“imobilizante”, pois imagina-se que, num mundo globalmente móvel, sem estabilidade,
marcado pela imprevisibilidade e fluidez das redes e pela virtualidade do ciberespaço,
estamos quase todos à mercê dos poucos que efetivamente controlam estes fluxos,
redes e imagens – ou, numa posição extrema, nem mesmo eles podem mais exercer
algum tipo de controle.
Se o discurso da desterritorialização serve, antes de mais nada, àqueles que
pregam a destruição de todo tipo de barreira espacial, ele claramente legitima a fluidez
global dos circuitos do capital, especialmente do capital financeiro, num mundo em que
o ideal a ser alcançado seria o desaparecimento do Estado, delegando todo poder às
forças do mercado (a este respeito, ver por exemplo as teses de Ohmae [1990, 1996]
sobre o “fim das fronteiras” e o “fim do Estado-nação”).
Falar não simplesmente em desterritorialização mas em multiterritorialidade e
territórios-rede, moldados no e pelo movimento, implica reconhecer a importância
estratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade.
Inspiramo-nos aqui no “sentido global de lugar” proposto por Doreen Massey
(2000[1991]). Criticando as visões mais reacionárias que vêem o lugar apenas como um
espaço estável, de fronteiras bem delimitadas e identidades fixas, um pouco como nos
territórios-zona aqui comentados, a autora propõe uma visão “progressista” de lugar,
“não fechado e defensivo”, voltado para fora e adaptado a nossa era de compressão de
tempo-espaço.
Numa visão mais tradicional, o lugar, como o território e o próprio espaço, era
associado à homogeneidade, ao imobilismo e à reação, frente à multiplicidade, ao
movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciência global do lugar,
defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a
evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidades homogêneas e
“autênticas”. Nossas vidas estão impregnadas com influências provenientes de
inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularidade” dos lugares (e dos
territórios) advém sobretudo de uma específica combinação de influências diversas, que
podem ser provenientes das mais diversas partes do mundo.
5
. Para um balanço crítico destes discursos ver nosso livro, já aqui citado, “O Mito da Desterritorialização”
(Haesbaert, 2004).
O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido
multi-escalar e multi-dimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de
uma concepção de multiplicidade, de uma multiterritorialidade. E toda ação que
efetivamente se pretenda transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar
esta questão: ou se trabalha com a multiplicidade de nossos territórios, ou não se
alcançará nenhuma mudança positivamente inovadora. Os movimentos anti-
globalização e anti-neoliberalismo que o digam, zapatistas à frente. Pensar
multiterritorialmente é a única perspectiva para construir uma outra sociedade, ao
mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora
das diferenças humanas
BIBLIOGRAFIA
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Haesbaert, dos múltiplos territórios á multiterritorialidade

  • 1. DOS MÚLTIPLOS TERRITÓRIOS Á MULTITERRITORIALIDADE Rogério Haesbaert Porto Alegre, Setembro de 2004 O objetivo deste trabalho é aprofundar o debate sobre uma noção proposta anteriormente, a noção de multiterritorialidade (Haesbaert, 1997, 2001a, 2002a, 2004). Ela aparece como resposta ao processo identificado por muitos como “desterritorialização”: mais do que a perda ou o desaparecimento dos territórios, propomos discutir a complexidade dos processos de (re)territorialização em que estamos envolvidos, construindo territórios muito mais múltiplos ou, de forma mais adequada, tornando muito mais complexa nossa multiterritorialidade. Assim, a desterritorialização seria uma espécie de “mito” (Haesbaert, 1994, 2001b, 2004), incapaz de reconhecer o caráter imanente da (multi)territorialização na vida dos indivíduos e dos grupos sociais. Assim, afirmamos que, “mais do que a desterritorialização desenraizadora, manifesta-se um processo de reterritorialização espacialmente descontínuo e extremamente complexo”. (Haesbaert, 1994:214) Estes processos de (multi)territorialização precisam ser compreendidos especialmente pelo potencial de perspectivas políticas inovadoras que eles implicam. 1. Território(s) Para falar em multiterritorialidade precisamos, em primeiro lugar, esclarecer o que entendemos por território e por territorialidade. Desde a origem, o território nasce com uma dupla conotação, material e simbólica, pois etimologicamente aparece tão próximo de terra-territorium quanto de terreo-territor (terror, aterrorizar), ou seja, tem a ver com dominação (jurídico-política) da terra e com a inspiração do terror, do medo – especialmente para aqueles que, com esta dominação, ficam alijados da terra, ou no “territorium” são impedidos de entrar. Ao mesmo tempo, por extensão, podemos dizer que, para aqueles que têm o privilégio de usufrui-lo, o território inspira a identificação (positiva) e a efetiva “apropriação”. Território, assim, em qualquer acepção, tem a ver com poder, mas não apenas ao tradicional “poder político”. Ele diz respeito tanto ao poder no sentido mais concreto, de dominação, quanto ao poder no sentido mais simbólico, de apropriação. Lefebvre distingue apropriação de dominação (“possessão”, “propriedade”), o primeiro sendo um
  • 2. processo muito mais simbólico, carregado das marcas do “vivido”, do valor de uso, o segundo mais concreto, funcional e vinculado ao valor de troca. Segundo o autor: O uso reaparece em acentuado conflito com a troca no espaço, pois ele implica “apropriação” e não “propriedade”. Ora, a própria apropriação implica tempo e tempos, um ritmo ou ritmos, símbolos e uma prática. Tanto mais o espaço é funcionalizado, tanto mais ele é dominado pelos “agentes” que o manipulam tornando-o unifuncional, menos ele se presta à apropriação. Por quê? Porque ele se coloca fora do tempo vivido, aquele dos usuários, tempo diverso e complexo. (Lefebvre, 1986:411-412, grifo do autor) Como decorrência deste raciocínio, é interessante observar que, enquanto “espaço-tempo vivido”, o território é sempre múltiplo, “diverso e complexo”, ao contrário do território “unifuncional” proposto pela lógica capitalista hegemônica. Podemos então afirmar que o território, imerso em relações de dominação e/ou de apropriação sociedade-espaço, “desdobra-se ao longo de um continuum que vai da dominação político-econômica mais ‘concreta’ e ‘funcional’ à apropriação mais subjetiva e/ou ‘cultural-simbólica’” (Haesbaert, 2004:95-96). Segundo Lefebvre, dominação e apropriação deveriam caminhar juntas, ou melhor, esta última deveria prevalecer sobre a primeira, mas a dinâmica de acumulação capitalista fez com que a primeira sobrepujasse quase completamente a segunda, sufocando as possibilidades de uma efetiva “reapropriação” dos espaços, dominados pelo aparato estatal-empresarial e/ou completamente transformados em mercadoria. Embora Lefebvre se refira sempre a espaço, e não a território, é fácil perceber que não se trata de um espaço no sentido genérico, muito menos de um espaço natural. Trata-se, isto sim, de um espaço-processo, um espaço socialmente construído, um pouco como na distinção entre espaço e território feita por autores como Raffestin (1993[1980]). De certa maneira podemos afirmar que o espaço trabalhado por Lefebvre é “um espaço feito território” através dos processos por ele denominados de apropriação (que começa pela apropriação da própria natureza) e dominação (mais característica da sociedade moderna, capitalista). A diferença é que, se o espaço social aparece de maneira difusa por toda a sociedade e pode, assim, ser trabalhado de forma genérica, o território e os processos de des-territorialização devem ser distinguidos através dos sujeitos que efetivamente exercem poder, que de fato controlam esse(s) espaço(s) e, conseqüentemente, os processos sociais que o(s) compõe(m). Assim, o ponto crucial a ser enfatizado é aquele
