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Módulo 01 - Aula Inaugural – Professor Miguel Arroyo1


       Aula Inaugural 12
       Que bom estarmos dialogando com educadoras e educadores da infância e da
adolescência. E que bom falar sobre eles, e falar sobre nós, educadoras e educadores
da infância. Sempre que falamos da infância, falamos de nós, e sempre que falamos
de nós, temos que falar da infância e da adolescência com que trabalhamos.
       O Estatuto da Criança e da Adolescência na Escola
        Vamos falar sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente na escola. Eu
gostaria de começar, colocando esta pergunta: Quando chega o ECA, em que
momento a escola estava? Em que momento nós, docentes, estávamos? Eu acho que
estávamos num momento em que havia certa resistência ao reconhecimento da
infância e adolescência como sujeitos de direitos. Não porque os professores
resistissem a reconhecer a infância e adolescência como sujeitos de direitos. A
resistência estava na própria escola. Estava no currículo.
       A escola e o currículo estavam pensados para preparar a criança e o
adolescente como se fosse uma mercadoria para o trabalho. Esta visão do aluno como
mercadoria a ser preparada, qualificada para o trabalho, nos afastava, nos distanciava
da idéia do aluno como sujeito de direitos. Por outro lado, nós pensávamos a criança
não como criança, mas como futuro adulto. Eu diria que nós tínhamos dificuldade de
ver em cada rosto de criança ou de adolescente, uma criança ou um adolescente.
Víamos um adulto. Quando chegasse este adulto, teria direitos. Mas e enquanto
criança?
        Essa era a realidade que nós vivenciávamos quando chega o ECA. Quando ele
chega, cria um certo impacto e em alguns professores, uma certa rejeição. “A criança
ter direitos? A criança tem que aprender deveres. Se nós deixamos a criança como
sujeitos de direitos, vai nos complicar”.

1
   Miguel Arroyo é mestre em Ciência Política e doutor em Educação. Atualmente é professor
titular emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).
2
   Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto
escrito.
                                                                                          1
Havia uma certa rejeição à idéia de reconhecer a infância e a adolescência
como sujeito de direitos. Mas pouco a pouco, eu diria, que fomos avançando, e a
própria infância e adolescência, que foram se afirmando como sujeitos de direitos,
foram reeducando nossa visão. Eu acho que teríamos que, ao invés de ser contra o
ECA, agradecer ao Estatuto que nos diz: “educadora, educador, você não está
preparando mercadoria para o trabalho, para o mercado, para o emprego, você está
tratando com seres humanos concretos, que têm uma história, que têm direitos”. Este
reeducar nosso olhar sobre a própria infância e adolescência, eu acho que, em parte,
devemos ao ECA.
        Mas naquela época, já havia uma coisa muito interessante dentro de nossas
escolas. Nós já tínhamos décadas de movimento docente, em que os trabalhadores da
educação se afirmaram sujeito de direitos. Direito a salário, a condição de trabalho, a
carreira, a formação, a dignidade, a ser tratados como gente. Essa consciência que
nós tínhamos de sermos sujeitos de direitos ajudou muito para que nós
reconhecêssemos que não somente nós, mas como falava o ECA, os alunos, os
educandos, as educandas, as crianças e adolescentes também são sujeitos de
direitos.
        Este foi um grande salto, me parece. Por que? Porque se foi muito importante
considerar-nos, reconhecer-nos sujeitos de direitos, como trabalhadores da educação,
ao reconhecer os educandos como sujeito de direitos, completou-se este salto. A
escola, a relação pedagógica, passou a ser uma relação de sujeitos de direitos com
sujeitos de direitos. Não a relação de alguém que qualifica uma mercadoria pra o
mercado. Isso era muito pouco.
        Eu acho que o ECA trouxe dignidade para a nossa condição docente.
É muito mais digno sermos profissionais da garantia de direitos, de sujeitos de direitos
concretos: Crianças, adolescentes, jovens ou adultos, do que sermos qualificadores de
mercadoria para o trabalho. Nesse sentido eu diria que o ECA, com todo este
movimento da afirmação da infância como sujeito de direitos, é um dos marcos
fundamentais não só na sociedade, não só para reconhecer a infância e a
adolescência como sujeitos de direitos, mas é um marco fundamental na escola. A
escola passa a ter que se pensar como tempo e espaço de direitos, e nós,
profissionais, tivemos que nos pensar como profissionais de direitos.
        Eu acho que agora, quando vamos ter um curso para repensar um pouco esta
história, esta rica história do ECA em nossa sociedade, é muito importante que como
educadoras e educadores, nós pensemos o quanto temos que agradecer ao fato de,
em nossas lutas, termos avançado na consciência de nossos direitos e termos tido um
Estatuto que nos chamou a atenção: “Não é suficiente você como educador, como
educadora, se ver como sujeito de direitos. Fica incompleta esta sua imagem. É

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necessário completá-la. Como? Reconhecendo que você é um profissional que
garante os direitos de crianças e de adolescentes”.
       O ECA afirmou, reconheceu e está ai para nos alertar até onde estamos
realmente respeitando estes direitos. Reconhecendo que cada infância, cada criança,
cada aluno, na minha sala de aula, na sua sala de aula, são portadores de direitos.
Esta seria uma forma muito interessante de nos aproximarmos do ECA na Escola.
        Já escutei falar que o que o ECA trouxe foram problemas. Que as crianças
precisam é saber dos seus direitos. Eu diria para vocês educadoras e educadores que
se alguma coisa a infância, sobretudo a infância popular, teve que aprender, em nossa
longa história, é que só é sujeito de deveres. Nosso povo só tinha o dever de
trabalhar, de ser ordeiro, de obedecer, de agradecer. Agora o povo não quer só isso.
O povo diz: “Somos sujeitos de direitos”. Se o povo se afirma sujeito de direitos, a
infância popular que chega a cada dia a nossas escolas exige também ser
reconhecida como sujeito de direitos.
        Este seria o sentido desse curso que vamos participar. Um curso em que todos
nós vamos, sem duvida nenhuma, ganhar. Não só a criança vai ganhar. Insisto nesse
ponto. Não pense: “a criança vai ganhar porque vai ser reconhecida como sujeito de
direitos”. Não é só isso. A infância vai ganhar, e quando a infância ganha, nós,
educadores, ganhamos, e quando a infância perde, nós perdemos.
