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Coordenação de Flávio Moreira da Costa
OS TRABAI.iHADORES DO MAR
Victor Hugo
TRÊS CONTOS
Gustave Flaubert
RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS
F. Dostoievski
Tradução, introdução e notas
L:€DO IVO
3~ EDIÇÃO
Francisco
Alves
) f
UMA TEMPORADA NO INFERNO
(
Outrora, se bem me lembro, mi~ha vida era um
festim onde se abriam todos os corações, onde todos os
vinhos corriam.
Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E
achei-a amarga. - E injuriei-a.
Armei-me contra a justiça.
Fugi. ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é que
meu tesouro foi confiado.
Consegui fazer desvanecer-se em meu espírito toda
a esperança humana. Sobre toda alegria, para estran-
gulá-la, dei o salto surdo da fera.
Chamei os carrascos para, perecendo, morder a co-
ronha de seus fuzis. Chamei as calamidades, para me
sufocar com a areia, com o sangue. O infortúnio foi o
meu deus. Estendi-me na lama. Sequei-me ao ar do
crime. E preguei boas peças à loucura.
E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota.
Ora, muito recentemente, quando eu estava quase
nas últimas, pensei em procurar a chave do antigo fes-
tim, onde eu recobraria talvez o apetite.
A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova
que sonhei.
"Permanecerás hiena, etc ... " exclamou o demônio
que me coroou de tão gentis papoulas. "Ganha a morte
45
com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os
pecados capitais."
Ah! foi 0 que fiz e por demais! - Todavia, ~ar.o
satã, por favor, tende para mim um olhar menos irn-
tado! e enquanto ficais à espera de u~~s tantas ~ovar­
diazinhas em atraso, e já que apreciais no ~scntor a
ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, des-
taco para vós estas poucas hediondas folhas de meu
caderno de réprobo.
46
'1
SANGUE RUIM
De meus antepassados gauleses tenho os olhos azuis,
a fronte estreita, a falta de jeito na luta. Penso que mi-
nha maneira de vestir é tão bárbara quanto a deles.
Mas não unto os cabelos.
Os Gauleses eram os esfoladores de animais, os quei-
madores de ervas mais ineptos de seu tempo.
Tenho deles: a idolatria e o amor ao sacrilégio;
-- oh! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica, a
luxúria; - sobretudo mentira e indolência.
Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários,
todos são camponeses; ignóbeis. A mão que segura a
pena vale tanto quanto a que empurra o arado. - Que
século manual! - Não usarei jamais as mãos. Além do
mais a domesticidade conduz a muito longe. Os mendi-
gos, com a sua honradez, exasperam-me. Os criminosos
repugnam-me como se fossem castrados: quanto a mim,
estou intacto, e isto pouco me importa.
Todavia! quem fez minha língua de tal modo pér-
fida que ela orientou e protegeu até aqui minha indo-
lência? Sem me servir de nada, nem mesmo de meu
corpo, e mais ocioso que o sapo, tenho vivido em toda
parte. Não há uma família da Europa que eu não co-
nheça. - Falo, naturalmente, de famílias como a minha,
que devem tudo à Declaração dos Direitos do Homem.
- Conheci cada filho de família!
47
*
* *
Tivesse eu antecedentes num ponto qualquer da
história da França!
Mas não, nada.
É evidente que sempre fui de uma raça inferior.
Não posso compreender a revolta. Minha raça não se
rebelou jamais, a não ser para a pilhagem: como os lo-
bos que atacam o animal que não mataram.
_Evoco a história da França, filha mais velha da
Igreja. Devo ter feito, como camponês, a viagem à Terra
Santa; tenho na memória as estradas das planícies suá-
bias, panoramas de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o
culto de Maria, a compaixão do Crucificado despertam
em mim entre mil magias proianas. - Sentei-me, le-
proso, sobre os vasos quebrados e as urtigas, junto a um
muro roído pelo sol. - Mais tarde, cavalariano, devo
ter dormido ao relento, nas noites da Alemanha.
Ah! mais ainda: danço o sabá numa rubra clareira,
entre velhas e crianças.
Não me lembro de nada que ultrapasse esta terra e
o cristianismo. Jamais terminaria de rever-me neste pas-
sado. Sempre só, porém; sem família; além do mais,
que língua falaria? Não me revejo nunca nos concílios
do Cristo; nem nas assembléias dos Senhores, - repre-
sentantes do Cristo.
Que era eu no século passado: só hoje é que torno
a encontrar-me. Não mais vagabundos, nem guerras va-
gas. A raça inferior espalhou-se por toda parte - o
povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência.
Oh! a ciência! Tudo recomeçou. Para o corpo e a
alma, - o viático, - tem-se a medicina e a filosofia,
- os remédios de boas mulheres e as canções populares
bem arrumadas. E os divertimentos dos príncipes e os
48
ln~~~ :tn:l~e:! .~~oibiam! Geografia, cosmografia, mecâ-
A ciência, a nova nobreza! O progresso O mundo
marcha! Por que não haveria ele de girar? ·
É a visão dos númer En ·
Espírito. Falo com a certe~~ de :irruru;amlo-nos para o
do e não sabend . oracu o. Compreen-
ferirta calar-me. o explicar-me sem palavras pagãs, pre-
*
* *
e O ~angue_pagão retorna! O Espírito está perto
que Cristo nao me aJ·uda d d 'por-
--a minha alma? Ah1 E ' an ° nobreza e liberdade
· · o vangelho passou1 E
,o Evangelho! · o vangelho!
-tod Espetro J?eus avidamente. Sou de raça inferior
a a e ermdade. , por
Aqui estou na praia arm .
se iluminem à ~oite. Meu dº ~nc8:1'1ª· ~ue. as cidades
-pa. O ar marinh . ,1a rmmou. deixo a Euro-
perdidos bronze~ãdu~x::ra meus pulmões; os climas
·-caçar, sobretudo fumar be~ p~e. Nadar, pisar a erva;
sem metal derretido ' er co:es fortes como se fos-
·passados em torno dofu~~~o faziam esses caros ante-
Voltarei, com uma saúde de ferro a ele e .
.,aa, o olhar selvagem· pela minha ', p seur~1-
que sou de ' mascara, pensarao
brutal. As m~::r;:~~~~:·d~:~~~ !~f~~:so e
r~tornam dos países quentes. Envolver- · q~e
-cios políticos. Salvo. me-e1 nos nego-
. Agora estou amaldiçoado, tenho horror à minha ,-
tria. O melhor a fazer é dormir bAbed . pa
, e o, na praia.
49
,;
*
* *
, . Retomemos os caminhos daqui,
Não ha part1d,a.. - vício ue deitou suas raízes de
carregando meu v1c~odo desdeqa idade da razão - que
sofrimento ao meu a .º' . a me ao chão e me arrasta.
sobe ao céu, bate em mim, JOg - , .
. A . ,ltima timidez. Esta dito.
A· última mocencia e ªdu tos e minhas traições.
Não expor ao mundo meus esgos
marcha, o fardo, o deserto, o desgosto
vamos! A
e a cólera. ?
~ ? A ue animal é preciso adorar.
A quem me al~gar. lnvestir? Que corações que-
Contra que santa. imdagemsustentar? - Em que sangue
brarei? Que mentira evo
caminhar?
lh r a fazer é ter cuidado com a justiça. -
O me o imento simples, - erguer, com
A vida dura, o er:ibrutec a de um esquife, acomodar-
º punho endurecido, adta~p ·m não haverá velhice nem
se nele morrer sufoca o. ss1A '
perigo;: o terror não é frances.
- Ahna-~ ~:pato:::~et~i:n~d~m~~o:~~:ep~:~
reço, a
a perfeição. . .
- , minha caridade maravilhosa!.
ó minha abnegaçao, o
d . '
aqui neste mundo, to avia.
. b ·11
De profundis Domine' como sou im ec1 .
*
* *
. ·rava o sentenciado intratá-
Criança amd~, eu ad~echam as portas da prisão;
vel sobre quem sempre se pensões que ele teria san-
visitava as estalagens e as. . com 0 seu pensamento·
tificado ao hospedar-se nelas, via
50
o céu azul e o trabalho florido do sua
fatalidade nas cidades. Ele tinha mais força que um san-
to, mais bom senso que um viajante - e ele, só ele!
como testemunho de sua glória e de sua razão.
Nas estradas, em noites de inverno, sem abrigo, sem
roupas, sem pão, uma voz me oprimia o coração gela-
do: "Fraqueza ou força: vê, é a força. Não sabes nem
para onde vais, nem por que vais; entra em toda parte,
responde a tudo. Não te matarão mais do que se fosses
um cadáver." De manhã eu tinha o olhar tão vago, e
a fisionomia tão morta que não me viram talvez aqueles
com quem m~ encontrei.
Nas cidades a lama me aparecia subitamente ver-
melha e negra, como um espelho quando uma lâmpada
circula no quarto vizinho, como um tesouro na floresta!
Boa sorte, gritava, e via um mar de chamas e de fu-
maça no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas
ardendo como um bilhão de raios.
Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me
eram vedadas. Nem mesmo um companheiro. Eu me via
diante de uma turba exasperada, defronte ao pelotão de
fuzilamento, chorando a infelicidade de eles não me te-
rem podido compreender, e perdoando! - Como Joana
d'Arc! - "Padres, professores, patrões, enganai-vos en-
tregando-me à justiça. Jamais pertenci á este povo; ja-
mais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício;
não compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou
um bruto; vós vos enganais... "
Sim, tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um
animal, um negro. Contudo, posso ser salvo. Sois falsos
negros, vós, maníacos, sanguinários,, avarentos. Mer-
cador, és um negro; magistrado, és um negro; general,
és um negro; imperador, velha sarna, és um negro; be-
beste um licor de contrabando, da fábrica de Satã. -
Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. En-
fermos e velhos são de tal modo respeitáveis que pe-
dem para morrer em água fervente. - O melhor a fazer
51
. . d loucura ronda em busca
é deixar este continente, ~n ~ ª. Entro no verdadeiro
de reféns para estes m1seraveis.
reino dos filhos de Cam. .
? onheço-me a mim mes-
Ainda conheço a naturez:. cltei os mortos no meu
mo? - Chega de palavras. 1~ça dança dança! Nem
ventre. Gritos, tambor, dança, ho~ens br~ncos desem-
sequer vejo a hora em .que, os
barcando, cairei no vazio.
Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança.
*
* *
O h-0 1 É preciso sub-
os brancos desembarcam. can a .
meter-se ao batismo, andar vestido, trabalhar.
Coraça
-o o toque da graça. Ah! não o
Recebi no
tinha previsto! , .
. . 1 0 dias vão ser face1s para
Jamais prat~quei 0
m~ ·se:á poupado. Não terei tido
mim, o arrependimento m . morta para o bem, na qual
os tormentos da alma quase orno os círios funerários.
d ovo a luz severa c
sobe e n . d f 'lia esquife prematuro cober-
0 desti:io ~o fllh? .e amise~ dúvida, a devassidão é
to de llmp1d~s. la?n~:;s~·do· é preciso jogar de lado a
estúpida, o v1c1~ e e~ ~~1 h~ra da dor pura é que o re-
podridão. Todavia, so batado como uma
lógio deixará de. tocar! Vou s~r a;;~uecido de todas as
criança, para bnncar no para1so,
desgraças! .
ºd ? impossível dormir en-
Depressa! há outras Vl as. - 'blico Só
. A · eza sempre foi um bem pu ·
tre nquezas. nqu d ciência. Vejo que a
o amor divino concede as chav:~ u~o de bondade. Adeus,
natureza não passa de um espe ac
quimeras, idéias, erros!
· lva-
0 canto judicioso dos anjos ergue-se do navio sa do
, dº . Dois amores! posso morrer
dor: e o amor IV1nO. -
52
amor terrestre, morrer de devotamento. Deixei almas
cujo sofrimento aumentará com a minha partida. Vós
me escolhestes entre os náufragos; são meus amigos os
que ficam?
Salvai-os!
A razão nasceu em mim. O mundo é bom. Aben-
çoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são mais pro-
messas infantis. Nem a esperança de escapar à velhicv
e à morte. Deus fez minha força, e eu louvo Deus.
