2. O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
nasçam-lhe monstros, sangue chova
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
s pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
que este dia deitou ao mundo a vida
mais desgraçada que jamais se viu!
3. TEMA
A maldição da existência
O dia em que eu nasci, morra e pereça, O seu nascimento foi maldito. O fatalismo.
Não o queira jamais o tempo dar,
Diferencia-se dos outros homens até na
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça. desgraça. Ele é superior, o seu nascimento foi
apocalíptico. O eclipse corresponde ao fim do
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, mundo, era uma intenção divina.
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas pasmadas, de ignorantes, O poeta amaldiçoa o dia em que nasceu e
As lágrimas no rosto, a cor perdida, deseja, se se voltar a repetir, se deem
Cuidem que o mundo já se destruiu.
fenómenos extraordinários para que todos
Ó gente temerosa, não te espantes, fiquem sabendo que nesse dia nasceu a
Que este dia deitou ao mundo a vida pessoa mais desgraçada.
Mais desgraçada que jamais se viu!
Recusa do dia em que nasceu. Desconcerto pessoal. AUTOBIOGRAFIA
4. Assunto: O sujeito poético fala sobre o
tempo em que nasceu, revelando
sentimentos disfóricos de que esse
O dia em que eu nasci, morra e pereça,
acontecimento nunca se devia ter
Não o queira jamais o tempo dar, acontecido.
Não torne mais ao mundo e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar, Soneto apocalíptico.
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Referências bíblicas: Apocalipse e base no
A mãe ao próprio filho não conheça. Livro de Job. O poeta, a diferença de Job, perde
a confiança.
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
Imagens violentas (sangue chova o ar).
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu. Hipérbole.
Referência ao leitor futuro (ó gente temerosa).
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
Moura/pereça/padeça = morra;
Rostro = rosto/face;
Cuidem = saibam;
Desaventurada = infeliz;
5. Estrutura interna
Desenvolvimento do tema
O dia em que eu nasci, morra e pereça,
Não o queira jamais o tempo dar, Amaldiçoa o dia em Divisão em partes:
Não torne mais ao mundo e, se tornar, que nasceu •1ª. parte: 1ª. quadra -
Eclipse nesse passo o sol padeça. Maldição ao mundo.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, •2ª. parte: 2ª. quadra
Cenário monstruoso
Mostre o mundo sinais de se acabar, e 1º. terceto -
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Recriação de um
A mãe ao próprio filho não conheça. cenário monstruoso
para uma eventual
As pessoas pasmadas, de ignorantes, repetição do dia em
As lágrimas no rosto, a cor perdida, Prevê a reacção das que nasceu.
Cuidem que o mundo já se destruiu. pessoas
•3ª. parte: 2º. terceto -
Ó gente temerosa, não te espantes, Recusa do dia em que
Que este dia deitou ao mundo a vida Lança o repto final nasceu.
Mais desgraçada que jamais se viu!
6. Estrutura interna
Desenvolvimento do tema
O dia em que eu nasci, morra e pereça, O eu lamenta ter nascido, assumindo uma
Não o queira jamais o tempo dar, atitude masoquista nos pedidos formulados,
Não torne mais ao mundo e, se tornar, cujos efeitos poderão atingir toda a
Eclipse nesse passo o sol padeça. humanidade.
O dia do nascimento surge aqui amaldiçoado
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça, mas também personificado, sugerindo o seu
Mostre o mundo sinais de se acabar, poder destruidor.
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar,
A mãe ao próprio filho não conheça.
Efeitos produzidos nos humanos pela
As pessoas pasmadas, de ignorantes, transformação que o sujeito espera que
As lágrimas no rosto, a cor perdida, ocorra na natureza.
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Justifica-se e confirma-se o pedido auto e
Ó gente temerosa, não te espantes,
heterodestrutivo que inicia e percorre todo
Que este dia deitou ao mundo a vida
o texto.
Mais desgraçada que jamais se viu!
7. O dia em que eu nasci, moura e pereça,
não o queira jamais o tempo dar,
não torne mais ao mundo, e, se tornar,
eclipse nesse passo o sol padeça.
1º momento: constitui a maldição e depois
a recriação de um cenário monstruoso que luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
mostre o mundo sinais de se acabar,
o poeta deseja que se materialize numa
nasçam-lhe monstros, sangue chova
eventual repetição do dia do seu
o ar, a mãe ao próprio filho não conheça.
nascimento.
s pessoas pasmadas de ignorantes,
as lágrimas no rosto, a cor perdida,
cuidem que o mundo já se destruiu.