  • 3. que se refere às relações sociais enquanto relações de poder – e como todas elas são, de algum modo, relações de poder, este se configura através de uma noção suficientemente ampla que compreende desde o “anti-poder” da violência1 até as formas mais sutis do poder simbólico. Enquanto “continuum” dentro de um processo de dominação e/ou apropriação, o território e a territorialização devem ser trabalhados na multiplicidade de suas manifestações – que é também e, sobretudo, multiplicidade de poderes, neles incorporados através dos múltiplos agentes/ sujeitos envolvidos. Assim, devemos primeiramente distinguir os territórios de acordo com os sujeitos que os constróem, sejam eles indivíduos, grupos sociais, o Estado, empresas, instituições como a Igreja etc. As razões do controle social pelo espaço variam conforme a sociedade ou cultura, o grupo e, muitas vezes, com o próprio indivíduo. Controla-se uma “área geográfica”, ou seja, o “território”, visando “atingir/afetar, influenciar ou controlar pessoas, fenômenos e relacionamentos” (Sack, 1986:6). A territorialidade, além de incorporar uma dimensão estritamente política, diz respeito também às relações econômicas e culturais, pois está “intimamente ligada ao modo como as pessoas utilizam a terra, como elas próprias se organizam no espaço e como elas dão significado ao lugar”. Sack afirma também: A territorialidade, como um componente do poder, não é apenas um meio para criar e manter a ordem, mas é uma estratégia para criar e manter grande parte do contexto geográfico através do qual nós experimentamos o mundo e o dotamos de significado. (1986:219) Portanto, todo território é, ao mesmo tempo e obrigatoriamente, em diferentes combinações, funcional e simbólico, pois exercemos domínio sobre o espaço tanto para realizar “funções” quanto para produzir “significados”. O território é funcional a começar pelo território como recurso, seja como proteção ou abrigo (“lar” para o nosso repouso), seja como fonte de “recursos naturais” – “matérias-primas” que variam em importância de acordo com o(s) modelo(s) de sociedade(s) vigente(s) (como é o caso do petróleo no atual modelo energético capitalista). Para Raffestin, “um recurso não é uma coisa”, a matéria em si, ele “é uma relação cuja conquista faz emergir propriedades necessárias à satisfação de necessidades”. (1993:8) Como “meio para atingir um fim” (p. 225), não é uma relação 1 . Souza (1995), comentando Hannah Arendt, afirma que, enquanto o poder demanda “legitimidade” e é “inerente à existência de qualquer comunidade política”, a dominação pela violência aparece à medida que o poder está sendo perdido. (p. 80)
  • 4. estável, pois surge e desaparece na história das técnicas e da conseqüente produção de necessidades humanas. Milton Santos prefere distinguir o território como recurso, prerrogativa dos “atores hegemônicos”, e o território como abrigo, dos “atores hegemonizados” (Santos et al., 2000:12). Embora reconheçamos a enorme relevância desta distinção, podemos divergir em relação aos termos, já que, na verdade, são duas formas distintas de produção do território enquanto recurso: os dominantes privilegiando seu caráter funcional e mercantil, os dominados valorizando-o mais enquanto garantia de sua sobrevivência cotidiana. Para os “hegemonizados” o território adquire muitas vezes tamanha força que combina com intensidades iguais funcionalidade (“recurso”) e identidade (“símbolo”). Assim, para eles, literalmente, retomando Bonnemaison e Cambrèzy (1996), “perder seu território é desaparecer”. O território, neste caso, “não diz respeito apenas à função ou ao ter, mas ao ser”. É interessante como estas dimensões aparecem geminadas, sem nenhuma lógica a priori para indicar a preponderância de uma sobre a outra: muitas vezes, por exemplo, é entre aqueles que estão mais destituídos de seus recursos materiais que aparecem formas as mais radicais de apego às identidades territoriais. Assim, poderíamos falar em dois grandes “tipos ideais” ou referências “extremas” frente aos quais podemos investigar o território, um mais funcional, outro mais simbólico. Enquanto “tipos ideais” eles nunca se manifestam em estado puro, ou seja, todo território “funcional” tem sempre alguma carga simbólica, por menos expressiva que ela seja, e todo território “simbólico” tem sempre algum caráter funcional, por mais reduzido que ele seja. Num esquema genérico dos extremos deste já aludido continuum entre funcionalidade e simbolismo, podemos caracterizá-los da seguinte forma: “Território funcional” “Território simbólico” Processos de Dominação Processos de Apropriação (Lefebvre) “Territórios da desigualdade” “Territórios da diferença” Território sem territorialidade Territorialidade sem território (empiricamente impossível) (ex.: “Terra Prometida” dos judeus)
  • 5. Princípio da exclusividade Princípio da multiplicidade (no seu extremo: unifuncionalidade) (no seu extremo: múltiplas identidades) Território como recurso, valor de troca Território como símbolo, valor simbólico (controle físico, produção, lucro) (“abrigo”, “lar”, segurança afetiva) Mais importante, contudo, do que esta caracterização genérica e aparentemente dicotômica, é fundamental perceber a historicidade do território, sua variação conforme o contexto histórico e geográfico. Os objetivos dos processos de territorialização, ou seja, de dominação e de apropriação do espaço, variam muito ao longo do tempo e dos espaços. Assim, as sociedades tradicionais conjugavam a construção material (“funcional”) do território como abrigo e base de “recursos” com uma profunda identificação que recheava o espaço de referentes simbólicos fundamentais à manutenção de sua cultura. Já na sociedade “disciplinar” moderna (até por volta do século XIX) vigorava a funcionalidade de um “enclausuramento disciplinar” individualizante através do espaço – não dissociada, é claro, da construção da identidade (individual, mais do que de grupo). Mais recentemente, nas sociedades “de controle” ou “pós-modernas” vigora o controle da mobilidade, dos fluxos (redes) e, conseqüentemente, das conexões – o território passa então, gradativamente, de um território mais “zonal” ou de controle de áreas para um “território-rede” ou de controle de redes. Aí, o movimento ou a mobilidade passa a ser um elemento fundamental na construção do território. Podemos, simplificadamente, falar em quatro grandes “fins” ou objetivos da territorialização, acumulados e distintamente valorizados ao longo do tempo: - abrigo físico, fonte de recursos materiais ou meio de produção; - identificação ou simbolização de grupos através de referentes espaciais (a começar pela própria fronteira). - disciplinarização ou controle através do espaço (fortalecimento da idéia de indivíduo através de espaços também individualizados); - construção e controle de conexões e redes (fluxos, principalmente fluxos de pessoas, mercadorias e informações).