*
*
O tédio não é mais meu amor. O furor, a devassi-
dão, a loucura, dos quais conheço todos os impulsos e
calamidades - todo o meu fardo foi arriado. Apreciemos
sem vertigens a extensão de minha inocência.
Não serei mais capaz de pedir a consolação de uma
bastonada. Não creio que esteja numa festa nupcial, ten-
do Jesus Cristo como sogro.
Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus.
Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gos-
tos frívolos deixaram-me. Não tenho mais necessidade
de abnegação ou de amor divino. Não lamento o século
dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo
e caridade: guardo meu lugar no alto desta angélica
escala de bom senso.
Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou
não. . . não, não posso. Sou muito dissipado, muito fra-
co. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: no
meu caso, minha vida não é bastante pesada, ela voa
e flutua longe, acima da ação, esse precioso centro do
mundo.
Que solteirona estou me tornando, perdendo a co-
ragem de amar a morte!
53
edesse a calma celestial e aérea,
se Deus me cone os santos' for-
- omo os antigos santos. - _ · .
a oraçao, - c artistas de uma espécie nao mrus
tes! os anacoretas,
necessária!
Farsa contínua!
A vida é uma farsa
Minha inocência me faria chorar.
todos devem representar.
*
* *
Basta! eis a punição. - Para a frente!
_ . as têmporas latejam! A
A.h! os pulmoes qu;:mamp~r este sol! o coração ...
noite rola em meus o os,
os membros .. ·
b te? Sou fraco! os outros
Ir para para o com a . tempo! ...
avançam. Os equipamentos, as armas. . . o
• 1 Lá' ou me entrego. - Co-
Fogo! fogo sobre rmm. . diante das patas dos
vardesl - Eu me mato! Jogo-me
cavalos!
Ah! ...
_ Habituar-me-ei a isto.
· h da honra'
Seria a vida francesa, o carmn o .
*
* *
54
NOITE INFERNO
Traguei um bom gole de veneno. - Seja três vezes
abençoada minha resolução! - Minhas entranhas ar-
dem. A violência do veneno contrai-me os membros, des-
figura-me, arroja-me ao chão. Morro de sede, sufoco, não
posso gritar. É o inferno, as penas eternas! Vede como
o fogo se levanta! Queimo-me, como convém. Vai, de-
mônio!
Eu percebera a conversão ao bem e à felicidade,
a salvação. Possa eu descrever a visão, o ar do inferno
não tolera os hinos! Eram milhares de criaturas encan-
tadoras, um doce concerto espiritual, a força e a paz,
as nobres ambições, e que mais?
As nobres ambições!
E é ainda a vida! - Se a danação é eterna! Um
homem que se mutila deliberadamente é um danado,
não é? Creio estar no inferno, então estou nele. É a exe-
cução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais,
fizestes a minha desgraça, e também a vossa. Pobre ino-
cente! - O inferno não pode investir contra os pagãos.
- É ainda a vida! Mais tarde, serão mais profundas as
delícias da danação. Um crime, depressa, que posso cair
no vácuo, por imposição da lei humana.
Fica em silêncio, cala-te! ... Aqui é a vergonha, a
reprovação: Satã diz que o fogo é ignóbil, e que minha
cólera é terrivelmente estúpida. - Basta! ... Erros a
'i5
que me induziram, magias, perfumes falsificados, m~-­
sicas pueris. - E dizer que possuo a verdade, que ve30
a justiça: tenho um julgamento são e firme, estou pron··
to para a perfeição. . . Orgulho. - Meu couro cabe-
ludo se resseca! Piedade! Senhor, tenho medo. Tenho
sede, tanta sede! Ah! a infância, a relva, a chuva,? lag?
sobre as pedras o luar quando o sino tocava meia-noz-
, M.'
te ... o diabo está no campanário, nessa hora. ana.
Virgem Santa! ... - Minha estupidez causa-me horror.
Lá embaixo, não estão almas honestas, que me de-
sejam o bem? ... Vinde ... Tenho um travesseiro sob:e
a boca elas não me ouvem, são fantasmas. Além do mais,
~ , .
ninguém pensa nunca nos outros. Não se aproximem
de mim. Cheiro a carne tostada, é certo.
As alucinações são inumeráveis. É, sem dúvida, o
que sempre tive: falta de fé na história, o esqueci~en~o
dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e VlSlona-
rios ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, se-
jamos avaros como o oceano.
Isto, agora! o relógio da vida acabou de parar. Não
estou mais no mundo. - A teologia é uma coisa séria,
o inferno está certamente embaixo - e o céu no alto.
- Êxtase, pesadelo, sono em um ninho de chamas.
Quantas burlas na vigília campestre. . . Satã, Fer-
dinando, corre com as sementes selvagens... Jesus ca-
minha sobre as sarças purpúreas, sem curvá-las... Je-
sus caminhava sobre as águas irritadas. À luz da lanter-
na, ele nos surgiu de pé, de branco e de trigueiras tran-
ças, no seio de uma onda de esmeralda...
Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religio-
sos ou naturais, morte, ;nascimento, futuro, passado,
cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias.
Escutai! ...
Tenho todos os talentos! - Não há ninguém aqui,
e há alguém: eu não gostaria de distribuir meu tesouro.
56
- Querem cantos negros, danças de huris? Querem que
eu desapareça, mergulhe em busca do anel? Querem?
Fabricarei ouro, remédios.
Confiai em mim, então, a fé alivia, guia, cura. Vin-
de, todos - até as criancinhas - que eu vos posso con-
solar ~ entre vós distribuir seu coração, - o coração
mar~v1lhoso!. - ~obres homens trabalhadores! Não peço
oraçoes; serei fellz aipenas com a vossa confiança.
- E pensemos em mim. Isto me faz lamentar pou-
co o mundo. Tenho a sorte de não sofrer mais. Minha
vida não foi senão doces loucuras, o que é lamentável.
Ora isso! façamos todas as caretas imagináveis.
Estamos, decididamente, fora do mundo. Não se
ouve nenhum som. Meu tato desapareceu. Ah! meu cas-
telo, minha porcelana de Saxe, meu bosque de salguei-
ros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias. . . Como
estou cansado!
. · Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um
mferno para o meu orgulho, - e o inferno da carícia·
um concerto de infernos. 1
'
Morro de cansaço. É o túmulo, vou-me para os ver-
mes, horror dos horrores! Satã, farsante, queres dissol-
ver-me com os teus encantos! Protesto. Protesto! um
golpe de forcado, uma gota de fogo. ·
Ah! voltar de novo à vida! Lançar os olhos sobre
nossas monstruosidades. E este veneno, este beijo mil
vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo!
Meu Deus, piedade, Qcultai-me, não estou em condições
de proteger-me! - Estou escondido e não o estou.
É o fogo que se ergue, com o seu danado.
57
DELíRIOS
I
VIRGEM LOUCA
o esposo infernal
Confissão de um companheiro de in-
Ouçamos a
femo:
- useis a con-
"ó divino Esposo, meu Senhor, nao rec did
f. -o da mais triste de vossas servas. Estou per a.
issa ºd 1
Estou bêbeda. Estou impura. Que VI a.
"Perdão divino Senhor, perdão! Ah! perdã~. Quan-
tas lágrima;! E mais tarde, quantas lágrimas amda, es-
pero!
"Mais tarde, conhecerei o divino Espos?! Nasci ~ub­
missa a Ele. - O outro pode bater em nnm agora.
"Atualmente, estou no fundo do .mundo! ó~~~~
. ' não não sois minhas amigas ... Jamais
armgas · · · · ' Q t idez1
lírios ou torturas semelhantes . . . ue es up ·
"Ah' sofro, grito. Sofro realmente. Entretanto, tu~o
me é pe~mitido, a mim que carrego o desprezo dos mais
desprezíveis corações.
"Enfim façamos esta confidência, que posso repe-
tir vinte ve~es mais - tão morna e insignificante é ela!
58
"Sou escrava do Esposo infernal, aquele que levou
à perdição as virgens loucas. É realmente um demônio.
Não é um espectro nem um Quanto a mim,
que perdi a sabedoria, e estou danada e morta para o
mundo, - não me matarão! - Como o descrever para
vós! Não sei mais nem falar. Estou de tenho medo.
Um pouco de frescura, Senhor, por favor,
recidamente!
enca-
"Estou viúva ... - Eu estava viúva ... - mas sim,
fui bem respeitável antigamente, e não nasci para tor-
nar-me um esqueleto! ... - Ele era quase uma crian-
ça ... Suas misteriosas delicadezas tinham-me seduzido.
" '
Esqueci todos os meus deveres humanos para segui-lo.
Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos
no mundo. Vou para onde ele vai, é preciso. E muitas
vezes eu, a pobre alma, sofro a investida da cólera que
ele lança contra mim. O Demônio! - É um demônio,
sabeis, não é um homem.
"Ele disse: "Não amo as mulheres: é notório que
o amor está para ser reinventado. Tudo o que elas po-
dem querer é uma situação segura. A posição alcança-
da, coração e beleza são postos de lado: só resta hoje
o frio desdém, o alimento da vida conjugal. Então vejo,
desde o primeiro instante devoradas por brutos sensí-
veis como fogueiras, mulheres dotadas do signo da feli-
cidade, e das quais eu poderia fazer boas camaradas ... "
"Eu o escuto fazendo da infância uma glória, da
crueldade um encanto. "Sou de uma raça longínqua:
meus pais eram escandinavos: eles se trespassavam as
costas, bebiam o próprio sangue. - Farei incisões por
todo o corpo, tatuar-me-ei, quero tornar-me horroroso
como um Mongol: verás, uivarei pelas ruas. Quero tor-
nar-me louco de raiva. Jamais me mostres jóias, eu me
arrastaria. pelo chão e me contorceria sobre o tapete.
Minha riqueza, eu a quereria toda manchada de san-
gue. Jamais trabalharei ... " Várias noites, seu demônio
agarrando-me, rolávamos juntos, eu lutava com ele!
59
Muitas vezes, à noíte, ele se posta, bêbedo, nas ruas ~u
nas casas, para assustar-me mortalmente. - "Torce~ao
realmente meu pescoço; será "repelente". Oh! esses dias
em que ele quer andar ostentando um ar crimínoso!
"As vezes ele fala, numa espécie de gíria suavizada,
da morte que traz o arrependimento, dos infelizes _que
realmente existem, dos trabalhos penosos, das partidas
que despedaçam os corações. Nas tavernas onde nos em-
bebedávamos, ele chorava, considerando aqueles que nos
rodeavam, míserável rebanho. Nas ruas negras, ele le-
vantava do chão os bêbedos. Possuía a piedade de uma
mãe perversa pelos seus filhinhos. - Era gracioso como
uma garota de catecismo. - Fingia andar. informado
a respeito de tudo, comércio, arte, medicina..Eu o seguia,
pois era preciso!
"Eu via todo o cenário de que ele mentalmente se
cercava: roupas, lençóis, móveis; emprestava-lhe armas,
e um outro aspecto. Eu via tudo o que lhe chamava a
atenção, como ele teria querido criar para si mesmo.
Quando ele me parecia estar com o espírito inerte, eu
0 seguia, eu, nas ações estranhas e complicadas, longe,
boas ou más; estava convicta de jamais penetrar em seu
mundo. Junto ao seu querido corpo adormecido, quan-
tas noites passei acordada, querendo saber porque ele
queria tanto evadir-se da realidade. Jamais um homem
teve semelhante desejo. Eu reconhecia, - sem temer
por ele, - que podia ser um sério perigo para a socie-
dade. - Ele tem, talvez, segredos para mudar a vida?
Não, só faz procurá-los, replicava eu. Enfim, sua cari-
dade é enfeitiçada, e sou a prisioneira dela. Nenhuma
outra alma teria bastante força, - força de desespero!
- para suportá-la, - para ser protegida e amada por
ele. - Aliás, eu não o imaginava com outra alma: ve-
mos nosso Anjo, nunca o Anjo dos outros, - creio. Eu
estava em sua alma como num palácio que esvaziaram
para que não se visse uma pessoa tão pouco nobre quan-
to nós: eis tudo. Ai de mim! dependia bastante dele.