        Nossa vida está atrelada à infância. A própria palavra “pedagogia” significa
“condutores da infância”. Nossas imagens estão tão atreladas às imagens da infância,
que nós somos obrigados a nos ver no espelho da infância. E se o rosto dessa
infância é um rosto positivo, digno, de sujeito de direitos, podem ter certeza que a
nossa imagem, que vai ser refletida numa criança, num adolescente, reconhecidos
sujeitos de direitos, vai ser ainda mais nítida, enquanto profissionais de direitos,
profissionais que podemos reivindicar e lutar por nossos direitos.
        Insisto nesse ponto, não tenha medo de estudar o ECA, não tenha medo de ler
sobre o ECA, não tenha medo de reconhecer a infância como sujeitos dignos de todos
os direitos humanos.
       Aula Inaugural 2
       Escola e Direitos Humanos: Desafios da Atualidade
        Vamos avançar um pouco em nosso olhar sobre o ECA, e nos perguntar sobre
quais os desafios da escola, e da docência, em relação aos Direitos Humanos da
infância e adolescência que, com tanta ênfase, o ECA defende. Quais são os desafios
na atualidade?
     O ECA entra na escola em um momento em que havia resistências, mas em
um momento em que nós já estávamos avançando, reconhecendo-nos como sujeitos
                                                                            3
de direitos e reconhecendo a educação como direito de todo cidadão. Na luta pela
escola para todos, pela democratização da escola. Eu diria que o ECA não chega
como um estranho, mas chega em uma escola que já tinha consciência que deveria se
constituir em um espaço e um tempo de direitos. Eu acho que a década de 90 trouxe
um avanço nesta direção.
       Mas a pergunta que agora venho colocar é esta: na atualidade, como é que
está tudo isso? Estamos avançando? A melhor maneira de olhar se o ECA está
avançando é olhar para a infância. A questão que tem que nos preocupar está ligada a
defesa da infância e da adolescência como sujeitos de direitos, à consciência sobre o
avanço dos direitos nos coletivos populares, nos movimentos sociais. Esta consciência
tão rica. Talvez um dos pontos mais ricos de nossa história recente, tenha sido
pensar-nos como sujeitos de direitos humanos.
        Se esta é uma grande vitória, uma grande conquista, o problema que nos
surpreende na atualidade é que quanto mais falamos em direitos humanos, mais os
direitos humanos são negados. Nunca tivemos tanta consciência de que o ser humano
é sujeito de direitos humanos plenos, mas nunca tivemos tantos seres humanos
negados em seus direitos mais básicos.
        Esta realidade que é brutal em nossa sociedade tem características mais
dramáticas quando pensamos na adolescência. De 1990 até agora, quase vinte anos
do ECA, avançamos na consciência de que cada criança, cada adolescente é sujeito
de direitos, é um ser humano. Mas nunca tivemos tantas infâncias famintas, vitimadas,
abandonadas, desprotegidas. Tantos adolescentes mortos a cada fim de semana. A
questão que se coloca para nós, educadoras e educadores, é a ambiguidade com a
qual temos que lidar.
        Que significa, volto a colocar a pergunta, termos avançado na consciência de
que a infância e a adolescência são sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, os
educadores, as educadoras, perceberem a cada dia, em sua sala de aula, em sua
escola, crianças famintas, filhas de pais desempregados, adolescentes que saem
correndo do seu trabalho, ou de sua forma de sobrevivência para ir à escola? Que
significa o professor ter que transmitir seus conhecimentos enquanto a criança fica
com o olhar perdido, como me falava uma professora, olhando de lado, esperando a
hora da merenda, porque não tomou nem café, e às vezes nem jantou no dia anterior?
        Esta é a realidade vivida hoje pela escola. A escola hoje se defronta com uma
tentativa de ser espaço e tempo de direitos. A docência se defronta com a consciência
de que é profissional de garantia de direitos e, ao mesmo tempo, a infância popular
que chega sobretudo à escola pública popular, chega cada vez mais quebrada em
seus direitos humanos mais básicos. Como fica esta situação? O que fazer diante
destes impasses?
                                                                                   4
Eu acho que hoje, se tivéssemos que proclamar o ECA, teríamos que ser mais
radicais, porque a infância e a adolescência do final dos anos 80, quando foi
inaugurado este Estatuto, não tinha vidas tão depravadas, tão precarizadas, formas
tão violentas de viver a infância como temos hoje. Eu acho que se alguém sente de
maneira bem concreta quão precarizadas são as vivências da infância e da
adolescência hoje, são os educadores e educadoras da infância popular.
        Diante dessa realidade, qual é a nossa postura? A nossa postura, tem que ser,
no meu entender, perguntar-nos quem vitimiza esta infância e adolescência? Quem
nega os direitos mais elementares da infância e da adolescência? Hoje nós não
podemos ter mais um olhar romântico sobre a infância, temos que ter um olhar
realista. Não podemos ver o aluno apenas como aluno, mas vê-lo como um ser
humano e perguntar-nos: e seus direitos humanos mais elementares, estão
garantidos? Não podemos olhar só os seus percursos escolares, temos que olhá-lo
em seus percursos humanos. Não podemos apenas nos preocupar se o direito à
educação, ao conhecimento, à herança cultural, à escola estão sendo garantidos.
Temos que nos preocupar com o conjunto dos direitos humanos.
        Uma coisa estamos aprendendo: o direito a educação não avança sozinho,
isolado do conjunto dos direitos humanos. Criança que chega a escola com fome do
conhecimento, se estiver faminta de alimentos, não aprende. Hoje entendemos que o
direito a educação é fundamental entre os direitos humanos, mas ele está tão atrelado
a garantia do conjunto dos direitos humanos, que se nós não nos preocupamos com a
questão dos direitos humanos na escola, não damos conta do direito a educação.
Este é um ponto que me parece fundamental.