2º momento: constitui uma justificação
perante a “gente temerosa” da razão da Ó gente temerosa, não te espantes,
recusa do dia em que nasceu da violência de que este dia deitou ao mundo a vida
um cenário desejado para a sua eventual mais desgraçada que jamais se viu!
repetição.
8. MODOS VERBAIS UTILIZADOS
O dia em que eu nasci moura e pereça.
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo, e, se tornar,
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça, • Conjuntivo
Mostre o mundo sinais de se acabar, • Infinitivo
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, • Indicativo
A mãe ao próprio filho não conheça.
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
As lágrimas no rostro, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes,
Que este dia deitou ao mundo a vida
• Indicativo
Mais desaventurada que se viu!
9. Forma poética e rimas
Soneto com rimas:
O dia em que eu nasci moura e pereça. A
Não o queira jamais o tempo dar, B
Interpolada
Não torne mais ao mundo, e, se tornar, B
Eclipse nesse passo o sol padeça. A
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça, A
Mostre o mundo sinais de se acabar, B Emparelhada
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, B
A mãe ao próprio filho não conheça. A
As pessoas, pasmadas de ignorantes, C
As lágrimas no rostro, a cor perdida, D
Cuidem que o mundo já se destruiu. E
Interpolada
Ó gente temerosa, não te espantes, C
Que este dia deitou ao mundo a vida D
Mais desaventurada que se viu! E
Esquema rimático: ABBA / ABBA / CDE / CDE
10. Recursos estilísticos
Pleonasmo - Reiteração da maldição.
O dia em que eu nasci moura e pereça.
Não o queira jamais o tempo dar,
Não torne mais ao mundo, e, se tornar, •Hipérbole: "Não o queira
jamais… destruiu", "Que este dia…
Eclipse nesse passo o sol padeça. Inversão que jamais se viu" - Acentuar bem
toda a maldição que lança sobre o
A luz lhe falte, o céu se lhe escureça, dia do seu nascimento.
Mostre o mundo sinais de se acabar,
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Metáfora: “Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar”
A mãe ao próprio filho não conheça.
Enumeração
As pessoas, pasmadas de ignorantes,
•Adjetivação: "pasmadas, perdida, temerosa" -
As lágrimas no rostro, a cor perdida, Palavras carregadas de negativismo.
Cuidem que o mundo já se destruiu.
Ó gente temerosa, não te espantes, Apóstrofe •Nomes carregados de
negativismo: "eclipse, monstros,
Que este dia deitou ao mundo a vida sangue, lágrimas" - Terror, medo.
Mais desaventurada que se viu!
•Modo conjuntivo: "lhe falte", "se escureça", "nasçam-
Anáfora: “Não/ Não”
lhe" - Traduz o intenso desejo de amaldiçoar tudo.
11. O dia em que eu nasci, morra e pereça, O “eu”
Não o queira jamais o tempo dar, amaldiçoa o dia
Não torne mais ao mundo e, se tornar, em que nasceu
Eclipse nesse passo o sol padeça.
A luz lhe falte, o sol se lhe escureça,
Mostre o mundo sinais de se acabar, Efeitos
Nasçam-lhe monstros, sangue chova o ar, Maldições produzidos nas
A mãe ao próprio filho não conheça. pessoas
As pessoas pasmadas, de ignorantes,
As lágrimas no rosto, a cor perdida,
Cuidem que o mundo já se destruiu. Apela às pessoas para que não
se espantem, pois naquele dia
nasceu o ser mais infeliz do
Ó gente temerosa, não te espantes, Mundo
Que este dia deitou ao mundo a vida
Mais desgraçada que jamais se viu!
12. Este texto coloca-nos de chofre em contato com o que há de mais íntimo e
pro-fundo em Camões, isto é, em contato com o próprio poeta.
E como? Em primeiro lugar, pela estreita relação Camões-poeta e Camões-
personagem, Camões-sujeito e Camões-objeto da sua poesia. Depois, pela
situação de desespero que aparece como ponto de chegada de uma série
de temas: ilusão, engano, desengano, sofrimento, frustração... Em terceiro
lugar, pelo tom de ira e furor, de revolta cega, e contudo lúcida,
especificamente camoniana. E depois, ainda, por temas muito
caraterísticos e definidores da visão da vida do poeta: a ligação do
nascimento e da morte; as relações ambíguas com a mãe; a visão de si
próprio como um ser desmesurado, mesmo monstruoso; a sensação de
desgraça maior.
MATOS, Maria Vitalina Leal de, 1987.
Ler e Escrever. Lisboa: IN-CM