60
Mas que queria ele com a mínha existência descorada
e covarde? Não a tomaria melhor para mím, a menos
que me fizesse morrer! Tristemente despeitada, disse-
Jhe algumas vezes: "Eu te compreendo". Ele encolhia
os ombros.
"Assim, mínha aflição renovando-se sem cessar, e
achando-me mais conturbada diante de meus próprios
olhos - como ante o olhar de todos quantos tivessem
desejado fixar-me, não estivesse eu para sempre conde-
nada ao esquecimento de todos! - eu tinha cada vez
mais fome de sua bondade. Com seus beijos e abraços
amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que
eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda,
muda, cega. Já estava ficando habituada a isto. Eu nos
v~a como a duas boas crianças, às quais se dera permis-
sao de passear no Paraíso da tristeza. Entendíamo-nos
mutuamente. Emocionados, trabalhávamos juntos. Con-
tudo, após uma penetrante carícia, ele dizia: "Como
.acharás estranho tudo por que passaste, quando eu não
estiver mais aqui. Quando não tiveres mais meus braços
sob tua nuca, nem meu peito para repousares nele, nem
esta boca sobre teus olhos. Pois será preciso que eu parta
um dia, para muito longe. Além do mais é preciso qu~
eu ajude os, outros: é meu dever. Embora isto não seja
nada agradavel. . ., cara alma ... " Imediatamente eu me
imaginava, ele tendo partido, presa de vertigem, precipi-
tada na sombra mais terrível: a morte. Fazia-lhe prome-
ter-me que não me abandonaria. Esta promessa de aman-
te, ele a fez vinte vezes a mím. Era tão frívola quanto
minha frase que lhe dizia: "Eu te compreendo".
"Ah! jamais senti ciúmes dele. Não me deixará creio.
Tomar-se o quê? Não tem uma relação; não trabalha-
rá jamais. Quer viver como um sonâmbulo. Sua bon-
dade e sua caridade, sozinhas, dar-lhe-iam direitos no
mundo real? Por instantes, esqueço o estado miserável
em que caí: ele me tomará forte, viajaremos, caçaremos
nos desertos, dormiremos nas calçadas das cidades des-
conhecidas, sem preocupações ou cuidados. Ou desper-
61
tarei, e as leis e os costumes terão mudado, - graças ao
seu poder mágico, - o mundo, continuando o mesmo,
me deixará entregue aos meus desejos, alegrias, desma-
zelas. Oh! a vida de aventuras que existe nos livros in-
fantis, será ela uma dádiva tua, uma recompensa pelo
muito que sofri? Ele não pode dá-la. Ignoro seu ideal.
Disse-me ter queixas, esperanças: isto não deve relacio-
nar-se comigo. Será que ele fala a Deus? Talvez eu de-
vesse dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo do abis-
mo, e não sei mais rezar.
"Se ele me explicasse suas tristezas, eu as com-
preenderia mais que suas zombarias? Ele me ataca, passa
horas fazendo-me ter vergonha de tudo quanto me emo-
ciona neste mundo, e fica indignado se choro.
"-Vês este elegante rapaz, entrando na bela e cal-
ma residência: chama-se Duval, Dufour, Armando, Mau-
rfo;io, que sei eu? Uma mulher dedicou-se a amar esse
perverso idiota: morreu, agora é certamente uma santa
no céu. Tu me farás morrer como ele fez morrer aquela
mulher. É nosso destino, de nós que somos corações ca-
ridosos... " Ai de mim! Havia dias em que todos os ho-
mens em atividade lhe pareciam os títeres de delírios
grotescos; durante muito tempo ele ria horrivelmente.
- Depois, voltava às suas atitudes de jovem mãe, de
irmã amada. Se fosse menos selvagem, estaríamos sal-
vos! Mas sua doçura também é mortal. Estou subme-
tida a ele. - Ah! estou louca!
"Um dia, talvez, ele desaparecerá maravilhosamen-
te; mas é preciso que eu saiba, se ele deve subir a um
céu, que eu veja algo da assunção de meu amiguinho!"
Que estranho casal!
62
DELíRIOS
ALQUIMIA DO VERBO
A mim. A história de uma de nu"nhas 1oucuras.
Há m~to tempo que eu me vangloriava de ossuir
;o~:sdas pais~gens possíveis, e achava ridículas ~ cele-
n a es da pmtura e da poesia modernas.
Eu amava as pinturas idiotas estof ..
cenários, lonas de saltimbancos tabuletasos ie portais,
!ºri~as populares; a literatura 'forà de zdo~aª~~~s ~-
1greJa, yvros eróticos sem ortografia roman ' d m e
sas avos,.c?ntos de fadas, livrinhos fnfantis c~s e _nos-
lhas, estnb1lhos piegas, ritmos ingênuos. ' operas ve-
. Eu soni:ava_ com cruzadas, viagens de descoberta
C~J_as narraçoes JªI?~is foram feitas, repúblicas sem his-
tonas, guerras relig10sas sufocadas, revoluções de cos-
t~es, deslocamentos de raças e de continentes. eu acre
ditava em todos os encantamentos. · -
Inventei a cor das vogais! - A negro E branco l
vermelho, A azul, U verde. - Regulei a fo~a e o mo~­
mento de cada consoante e, com ritmos instintivos nutri
~- esperan,ça de inventar um verbo poético que serta um
t
rndac~ss1vel a todos os sentidos. Eu me reservava sua
ra uçao.
63
t d Eu escrevia silêncios,
imples es u o.
Foi, antes, s. . , el Fixava vertigens.
noites, anotava o mexpnnuv .
*
* *
a estava eu bem distante
De joelhos na charnec ' ~ideãs Que bebia
, rebanhos e cw. • . 1
Dos passaros, e de aveleiras be as,
No rio envolto em bO~~~i: após 0 meio-dia?
E em névoa morna e i
te Q"se rio infante,
Que podia eu ~e:r :i:os se~ 'voz, céu nublado -
- Relv~:~d:rn~s cabaças amarelas,
Longe 'd algum licor dourado.
A fonte de suor e
b a a3
·oe1hado.
1 de albergue eu lem rav ,
Torta P aca e'ul A-nós escurecer
T pestade no c · r- dia
- em , dos bOsques se per .
Na areia pura a Dagua nos charcos esparzia.
Gelo o vento de eus
. _e não pude beber.
Chorando, eu via o ouro
64
*
* *
t da manhã estival. .
Qua ro de amor permanece. !
o sono
Nos arbustos desapar~e
0 perfume do festival.
Ao sol das Hespérides v~
os carpinteiros, na ro~u:ia
D distante e vasta oficina. -
a Em mangas de camisa estão.
Calma e rugosa solidão .
f ndo os prec10sos
É a deles, aze . céus fantasiosos
Lambris, nos qua~
Os citadinos fitarao.
Deves, Vênus, abandoná-los,
Os teus coroados Amores,
Por esses bons trabalhadores,
De um rei babilônio vassalos.
Banho de mar ao meio-dia
Vão tomar os trabalhadores.
Dá-lhes, Rainha dos Pastores,
Dessa aguardente que alivia.
*
* *
A poética fora de moda desempenhava um bom pa-
pel em minha alquimia do verbo.
Habituei-me à alucinação simples: via realmente
uma l]lesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de
tambores feita por anjos, carruagens nas estradas do
céu, u~~_1)Jií,_Q._I10 fundo de um lago; os monstros, os mis-
térios; um título de comédia musical suscitava terrores
diante de mim.
Depois expliquei meus sofismas mágicos com a alu-
cinação das palavras! · -
Terminei achando sagrada a desordem de meu es-
pírito. Eu era um ocioso, presa de incômoda febre: in-
vejava a felicidade dos animais, - as lagartas, que re-
presentam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono
da virgindade!
Meu caráter tornava-se azedo. Eu dizia adeus ao
mundo, em certos tipos de romances:
CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA
Venha, venha o tempo
Que nos enamora.
De pacientar tanto /
Para sempre esqueço.
65
1'
Temores e dores
Aos céus já se foram.
E a sede malsã
Me obscurece as veias.
Venha, venha o tempo
Que nos enamora.
Assim a campina
Entregue ao olvido,
Extensa, florida,
De incenso e de joios,
Ao zumbir sinistro
Das moscas imundas.
Venha, venha o tempo
Que nos enamora.
Amei o deserto, os pomares abrasados, as lojas de-
cadentes, as bebidas tépidas. Eu me arrastava pelos be-
cos fedorentos e, de olhos fechados, me oferecia ao sol,
deus de fogo.
"General, se ainda há um velho canhão nos teus·
baluartes destroçados, bombardeia-nos com blocos de
terra seca. Investe contra as vitrinas das lojas resplan-
decentes! contra os salões! Faze com que a cidade coma
sua própria poeira. Enferruja as torneiras. Enche os tou-
cadores de ardente poeira de rubis ... "
Oh! a mosca embriagada no mictório da taverna,
apaixonada pela borragem, e dissolvida por um raio de
sol!
66
FOME
Só me agrada almoçar
Comendo pedra e chão.
Apetec&µ-me o ar,
Rocha, ferro, carvão.
J
i
'
Voltai, minhas fomes P .
N · asta1
0 prado dos sons
Atrai o alegre ·
Veneno das câmpanuias.
Co ·
me1 os seixos quebradi
As velhas pedras d 9os,
0 1
as e.rmidas·
~ ca haus dos velhos dil , . ' /
Paes Vindos dos vales esc~;~~~;:>
*
* *
Uiva.o lobo nas folhagens
~uspmdo belas plumagens
e aves fora seu repasto· .
Tal como ele ass1·m .
' me gasto.
Os legumes, as frutas
Esperam só a colheita'
E, a aranha do tapum~
So come violetas.
É preciso que eu durma f
Nos altares de Salomão e erva
Corre a fervura na fem
E se mistura ao rio Cedr_gem,
ªº·
Enfim, ó felicidade ó razão
azul, que é negro, e vi~i d ' eu separava do céu o
turaz. Cheio de alegria ~u ouract~ centelha de luz na-
burlesca e alucinad ' assum!a uma expressão t-
'y
a quanto poss1ve1: ao
/ Ela, a Eternidade
Foi reencontrada.'
É 0 mar misturado
Ao sol.
Cumpre tua jura
A!ma, eternamente
V~va, seja o ardente
Dia ou a noite pura.
67
Ficas livre, então,
De humanos aipoios,
Entusiasmos vãos!
E voas segundo...
Jamais a esperança
E jamais orietur.
Ciência e paciência,
O suplício é certo.
Nem dia seguinte,
Brasas de cetim,
Que vossa paixão
É obrigação.
Foi reencontrada!
- Que? - a Eternidade.
É o mar misturado
Ao sol. )(
*
* *
Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todas as cria-
turas têm uma fatalidade de felicidade: a ação não é
a vida, mas uma maneira de dissipar alguma força, um
depauperamento. A moral é a fraqueza do cérebro.
Parecia-me ter direito a várias outras vidas, em cada
criatura. Este cavalheiro não sabe o que está fazendo:
é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Düµ1te
de vários homens, durante um momento conversei em
voz alta com uma de suas outras vidas. - Assim, amei
um porco.
Nenhum dos sofismas da loucura, - a loucura que
leva ao hospício, - ficou esquecido por mim: eu pode-
ria repeti-los todos, tenho o sistema.
Minha saúde ficou ameaçada. Surgia o terror. Pas-
sava dormindo vários dias e, acordado, continuava os
mais tristes sonhos. Estava maduro para a morte, e por
68
um caminho de perigos minha f
confins do mundo e da Ci , . r~q~eza me levava aos
turbilhões. mena, patna da sombra e dos
. Tive de viajar, para distrair
mdos no cérebro Sob os encantamentos
1 · re o mar que am
avar-me de uma mancha avilt . ava como se fosse
consoladora. Eu tinha sido ante; via erguer-se a cruz
A Felicidade era minha fat ~~a~diçoado pelo arco-íris.
verme; minha vida seri a a e, meu remorso, meu
sa para ser dedicada à af sempr~ demasiadamente imen-
. orça e a beleza
A Felicidade1 Seu d t , ·
ao canto do ga.Io. - ad ~ae, d?ce a morte, advertia-me
- nas mais sombrias cidadt~~mum, no Christus venit_,
ó castelos, ó tempos1
Qual ª alma sem defeitos?