       Este curso, estas aulas, ou estes debates que vocês vão ter, não vão falar
apenas do direito à educação. Vão falar dos direitos humanos básicos. Mas vamos
esquecer do direito às educação? Não é está a nossa função? Não é esta a função da
escola? Sim! Mas o que vamos ter que aprender, insisto, e isto nos fala o ECA é que
cada criança que chega à escola nos diz: “Professor, professora, venho aqui buscando
a garantia de meu direito à educação, mas não esqueça que venho de uma família
popular, meu pai desempregado, minha mãe fora de casa para buscar comida, meus
irmãos, as vezes entrando nas drogas, na violência, mortos no fim de semana. Não sei
qual vai ser meu futuro, meus direitos humanos não estão garantidos, professora,
professor”. Como que vou garantir o direito a educação, se os direitos mais
elementares: o direito à vida, à comida, à sobrevivência, à proteção, a ter um futuro
com um mínino de luminosidade... Se tudo isso negaram.
       Sabem por que os nossos alunos não querem saber de nossas lições? Não
porque não querem aprender. Não porque os professores não são bons. Não porque a
lição não é maravilhosa. Sabem por quê? Porque quando se negam os direitos
humanos mais elementares, o conhecimento perde o sentido. Não adianta falar:
                                                                               5
‘estuda e terás futuro’, se ele sabe que seu pai não tem futuro, sua família não tem
futuro, seu irmão estudou e não tem futuro.
       Hoje temos que colocar a relação entre o direito a educação, ao conhecimento,
à herança cultural, que é nossa função, que é função da escola, numa relação estreita,
como se fosse uma espécie de novelo, de fios, onde não é possível separar um do
outro. Não é possível separar o direito a educação, da discussão da garantia do
conjunto dos direitos humanos.
       Aula Inaugural 3
       Por uma escola Educadora de Direitos Humanos
       Vamos passar agora a perguntas que todos nós nos fazemos, cotidianamente:
Como a escola pode ser educadora de direitos humanos? Como a escola pode
respeitar a infância e a adolescência como sujeitos de direitos humanos? Como a
docência pode avançar para se reconhecer como profissional de direitos humanos? Eu
vou colocar alguns pontos que podem servir para cada um de nós, em grupo, ou como
escola, tentarmos pensar sobre esta questão tão séria: A escola pode ser um espaço
de garantia, de aprendizado dos direitos humanos?
        1 - A escola tem que entrar na disputa por um imaginário da infância.
Escutamos a cada dia, na mídia, nos jornais, notícias que colocam a infância e a
adolescência, populares é claro, nos morros, nas favelas, na rua, ‘lá embaixo’, como
se fossem a escória da sociedade. Nós estamos num momento em que se paramos o
carro no sinal, fechamos o vidro. Se vamos pela rua e vemos uns garotos, negros é
claro, de chinelos, seguramos a bolsa. Estamos num momento em que o imaginário da
infância popular está ‘quebrado’. Nunca tivemos um imaginário tão negativo sobre a
infância e a adolescência populares. Eu diria que ‘ai teríamos que entrar’. Se alguém
tem que ser advogado, não do diabo, mas advogado mesmo dessa infância e
adolescência popular, temos que ser nós. Tem que ser a própria escola popular e a
docência popular.
       Nós temos que mostrar que essa infância e adolescência não têm um
protagonismo tão negativo como a mídia e a sociedade proclamam. Nós temos que
defender, porque convivemos com esta infância que tem valores; que sobrevive; que
se vê obrigada a trabalhar, para colaborar em casa; que cuida de seus irmãozinhos,
que tem dignidade.
       Temos que mostrar o rosto de uma infância digna, de sujeitos de direitos, e
este é o primeiro direito: ter uma imagem digna de um ser humano. Este é um ponto
fundamental. Muitas vezes a escola se deixa enganar e contaminar por esse
imaginário tão negativo sobre a infância popular. Às vezes dentro da própria escola,
falamos mal dos alunos. Estamos chegando a um momento em que os próprios
                                                                                    6
professores e a própria escola pública (vamos falar isso baixinho), tem medo de nossa
própria infância. Isso é muito sério.
       Eu acho que temos que reagir. Temos que se colocar esta pergunta: O que
está acontecendo com a gente para que nos deixemos contaminar por este vírus, por
estas febres que vêm da mídia, que vem, sobretudo, de um conservadorismo terrível
que há em nossa sociedade, contra todo um povo, inclusive infância, popular. Este é
um ponto fundamental, que deveríamos trabalhar.
        2 - Temos que reafirmar o ECA, para que não fique distante, como um eco
distante. ‘O ECA não é um eco distante’. Que se reconheça a infância e a
adolescência como sujeitos de direitos. Temos que voltar a colocar o ECA com toda a
força e com mais urgência hoje do que em 1990, porque se a infância é tratada desta
maneira tão negativa, nós temos que dizer: “Não senhor! Esta infância é sujeito de
direitos, e precisa ser tratada como sujeitos de direitos”.
        Mas para isso teríamos também que rever a quantidade de rituais que ainda
existem dentro da escola, que não respeitam esta infância e esta adolescência como
sujeitos de direitos. Uma das coisas que me parece mais importante no ECA, não é
que ele nos diz: a infância tem direito a comer, a saúde, à proteção, mas que a
infância tem direito a ser infância! A adolescência tem direito a viver com plenitude o
tempo da adolescência! Esta é uma questão muito séria para a nossa escola. Quando
entro numa escola e vejo crianças de seis, sete, oito anos, nas primeiras filas, na
segunda, terceira, quarta, quinta filas, já com oito, nove, dez anos, e lá no fundo da
sala, às vezes, onze, doze, treze, quatorze anos. Este é um crime que se comete
contra o direito da adolescência a ser adolescente.
        A escola com seus rituais de reprovação, retenção, repetência e
multirepetência, está negando o direito primeiro da adolescência: a ser adolescência.
Porque não pensar em acabar com estes rituais? Porque não colocarmos assim, com
toda a seriedade: a infância não tem direito a ser respeitada como infância? “Mas não
sabe ler!” (dirão alguns). Mas é adolescente. Tem direito a ser respeitado como
adolescente, e não conviver como criança, aprender como criança, porque sua mente
não é mais de criança, é de adolescente. Sua cultura é de adolescente. Este é um dos
rituais mais perversos na escola, que mais nega direitos da infância e da adolescência.
O direito a uma vivência digna, respeitosa, de cada tempo humano. O direito a um
percurso digno, justo, de formação humana em cada tempo humano. Este é um dos
pontos, insisto, que teríamos que mexer com toda a seriedade.