  • 6. É importante que ressaltemos agora, então, dentro dessa multiplicidade territorial em que estamos mergulhados, quais os traços fundamentais que distinguem a atual fase des-territorializadora, mais flexível, do capitalismo ou da modernidade – para alguns “pós-modernidade”, para outros “modernidade radicalizada” (Giddens, 1990) ou “líquida” (Bauman, 2001). Entendemos que uma marca fundamental é, ao lado da existência de múltiplos tipos de território, a vivência cada vez mais intensa daquilo que denominamos multiterritorialidade. 2. Múltiplos territórios Inicialmente é necessário distinguir aquilo que denominamos “múltiplos territórios” e “multiterritorialidade” – a multiplicidade de territórios como uma condição sine qua non, necessária mas não suficiente, para a manifestação da multiterritorialidade. Rompendo com a dicotomia entre fixidez e mobilidade, território e rede, propusemos uma primeira distinção, muito importante na constituição dos “múltiplos territórios” do capitalismo, entre territórios-zona, mais tradicionais, e territórios-rede, mais envolvidos pela fluidez e a mobilidade. Poderíamos mesmo, generalizando ao extremo, afirmar que o capitalismo se funda, geograficamente, sob estes dois grandes “paradigmas” territoriais – um mais voltado para a lógica estatal, controladora de fluxos pelo controle de áreas, quase sempre contínuas e de fronteiras claramente delimitadas; outro mais relacionado à lógica empresarial, também controladora de fluxos, porém prioritariamente pela sua “canalização” através de determinados dutos e nódulos de conexão (as redes). Arrighi (1996), de forma geograficamente questionável, distinguiu dois “modos opostos de governo ou de lógica do poder” em relação à dinâmica entre capital (ou espaço econômico) e a “organização relativamente estável do espaço político”, duas estratégias geopolíticas (e geoeconômicas) que ele denomina de “capitalismo” e “territorialismo”: Os governantes territorialistas identificam o poder com a extensão e a densidade populacional de seus domínios, concebendo a riqueza/o capital como um meio ou um subproduto da busca de expansão territorial. Os governantes capitalistas, ao contrário, identificam o poder com a extensão de seu controle sobre os recursos escassos e consideram as aquisições territoriais um meio e um subproduto da acumulação de capital. (p. 33) O autor destaca, contudo, que são duas lógicas não-excludentes, pois historicamente funcionariam em conjunto, “relacionadas entre si num dado contexto
  • 7. espaço-temporal”. (p. 34) Desde o exemplo dado por Arrighi como “protótipo do Estado capitalista”, a Veneza do final da Idade Média e outras cidades-Estado do norte italiano, percebe-se com clareza a constituição de “territórios-rede” onde o controle era exercido ao mesmo tempo sobre o que o autor denomina de “enclaves anômalos” (as cidades- Estados), loci principais das poderosas oligarquias mercantis, quanto sobre suas redes de atuação, que envolviam tanto o domínio direto ou indireto (pelo comércio) sobre outras áreas (territórios-zona), seja dominando as rotas marítimas que permitiam a sua interconexão. Bourdin (2001), comentando Balligand e Maquart, afirma: (...) sempre houve territórios descontínuos, os dos comerciantes e seus balcões, os das peregrinações e de suas igrejas de romaria, “territórios-rede” de que o Império de Veneza oferece uma perfeita ilustração. Hoje, este tipo de território domina, dando um outro significado aos recortes tradicionais, sobretudo políticos. (p. 167) Assim, dentro da diversidade territorial do nosso tempo devemos levar em conta, em primeiro lugar, esta distinção crescente entre uma lógica territorial zonal e uma lógica territorial reticular2 . Elas se interpenetram, se mesclam, de tal modo que a efetiva hegemonia dos territórios-zona estatais que marcaram a grande colcha de retalhos política, pretensamente uniterritorial (no sentido de só admitir a forma estatal de controle político-territorial) do mundo moderno, vê-se obrigada, hoje, a conviver com novos circuitos de poder que desenham complexas territorialidades, em geral na forma de territórios-rede, como é o caso da territorialidade do narcotráfico globalizado. Dentro dessa complexa relação entre redes e áreas ou zonas como os dois elementos fundamentais constituintes do território (para Raffestin, duas das três “invariantes” territoriais – a terceira seriam os pólos ou nós, que no nosso ponto de vista são, juntamente com os “dutos”, constituintes indissociáveis das redes), devemos destacar a enorme variedade de tipos e níveis de controle territorial. Se o território é moldado sempre dentro de relações de poder, em sentido lato, ele envolve sempre, também, no dizer de Robert Sack, o controle de uma área. Este controle, contudo, dependendo do tipo (mais funcional ou mais simbólico, por exemplo) e dos sujeitos que o promovem (a grande empresa, o Estado, os grupos locais, etc.), adquire níveis de intensidade os mais diversos. Assim, com base em propostas anteriores (Haesbaert, 2 . Para uma discussão mais aprofundada desta temática, bem como da noção de território-rede, ver o item 7.1 (Territórios, redes e territórios-rede) em nosso livro “O mito da desterritorialização” (Haesbaert, 2004, pp. 279-311).