Eu ~iz. 0 mágico estudo
Da llllludível ventura.
Saudemo-la, toda vez
Que cante 0 galo gaulês.
Ah 1 não te· · ·
· rei mais desejos:
Pus em suas mãos minha vida.
Tomou esse encanto alma e
E os esforços dispersou. corpo
ó castelos, ó tempos!
Qu~do se for, ai de mim,
Sera a hora de meu fim..
ó castelos, ó tempos1
*
* *
Isto passou. Sei hoje saudar a beleza.
69
o IMPOSSÍVEL
. h ·nfância a grande estrada
Ah! esta vida de mm ª 1
t ~i...'..·ente sóbrio mais
tod s tempos sobrena ur(:'4,.U.u '
para os o ' lh dos mendigos orgulhoso de
desinteressado que 0 me or. que tolic~ era! - E só
não ter nem pátria nem amigos,
agora observo isso!
_ esses homenzinhos qu.e
- Tive razao em des:p~e~r de uma carícia, paras1-
não perderiam a oport_udm d~ ~assas mulheres, hoje que
tas da limpeza e da sau e -
tão pouco de acordo conosco elas estao.
d d'ns· pois estou
Tive razão em todos os meus es e .
me evadindo!
Evado-me!
Explico-me.
. . "Céu' somos bastante
Ainda ontem eu suspirava. · ·
3
.á tenho tanto
. b ·xo' Quanto a mim,
malditos aqm em ª1
· todos Reconhecemo-
b d 1 conheço-os a ·
tempo neste an o. . dos outros. Desconhece-
nos sempre: e temos ~OJO uns polidos· nossas relações
mos a caridade. _Todavia, somt~,, Ach~ surpreendente?
com o mundo sao bei:i corr7 .in ênuos! - Não esta-
A sociedade! os negociantes
1
..ºtss cgomo nos receberiam?
d d Mas os e e1 o , .
mos esonra os~ l - falsos eleitos, assim
, rabuJentas e fo gazas, , 1
Ha pessoas , . humildade para aborda- os.
precisamos de audac1as-ou - bençoam!
são os únicos eleitos. Nao sao os que ª
70
Tendo recobrado dois vinténs de razão - isto pas-
sa depressa! - vejo que meus incômodos decorrem de
não me ter apercebido bastante cedo de que estamos no
Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que eu creia es-
tar a luz alterada, extenuada a forma, desviado o mo-
vimento. . . Bom! eis que meu espírito quer realmente
encarregar-se de todos os desenvolvimentos cruéis que
o espírito experimentou desde o fim do Oriente... É o
que ele pretende, meu espírito!
... Meus dois vinténs de razão acabaram! - O es-
pírito é autoridade, quer que eu esteja no Ocidente. Seria
preciso fazê-lo. silenciar para concluir como eu gostaria.
Eu mandava para o diabo as palmas dos mártires,
os raios da arte, o orgulho dos inventores, o ardor dos
saqueadores; retornava ao Oriente e à sabedoria primeira
e eterna. - Parece que é um sonho de grosseria indo-
lência!
Contudo, eu não pensava absolutamente no prazer
de escapar aos sofrimentos modernos. Não tinha em
vista a sabedoria bastarda do Alcorão. - Mas não é um
suplício real que, desde essa declaração da ciência, o
cristianismo, o homem se divirta, exiba as evidências,
se encha do prazer de repetir essas provas, e não viva
senão assim? Tortura sutil, piegas; fonte de minhas di-
vagações espirituais. A natureza poderia aborrecer-se,
talvez! O senhor Prudhomme (*) nasceu com o Cristo.
Não é porque cultivamos a bruma! Ingerimos a
febre com os nossos legumes aquosos. E a embriaguez!
e o fumo! e a ign9rância! e as devoções! - Tudo isto
(*) Alusão a um tipo de pequeno burguês nulo e b81Ilal que se ex-
prime através de uma linguagem solene, repleta de lugares-
comuns, e ostentando sempre um alto juízo de si mesmo. Criado
literariamente por Henry Monnier, em Scenes populaires (1830)
e no Mémoires àe Joseph Pruàhomme (1857), exaustivamente
caricaturado e glosado, é tão familiar à vida francesa como o
nosso Conselheiro Acácio, que tanto se lhe assemelha.
71
se acha bastante longe do pensamento, da sabedoria do
Oriente, da pátria primitiva? Por que um mundo mo-
derno, se venenos semelhantes podem ser inventados?
Os fiéis da Igreja dirão: Compreendemos. Mas que-
reis falar do Paraíso. Nada existe para vós na história
dos povos orientais. - É verdade; é no Paraíso que eu
pensava! O que esta pureza das raças antigas significa
para o meu sonho!
Os filósofos: O mundo não tem idade. A humani-
dade se desloca, simplesmente. Estais no Ocidente, mas
sois livres de habitar no vosso Oriente, tão antigo quan-
to queirais que ele o seja, - e morar nele confortavel-
mente. Não sejais um vencido. Filósofos, sois de vosso
Ocidente. ·
Meu espírito, toma cuidado. Nada de meios de sal-
vação violentos. Exercita-te! - Ah! a ciência não pro-
gride bastante para nós.
- Mas me apercebo de que meu espírito dorme.
Se ele estivesse sempre desperto a partir daquele
momento, cedo atingiríamos a verdade, que talvez nos
rodeia com os seus anjos chorando! ... - Se tivesse fi-
cado acordado até este momento, eu não teria cedido
aos instintos deletérios, a uma época imemorial! ...
- Se ele sempre tivesse ficado desperto, eu vogaria
em plena sabedoria! ...
ô pureza! pureza!
Foi este minuto de vigília que me deu a visão da
pureza! - O espírito conduz a Deus!
Dilacerante infortúnio!
72
O RELÂMPAGO
O tr'.1ba~o .humano! é a explosão
quando, llumma meu abismo. que, de vez em
"Nada é vaidadA; rumo à ciência
clama o moderno Eclesiastes, isto é T~e para a frente!"
tudo os cadáveres do . ' do mundo. E con-
- s maus e oc10sos caem b
çao dos outros. . . Ah1 d , . so re o cora-
baixo além da noite. epressa, mais depressa; lá em-
' · , essas recompensas fut te
nas. . . escaparemos delas? uras, e r-
- Que posso fazer? Conhe t
eia é muito lenta Q . _ço o rabalho; e a ciên-
atroa ... eu
0
ve:o b~e ª ?raç3:o an.da a galope e a luz
calor; não precidarão ~·e E ~to sj1mples; e faz muito
obrigação· como vá . rm a a uda. Tenho minha
la de lad~. nos outros, eu me orgulharei em pô-
Minha vida está gasta. Vamos' fin·
mos os vadios ó piedade' E e . t· . Ja~r10s, banque-
sonhando a ' . xis iremos divertindo-nos
mentando-n~~r:sc~n°s:~doosos, univer~os.fantásticos, la~
lt
. as aparenc1as do d
sa imbanco, mendigo artista band"d mun o,
meu leito de hospital' o cheir~ d . I o, - padre! No
rosamente: guardião' dos e mcenso voltou pode-
mártir. . . aromas sagrados, confessor,
Reconheço ali a só did d
infância. Depols ~ quê'r ªAte ucação que recebi na
' · · · · ravessar os meu · t
anos, se os outros vão atravessar os seus s vm e
...
73
Não! não! agora eu me revolto contra a morte! ~
trabalho parece demasiado leve para ,º.meu -~rgulh~.
minha traição ao mundo seria um supllcw mm 0
~u~ta·
No derradeiro momento, eu investiria para a direi '
para a esquerda...
Então, - oh! - cara e pobre alma, a eternidade
estaria perdida para nós!
74
MANHÃ
Não tive eu uma vez uma juventude amável, he-
róica, fabulosa, para ser escrita· em folhas de ouro, -
sorte a valer! Por que crime, por que erro, mereci a
fraqueza atual? Vós que achais que animais dão soluços
de dor, que doentes desesperam, que mortos têm pesa-
delos, tratai de narrar minha queda e meu sono. Quan-
to a mim, posso explicar-me tanto quanto o mendigo
com os seus contínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais
falar!
Contudo, creio ter terminado hoje a narração de
minha temporada no inferno. Era realmente o inferno:
o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu.
No mesmo deserto, à mesma noite, meus olhos can-
sados sempre despertam sob a estrela de prata, sempre,
sem que se emocionem os Reis da vida, os três magos, o
coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das
praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho
novo, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demô·-
nios, o fim da superstição, adorar - os primeiros! -
os primeiros! - o Natal sobre a terra?
O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos,
não amaldiçoemos a vida.
75
ADEUS
Já é o outono! - Mas por que ter saudades de um
eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da cla-
ridade divina, - longe das criaturas que morrem sobre
as estações?
Outono. Nossa barca vogante nas brumas imóveis
ruma para o porto da miséria, a cidade enorme do céu
manchado de fogo e de lama. Ah! os andrajos apodre-
cidos, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil
amores que me crucificaram! Ela não deixará nunca de
existir, essa vampiro que é a rainha de milhões de almas
e de corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me, a
pele roída pela lama e pela peste, os cabelos e as axilas
cheios de vermes, e ainda por cima um gordo verme no
coração, estendido entre os desconhecidos sem idade, sem
sentimento. . . Eu poderia ter morrido lá. . . A terrível
evocação! Execro a miséria.
E temo o inverno porque é a estação do confortol
- Algumas vezes vejo, no céu, praias infinitas co-
bertas de brancas nações em júbilo. Um grande navio
de ouro, acima de mim, agita suas bandeiras multicores
ao sabor das brisas matinais. Criei todas as festas, to-
dos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas
flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Pensei
ter adquirido poderes sobrenaturais. Muito bem! devo
enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma
bela glória de artista e de narrador destruída!
76
Eu! eu que me considerei mago ou · .
qualquer moral voltei ao h- an10, isento de
b . , c ao, com um dever a cumprir
e o ngado a abraçar a áspera realidade! C A
. ampones!
. Ser~ que estou enganado? ·
mim, a irmã da morte? a candade seria, para
Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado
mentira. E vamos embora. de
Nenhuma mão amiga porém! e onde encontrar o
socorro? '
*
* *
Sim, a hora nova é pelo menos muito severa.
Pois posso dizer que conquistei a vitória.
d~ de~tes, os silvos de fogo, os suspiros pestil~;:;g:~
a rfl;n .am. Desfazem-se todas as lembran as im
As ultimas queixas se afastam de mim ç . ~das.
mendigos, dos salteadores, dos amigos d~ mo~;eJ~ ~s
dos aqueles_ que foram passados para trás. - Ml:t -
se eu me vingasse! a i os,
Devemos ser totalmente modernos.
. r~da de cânti~os: não arredar o pé do terreno con-
qms a o. Dura noite! o sangue ressequido fume a no
meu rosto, e nada tenho atrás de mim - g
horror b t a nao ser este
toso ar uso!··· O combate espiritual é tão brutal
{.uan, o a batalh~ entre os homens; mas a visão da Jus-
iça e o prazer so de Deus.
Entretanto é · 'li R
d . , a v1g1 a. ecebamos todos os iní1uxos
d
e v1dgor e de ternura real. E, ao romper da aurora arrna-
os e uma grande ·A • '
didas cidades. pac1enc1a, entraremos nas esplên-
77
Falava a respeito de uma mão amiga? Já é uma
grande vantagem que eu possa rir dos velhos amores
ilusórios, e fazer com que se envergonhem esses casais
mentirosos, - vi o inferno das mulheres, lá embaixo; -
e me será permitido possuir a verdade em uma alma e
um corpo.
Abril-agosto 1873.