       3 - Teríamos que rever os conteúdos e o material didático, mas não apenas
para colocar nestes conteúdos pesados, cientificistas, pragmatistas ou utilitaristas, e
agora se fala em currículos por competência, não basta colocar ai uma pitadinha de
luminosidade sobre os direitos humanos. Isso não funciona. Podemos ter uma aula
                                                                                     7
semanal sobre direitos humanos e depois termos conteúdos diários que não tem uma
visão de reconhecimento de direitos humanos.
       A questão que se coloca é como o currículo tem que estar pensado,
reorganizado na lógica do respeito aos direitos humanos, e não na lógica de preparar
para o mercado com saberes pragmáticos, utilitaristas, positivistas, que servem para o
vestibular, agora para o Enem, ou pode ser para a provinha Brasil, com sete anos, ou
para o Provão com 14 ou com 18... Estamos no momento, insisto em que se fala muito
em respeitar os direitos da infância, mas ao mesmo tempo colocamos esta infância e
esta adolescência no crivo de provas, provinhas e provões, para dizer depois: “Esta
vendo? A infância popular, a adolescência popular, se saiu pior do que a infância das
camadas médias, que esta na escola privada”.
        Estamos em um momento em que estes mecanismos de avaliação terminam
sendo uma forma de pichação da infância e adolescência popular como menos
capazes, menos dedicados, perseverantes ou inteligentes. É o que sempre tivemos: a
visão de que o povo é inferior e nem sequer oferecendo a ele a escola ele consegue
‘sair deste atoleiro’.
        Estas são questões muito sérias. Hoje o que mais colabora para diferenciar
infâncias e adolescências são as políticas de avaliação. O dia em que sai o resultado,
logo a mídia diz “a escola do centro saiu melhor do que a da favela, a escola da
cidade, melhor do que a do campo, a escola da classe média, melhor do que a escola
popular”. Em definitivo, mais uma vez a infância e a adolescência popular, colocadas
lá embaixo, classificadas sempre, no lugar “onde sempre teria que ter ficado e eu não
sei para que veio à escola”. Esta é uma questão muito séria. Insisto, quem tem que
“tomar juízo” são estas políticas de avaliação que entregam dados que deveriam ficar
só para mudar a realidade, nas mãos de uma imprensa que parece que está
esperando para dizer: “está vendo? Os jovens, os adolescentes, das favelas,
populares são isso mesmo. Não sei pra que vão às escola. Estamos perdendo
dinheiro e tempo, porque não têm solução”. Esta é uma questão muito séria. Se
alguém tem que ser contra isso somos nós educadoras e educadores que convivemos
diariamente com esta infância e adolescência populares.
        4 - Temos que pensar em outras funções sociais e educativas da escola.
A função da escola não é apenas ensinar conhecimentos que supostamente vão servir
para a próxima série, que vão servir para o vestibular, para o Enem, ou para o futuro.
A função da escola é garantir um presente mais humano, mais digno para a infância e
a adolescência sujeitos de direitos. Esta infância e adolescência não serão sujeitos de
direitos no futuro, se estudarem, se passarem, se aprenderem, se não forem
reprovados. Esta infância é sujeito de direitos no presente. A escola vai ter que se
repensar para dar conta de uma infância desprotegida, de uma infância faminta, de

                                                                                     8
uma adolescência insegura, de uma juventude sem futuro.
        Como fazer isso? Temos que repensar radicalmente a escola e a nossa
docência. Porque a escola e a nossa docência não foram pensadas para dar conta de
direitos humanos, foram pensadas para dar conta do mercado. Ou fazemos esta
guinada, ou continuaremos fazendo o jogo da negação dos direitos da infância e da
adolescência.
        A escola tem que ser mais humana. A escola é muito dura com a nossa
infância e adolescência populares. Vocês sabem quem são os reprovados? Vinte,
trinta, quarenta por cento. Quem são os defasados? Sessenta, setenta, oitenta por
cento... São as crianças e adolescentes que com muito custo, roubando tempo de
sobrevivência, conseguem chegar à escola. Crianças e adolescente cujos direitos são
negados pela sociedade. E a escola lhes nega o direito mais elementar: serem
respeitados e reconhecidos como humanos. A escola tem que ser mais humana,
menos segregadora, mais digna de uma infância e adolescência humanas.
        5 - Finalmente, a escola sozinha não poderá fazer isso tudo. A empreitada
de dar conta dos direitos humanos da infância e adolescência, sobretudo as
populares, que são as que não têm direito a ter direitos, não pode ser só da escola.
Esta empreitada tem que ser da sociedade como um todo. Estamos num momento em
que a sociedade diz: “olhe esta infância e adolescência: mata, rouba, drogada, se
prostitui, o que a escola faz?” A pergunta nossa é “o que a sociedade faz com esta
infância e adolescência quebrada?” Que nos entrega os cacos para nós colarmos.
Colar cacos humanos não é fácil. Eu tenho uma profunda admiração e respeito por
tantas educadoras e educadores que tentam colar cacos humanos de infâncias e
adolescências quebradas.
        Temos que apelar para o Estado. O Estado tem que dar mais condições para
que estes educadores e educadoras garantam os direitos humanos plenos dessa
infância e adolescência. Antes era mais fácil ser professor. Podia haver 30 ou 40
alunos na sala de aula que se dava conta. Hoje não damos conta nem de dez, nem de
quinze, porque estão tão quebrados pela sociedade... O Estado tem que reconhecer
que hoje ser professor é muito mais complicado do que antes.
       Mas o que estamos vendo? Estados, governadores, secretários de educação e
secretárias que estão apelando contra o professor. “porque não dá conta”, porque os
alunos saíram mal, com baixo desempenho, consequentemente castigam o professor,
porque não deu conta dos bons desempenhos dos seus alunos.
      Estamos num momento em que todos os direitos dos trabalhadores da
educação estão indo por água abaixo. Temos políticas, hoje, que vem de cima, dos
governantes, querendo destruir os trabalhadores da educação. Dizendo que não
ensinam, que fingem ensinar, que não tem compromisso, que não tem seriedade,
                                                                               9
que tem que ser punidos, que tem que ser avaliados, e que tem que ser jogados fora,
como se fossem lixo. Estamos num momento muito sério.