  • 8. 2002b e 2004), propomos identificar “múltiplos territórios” através das seguintes modalidades: a) Territorializações mais fechadas, quase “uniterritoriais” no sentido de imporem a correspondência entre poder político e identidade cultural, ligadas ao fenômeno do territorialismo, como nos territórios defendidos por grupos étnicos que se pretendem culturalmente homogêneos, não admitindo a pluralidade territorial de poderes e identidades. b) Territorializações político-funcionais mais tradicionais, como a do Estado-nação que, mesmo admitindo certa pluralidade cultural (sob a bandeira de uma mesma “nação” enquanto “comunidade imaginada”, nos termos de Anderson, 1989), não admite a pluralidade de poderes. c) Territorializações mais flexíveis, que admitem a sobreposição territorial, seja sucessiva (como nos territórios periódicos ou espaços multifuncionais na área central das grandes cidades) ou concomitantemente (como na sobreposição “encaixada” de territorialidades político-administrativas). d) Territorializações efetivamente múltiplas – uma “multiterritorialidade” em sentido estrito, construídas por grupos ou indivíduos que constróem seus territórios na conexão flexível de territórios multifuncionais e multi-identitários. Precisamos então, a partir daí, distinguir entre “múltiplos territórios” e “multiterritorialidade”. O antropólogo colombiano Zambrano (2001), numa perspectiva semelhante, traz contribuições muito interessantes. Ele distingue entre “territórios plurais” e “pluralidade de territórios”3 . Com base na complicada realidade sócio-política e cultural da Colômbia, Zambrano reconhece a multiplicidade de territórios através dos próprios movimentos sociais e das lutas travadas por diferentes grupos e instituições. Assim, afirma ele: No âmbito político o pertencimento gera o sentido de domínio sobre um lugar, sentido que estimula o aparecimento de formas de autoridade e tributação sobre o espaço, configurando a real perspectiva territorial: percepções de atores diversos, 3 . O autor parte da definição de território como “o espaço terrestre, real ou imaginado, que um povo (etnia ou nação) ocupa ou utiliza de alguma maneira, sobre o qual gera sentido de pertencimento, que confronta com o de outros, e organiza de acordo com os padrões de diferenciação produtiva (riqueza econômica), social (origem de parentesco) e sexo/gênero (divisão sexual dos espaços) e [sobre o qual] exerce jurisdição”. (Zambrano, 2001:29)
  • 9. geralmente alheios aos contornos territoriais locais (Estado, guerrilhas, ONGs etc.) que inserem suas visões, confrontando-se com as dos residentes (organização social, formas de parentesco, uso do espaço etc.) que devem lutar pela hegemonia de um modo particular de exercer legitimamente o domínio ou estabelecê-lo com as pautas de dominação intervenientes que lhes são alheias. A propriedade da terra como fundamento do território é deslocada pela noção de soberania que é ação de domínio sobre o espaço de pertencimento, real ou imaginado. Sem as amarras da propriedade, o territorial surge com mais nitidez enquanto espaço de relações políticas entre as distintas representações que legitimam as ações de domínio sobre ele; por isto é que em cada território se encontram diversos sentidos de domínio, históricos e complexos – na maioria das vezes produzidos para além das fronteiras locais – diminuindo o caráter aberto, submetido a formas jurisdicionais. A jurisdição tem fronteiras difusas que não são físicas, isto é, são desterritorializadas, política e socialmente falando, razão pela qual o sentido de domínio se translada com os atores que deixam suas marcas nas localidades. Aparecem assim as jurisdições guerrilheiras, paramilitares, municipais, indígenas, afro-colombianas, ecológicas, judiciais, eclesiásticas etc., num mesmo lugar, configurando nele uma arena própria para a luta territorial. (p. 17, tradução nossa) Ainda que questionemos este caráter “desterritorializado” das jurisdições (cujo termo pode muitas vezes ser substituído por “territorialidades”), é evidente, na análise do autor, a multiplicidade de territórios – e territorialidades – que podem conviver num mesmo espaço, alimentando ou não as lutas pelo território. É o próprio Zambrano quem afirma, mais adiante, que o espaço pode ser concebido como “um cenário de pugna entre territorialidades, isto é, entre jurisdições, reais e imaginadas, que incidem sobre os territórios estruturados e habitados”. Sugere então que “os territórios plurais são uma multiplicidade de espaços diversos, culturais, sociais e políticos, com conteúdos jurisdicionais em tensão, que produzem formas particulares de identidade territorial”. (p. 18) Distingue-se assim entre “pluralidade de territórios” e “territórios plurais”, que, longe de uma “armadilha semântica”, permite enfocar duas qualificações distintas: A pluralidade de territórios indica sua multiplicidade: “a superfície terrestre como suporte está sujeita a um processo permanente de organização/diferenciação, processo central para a reprodução sistêmica. (...)” Os territórios plurais, além de conceberem a multiplicidade descrita anteriormente, concebem todo espaço terrestre ocupado por distintas representações sobre ele, que tendem a legitimar a jurisdição sobre os habitantes que nele residem, configurando a série de relações sociais entre as diferentes percepções de domínio. (....) Os territórios plurais permitem perceber, em cada unidade do múltiplo, a pluralidade de percepções territoriais estruturadas [a cotidianeidade dos habitantes], estruturando [processo de construção] e estruturantes [ex.: judiciais, eclesiásticas e algumas guerrilheiras, formadas pela progressiva ação dos movimentos sociais]. (p. 29-30)
  • 10. Contendo a pluralidade de territórios, os territórios plurais se manifestariam pelo menos de duas formas (p. 31): - multiplicidade de territórios: território plural como reunião de vários territórios; - pluralidade de jurisdições (ou, na nossa interpretação, de territorialidades): território plural por abranger diferentes jurisdições (incorporando-as parcialmente ou por sobreposição). A pluralidade de territórios, característica que pode se confundir com a noção aqui proposta de múltiplos territórios, pode estar compreendida de duas formas nos “territórios plurais” (noção mais próxima de nossa concepção de multiterritorialidade) – uma, vista a partir do “território plural” como conjunto justaposto de diversos territórios compreendidos no seu interior, outra, a partir do “território plural” como conjunto superposto de vários territórios (ou territorialidades) cuja abrangência pode ir bem além dos seus limites. É como se fossem duas perspectivas distintas: na primeira, o olhar vai mais dos limites do “território plural” para o seu interior, na segunda o olhar prioriza as relações deste território com aqueles que se encontram para além ou “acima” dele. Tanto num caso como no outro o convívio de múltiplas territorialidades implica sempre disputas. Como afirma Zambrano, “o território se conquista”, sendo assim “luta social convertida