í8
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Uma temporada no inferno de Arthur Rimbaud

  • 1. Coordenação de Flávio Moreira da Costa OS TRABAI.iHADORES DO MAR Victor Hugo TRÊS CONTOS Gustave Flaubert RECORDAÇÕES DA CASA DOS MORTOS F. Dostoievski Tradução, introdução e notas L:€DO IVO 3~ EDIÇÃO Francisco Alves ) f
  • 3. ( Outrora, se bem me lembro, mi~ha vida era um festim onde se abriam todos os corações, onde todos os vinhos corriam. Uma noite, sentei a Beleza nos meus joelhos. - E achei-a amarga. - E injuriei-a. Armei-me contra a justiça. Fugi. ó feiticeiras, ó miséria, ó ódio, a vós é que meu tesouro foi confiado. Consegui fazer desvanecer-se em meu espírito toda a esperança humana. Sobre toda alegria, para estran- gulá-la, dei o salto surdo da fera. Chamei os carrascos para, perecendo, morder a co- ronha de seus fuzis. Chamei as calamidades, para me sufocar com a areia, com o sangue. O infortúnio foi o meu deus. Estendi-me na lama. Sequei-me ao ar do crime. E preguei boas peças à loucura. E a primavera me trouxe o pavoroso riso do idiota. Ora, muito recentemente, quando eu estava quase nas últimas, pensei em procurar a chave do antigo fes- tim, onde eu recobraria talvez o apetite. A caridade é essa chave. - Esta inspiração prova que sonhei. "Permanecerás hiena, etc ... " exclamou o demônio que me coroou de tão gentis papoulas. "Ganha a morte 45
  • 4. com todos os teus apetites, e o teu egoísmo e todos os pecados capitais." Ah! foi 0 que fiz e por demais! - Todavia, ~ar.o satã, por favor, tende para mim um olhar menos irn- tado! e enquanto ficais à espera de u~~s tantas ~ovar­ diazinhas em atraso, e já que apreciais no ~scntor a ausência das faculdades descritivas ou instrutivas, des- taco para vós estas poucas hediondas folhas de meu caderno de réprobo. 46 '1 SANGUE RUIM De meus antepassados gauleses tenho os olhos azuis, a fronte estreita, a falta de jeito na luta. Penso que mi- nha maneira de vestir é tão bárbara quanto a deles. Mas não unto os cabelos. Os Gauleses eram os esfoladores de animais, os quei- madores de ervas mais ineptos de seu tempo. Tenho deles: a idolatria e o amor ao sacrilégio; -- oh! todos os vícios, cólera, luxúria, - magnífica, a luxúria; - sobretudo mentira e indolência. Tenho horror a todos os ofícios. Patrões e operários, todos são camponeses; ignóbeis. A mão que segura a pena vale tanto quanto a que empurra o arado. - Que século manual! - Não usarei jamais as mãos. Além do mais a domesticidade conduz a muito longe. Os mendi- gos, com a sua honradez, exasperam-me. Os criminosos repugnam-me como se fossem castrados: quanto a mim, estou intacto, e isto pouco me importa. Todavia! quem fez minha língua de tal modo pér- fida que ela orientou e protegeu até aqui minha indo- lência? Sem me servir de nada, nem mesmo de meu corpo, e mais ocioso que o sapo, tenho vivido em toda parte. Não há uma família da Europa que eu não co- nheça. - Falo, naturalmente, de famílias como a minha, que devem tudo à Declaração dos Direitos do Homem. - Conheci cada filho de família! 47
  • 5. * * * Tivesse eu antecedentes num ponto qualquer da história da França! Mas não, nada. É evidente que sempre fui de uma raça inferior. Não posso compreender a revolta. Minha raça não se rebelou jamais, a não ser para a pilhagem: como os lo- bos que atacam o animal que não mataram. _Evoco a história da França, filha mais velha da Igreja. Devo ter feito, como camponês, a viagem à Terra Santa; tenho na memória as estradas das planícies suá- bias, panoramas de Bizâncio, muralhas de Jerusalém; o culto de Maria, a compaixão do Crucificado despertam em mim entre mil magias proianas. - Sentei-me, le- proso, sobre os vasos quebrados e as urtigas, junto a um muro roído pelo sol. - Mais tarde, cavalariano, devo ter dormido ao relento, nas noites da Alemanha. Ah! mais ainda: danço o sabá numa rubra clareira, entre velhas e crianças. Não me lembro de nada que ultrapasse esta terra e o cristianismo. Jamais terminaria de rever-me neste pas- sado. Sempre só, porém; sem família; além do mais, que língua falaria? Não me revejo nunca nos concílios do Cristo; nem nas assembléias dos Senhores, - repre- sentantes do Cristo. Que era eu no século passado: só hoje é que torno a encontrar-me. Não mais vagabundos, nem guerras va- gas. A raça inferior espalhou-se por toda parte - o povo, como se diz, a razão; a nação e a ciência. Oh! a ciência! Tudo recomeçou. Para o corpo e a alma, - o viático, - tem-se a medicina e a filosofia, - os remédios de boas mulheres e as canções populares bem arrumadas. E os divertimentos dos príncipes e os 48 ln~~~ :tn:l~e:! .~~oibiam! Geografia, cosmografia, mecâ- A ciência, a nova nobreza! O progresso O mundo marcha! Por que não haveria ele de girar? · É a visão dos númer En · Espírito. Falo com a certe~~ de :irruru;amlo-nos para o do e não sabend . oracu o. Compreen- ferirta calar-me. o explicar-me sem palavras pagãs, pre- * * * e O ~angue_pagão retorna! O Espírito está perto que Cristo nao me aJ·uda d d 'por- --a minha alma? Ah1 E ' an ° nobreza e liberdade · · o vangelho passou1 E ,o Evangelho! · o vangelho! -tod Espetro J?eus avidamente. Sou de raça inferior a a e ermdade. , por Aqui estou na praia arm . se iluminem à ~oite. Meu dº ~nc8:1'1ª· ~ue. as cidades -pa. O ar marinh . ,1a rmmou. deixo a Euro- perdidos bronze~ãdu~x::ra meus pulmões; os climas ·-caçar, sobretudo fumar be~ p~e. Nadar, pisar a erva; sem metal derretido ' er co:es fortes como se fos- ·passados em torno dofu~~~o faziam esses caros ante- Voltarei, com uma saúde de ferro a ele e . .,aa, o olhar selvagem· pela minha ', p seur~1- que sou de ' mascara, pensarao brutal. As m~::r;:~~~~:·d~:~~~ !~f~~:so e r~tornam dos países quentes. Envolver- · q~e -cios políticos. Salvo. me-e1 nos nego- . Agora estou amaldiçoado, tenho horror à minha ,- tria. O melhor a fazer é dormir bAbed . pa , e o, na praia. 49
  • 6. ,; * * * , . Retomemos os caminhos daqui, Não ha part1d,a.. - vício ue deitou suas raízes de carregando meu v1c~odo desdeqa idade da razão - que sofrimento ao meu a .º' . a me ao chão e me arrasta. sobe ao céu, bate em mim, JOg - , . . A . ,ltima timidez. Esta dito. A· última mocencia e ªdu tos e minhas traições. Não expor ao mundo meus esgos marcha, o fardo, o deserto, o desgosto vamos! A e a cólera. ? ~ ? A ue animal é preciso adorar. A quem me al~gar. lnvestir? Que corações que- Contra que santa. imdagemsustentar? - Em que sangue brarei? Que mentira evo caminhar? lh r a fazer é ter cuidado com a justiça. - O me o imento simples, - erguer, com A vida dura, o er:ibrutec a de um esquife, acomodar- º punho endurecido, adta~p ·m não haverá velhice nem se nele morrer sufoca o. ss1A ' perigo;: o terror não é frances. - Ahna-~ ~:pato:::~et~i:n~d~m~~o:~~:ep~:~ reço, a a perfeição. . . - , minha caridade maravilhosa!. ó minha abnegaçao, o d . ' aqui neste mundo, to avia. . b ·11 De profundis Domine' como sou im ec1 . * * * . ·rava o sentenciado intratá- Criança amd~, eu ad~echam as portas da prisão; vel sobre quem sempre se pensões que ele teria san- visitava as estalagens e as. . com 0 seu pensamento· tificado ao hospedar-se nelas, via 50 o céu azul e o trabalho florido do sua fatalidade nas cidades. Ele tinha mais força que um san- to, mais bom senso que um viajante - e ele, só ele! como testemunho de sua glória e de sua razão. Nas estradas, em noites de inverno, sem abrigo, sem roupas, sem pão, uma voz me oprimia o coração gela- do: "Fraqueza ou força: vê, é a força. Não sabes nem para onde vais, nem por que vais; entra em toda parte, responde a tudo. Não te matarão mais do que se fosses um cadáver." De manhã eu tinha o olhar tão vago, e a fisionomia tão morta que não me viram talvez aqueles com quem m~ encontrei. Nas cidades a lama me aparecia subitamente ver- melha e negra, como um espelho quando uma lâmpada circula no quarto vizinho, como um tesouro na floresta! Boa sorte, gritava, e via um mar de chamas e de fu- maça no céu; e, à esquerda, à direita, todas as riquezas ardendo como um bilhão de raios. Mas a orgia e a camaradagem das mulheres me eram vedadas. Nem mesmo um companheiro. Eu me via diante de uma turba exasperada, defronte ao pelotão de fuzilamento, chorando a infelicidade de eles não me te- rem podido compreender, e perdoando! - Como Joana d'Arc! - "Padres, professores, patrões, enganai-vos en- tregando-me à justiça. Jamais pertenci á este povo; ja- mais fui cristão; sou da raça que cantava no suplício; não compreendo as leis; não tenho o senso moral, sou um bruto; vós vos enganais... " Sim, tenho os olhos fechados à vossa luz. Sou um animal, um negro. Contudo, posso ser salvo. Sois falsos negros, vós, maníacos, sanguinários,, avarentos. Mer- cador, és um negro; magistrado, és um negro; general, és um negro; imperador, velha sarna, és um negro; be- beste um licor de contrabando, da fábrica de Satã. - Este povo está inspirado pela febre e pelo câncer. En- fermos e velhos são de tal modo respeitáveis que pe- dem para morrer em água fervente. - O melhor a fazer 51
  • 7. . . d loucura ronda em busca é deixar este continente, ~n ~ ª. Entro no verdadeiro de reféns para estes m1seraveis. reino dos filhos de Cam. . ? onheço-me a mim mes- Ainda conheço a naturez:. cltei os mortos no meu mo? - Chega de palavras. 1~ça dança dança! Nem ventre. Gritos, tambor, dança, ho~ens br~ncos desem- sequer vejo a hora em .que, os barcando, cairei no vazio. Fome, sede, gritos, dança, dança, dança, dança. * * * O h-0 1 É preciso sub- os brancos desembarcam. can a . meter-se ao batismo, andar vestido, trabalhar. Coraça -o o toque da graça. Ah! não o Recebi no tinha previsto! , . . . 1 0 dias vão ser face1s para Jamais prat~quei 0 m~ ·se:á poupado. Não terei tido mim, o arrependimento m . morta para o bem, na qual os tormentos da alma quase orno os círios funerários. d ovo a luz severa c sobe e n . d f 'lia esquife prematuro cober- 0 desti:io ~o fllh? .e amise~ dúvida, a devassidão é to de llmp1d~s. la?n~:;s~·do· é preciso jogar de lado a estúpida, o v1c1~ e e~ ~~1 h~ra da dor pura é que o re- podridão. Todavia, so batado como uma lógio deixará de. tocar! Vou s~r a;;~uecido de todas as criança, para bnncar no para1so, desgraças! . ºd ? impossível dormir en- Depressa! há outras Vl as. - 'blico Só . A · eza sempre foi um bem pu · tre nquezas. nqu d ciência. Vejo que a o amor divino concede as chav:~ u~o de bondade. Adeus, natureza não passa de um espe ac quimeras, idéias, erros! · lva- 0 canto judicioso dos anjos ergue-se do navio sa do , dº . Dois amores! posso morrer dor: e o amor IV1nO. - 52 amor terrestre, morrer de devotamento. Deixei almas cujo sofrimento aumentará com a minha partida. Vós me escolhestes entre os náufragos; são meus amigos os que ficam? Salvai-os! A razão nasceu em mim. O mundo é bom. Aben- çoarei a vida. Amarei meus irmãos. Não são mais pro- messas infantis. Nem a esperança de escapar à velhicv e à morte. Deus fez minha força, e eu louvo Deus. * * O tédio não é mais meu amor. O furor, a devassi- dão, a loucura, dos quais conheço todos os impulsos e calamidades - todo o meu fardo foi arriado. Apreciemos sem vertigens a extensão de minha inocência. Não serei mais capaz de pedir a consolação de uma bastonada. Não creio que esteja numa festa nupcial, ten- do Jesus Cristo como sogro. Não sou prisioneiro de minha razão. Disse: Deus. Quero a liberdade na salvação: como obtê-la? Os gos- tos frívolos deixaram-me. Não tenho mais necessidade de abnegação ou de amor divino. Não lamento o século dos corações sensíveis. Cada um tem sua razão, desprezo e caridade: guardo meu lugar no alto desta angélica escala de bom senso. Quanto à felicidade estabelecida, doméstica ou não. . . não, não posso. Sou muito dissipado, muito fra- co. A vida floresce pelo trabalho, velha verdade: no meu caso, minha vida não é bastante pesada, ela voa e flutua longe, acima da ação, esse precioso centro do mundo. Que solteirona estou me tornando, perdendo a co- ragem de amar a morte! 53