Se quando o ECA chegou havia já consciência dos direitos dos trabalhadores
da educação, e isso contribuiu para reconhecer os alunos como sujeitos de
direitos da educação, na medida em que se quebram o reconhecimento dos
trabalhadores da educação como sujeitos de direitos, estamos quebrando a
possibilidade de reconhecer a infância e a adolescência como sujeito de
direitos.




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Educação
 
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#8 paulo ulrich agosto 2014
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Aula miguel arroyo

  • 1. Módulo 01 - Aula Inaugural – Professor Miguel Arroyo1 Aula Inaugural 12 Que bom estarmos dialogando com educadoras e educadores da infância e da adolescência. E que bom falar sobre eles, e falar sobre nós, educadoras e educadores da infância. Sempre que falamos da infância, falamos de nós, e sempre que falamos de nós, temos que falar da infância e da adolescência com que trabalhamos. O Estatuto da Criança e da Adolescência na Escola Vamos falar sobre o Estatuto da Criança e do Adolescente na escola. Eu gostaria de começar, colocando esta pergunta: Quando chega o ECA, em que momento a escola estava? Em que momento nós, docentes, estávamos? Eu acho que estávamos num momento em que havia certa resistência ao reconhecimento da infância e adolescência como sujeitos de direitos. Não porque os professores resistissem a reconhecer a infância e adolescência como sujeitos de direitos. A resistência estava na própria escola. Estava no currículo. A escola e o currículo estavam pensados para preparar a criança e o adolescente como se fosse uma mercadoria para o trabalho. Esta visão do aluno como mercadoria a ser preparada, qualificada para o trabalho, nos afastava, nos distanciava da idéia do aluno como sujeito de direitos. Por outro lado, nós pensávamos a criança não como criança, mas como futuro adulto. Eu diria que nós tínhamos dificuldade de ver em cada rosto de criança ou de adolescente, uma criança ou um adolescente. Víamos um adulto. Quando chegasse este adulto, teria direitos. Mas e enquanto criança? Essa era a realidade que nós vivenciávamos quando chega o ECA. Quando ele chega, cria um certo impacto e em alguns professores, uma certa rejeição. “A criança ter direitos? A criança tem que aprender deveres. Se nós deixamos a criança como sujeitos de direitos, vai nos complicar”. 1 Miguel Arroyo é mestre em Ciência Política e doutor em Educação. Atualmente é professor titular emérito da Faculdade de Educação da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). 2 Foram feitas apenas as adaptações necessárias à transposição do texto falado para o texto escrito. 1
  • 2. Havia uma certa rejeição à idéia de reconhecer a infância e a adolescência como sujeito de direitos. Mas pouco a pouco, eu diria, que fomos avançando, e a própria infância e adolescência, que foram se afirmando como sujeitos de direitos, foram reeducando nossa visão. Eu acho que teríamos que, ao invés de ser contra o ECA, agradecer ao Estatuto que nos diz: “educadora, educador, você não está preparando mercadoria para o trabalho, para o mercado, para o emprego, você está tratando com seres humanos concretos, que têm uma história, que têm direitos”. Este reeducar nosso olhar sobre a própria infância e adolescência, eu acho que, em parte, devemos ao ECA. Mas naquela época, já havia uma coisa muito interessante dentro de nossas escolas. Nós já tínhamos décadas de movimento docente, em que os trabalhadores da educação se afirmaram sujeito de direitos. Direito a salário, a condição de trabalho, a carreira, a formação, a dignidade, a ser tratados como gente. Essa consciência que nós tínhamos de sermos sujeitos de direitos ajudou muito para que nós reconhecêssemos que não somente nós, mas como falava o ECA, os alunos, os educandos, as educandas, as crianças e adolescentes também são sujeitos de direitos. Este foi um grande salto, me parece. Por que? Porque se foi muito importante considerar-nos, reconhecer-nos sujeitos de direitos, como trabalhadores da educação, ao reconhecer os educandos como sujeito de direitos, completou-se este salto. A escola, a relação pedagógica, passou a ser uma relação de sujeitos de direitos com sujeitos de direitos. Não a relação de alguém que qualifica uma mercadoria pra o mercado. Isso era muito pouco. Eu acho que o ECA trouxe dignidade para a nossa condição docente. É muito mais digno sermos profissionais da garantia de direitos, de sujeitos de direitos concretos: Crianças, adolescentes, jovens ou adultos, do que sermos qualificadores de mercadoria para o trabalho. Nesse sentido eu diria que o ECA, com todo este movimento da afirmação da infância como sujeito de direitos, é um dos marcos fundamentais não só na sociedade, não só para reconhecer a infância e a adolescência como sujeitos de direitos, mas é um marco fundamental na escola. A escola passa a ter que se pensar como tempo e espaço de direitos, e nós, profissionais, tivemos que nos pensar como profissionais de direitos. Eu acho que agora, quando vamos ter um curso para repensar um pouco esta história, esta rica história do ECA em nossa sociedade, é muito importante que como educadoras e educadores, nós pensemos o quanto temos que agradecer ao fato de, em nossas lutas, termos avançado na consciência de nossos direitos e termos tido um Estatuto que nos chamou a atenção: “Não é suficiente você como educador, como educadora, se ver como sujeito de direitos. Fica incompleta esta sua imagem. É 2