em espaço”. (2001:31) Aqui é importante fazer uma breve distinção entre território em sentido estrito e territorialidade. Alguns autores, numa visão mais estreita, reduzem a territorialidade à dimensão simbólico-cultural do território, especialmente no que tange aos processos de identificação territorial. Na maioria das vezes, porém, os autores não fazem esta distinção, a territorialidade sendo concebida como “aquilo que faz de qualquer território um território” (Souza, 1995:99), ou seja, as propriedades gerais necessárias à construção territorial – que variam, é claro, de acordo com o conceito de território ao qual estejamos nos referindo. A territorialidade, no nosso ponto de vista, é “algo abstrato”, como diz Souza, mas não no sentido radical que a reduz ao caráter de abstração analítica. Ela é uma “abstração” também no sentido ontológico de que, enquanto “imagem” ou símbolo de um território, existe e pode inserir-se eficazmente como uma estratégia político-cultural, mesmo que o território ao qual se refira não esteja concretamente manifestado – como no conhecido exemplo da “Terra Prometida” dos Judeus. Ou seja, o poder no seu sentido simbólico também precisa ser devidamente considerado em nossas
  • 11. concepções de território. É justamente por fazer uma separação demasiado rígida entre território como dominação (material) e território como apropriação (simbólica) que muitos ignoram e a complexidade e a riqueza da “multiterritorialidade” em que estamos mergulhados. 3. Multiterritorialidade Para entendermos a multiterritorialidade contemporânea é preciso remontar às suas “origens”. Na verdade, especialmente levando em conta as concepções de território e de territórios múltiplos anteriormente discutidas, podemos afirmar que sempre vivemos uma multiterritorialidade: (...) a existência do que estamos denominando multiterritorialidade, pelo menos no sentido de experimentar vários territórios ao mesmo tempo e de, a partir daí, formular uma territorialização efetivamente múltipla, não é exatamente uma novidade, pelo simples fato de que, se o processo de territorialização parte do nível individual ou de pequenos grupos, toda relação social implica uma interação territorial, um entrecruzamento de diferentes territórios. Em certo sentido, teríamos vivido sempre uma “multiterritorialidade”. (Haesbaert, 2004:344) Um dos primeiros cientistas sociais a falar de multi-pertencimento territorial e multiterritorialidade é o sociólogo francês Yves Barel. Ele parte de uma noção demasiado ampla de território, definido como o “não-social dentro do qual o social puro deve imergir para adquirir existência” (Barel, 1986:131), para afirmar que: (...) o homem, por ser uma animal político e um animal social, é também um animal territorializador. Diferentemente, talvez, de outras espécies animais, seu trabalho de territorialização apresenta, contudo, uma particularidade marcante: a relação entre o indivíduo ou o grupo humano e o território não é uma relação biunívoca. Isto significa que nada impede este indivíduo ou este grupo de produzir e de “habitar” mais de um território. (...) é raro que apenas um território seja suficiente para assumir corretamente todas as dimensões de uma vida individual ou de um grupo. O indivíduo, por exemplo, vive ao mesmo tempo ao seu “nível”, ao nível de sua família, de um grupo, de uma nação. Existe portanto multipertencimento territorial. (p. 135) Trata-se, contudo, daquilo que denominamos multiterritorialidade em sentido lato, mais tradicional, resultante da sobreposição de territórios, hierarquicamente articulados, “encaixados”. Os exemplos citados por Barel, um pouco como na espacialidade diferencial de Yves Lacoste, comentada logo a seguir, deixam claro que se trata de uma multiterritorialidade pelo “encaixe” de territórios em diferentes dimensões ou escalas.
  • 12. Assim, Barel dá como exemplo de “multiterritorialidade contemporânea” a política de emprego – exemplo coerente com sua ampla concepção de território. A luta pelo desemprego não pode mais ficar subordinada às iniciativas de caráter estatal- nacional, pois se trata de um fenômeno internacional ou mesmo global. As políticas nacionais, assim, “se tornam políticas locais, freqüentemente ineficazes por causa de seu localismo”. (p. 137-138) Seria então a multiterritorialidade uma questão de escala ou, nos termos de Lacoste, uma questão de espacialidade diferencial? Neste sentido, é interessante que reflitamos um pouco sobre as relações entre multiterritorialidade e espacialidade diferencial. Lacoste (1988) ressalta a diferença entre a espacialidade aldeã ou rural e a espacialidade urbana. Mesmo sem usar o termo, ele já antecipa a “compressão tempo- espaço” (Harvey, 1992), profundamente diferenciada entre os grupos sociais (Massey, 1993), ao afirmar que “nos dias de hoje, (...) tudo aquilo que está longe sobre a carta é bem perto por determinado meio de circulação. (...) Hoje, nós nos defrontamos com espaços completamente diferentes, caso sejamos pedestres ou automobilistas (ou, com mais razão ainda, se somarmos o avião)”. Assim, na nossa vida cotidiana, referimo-nos, “mais ou menos confusamente, a representações do espaço de tamanhos extremamente não-semelhantes (...) ou, antes, a pedaços de representação espacial superpostos, em que as configurações são muito diferentes umas das outras”. Essa “multi-escalaridade” das práticas socioespaciais implica a vivência de múltiplos “papéis” que “se inscrevem cada um em migalhas de espaço”, descontínuo, multiescalar: Vivemos, a partir do momento atual, numa espacialidade diferencial feita de uma multiplicidade de representações espaciais, de dimensões muito diversas, que correspondem a toda uma série de práticas e de idéias, mais ou menos dissociadas (...).(Lacoste, 1988:49) O autor reconhece então as diferentes representações do espaço referidas à nossa mobilidade mais restrita, cotidiana (a nível de bairro, cidade, deslocamentos de fim de semana); as configurações espaciais não-coincidentes das redes das quais dependemos (redes administrativas, de comercialização, de influência urbana, financeiras); e as representações espaciais de mais ampla escala, veiculadas pela mídia e pelo turismo, e que freqüentemente abarcam o globo no seu conjunto. Assim:
  • 13. O desenvolvimento desse processo de espacialidade diferencial se traduz por essa proliferação de representações espaciais, pela multiplicação das preocupações concernentes ao espaço (nem que seja por causa da multiplicação dos deslocamentos). Mas esse espaço do qual todo mundo fala, ao qual nos referimos todo tempo, é cada vez mais difícil de apreender globalmente para se perceber suas relações com uma política global. (Lacoste, 1988:50) A dificuldade em “apreender globalmente” nossa experiência espacial contemporânea, destacada por Lacoste, tem a ver com a descontinuidade dos espaços – e dos territórios, organizados muito mais em rede do que em termos de áreas. Provém daí um sério dilema político, a ser retomado no item final deste artigo: como organizar movimentos políticos de resistência através de um espaço tão fragmentado e, em tese, multi-escalar e... desarticulado? Se para Lacoste “as práticas sociais se tornaram mais ou menos confusamente multiescalares” (p. 48-49), muitos de nós, contudo, encarregamo-nos de desfazer a confusão deste novelo e, retomando seus fios, tecemos nossa própria rede, ou melhor, nosso(s) próprio(s) território(s)-rede(s) – que implicam, sem dúvida, assim, a vivência de uma multiterritorialidade, pois, como já salientamos, todo território-rede resulta da conjugação, em outra escala, de territórios-zona, descontínuos. Além disso, mais do que de superposição espacial, como enfatiza o autor, trata-se hoje, principalmente com o novo aparato tecnológico-informacional à nossa disposição, de uma multiterritorialidade não apenas por deslocamento físico como também por “conectividade virtual”, a capacidade de interagirmos à distância, influenciando e, de alguma forma, integrando outros territórios. Distinguimos então pelo menos duas grandes perspectivas de tratamento da multiterritorialidade: (...) aquela que diz respeito a uma multiterritorialidade “moderna”, zonal ou de territórios de redes, embrionária, e a que se refere à multiterritorialidade “pós-moderna”, reticular ou de territórios-rede propriamente ditos, ou seja, a multiterritorialidade em sentido estrito. (Haesbaert, 2004:348) Multiterritorialidade inclui assim uma mudança não apenas quantitativa – pela maior diversidade de territórios que se colocam ao nosso dispor (ou pelo menos das classes mais privilegiadas) – mas também qualitativa, na medida em que temos hoje a possibilidade de combinar de uma forma inédita a intervenção e, de certa forma, a vivência, concomitante, de uma enorme gama de diferentes territórios. A chamada condição pós-moderna inclui assim uma multiterritorialidade:
  • 14. (...) resultante do domínio de um novo tipo de território, o território-rede em sentido estrito (...). Aqui, a perspectiva euclidiana de um espaço-superfície contínuo praticamente sucumbe à descontinuidade, à fragmentação e à simultaneidade de territórios que não podemos mais distinguir claramente onde começam e onde terminam ou, ainda, onde irão “eclodir”, pois formações rizomáticas também são possíveis. (...) (Haesbaert, 2004 :348) Esta flexibilidade territorial do mundo “pós-moderno”, embora não seja uma marca universalmente difundida (longe disso), permite que alguns grupos, em geral os mais privilegiados, usufruam de uma multiplicidade inédita de territórios, seja no sentido da sua sobreposição num mesmo local, seja da sua conexão em rede por vários pontos do mundo. Aqui podemos lembrar a multiterritorialidade mais funcional da organização terrorista Al Qaeda, analisada em trabalho anterior (Haesbaert, 2002a), e a multiterritorialidade funcional e simbólica da elite ou da “burguesia” globalizada. Ao contrário da “extraterritorialidade” dos globetrotters ou “turistas” globalizados de Bauman (1999), destacamos a “multiterritorialidade” da nova elite planetária. Partindo do pressuposto de que todo poder social é um poder sobre o espaço, os sociólogos Pinçon e Pinçon-Charlot (2000) afirmam que a “burguesia” contemporânea se reproduz ao mesmo tempo pela proximidade residencial (em bairros e/ou condomínios seguros e plenos de amenidades) – que poderíamos denominar de território-zona no seu sentido mais tradicional – e pela multiterritorialidade, ou seja, pelo usufruto de múltiplos territórios, reveladores de uma dupla inserção social, tanto no sentido de uma profunda memória familiar quanto de uma intensa vida mundana. Esta multiterritorialidade também seria visível através do caráter de “classe internacional”, tanto no sentido da internacionalização da vida profissional ou de negócios quanto de lazer, via turismo internacional. O sociólogo Ulrich Beck (1999) chega mesmo a forjar o termo “topoligamia” para se referir a este fenômeno de “casamento com diversos lugares”, para ele muito difundido, mas que aqui restringimos como uma característica dos grupos mais privilegiados. Citando o caso de uma senhora que divide sua vida entre uma casa na Alemanha e outra no Quênia, ele constata que ela “tem uma vida topoligâmica, está afeiçoada a coisas que parecem excludentes, África e Tutzing. Topoligamia transnacional, estar casado com lugares que pertencem a mundos distintos: esta é a porta de entrada da globalidade da vida de cada um (...)”. (p. 135) Num sentido mais amplo do que o nosso para multiterritorialidade, ele trabalha com processos de “pluri” ou
  • 15. “multilocalização”, “a alternância e a escolha dos lugares” como “padrinhos da globalização”. (p. 137) É importante acrescentar a esta mobilidade física extremamente facilitada de que usufrui a classe hegemônica contemporânea, a sua “mobilidade virtual”. Como diz Bauman, a maioria das pessoas “está em movimento mesmo se fisicamente parada” (1999:85). Para estes, o espaço enquanto distância parece importar muito pouco. Por outro lado, a acessibilidade geográfica ampliada de que dispõe a elite planetária não impede que ela tenha não só de se “proteger” em termos de espaço residencial como também de manter as conexões, físicas e/ou informacionais, entre os múltiplos territórios que, combinados, conformam a sua multiterritorialidade. Tal como afirmamos em trabalho anterior (Haesbaert, 2004), dentro dessas novas articulações espaciais em rede surgem territórios-rede flexíveis onde o que importa é ter acesso, ou aos meios que possibilitem a maior mobilidade física dentro da(s) rede(s), ou aos pontos de conexão que permitam “jogar” com as múltiplas modalidades de território existentes, criando a partir daí uma nova (multi)territorialidade. Trata-se assim de vivenciar essas múltiplas modalidades, de forma concomitante (no caso da mobilidade “virtual”, por exemplo) ou sucessiva (no caso da mobilidade física), num mesmo conjunto que, no caso dos indivíduos ou de alguns grupos, pode favorecer mais uma vez, agora não mais na forma de territórios-zona contínuos, um novo tipo de “experiência espacial integrada”. Esta nova experiência, que é a experiência da multiterritorialidade em sentido estrito (ou “pós-moderna”), inclui: - uma dimensão tecnológico-informacional de crescente complexidade, em torno daquilo que podemos denominar uma reterritorialização via ciberespaço (e não uma desterritorialização, como defende Lévy, 1996, 1999), e que resulta na extrema valorização da densidade informacional de alguns pontos altamente estratégicos do espaço; - como decorrência desta nova base tecnológico-informacional, uma compressão espaço-tempo de múltiplos alcances ou “geometrias de poder” (Massey, 1993), com o fenômeno do alcance planetário instantâneo (dito em “tempo real”), com contatos globais de alto grau de instabilidade e imprevisibilidade; - uma dimensão cultural-simbólica cada vez mais importante dos processos de territorialização, com a identificação territorial ocorrendo muitas vezes no/com o próprio movimento e, no seu extremo, referida à própria escala planetária como um todo (a “Terra-pátria” de Morin e Kern, 1995).