  • 8. edesse a calma celestial e aérea, se Deus me cone os santos' for- - omo os antigos santos. - _ · . a oraçao, - c artistas de uma espécie nao mrus tes! os anacoretas, necessária! Farsa contínua! A vida é uma farsa Minha inocência me faria chorar. todos devem representar. * * * Basta! eis a punição. - Para a frente! _ . as têmporas latejam! A A.h! os pulmoes qu;:mamp~r este sol! o coração ... noite rola em meus o os, os membros .. · b te? Sou fraco! os outros Ir para para o com a . tempo! ... avançam. Os equipamentos, as armas. . . o • 1 Lá' ou me entrego. - Co- Fogo! fogo sobre rmm. . diante das patas dos vardesl - Eu me mato! Jogo-me cavalos! Ah! ... _ Habituar-me-ei a isto. · h da honra' Seria a vida francesa, o carmn o . * * * 54 NOITE INFERNO Traguei um bom gole de veneno. - Seja três vezes abençoada minha resolução! - Minhas entranhas ar- dem. A violência do veneno contrai-me os membros, des- figura-me, arroja-me ao chão. Morro de sede, sufoco, não posso gritar. É o inferno, as penas eternas! Vede como o fogo se levanta! Queimo-me, como convém. Vai, de- mônio! Eu percebera a conversão ao bem e à felicidade, a salvação. Possa eu descrever a visão, o ar do inferno não tolera os hinos! Eram milhares de criaturas encan- tadoras, um doce concerto espiritual, a força e a paz, as nobres ambições, e que mais? As nobres ambições! E é ainda a vida! - Se a danação é eterna! Um homem que se mutila deliberadamente é um danado, não é? Creio estar no inferno, então estou nele. É a exe- cução do catecismo. Sou escravo do meu batismo. Pais, fizestes a minha desgraça, e também a vossa. Pobre ino- cente! - O inferno não pode investir contra os pagãos. - É ainda a vida! Mais tarde, serão mais profundas as delícias da danação. Um crime, depressa, que posso cair no vácuo, por imposição da lei humana. Fica em silêncio, cala-te! ... Aqui é a vergonha, a reprovação: Satã diz que o fogo é ignóbil, e que minha cólera é terrivelmente estúpida. - Basta! ... Erros a 'i5
  • 9. que me induziram, magias, perfumes falsificados, m~-­ sicas pueris. - E dizer que possuo a verdade, que ve30 a justiça: tenho um julgamento são e firme, estou pron·· to para a perfeição. . . Orgulho. - Meu couro cabe- ludo se resseca! Piedade! Senhor, tenho medo. Tenho sede, tanta sede! Ah! a infância, a relva, a chuva,? lag? sobre as pedras o luar quando o sino tocava meia-noz- , M.' te ... o diabo está no campanário, nessa hora. ana. Virgem Santa! ... - Minha estupidez causa-me horror. Lá embaixo, não estão almas honestas, que me de- sejam o bem? ... Vinde ... Tenho um travesseiro sob:e a boca elas não me ouvem, são fantasmas. Além do mais, ~ , . ninguém pensa nunca nos outros. Não se aproximem de mim. Cheiro a carne tostada, é certo. As alucinações são inumeráveis. É, sem dúvida, o que sempre tive: falta de fé na história, o esqueci~en~o dos princípios. Silenciarei sobre isto: poetas e VlSlona- rios ficariam enciumados. Sou mil vezes o mais rico, se- jamos avaros como o oceano. Isto, agora! o relógio da vida acabou de parar. Não estou mais no mundo. - A teologia é uma coisa séria, o inferno está certamente embaixo - e o céu no alto. - Êxtase, pesadelo, sono em um ninho de chamas. Quantas burlas na vigília campestre. . . Satã, Fer- dinando, corre com as sementes selvagens... Jesus ca- minha sobre as sarças purpúreas, sem curvá-las... Je- sus caminhava sobre as águas irritadas. À luz da lanter- na, ele nos surgiu de pé, de branco e de trigueiras tran- ças, no seio de uma onda de esmeralda... Vou desvendar todos os mistérios: mistérios religio- sos ou naturais, morte, ;nascimento, futuro, passado, cosmogonia, o nada. Sou mestre em fantasmagorias. Escutai! ... Tenho todos os talentos! - Não há ninguém aqui, e há alguém: eu não gostaria de distribuir meu tesouro. 56 - Querem cantos negros, danças de huris? Querem que eu desapareça, mergulhe em busca do anel? Querem? Fabricarei ouro, remédios. Confiai em mim, então, a fé alivia, guia, cura. Vin- de, todos - até as criancinhas - que eu vos posso con- solar ~ entre vós distribuir seu coração, - o coração mar~v1lhoso!. - ~obres homens trabalhadores! Não peço oraçoes; serei fellz aipenas com a vossa confiança. - E pensemos em mim. Isto me faz lamentar pou- co o mundo. Tenho a sorte de não sofrer mais. Minha vida não foi senão doces loucuras, o que é lamentável. Ora isso! façamos todas as caretas imagináveis. Estamos, decididamente, fora do mundo. Não se ouve nenhum som. Meu tato desapareceu. Ah! meu cas- telo, minha porcelana de Saxe, meu bosque de salguei- ros. As tardes, as manhãs, as noites, os dias. . . Como estou cansado! . · Eu deveria ter um inferno para a minha cólera, um mferno para o meu orgulho, - e o inferno da carícia· um concerto de infernos. 1 ' Morro de cansaço. É o túmulo, vou-me para os ver- mes, horror dos horrores! Satã, farsante, queres dissol- ver-me com os teus encantos! Protesto. Protesto! um golpe de forcado, uma gota de fogo. · Ah! voltar de novo à vida! Lançar os olhos sobre nossas monstruosidades. E este veneno, este beijo mil vezes maldito! Minha fraqueza, a crueldade do mundo! Meu Deus, piedade, Qcultai-me, não estou em condições de proteger-me! - Estou escondido e não o estou. É o fogo que se ergue, com o seu danado. 57
  • 10. DELíRIOS I VIRGEM LOUCA o esposo infernal Confissão de um companheiro de in- Ouçamos a femo: - useis a con- "ó divino Esposo, meu Senhor, nao rec did f. -o da mais triste de vossas servas. Estou per a. issa ºd 1 Estou bêbeda. Estou impura. Que VI a. "Perdão divino Senhor, perdão! Ah! perdã~. Quan- tas lágrima;! E mais tarde, quantas lágrimas amda, es- pero! "Mais tarde, conhecerei o divino Espos?! Nasci ~ub­ missa a Ele. - O outro pode bater em nnm agora. "Atualmente, estou no fundo do .mundo! ó~~~~ . ' não não sois minhas amigas ... Jamais armgas · · · · ' Q t idez1 lírios ou torturas semelhantes . . . ue es up · "Ah' sofro, grito. Sofro realmente. Entretanto, tu~o me é pe~mitido, a mim que carrego o desprezo dos mais desprezíveis corações. "Enfim façamos esta confidência, que posso repe- tir vinte ve~es mais - tão morna e insignificante é ela! 58 "Sou escrava do Esposo infernal, aquele que levou à perdição as virgens loucas. É realmente um demônio. Não é um espectro nem um Quanto a mim, que perdi a sabedoria, e estou danada e morta para o mundo, - não me matarão! - Como o descrever para vós! Não sei mais nem falar. Estou de tenho medo. Um pouco de frescura, Senhor, por favor, recidamente! enca- "Estou viúva ... - Eu estava viúva ... - mas sim, fui bem respeitável antigamente, e não nasci para tor- nar-me um esqueleto! ... - Ele era quase uma crian- ça ... Suas misteriosas delicadezas tinham-me seduzido. " ' Esqueci todos os meus deveres humanos para segui-lo. Que vida! A verdadeira vida está ausente. Não estamos no mundo. Vou para onde ele vai, é preciso. E muitas vezes eu, a pobre alma, sofro a investida da cólera que ele lança contra mim. O Demônio! - É um demônio, sabeis, não é um homem. "Ele disse: "Não amo as mulheres: é notório que o amor está para ser reinventado. Tudo o que elas po- dem querer é uma situação segura. A posição alcança- da, coração e beleza são postos de lado: só resta hoje o frio desdém, o alimento da vida conjugal. Então vejo, desde o primeiro instante devoradas por brutos sensí- veis como fogueiras, mulheres dotadas do signo da feli- cidade, e das quais eu poderia fazer boas camaradas ... " "Eu o escuto fazendo da infância uma glória, da crueldade um encanto. "Sou de uma raça longínqua: meus pais eram escandinavos: eles se trespassavam as costas, bebiam o próprio sangue. - Farei incisões por todo o corpo, tatuar-me-ei, quero tornar-me horroroso como um Mongol: verás, uivarei pelas ruas. Quero tor- nar-me louco de raiva. Jamais me mostres jóias, eu me arrastaria. pelo chão e me contorceria sobre o tapete. Minha riqueza, eu a quereria toda manchada de san- gue. Jamais trabalharei ... " Várias noites, seu demônio agarrando-me, rolávamos juntos, eu lutava com ele! 59