  • 3. necessário completá-la. Como? Reconhecendo que você é um profissional que garante os direitos de crianças e de adolescentes”. O ECA afirmou, reconheceu e está ai para nos alertar até onde estamos realmente respeitando estes direitos. Reconhecendo que cada infância, cada criança, cada aluno, na minha sala de aula, na sua sala de aula, são portadores de direitos. Esta seria uma forma muito interessante de nos aproximarmos do ECA na Escola. Já escutei falar que o que o ECA trouxe foram problemas. Que as crianças precisam é saber dos seus direitos. Eu diria para vocês educadoras e educadores que se alguma coisa a infância, sobretudo a infância popular, teve que aprender, em nossa longa história, é que só é sujeito de deveres. Nosso povo só tinha o dever de trabalhar, de ser ordeiro, de obedecer, de agradecer. Agora o povo não quer só isso. O povo diz: “Somos sujeitos de direitos”. Se o povo se afirma sujeito de direitos, a infância popular que chega a cada dia a nossas escolas exige também ser reconhecida como sujeito de direitos. Este seria o sentido desse curso que vamos participar. Um curso em que todos nós vamos, sem duvida nenhuma, ganhar. Não só a criança vai ganhar. Insisto nesse ponto. Não pense: “a criança vai ganhar porque vai ser reconhecida como sujeito de direitos”. Não é só isso. A infância vai ganhar, e quando a infância ganha, nós, educadores, ganhamos, e quando a infância perde, nós perdemos. Nossa vida está atrelada à infância. A própria palavra “pedagogia” significa “condutores da infância”. Nossas imagens estão tão atreladas às imagens da infância, que nós somos obrigados a nos ver no espelho da infância. E se o rosto dessa infância é um rosto positivo, digno, de sujeito de direitos, podem ter certeza que a nossa imagem, que vai ser refletida numa criança, num adolescente, reconhecidos sujeitos de direitos, vai ser ainda mais nítida, enquanto profissionais de direitos, profissionais que podemos reivindicar e lutar por nossos direitos. Insisto nesse ponto, não tenha medo de estudar o ECA, não tenha medo de ler sobre o ECA, não tenha medo de reconhecer a infância como sujeitos dignos de todos os direitos humanos. Aula Inaugural 2 Escola e Direitos Humanos: Desafios da Atualidade Vamos avançar um pouco em nosso olhar sobre o ECA, e nos perguntar sobre quais os desafios da escola, e da docência, em relação aos Direitos Humanos da infância e adolescência que, com tanta ênfase, o ECA defende. Quais são os desafios na atualidade? O ECA entra na escola em um momento em que havia resistências, mas em um momento em que nós já estávamos avançando, reconhecendo-nos como sujeitos 3
  • 4. de direitos e reconhecendo a educação como direito de todo cidadão. Na luta pela escola para todos, pela democratização da escola. Eu diria que o ECA não chega como um estranho, mas chega em uma escola que já tinha consciência que deveria se constituir em um espaço e um tempo de direitos. Eu acho que a década de 90 trouxe um avanço nesta direção. Mas a pergunta que agora venho colocar é esta: na atualidade, como é que está tudo isso? Estamos avançando? A melhor maneira de olhar se o ECA está avançando é olhar para a infância. A questão que tem que nos preocupar está ligada a defesa da infância e da adolescência como sujeitos de direitos, à consciência sobre o avanço dos direitos nos coletivos populares, nos movimentos sociais. Esta consciência tão rica. Talvez um dos pontos mais ricos de nossa história recente, tenha sido pensar-nos como sujeitos de direitos humanos. Se esta é uma grande vitória, uma grande conquista, o problema que nos surpreende na atualidade é que quanto mais falamos em direitos humanos, mais os direitos humanos são negados. Nunca tivemos tanta consciência de que o ser humano é sujeito de direitos humanos plenos, mas nunca tivemos tantos seres humanos negados em seus direitos mais básicos. Esta realidade que é brutal em nossa sociedade tem características mais dramáticas quando pensamos na adolescência. De 1990 até agora, quase vinte anos do ECA, avançamos na consciência de que cada criança, cada adolescente é sujeito de direitos, é um ser humano. Mas nunca tivemos tantas infâncias famintas, vitimadas, abandonadas, desprotegidas. Tantos adolescentes mortos a cada fim de semana. A questão que se coloca para nós, educadoras e educadores, é a ambiguidade com a qual temos que lidar. Que significa, volto a colocar a pergunta, termos avançado na consciência de que a infância e a adolescência são sujeitos de direitos e, ao mesmo tempo, os educadores, as educadoras, perceberem a cada dia, em sua sala de aula, em sua escola, crianças famintas, filhas de pais desempregados, adolescentes que saem correndo do seu trabalho, ou de sua forma de sobrevivência para ir à escola? Que significa o professor ter que transmitir seus conhecimentos enquanto a criança fica com o olhar perdido, como me falava uma professora, olhando de lado, esperando a hora da merenda, porque não tomou nem café, e às vezes nem jantou no dia anterior? Esta é a realidade vivida hoje pela escola. A escola hoje se defronta com uma tentativa de ser espaço e tempo de direitos. A docência se defronta com a consciência de que é profissional de garantia de direitos e, ao mesmo tempo, a infância popular que chega sobretudo à escola pública popular, chega cada vez mais quebrada em seus direitos humanos mais básicos. Como fica esta situação? O que fazer diante destes impasses? 4
  • 5. Eu acho que hoje, se tivéssemos que proclamar o ECA, teríamos que ser mais radicais, porque a infância e a adolescência do final dos anos 80, quando foi inaugurado este Estatuto, não tinha vidas tão depravadas, tão precarizadas, formas tão violentas de viver a infância como temos hoje. Eu acho que se alguém sente de maneira bem concreta quão precarizadas são as vivências da infância e da adolescência hoje, são os educadores e educadoras da infância popular. Diante dessa realidade, qual é a nossa postura? A nossa postura, tem que ser, no meu entender, perguntar-nos quem vitimiza esta infância e adolescência? Quem nega os direitos mais elementares da infância e da adolescência? Hoje nós não podemos ter mais um olhar romântico sobre a infância, temos que ter um olhar realista. Não podemos ver o aluno apenas como aluno, mas vê-lo como um ser humano e perguntar-nos: e seus direitos humanos mais elementares, estão garantidos? Não podemos olhar só os seus percursos escolares, temos que olhá-lo em seus percursos humanos. Não podemos apenas nos preocupar se o direito à educação, ao conhecimento, à herança cultural, à escola estão sendo garantidos. Temos que nos preocupar com o conjunto dos direitos humanos. Uma coisa estamos aprendendo: o direito a educação não avança sozinho, isolado do conjunto dos direitos humanos. Criança que chega a escola com fome do conhecimento, se estiver faminta de alimentos, não aprende. Hoje entendemos que o direito a educação é fundamental entre os direitos humanos, mas ele está tão atrelado a garantia do conjunto dos direitos humanos, que se nós não nos preocupamos com a questão dos direitos humanos na escola, não damos conta do direito a educação. Este é um ponto que me parece fundamental. Este curso, estas aulas, ou estes debates que vocês vão ter, não vão falar apenas do direito à educação. Vão falar dos direitos humanos básicos. Mas vamos esquecer do