  • 16. Nesse contexto: A principal novidade é que hoje temos uma diversidade ou um conjunto de opções muito maior de territórios/territorialidades com os/as quais podemos “jogar”, uma velocidade (ou facilidade, via Internet, por exemplo) muito maior (e mais múltipla) de acesso e trânsito por essas territorialidades – elas próprias muito mais instáveis e móveis – e, dependendo de nossa condição social, também muito mais opções para desfazer e refazer constantemente essa multiterritorialidade. (p. 344) O mais importante a destacar na nossa experiência multiterritorial “pós-moderna” é o fato de que não se trata simplesmente, como já ressaltamos, da imbricação ou da justaposição de múltiplos territórios que, mesmo recombinados, mantêm sua individualidade numa espécie de “todo” como produto ou somatório de suas partes. A efetiva multiterritorialidade seria uma experiência profundamente inovadora a partir da compressão espaço-temporal que permite (...) pela comunicação instantânea, contatar e mesmo agir [como no caso de grandes empresários que praticamente “dirigem” suas fazendas ou firmas à distância, via Internet e outras modalidades informacionais] sobre territórios completamente distintos do nosso, sem a necessidade de mobilidade física. Trata-se de uma multiterritorialidade envolvida nos diferentes graus daquilo que poderíamos denominar como sendo a conectividade e/ou vulnerabilidade informacional (ou virtual) dos territórios. (Haesbaert, 2004:345) A realização da multiterritorialidade contemporânea, fica evidente, envolve como condições básicas a presença de uma grande multiplicidade de territórios e sua articulação na forma de territórios-rede. Estes, como já vimos, são por definição, sempre, territórios múltiplos, na medida em que podem conjugar territórios-zona (manifestados numa escala espacialmente mais restrita) através de redes de conexão (numa escala mais ampla). A partir daí se desenham também diferenciações dentro da própria dinâmica de “multiterritorialização”. Embora nos propondo desdobrá-los em um trabalho futuro, é necessário distinguir, por exemplo: - os agentes que promovem a multiterritorialização e as profundas distinções em termos de objetivos, estratégias e escalas, sejam eles indivíduos, grupos, instituições, o Estado ou as empresas. - o caráter mais simbólico ou mais funcional da multiterritorialidade – tal como no território, ela aparece ora com uma maior carga simbólica (como no caso das grandes diásporas de imigrantes), ora mais funcional (como no caso das redes do megaterrorismo global); no primeiro caso é importante analisar também as múltiplas identidades territoriais nela envolvidas.
  • 17. - os níveis de compressão espaço-tempo (e, conseqüentemente, de “tele-ação”) nela incorporados, ou seja, as múltiplas “geometrias de poder” da compressão espaço- tempo, bem como o caráter potencial ou efetivo de sua execução. - o caráter contínuo ou descontínuo da multiterritorialidade, até que ponto ela ocorre pela superposição, num mesmo espaço, de múltiplos territórios, ou até que ponto ela corresponde à conexão de múltiplos territórios, em rede (distinguindo então, tal como na distinção entre territórios-zona e territórios-rede, uma multiterritorialidade em sentido lato ou “zonal” e uma multiterritorialidade em sentido estrito ou “reticular”). - a combinação de “tempos espaciais” incorporada à multiterritorialidade – podendo existir assim, de certa forma, uma multiterritorialidade também no sentido das múltiplas territorialidades acumuladas desigualmente ao longo do tempo (Santos, 1978)4 . 4. (Não) concluindo: implicações políticas do conceito Numa breve (in)conclusão, que também pretendemos desdobrar em trabalho futuro, podemos afirmar que o mais importante neste debate diz respeito às implicações políticas do conceito de multiterritorialidade, suas repercussões em termos de intervenção na realidade concreta ou como estratégia de poder. Como já afirmamos, é necessário distinguir, por exemplo, entre a multiterritorialidade potencial (a possibilidade dela ser construída ou acionada) e a multiterritorialidade efetiva, realizada: As implicações políticas desta distinção são importantes, pois sabemos que a disponibilidade do “recurso” multiterritorial – ou a possibilidade de ativar ou de vivenciar concomitantemente múltiplos territórios – é estrategicamente muito relevante na atualidade e, em geral, encontra-se acessível apenas a uma minoria. Assim, enquanto uma elite globalizada tem a opção de escolher entre os territórios que melhor lhe aprouver, vivenciando efetivamente uma multiterritorialidade, outros, na base da pirâmide social, não têm sequer a opção do “primeiro” território, o território como abrigo, fundamento mínimo de sua reprodução física cotidiana. (Haesbaert, 2004:360) 4 . Milton Santos sugeriu a noção de tempo espacial para dar conta do “problema das superposições” tanto no tempo quanto no espaço, já que “cada variável hoje presente na caracterização de um espaço aparece com uma data de instalação diferente, pelo simples fato de que não foi difundida ao mesmo tempo”. Assim, cada lugar seria “o resultado de ações multilaterais que se realizam em tempos desiguais sobre cada um e em todos os pontos da superfície terrestre”. (Santos, 1978:211)
  • 18. Pensar, como inúmeros autores nas Ciências Sociais, que estamos imersos em processos de desterritorialização5 , é demasiado simples e, de certa forma, politicamente “imobilizante”, pois imagina-se que, num mundo globalmente móvel, sem estabilidade, marcado pela imprevisibilidade e fluidez das redes e pela virtualidade do ciberespaço, estamos quase todos à mercê dos poucos que efetivamente controlam estes fluxos, redes e imagens – ou, numa posição extrema, nem mesmo eles podem mais exercer algum tipo de controle. Se o discurso da desterritorialização serve, antes de mais nada, àqueles que pregam a destruição de todo tipo de barreira espacial, ele claramente legitima a fluidez global dos circuitos do capital, especialmente do capital financeiro, num mundo em que o ideal a ser alcançado seria o desaparecimento do Estado, delegando todo poder às forças do mercado (a este respeito, ver por exemplo as teses de Ohmae [1990, 1996] sobre o “fim das fronteiras” e o “fim do Estado-nação”). Falar não simplesmente em desterritorialização mas em multiterritorialidade e territórios-rede, moldados no e pelo movimento, implica reconhecer a importância estratégica do espaço e do território na dinâmica transformadora da sociedade. Inspiramo-nos aqui no “sentido global de lugar” proposto por Doreen Massey (2000[1991]). Criticando as visões mais reacionárias que vêem o lugar apenas como um espaço estável, de fronteiras bem delimitadas e identidades fixas, um pouco como nos territórios-zona aqui comentados, a autora propõe uma visão “progressista” de lugar, “não fechado e defensivo”, voltado para fora e adaptado a nossa era de compressão de tempo-espaço. Numa visão mais tradicional, o lugar, como o território e o próprio espaço, era associado à homogeneidade, ao imobilismo e à reação, frente à multiplicidade, ao movimento e ao progresso ligados ao “tempo”. Uma consciência global do lugar, defendida por Massey, embora não possa ser vista como boa ou má em si mesma, é a evidência de que hoje não temos mais espaços fechados e identidades homogêneas e “autênticas”. Nossas vidas estão impregnadas com influências provenientes de inúmeros outros espaços e escalas. A própria “singularidade” dos lugares (e dos territórios) advém sobretudo de uma específica combinação de influências diversas, que podem ser provenientes das mais diversas partes do mundo. 5 . Para um balanço crítico destes discursos ver nosso livro, já aqui citado, “O Mito da Desterritorialização” (Haesbaert, 2004).