  • 11. Muitas vezes, à noíte, ele se posta, bêbedo, nas ruas ~u nas casas, para assustar-me mortalmente. - "Torce~ao realmente meu pescoço; será "repelente". Oh! esses dias em que ele quer andar ostentando um ar crimínoso! "As vezes ele fala, numa espécie de gíria suavizada, da morte que traz o arrependimento, dos infelizes _que realmente existem, dos trabalhos penosos, das partidas que despedaçam os corações. Nas tavernas onde nos em- bebedávamos, ele chorava, considerando aqueles que nos rodeavam, míserável rebanho. Nas ruas negras, ele le- vantava do chão os bêbedos. Possuía a piedade de uma mãe perversa pelos seus filhinhos. - Era gracioso como uma garota de catecismo. - Fingia andar. informado a respeito de tudo, comércio, arte, medicina..Eu o seguia, pois era preciso! "Eu via todo o cenário de que ele mentalmente se cercava: roupas, lençóis, móveis; emprestava-lhe armas, e um outro aspecto. Eu via tudo o que lhe chamava a atenção, como ele teria querido criar para si mesmo. Quando ele me parecia estar com o espírito inerte, eu 0 seguia, eu, nas ações estranhas e complicadas, longe, boas ou más; estava convicta de jamais penetrar em seu mundo. Junto ao seu querido corpo adormecido, quan- tas noites passei acordada, querendo saber porque ele queria tanto evadir-se da realidade. Jamais um homem teve semelhante desejo. Eu reconhecia, - sem temer por ele, - que podia ser um sério perigo para a socie- dade. - Ele tem, talvez, segredos para mudar a vida? Não, só faz procurá-los, replicava eu. Enfim, sua cari- dade é enfeitiçada, e sou a prisioneira dela. Nenhuma outra alma teria bastante força, - força de desespero! - para suportá-la, - para ser protegida e amada por ele. - Aliás, eu não o imaginava com outra alma: ve- mos nosso Anjo, nunca o Anjo dos outros, - creio. Eu estava em sua alma como num palácio que esvaziaram para que não se visse uma pessoa tão pouco nobre quan- to nós: eis tudo. Ai de mim! dependia bastante dele. 60 Mas que queria ele com a mínha existência descorada e covarde? Não a tomaria melhor para mím, a menos que me fizesse morrer! Tristemente despeitada, disse- Jhe algumas vezes: "Eu te compreendo". Ele encolhia os ombros. "Assim, mínha aflição renovando-se sem cessar, e achando-me mais conturbada diante de meus próprios olhos - como ante o olhar de todos quantos tivessem desejado fixar-me, não estivesse eu para sempre conde- nada ao esquecimento de todos! - eu tinha cada vez mais fome de sua bondade. Com seus beijos e abraços amigos, era sem dúvida num céu, num céu sombrio, que eu entrava, e onde desejaria ser deixada, pobre, surda, muda, cega. Já estava ficando habituada a isto. Eu nos v~a como a duas boas crianças, às quais se dera permis- sao de passear no Paraíso da tristeza. Entendíamo-nos mutuamente. Emocionados, trabalhávamos juntos. Con- tudo, após uma penetrante carícia, ele dizia: "Como .acharás estranho tudo por que passaste, quando eu não estiver mais aqui. Quando não tiveres mais meus braços sob tua nuca, nem meu peito para repousares nele, nem esta boca sobre teus olhos. Pois será preciso que eu parta um dia, para muito longe. Além do mais é preciso qu~ eu ajude os, outros: é meu dever. Embora isto não seja nada agradavel. . ., cara alma ... " Imediatamente eu me imaginava, ele tendo partido, presa de vertigem, precipi- tada na sombra mais terrível: a morte. Fazia-lhe prome- ter-me que não me abandonaria. Esta promessa de aman- te, ele a fez vinte vezes a mím. Era tão frívola quanto minha frase que lhe dizia: "Eu te compreendo". "Ah! jamais senti ciúmes dele. Não me deixará creio. Tomar-se o quê? Não tem uma relação; não trabalha- rá jamais. Quer viver como um sonâmbulo. Sua bon- dade e sua caridade, sozinhas, dar-lhe-iam direitos no mundo real? Por instantes, esqueço o estado miserável em que caí: ele me tomará forte, viajaremos, caçaremos nos desertos, dormiremos nas calçadas das cidades des- conhecidas, sem preocupações ou cuidados. Ou desper- 61
  • 12. tarei, e as leis e os costumes terão mudado, - graças ao seu poder mágico, - o mundo, continuando o mesmo, me deixará entregue aos meus desejos, alegrias, desma- zelas. Oh! a vida de aventuras que existe nos livros in- fantis, será ela uma dádiva tua, uma recompensa pelo muito que sofri? Ele não pode dá-la. Ignoro seu ideal. Disse-me ter queixas, esperanças: isto não deve relacio- nar-se comigo. Será que ele fala a Deus? Talvez eu de- vesse dirigir-me a Deus. Estou no mais profundo do abis- mo, e não sei mais rezar. "Se ele me explicasse suas tristezas, eu as com- preenderia mais que suas zombarias? Ele me ataca, passa horas fazendo-me ter vergonha de tudo quanto me emo- ciona neste mundo, e fica indignado se choro. "-Vês este elegante rapaz, entrando na bela e cal- ma residência: chama-se Duval, Dufour, Armando, Mau- rfo;io, que sei eu? Uma mulher dedicou-se a amar esse perverso idiota: morreu, agora é certamente uma santa no céu. Tu me farás morrer como ele fez morrer aquela mulher. É nosso destino, de nós que somos corações ca- ridosos... " Ai de mim! Havia dias em que todos os ho- mens em atividade lhe pareciam os títeres de delírios grotescos; durante muito tempo ele ria horrivelmente. - Depois, voltava às suas atitudes de jovem mãe, de irmã amada. Se fosse menos selvagem, estaríamos sal- vos! Mas sua doçura também é mortal. Estou subme- tida a ele. - Ah! estou louca! "Um dia, talvez, ele desaparecerá maravilhosamen- te; mas é preciso que eu saiba, se ele deve subir a um céu, que eu veja algo da assunção de meu amiguinho!" Que estranho casal! 62 DELíRIOS ALQUIMIA DO VERBO A mim. A história de uma de nu"nhas 1oucuras. Há m~to tempo que eu me vangloriava de ossuir ;o~:sdas pais~gens possíveis, e achava ridículas ~ cele- n a es da pmtura e da poesia modernas. Eu amava as pinturas idiotas estof .. cenários, lonas de saltimbancos tabuletasos ie portais, !ºri~as populares; a literatura 'forà de zdo~aª~~~s ~- 1greJa, yvros eróticos sem ortografia roman ' d m e sas avos,.c?ntos de fadas, livrinhos fnfantis c~s e _nos- lhas, estnb1lhos piegas, ritmos ingênuos. ' operas ve- . Eu soni:ava_ com cruzadas, viagens de descoberta C~J_as narraçoes JªI?~is foram feitas, repúblicas sem his- tonas, guerras relig10sas sufocadas, revoluções de cos- t~es, deslocamentos de raças e de continentes. eu acre ditava em todos os encantamentos. · - Inventei a cor das vogais! - A negro E branco l vermelho, A azul, U verde. - Regulei a fo~a e o mo~­ mento de cada consoante e, com ritmos instintivos nutri ~- esperan,ça de inventar um verbo poético que serta um t rndac~ss1vel a todos os sentidos. Eu me reservava sua ra uçao. 63
  • 13. t d Eu escrevia silêncios, imples es u o. Foi, antes, s. . , el Fixava vertigens. noites, anotava o mexpnnuv . * * * a estava eu bem distante De joelhos na charnec ' ~ideãs Que bebia , rebanhos e cw. • . 1 Dos passaros, e de aveleiras be as, No rio envolto em bO~~~i: após 0 meio-dia? E em névoa morna e i te Q"se rio infante, Que podia eu ~e:r :i:os se~ 'voz, céu nublado - - Relv~:~d:rn~s cabaças amarelas, Longe 'd algum licor dourado. A fonte de suor e b a a3 ·oe1hado. 1 de albergue eu lem rav , Torta P aca e'ul A-nós escurecer T pestade no c · r- dia - em , dos bOsques se per . Na areia pura a Dagua nos charcos esparzia. Gelo o vento de eus . _e não pude beber. Chorando, eu via o ouro 64 * * * t da manhã estival. . Qua ro de amor permanece. ! o sono Nos arbustos desapar~e 0 perfume do festival. Ao sol das Hespérides v~ os carpinteiros, na ro~u:ia D distante e vasta oficina. - a Em mangas de camisa estão. Calma e rugosa solidão . f ndo os prec10sos É a deles, aze . céus fantasiosos Lambris, nos qua~ Os citadinos fitarao. Deves, Vênus, abandoná-los, Os teus coroados Amores, Por esses bons trabalhadores, De um rei babilônio vassalos. Banho de mar ao meio-dia Vão tomar os trabalhadores. Dá-lhes, Rainha dos Pastores, Dessa aguardente que alivia. * * * A poética fora de moda desempenhava um bom pa- pel em minha alquimia do verbo. Habituei-me à alucinação simples: via realmente uma l]lesquita no lugar de uma fábrica, uma escola de tambores feita por anjos, carruagens nas estradas do céu, u~~_1)Jií,_Q._I10 fundo de um lago; os monstros, os mis- térios; um título de comédia musical suscitava terrores diante de mim. Depois expliquei meus sofismas mágicos com a alu- cinação das palavras! · - Terminei achando sagrada a desordem de meu es- pírito. Eu era um ocioso, presa de incômoda febre: in- vejava a felicidade dos animais, - as lagartas, que re- presentam a inocência dos limbos, as toupeiras, o sono da virgindade! Meu caráter tornava-se azedo. Eu dizia adeus ao mundo, em certos tipos de romances: CANÇÃO DA TORRE MAIS ALTA Venha, venha o tempo Que nos enamora. De pacientar tanto / Para sempre esqueço. 65
  • 14. 1' Temores e dores Aos céus já se foram. E a sede malsã Me obscurece as veias. Venha, venha o tempo Que nos enamora. Assim a campina Entregue ao olvido, Extensa, florida, De incenso e de joios, Ao zumbir sinistro Das moscas imundas. Venha, venha o tempo Que nos enamora. Amei o deserto, os pomares abrasados, as lojas de- cadentes, as bebidas tépidas. Eu me arrastava pelos be- cos fedorentos e, de olhos fechados, me oferecia ao sol, deus de fogo. "General, se ainda há um velho canhão nos teus· baluartes destroçados, bombardeia-nos com blocos de terra seca. Investe contra as vitrinas das lojas resplan- decentes! contra os salões! Faze com que a cidade coma sua própria poeira. Enferruja as torneiras. Enche os tou- cadores de ardente poeira de rubis ... " Oh! a mosca embriagada no mictório da taverna, apaixonada pela borragem, e dissolvida por um raio de sol! 66 FOME Só me agrada almoçar Comendo pedra e chão. Apetec&µ-me o ar, Rocha, ferro, carvão. J i ' Voltai, minhas fomes P . N · asta1 0 prado dos sons Atrai o alegre · Veneno das câmpanuias. Co · me1 os seixos quebradi As velhas pedras d 9os, 0 1 as e.rmidas· ~ ca haus dos velhos dil , . ' / Paes Vindos dos vales esc~;~~~;:> * * * Uiva.o lobo nas folhagens ~uspmdo belas plumagens e aves fora seu repasto· . Tal como ele ass1·m . ' me gasto. Os legumes, as frutas Esperam só a colheita' E, a aranha do tapum~ So come violetas. É preciso que eu durma f Nos altares de Salomão e erva Corre a fervura na fem E se mistura ao rio Cedr_gem, ªº· Enfim, ó felicidade ó razão azul, que é negro, e vi~i d ' eu separava do céu o turaz. Cheio de alegria ~u ouract~ centelha de luz na- burlesca e alucinad ' assum!a uma expressão t- 'y a quanto poss1ve1: ao / Ela, a Eternidade Foi reencontrada.' É 0 mar misturado Ao sol. Cumpre tua jura A!ma, eternamente V~va, seja o ardente Dia ou a noite pura. 67
  • 15. Ficas livre, então, De humanos aipoios, Entusiasmos vãos! E voas segundo... Jamais a esperança E jamais orietur. Ciência e paciência, O suplício é certo. Nem dia seguinte, Brasas de cetim, Que vossa paixão É obrigação. Foi reencontrada! - Que? - a Eternidade. É o mar misturado Ao sol. )( * * * Tornei-me uma ópera fabulosa: vi que todas as cria- turas têm uma fatalidade de felicidade: a ação não é a vida, mas uma maneira de dissipar alguma força, um depauperamento. A moral é a fraqueza do cérebro. Parecia-me ter direito a várias outras vidas, em cada criatura. Este cavalheiro não sabe o que está fazendo: é um anjo. Esta família é uma ninhada de cães. Düµ1te de vários homens, durante um momento conversei em voz alta com uma de suas outras vidas. - Assim, amei um porco. Nenhum dos sofismas da loucura, - a loucura que leva ao hospício, - ficou esquecido por mim: eu pode- ria repeti-los todos, tenho o sistema. Minha saúde ficou ameaçada. Surgia o terror. Pas- sava dormindo vários dias e, acordado, continuava os mais tristes sonhos. Estava maduro para a morte, e por 68 um caminho de perigos minha f confins do mundo e da Ci , . r~q~eza me levava aos turbilhões. mena, patna da sombra e dos . Tive de viajar, para distrair mdos no cérebro Sob os encantamentos 1 · re o mar que am avar-me de uma mancha avilt . ava como se fosse consoladora. Eu tinha sido ante; via erguer-se a cruz A Felicidade era minha fat ~~a~diçoado pelo arco-íris. verme; minha vida seri a a e, meu remorso, meu sa para ser dedicada à af sempr~ demasiadamente imen- . orça e a beleza A Felicidade1 Seu d t , · ao canto do ga.Io. - ad ~ae, d?ce a morte, advertia-me - nas mais sombrias cidadt~~mum, no Christus venit_, ó castelos, ó tempos1 Qual ª alma sem defeitos? Eu ~iz. 0 mágico estudo Da llllludível ventura. Saudemo-la, toda vez Que cante 0 galo gaulês. Ah 1 não te· · · · rei mais desejos: Pus em suas mãos minha vida. Tomou esse encanto alma e E os esforços dispersou. corpo ó castelos, ó tempos! Qu~do se for, ai de mim, Sera a hora de meu fim.. ó castelos, ó tempos1 * * * Isto passou. Sei hoje saudar a beleza. 69