direito às educação? Não é está a nossa função? Não é esta a função da escola? Sim! Mas o que vamos ter que aprender, insisto, e isto nos fala o ECA é que cada criança que chega à escola nos diz: “Professor, professora, venho aqui buscando a garantia de meu direito à educação, mas não esqueça que venho de uma família popular, meu pai desempregado, minha mãe fora de casa para buscar comida, meus irmãos, as vezes entrando nas drogas, na violência, mortos no fim de semana. Não sei qual vai ser meu futuro, meus direitos humanos não estão garantidos, professora, professor”. Como que vou garantir o direito a educação, se os direitos mais elementares: o direito à vida, à comida, à sobrevivência, à proteção, a ter um futuro com um mínino de luminosidade... Se tudo isso negaram. Sabem por que os nossos alunos não querem saber de nossas lições? Não porque não querem aprender. Não porque os professores não são bons. Não porque a lição não é maravilhosa. Sabem por quê? Porque quando se negam os direitos humanos mais elementares, o conhecimento perde o sentido. Não adianta falar: 5
  • 6. ‘estuda e terás futuro’, se ele sabe que seu pai não tem futuro, sua família não tem futuro, seu irmão estudou e não tem futuro. Hoje temos que colocar a relação entre o direito a educação, ao conhecimento, à herança cultural, que é nossa função, que é função da escola, numa relação estreita, como se fosse uma espécie de novelo, de fios, onde não é possível separar um do outro. Não é possível separar o direito a educação, da discussão da garantia do conjunto dos direitos humanos. Aula Inaugural 3 Por uma escola Educadora de Direitos Humanos Vamos passar agora a perguntas que todos nós nos fazemos, cotidianamente: Como a escola pode ser educadora de direitos humanos? Como a escola pode respeitar a infância e a adolescência como sujeitos de direitos humanos? Como a docência pode avançar para se reconhecer como profissional de direitos humanos? Eu vou colocar alguns pontos que podem servir para cada um de nós, em grupo, ou como escola, tentarmos pensar sobre esta questão tão séria: A escola pode ser um espaço de garantia, de aprendizado dos direitos humanos? 1 - A escola tem que entrar na disputa por um imaginário da infância. Escutamos a cada dia, na mídia, nos jornais, notícias que colocam a infância e a adolescência, populares é claro, nos morros, nas favelas, na rua, ‘lá embaixo’, como se fossem a escória da sociedade. Nós estamos num momento em que se paramos o carro no sinal, fechamos o vidro. Se vamos pela rua e vemos uns garotos, negros é claro, de chinelos, seguramos a bolsa. Estamos num momento em que o imaginário da infância popular está ‘quebrado’. Nunca tivemos um imaginário tão negativo sobre a infância e a adolescência populares. Eu diria que ‘ai teríamos que entrar’. Se alguém tem que ser advogado, não do diabo, mas advogado mesmo dessa infância e adolescência popular, temos que ser nós. Tem que ser a própria escola popular e a docência popular. Nós temos que mostrar que essa infância e adolescência não têm um protagonismo tão negativo como a mídia e a sociedade proclamam. Nós temos que defender, porque convivemos com esta infância que tem valores; que sobrevive; que se vê obrigada a trabalhar, para colaborar em casa; que cuida de seus irmãozinhos, que tem dignidade. Temos que mostrar o rosto de uma infância digna, de sujeitos de direitos, e este é o primeiro direito: ter uma imagem digna de um ser humano. Este é um ponto fundamental. Muitas vezes a escola se deixa enganar e contaminar por esse imaginário tão negativo sobre a infância popular. Às vezes dentro da própria escola, falamos mal dos alunos. Estamos chegando a um momento em que os próprios 6
  • 7. professores e a própria escola pública (vamos falar isso baixinho), tem medo de nossa própria infância. Isso é muito sério. Eu acho que temos que reagir. Temos que se colocar esta pergunta: O que está acontecendo com a gente para que nos deixemos contaminar por este vírus, por estas febres que vêm da mídia, que vem, sobretudo, de um conservadorismo terrível que há em nossa sociedade, contra todo um povo, inclusive infância, popular. Este é um ponto fundamental, que deveríamos trabalhar. 2 - Temos que reafirmar o ECA, para que não fique distante, como um eco distante. ‘O ECA não é um eco distante’. Que se reconheça a infância e a adolescência como sujeitos de direitos. Temos que voltar a colocar o ECA com toda a força e com mais urgência hoje do que em 1990, porque se a infância é tratada desta maneira tão negativa, nós temos que dizer: “Não senhor! Esta infância é sujeito de direitos, e precisa ser tratada como sujeitos de direitos”. Mas para isso teríamos também que rever a quantidade de rituais que ainda existem dentro da escola, que não respeitam esta infância e esta adolescência como sujeitos de direitos. Uma das coisas que me parece mais importante no ECA, não é que ele nos diz: a infância tem direito a comer, a saúde, à proteção, mas que a infância tem direito a ser infância! A adolescência tem direito a viver com plenitude o tempo da adolescência! Esta é uma questão muito séria para a nossa escola. Quando entro numa escola e vejo crianças de seis, sete, oito anos, nas primeiras filas, na segunda, terceira, quarta, quinta filas, já com oito, nove, dez anos, e lá no fundo da sala, às vezes, onze, doze, treze, quatorze anos. Este é um crime que se comete contra o direito da adolescência a ser adolescente. A escola com seus rituais de reprovação, retenção, repetência e multirepetência, está negando o direito primeiro da adolescência: a ser adolescência. Porque não pensar em acabar com estes rituais? Porque não colocarmos assim, com toda a seriedade: a infância não tem direito a ser respeitada como infância? “Mas não sabe ler!” (dirão alguns). Mas é adolescente. Tem direito a ser respeitado como adolescente, e não conviver como criança, aprender como criança, porque sua mente não é mais de criança, é de adolescente. Sua cultura é de adolescente. Este é um dos rituais mais perversos na escola, que mais nega direitos da infância e da adolescência. O direito a uma vivência digna, respeitosa, de cada tempo humano. O direito a um percurso digno, justo, de formação humana em cada tempo humano. Este é um dos pontos, insisto, que teríamos que mexer com toda a seriedade. 3 - Teríamos que rever os conteúdos e o material didático, mas não apenas para colocar nestes conteúdos pesados, cientificistas, pragmatistas ou utilitaristas, e agora se fala em currículos por competência, não basta colocar ai uma pitadinha de luminosidade sobre os direitos humanos. Isso não funciona. Podemos ter uma aula 7