  • 19. O território, como espaço dominado e/ou apropriado, manifesta hoje um sentido multi-escalar e multi-dimensional que só pode ser devidamente apreendido dentro de uma concepção de multiplicidade, de uma multiterritorialidade. E toda ação que efetivamente se pretenda transformadora, hoje, necessita, obrigatoriamente, encarar esta questão: ou se trabalha com a multiplicidade de nossos territórios, ou não se alcançará nenhuma mudança positivamente inovadora. Os movimentos anti- globalização e anti-neoliberalismo que o digam, zapatistas à frente. Pensar multiterritorialmente é a única perspectiva para construir uma outra sociedade, ao mesmo tempo mais universalmente igualitária e mais multiculturalmente reconhecedora das diferenças humanas BIBLIOGRAFIA ANDERSON, B. 1989. Nação e Consciência Nacional. São Paulo: Ática. ARRIGHI, G. 1996(1994). O longo século XX. Rio de Janeiro: Contraponto; São Paulo: EdUNESP. BAREL, Y. 1986. Le social et ses territoires. In: Auriac, F. e Brunet, R. (orgs.) Espaces, Jeux et Enjeux. Paris: Fayard e Fondation Diderot. BAUMAN, Z. 1999. Globalização: as conseqüências humanas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. BAUMAN, Z. 2001(2000). Modernidade Liquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar. GIDDENS, A. 1991. As Conseqüências da Modernidade. São Paulo: EdUNESP. HAESBAERT, R. 1994. O mito da desterritorialização e as “regiões-rede”. Anais do V Congresso Brasileiro de Geografia. Curitiba: AGB, pp. 206-214. ________ 1997. Des-territorialização e Identidade: a rede “gaúcha” no Nordeste. Niterói: EdUFF. ________ 2001a. Da desterritorialização à multiterritorialidade. Anais do IX Encontro Nacional da ANPUR. Vol. 3. Rio de Janeiro: ANPUR. ________ 2001b. Le mythe de la déterritorialisation. Géographies et Cultures n. 40. Paris: L’Harmattan. ________ 2002a. A multiterritorialidade do mundo e o exemplo da Al Qaeda. Terra Livre n. 7. São Paulo: Associação dos Geógrafos Brasileiros. ________ 2002b. Fim dos territórios ou novas territorialidades? In: Lopes, L. e Bastos, L. (org.) Identidades: recortes multi e interdisciplinares. Campinas: Mercado de Letras. ________ 2004. O mito da desterritorialização: do “fim dos territórios” à multi- territorialidade. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil. HARVEY, D. 1992. A Condição Pós-Moderna. São Paulo: Loyola. LACOSTE, Y. 1988 (1976). A Geografia – isso serve, em primeiro lugar, para fazer a guerra. Campinas: Papirus. LEFEBVRE, H. 1986(1974). La Production de l’Espace. Paris : Anthropos. LÉVY, P. 1996. O que é virtual. São Paulo : Ed. 34. _________ 1999 (1997). Cibercultura. São Paulo : Ed. 34. MASSEY, D. 2000 (1991) Um sentido global do lugar. In : Arantes, O. (org.) O espaço da diferença. Campinas : Papirus.
  • 20. ________ 1993. Power-geometries and a progressive sense of place. In : Bird, J. et al. (eds.) Mapping the Futures : Local Cultures, Global Changes. Londres e Nova York : Routledge. MORIN, E. e KERN, A. 1995. Terra Pátria. Porto Alegre : Sulina. OHMAE, K. 1990. The borderless world : power and strategy in the interlinked economy. Londres : Collins. ________ 1996. O fim do Estado Nação : a ascensão das economias regionais. Rio de Janeiro : Campus. PINÇON, M. e PINÇON-CHARLOT, M. 2000. Sociologie de la Bourgeoisie. Paris : La Découverte. ________ 2001. La dernière classe sociale : sur la piste des nantis. Le Monde Diplomatique set. 2001, pp. 24-25. RAFFESTIN, C. 1993 (1980) Por uma Geografia do Poder. São Paulo : Ática. SACK, R. 1986. Human Territoriality : its theory and history. Cambridge : Cambridge University Press. SANTOS, M. 1978. Por uma Geografia Nova. São Paulo : Hucitec. SANTOS, M. et al. 2000. O papel ativo da Geografia : um manifesto. Florianópolis : XII Encontro Nacional de Geógrafos. SOUZA, M. 1995. O território : sobre espaço e poder, autonomia e desenvolvimento. In : Castro, I. et al. (orgs.) Geografia : Conceitos e Temas. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil. ZAMBRANO, C. 2001. Territorios plurales, cambio sociopolítico y gobernabilidad cultural. Boletim Goiano de Geografia 21(1): 9-49. jan.-jul.