  • 16. o IMPOSSÍVEL . h ·nfância a grande estrada Ah! esta vida de mm ª 1 t ~i...'..·ente sóbrio mais tod s tempos sobrena ur(:'4,.U.u ' para os o ' lh dos mendigos orgulhoso de desinteressado que 0 me or. que tolic~ era! - E só não ter nem pátria nem amigos, agora observo isso! _ esses homenzinhos qu.e - Tive razao em des:p~e~r de uma carícia, paras1- não perderiam a oport_udm d~ ~assas mulheres, hoje que tas da limpeza e da sau e - tão pouco de acordo conosco elas estao. d d'ns· pois estou Tive razão em todos os meus es e . me evadindo! Evado-me! Explico-me. . . "Céu' somos bastante Ainda ontem eu suspirava. · · 3 .á tenho tanto . b ·xo' Quanto a mim, malditos aqm em ª1 · todos Reconhecemo- b d 1 conheço-os a · tempo neste an o. . dos outros. Desconhece- nos sempre: e temos ~OJO uns polidos· nossas relações mos a caridade. _Todavia, somt~,, Ach~ surpreendente? com o mundo sao bei:i corr7 .in ênuos! - Não esta- A sociedade! os negociantes 1 ..ºtss cgomo nos receberiam? d d Mas os e e1 o , . mos esonra os~ l - falsos eleitos, assim , rabuJentas e fo gazas, , 1 Ha pessoas , . humildade para aborda- os. precisamos de audac1as-ou - bençoam! são os únicos eleitos. Nao sao os que ª 70 Tendo recobrado dois vinténs de razão - isto pas- sa depressa! - vejo que meus incômodos decorrem de não me ter apercebido bastante cedo de que estamos no Ocidente. Os pântanos ocidentais! Não que eu creia es- tar a luz alterada, extenuada a forma, desviado o mo- vimento. . . Bom! eis que meu espírito quer realmente encarregar-se de todos os desenvolvimentos cruéis que o espírito experimentou desde o fim do Oriente... É o que ele pretende, meu espírito! ... Meus dois vinténs de razão acabaram! - O es- pírito é autoridade, quer que eu esteja no Ocidente. Seria preciso fazê-lo. silenciar para concluir como eu gostaria. Eu mandava para o diabo as palmas dos mártires, os raios da arte, o orgulho dos inventores, o ardor dos saqueadores; retornava ao Oriente e à sabedoria primeira e eterna. - Parece que é um sonho de grosseria indo- lência! Contudo, eu não pensava absolutamente no prazer de escapar aos sofrimentos modernos. Não tinha em vista a sabedoria bastarda do Alcorão. - Mas não é um suplício real que, desde essa declaração da ciência, o cristianismo, o homem se divirta, exiba as evidências, se encha do prazer de repetir essas provas, e não viva senão assim? Tortura sutil, piegas; fonte de minhas di- vagações espirituais. A natureza poderia aborrecer-se, talvez! O senhor Prudhomme (*) nasceu com o Cristo. Não é porque cultivamos a bruma! Ingerimos a febre com os nossos legumes aquosos. E a embriaguez! e o fumo! e a ign9rância! e as devoções! - Tudo isto (*) Alusão a um tipo de pequeno burguês nulo e b81Ilal que se ex- prime através de uma linguagem solene, repleta de lugares- comuns, e ostentando sempre um alto juízo de si mesmo. Criado literariamente por Henry Monnier, em Scenes populaires (1830) e no Mémoires àe Joseph Pruàhomme (1857), exaustivamente caricaturado e glosado, é tão familiar à vida francesa como o nosso Conselheiro Acácio, que tanto se lhe assemelha. 71
  • 17. se acha bastante longe do pensamento, da sabedoria do Oriente, da pátria primitiva? Por que um mundo mo- derno, se venenos semelhantes podem ser inventados? Os fiéis da Igreja dirão: Compreendemos. Mas que- reis falar do Paraíso. Nada existe para vós na história dos povos orientais. - É verdade; é no Paraíso que eu pensava! O que esta pureza das raças antigas significa para o meu sonho! Os filósofos: O mundo não tem idade. A humani- dade se desloca, simplesmente. Estais no Ocidente, mas sois livres de habitar no vosso Oriente, tão antigo quan- to queirais que ele o seja, - e morar nele confortavel- mente. Não sejais um vencido. Filósofos, sois de vosso Ocidente. · Meu espírito, toma cuidado. Nada de meios de sal- vação violentos. Exercita-te! - Ah! a ciência não pro- gride bastante para nós. - Mas me apercebo de que meu espírito dorme. Se ele estivesse sempre desperto a partir daquele momento, cedo atingiríamos a verdade, que talvez nos rodeia com os seus anjos chorando! ... - Se tivesse fi- cado acordado até este momento, eu não teria cedido aos instintos deletérios, a uma época imemorial! ... - Se ele sempre tivesse ficado desperto, eu vogaria em plena sabedoria! ... ô pureza! pureza! Foi este minuto de vigília que me deu a visão da pureza! - O espírito conduz a Deus! Dilacerante infortúnio! 72 O RELÂMPAGO O tr'.1ba~o .humano! é a explosão quando, llumma meu abismo. que, de vez em "Nada é vaidadA; rumo à ciência clama o moderno Eclesiastes, isto é T~e para a frente!" tudo os cadáveres do . ' do mundo. E con- - s maus e oc10sos caem b çao dos outros. . . Ah1 d , . so re o cora- baixo além da noite. epressa, mais depressa; lá em- ' · , essas recompensas fut te nas. . . escaparemos delas? uras, e r- - Que posso fazer? Conhe t eia é muito lenta Q . _ço o rabalho; e a ciên- atroa ... eu 0 ve:o b~e ª ?raç3:o an.da a galope e a luz calor; não precidarão ~·e E ~to sj1mples; e faz muito obrigação· como vá . rm a a uda. Tenho minha la de lad~. nos outros, eu me orgulharei em pô- Minha vida está gasta. Vamos' fin· mos os vadios ó piedade' E e . t· . Ja~r10s, banque- sonhando a ' . xis iremos divertindo-nos mentando-n~~r:sc~n°s:~doosos, univer~os.fantásticos, la~ lt . as aparenc1as do d sa imbanco, mendigo artista band"d mun o, meu leito de hospital' o cheir~ d . I o, - padre! No rosamente: guardião' dos e mcenso voltou pode- mártir. . . aromas sagrados, confessor, Reconheço ali a só did d infância. Depols ~ quê'r ªAte ucação que recebi na ' · · · · ravessar os meu · t anos, se os outros vão atravessar os seus s vm e ... 73
  • 18. Não! não! agora eu me revolto contra a morte! ~ trabalho parece demasiado leve para ,º.meu -~rgulh~. minha traição ao mundo seria um supllcw mm 0 ~u~ta· No derradeiro momento, eu investiria para a direi ' para a esquerda... Então, - oh! - cara e pobre alma, a eternidade estaria perdida para nós! 74 MANHÃ Não tive eu uma vez uma juventude amável, he- róica, fabulosa, para ser escrita· em folhas de ouro, - sorte a valer! Por que crime, por que erro, mereci a fraqueza atual? Vós que achais que animais dão soluços de dor, que doentes desesperam, que mortos têm pesa- delos, tratai de narrar minha queda e meu sono. Quan- to a mim, posso explicar-me tanto quanto o mendigo com os seus contínuos Pater e Ave Maria. Não sei mais falar! Contudo, creio ter terminado hoje a narração de minha temporada no inferno. Era realmente o inferno: o antigo, aquele cujas portas o filho do homem abriu. No mesmo deserto, à mesma noite, meus olhos can- sados sempre despertam sob a estrela de prata, sempre, sem que se emocionem os Reis da vida, os três magos, o coração, a alma, o espírito. Quando iremos, além das praias e dos montes, saudar o nascimento do trabalho novo, a sabedoria nova, a fuga dos tiranos e dos demô·- nios, o fim da superstição, adorar - os primeiros! - os primeiros! - o Natal sobre a terra? O canto dos céus, a marcha dos povos! Escravos, não amaldiçoemos a vida. 75
  • 19. ADEUS Já é o outono! - Mas por que ter saudades de um eterno sol, se estamos empenhados na descoberta da cla- ridade divina, - longe das criaturas que morrem sobre as estações? Outono. Nossa barca vogante nas brumas imóveis ruma para o porto da miséria, a cidade enorme do céu manchado de fogo e de lama. Ah! os andrajos apodre- cidos, o pão ensopado de chuva, a embriaguez, os mil amores que me crucificaram! Ela não deixará nunca de existir, essa vampiro que é a rainha de milhões de almas e de corpos mortos e que serão julgados! Revejo-me, a pele roída pela lama e pela peste, os cabelos e as axilas cheios de vermes, e ainda por cima um gordo verme no coração, estendido entre os desconhecidos sem idade, sem sentimento. . . Eu poderia ter morrido lá. . . A terrível evocação! Execro a miséria. E temo o inverno porque é a estação do confortol - Algumas vezes vejo, no céu, praias infinitas co- bertas de brancas nações em júbilo. Um grande navio de ouro, acima de mim, agita suas bandeiras multicores ao sabor das brisas matinais. Criei todas as festas, to- dos os triunfos, todos os dramas. Tentei inventar novas flores, novos astros, novas carnes, novas línguas. Pensei ter adquirido poderes sobrenaturais. Muito bem! devo enterrar minha imaginação e minhas lembranças! Uma bela glória de artista e de narrador destruída! 76 Eu! eu que me considerei mago ou · . qualquer moral voltei ao h- an10, isento de b . , c ao, com um dever a cumprir e o ngado a abraçar a áspera realidade! C A . ampones! . Ser~ que estou enganado? · mim, a irmã da morte? a candade seria, para Enfim, pedirei perdão por me ter alimentado mentira. E vamos embora. de Nenhuma mão amiga porém! e onde encontrar o socorro? ' * * * Sim, a hora nova é pelo menos muito severa. Pois posso dizer que conquistei a vitória. d~ de~tes, os silvos de fogo, os suspiros pestil~;:;g:~ a rfl;n .am. Desfazem-se todas as lembran as im As ultimas queixas se afastam de mim ç . ~das. mendigos, dos salteadores, dos amigos d~ mo~;eJ~ ~s dos aqueles_ que foram passados para trás. - Ml:t - se eu me vingasse! a i os, Devemos ser totalmente modernos. . r~da de cânti~os: não arredar o pé do terreno con- qms a o. Dura noite! o sangue ressequido fume a no meu rosto, e nada tenho atrás de mim - g horror b t a nao ser este toso ar uso!··· O combate espiritual é tão brutal {.uan, o a batalh~ entre os homens; mas a visão da Jus- iça e o prazer so de Deus. Entretanto é · 'li R d . , a v1g1 a. ecebamos todos os iní1uxos d e v1dgor e de ternura real. E, ao romper da aurora arrna- os e uma grande ·A • ' didas cidades. pac1enc1a, entraremos nas esplên- 77
  • 20. Falava a respeito de uma mão amiga? Já é uma grande vantagem que eu possa rir dos velhos amores ilusórios, e fazer com que se envergonhem esses casais mentirosos, - vi o inferno das mulheres, lá embaixo; - e me será permitido possuir a verdade em uma alma e um corpo. Abril-agosto 1873. í8 lLUMINAÇÕES PAINTED PLATES