  • 8. semanal sobre direitos humanos e depois termos conteúdos diários que não tem uma visão de reconhecimento de direitos humanos. A questão que se coloca é como o currículo tem que estar pensado, reorganizado na lógica do respeito aos direitos humanos, e não na lógica de preparar para o mercado com saberes pragmáticos, utilitaristas, positivistas, que servem para o vestibular, agora para o Enem, ou pode ser para a provinha Brasil, com sete anos, ou para o Provão com 14 ou com 18... Estamos no momento, insisto em que se fala muito em respeitar os direitos da infância, mas ao mesmo tempo colocamos esta infância e esta adolescência no crivo de provas, provinhas e provões, para dizer depois: “Esta vendo? A infância popular, a adolescência popular, se saiu pior do que a infância das camadas médias, que esta na escola privada”. Estamos em um momento em que estes mecanismos de avaliação terminam sendo uma forma de pichação da infância e adolescência popular como menos capazes, menos dedicados, perseverantes ou inteligentes. É o que sempre tivemos: a visão de que o povo é inferior e nem sequer oferecendo a ele a escola ele consegue ‘sair deste atoleiro’. Estas são questões muito sérias. Hoje o que mais colabora para diferenciar infâncias e adolescências são as políticas de avaliação. O dia em que sai o resultado, logo a mídia diz “a escola do centro saiu melhor do que a da favela, a escola da cidade, melhor do que a do campo, a escola da classe média, melhor do que a escola popular”. Em definitivo, mais uma vez a infância e a adolescência popular, colocadas lá embaixo, classificadas sempre, no lugar “onde sempre teria que ter ficado e eu não sei para que veio à escola”. Esta é uma questão muito séria. Insisto, quem tem que “tomar juízo” são estas políticas de avaliação que entregam dados que deveriam ficar só para mudar a realidade, nas mãos de uma imprensa que parece que está esperando para dizer: “está vendo? Os jovens, os adolescentes, das favelas, populares são isso mesmo. Não sei pra que vão às escola. Estamos perdendo dinheiro e tempo, porque não têm solução”. Esta é uma questão muito séria. Se alguém tem que ser contra isso somos nós educadoras e educadores que convivemos diariamente com esta infância e adolescência populares. 4 - Temos que pensar em outras funções sociais e educativas da escola. A função da escola não é apenas ensinar conhecimentos que supostamente vão servir para a próxima série, que vão servir para o vestibular, para o Enem, ou para o futuro. A função da escola é garantir um presente mais humano, mais digno para a infância e a adolescência sujeitos de direitos. Esta infância e adolescência não serão sujeitos de direitos no futuro, se estudarem, se passarem, se aprenderem, se não forem reprovados. Esta infância é sujeito de direitos no presente. A escola vai ter que se repensar para dar conta de uma infância desprotegida, de uma infância faminta, de 8
  • 9. uma adolescência insegura, de uma juventude sem futuro. Como fazer isso? Temos que repensar radicalmente a escola e a nossa docência. Porque a escola e a nossa docência não foram pensadas para dar conta de direitos humanos, foram pensadas para dar conta do mercado. Ou fazemos esta guinada, ou continuaremos fazendo o jogo da negação dos direitos da infância e da adolescência. A escola tem que ser mais humana. A escola é muito dura com a nossa infância e adolescência populares. Vocês sabem quem são os reprovados? Vinte, trinta, quarenta por cento. Quem são os defasados? Sessenta, setenta, oitenta por cento... São as crianças e adolescentes que com muito custo, roubando tempo de sobrevivência, conseguem chegar à escola. Crianças e adolescente cujos direitos são negados pela sociedade. E a escola lhes nega o direito mais elementar: serem respeitados e reconhecidos como humanos. A escola tem que ser mais humana, menos segregadora, mais digna de uma infância e adolescência humanas. 5 - Finalmente, a escola sozinha não poderá fazer isso tudo. A empreitada de dar conta dos direitos humanos da infância e adolescência, sobretudo as populares, que são as que não têm direito a ter direitos, não pode ser só da escola. Esta empreitada tem que ser da sociedade como um todo. Estamos num momento em que a sociedade diz: “olhe esta infância e adolescência: mata, rouba, drogada, se prostitui, o que a escola faz?” A pergunta nossa é “o que a sociedade faz com esta infância e adolescência quebrada?” Que nos entrega os cacos para nós colarmos. Colar cacos humanos não é fácil. Eu tenho uma profunda admiração e respeito por tantas educadoras e educadores que tentam colar cacos humanos de infâncias e adolescências quebradas. Temos que apelar para o Estado. O Estado tem que dar mais condições para que estes educadores e educadoras garantam os direitos humanos plenos dessa infância e adolescência. Antes era mais fácil ser professor. Podia haver 30 ou 40 alunos na sala de aula que se dava conta. Hoje não damos conta nem de dez, nem de quinze, porque estão tão quebrados pela sociedade... O Estado tem que reconhecer que hoje ser professor é muito mais complicado do que antes. Mas o que estamos vendo? Estados, governadores, secretários de educação e secretárias que estão apelando contra o professor. “porque não dá conta”, porque os alunos saíram mal, com baixo desempenho, consequentemente castigam o professor, porque não deu conta dos bons desempenhos dos seus alunos. Estamos num momento em que todos os direitos dos trabalhadores da educação estão indo por água abaixo. Temos políticas, hoje, que vem de cima, dos governantes, querendo destruir os trabalhadores da educação. Dizendo que não ensinam, que fingem ensinar, que não tem compromisso, que não tem seriedade, 9
  • 10. que tem que ser punidos, que tem que ser avaliados, e que tem que ser jogados fora, como se fossem lixo. Estamos num momento muito sério. Se quando o ECA chegou havia já consciência dos direitos dos trabalhadores da educação, e isso contribuiu para reconhecer os alunos como sujeitos de direitos da educação, na medida em que se quebram o reconhecimento dos trabalhadores da educação como sujeitos de direitos, estamos quebrando a possibilidade de reconhecer a infância e a adolescência como sujeito de direitos. 10