1. SERVIÇO SOCIAL
ÉTICA, DEONTOLOGIA
& PROJECTOS PROFISSIONAIS
Helena Almeida
A obra que passo a apresentar surge na sequência de um conjunto de
iniciativas promovidas pelo Centro Português de Investigação em História e
Trabalho Social (CPIHTS), designadamente um curso sobre “Ética profissional,
Direitos Humanos e Responsabilidade Social” e um Seminário sobre “Serviço
Social: Ética, Responsabilidade Social e Projecto Social”, e explicita de forma
clara a intenção de promover o debate em torno da questão da cultura
profissional dos assistentes sociais. O livro enquadra-se ainda numa estratégia
de divulgação do esforço empreendido pelo CPIHTS na creditação da área do
Serviço Social enquanto domínio científico.
Trata-se de uma obra colectiva publicada em parceria do CPIHTS com a Veras
Editora e o Instituto de Ciências Sociais Aplicadas, e foi apoiada pelo Ministério
do Trabalho e Solidariedade, pela Fundação para a Ciência e Tecnologia, pela
Associação de Profissionais de Serviço Social e pelo Projecto Atlântida.
Apresenta um preâmbulo do seu organizador e Presidente do CPIHTS, Alfredo
Henrique, e é constituída por duas partes complementares: uma de artigos
reflexivos sobre ética, deontologia e projectos profissionais e outra de
documentos essenciais à compreensão do estado da questão.
Conta com a colaboração de investigadores como José Paulo Netto, Maria
Lúcia Barroco, Carlos Jacques, Jorge Cabral e Cristina Maria Brites, o que à
partida constitui um incentivo à leitura pela qualidade que é reconhecida à sua
produção científica e ao sentido crítico que usualmente lhe está associado.
Trata-se , pois, de uma obra colectiva onde se inscrevem os seguintes artigos:
2. • A construção do Projecto Ético-político do Serviço Social frente à crise
Contemporânea - José Paulo Netto
• Os fundamentos Sócio-históricos da Ética – Maria Lúcia Barroco
• Ética e Solidariedade – Jorge Cabral
• Ética e Deontologia Profissional – Jorge Cabral
• O que é ser um bom Assistente Social? Prolegómenos de uma
genealogia moral do Serviço Social – Carlos Jacques
• A centralidade da Ética na formação profissional – Cristina Maria Brites e
Maria Lúcia Barroco
O debate da questão do projecto ético-político do Serviço Social é recente o
que contribui para a relevância científica desta obra, tanto no plano dos
conceitos como no da argumentação, articulados no discurso e apenas
distintos para efeitos de análise.
A obra encontra-se estruturada em torno da análise dos conceitos de projecto
profissional, moral, ética e deontologia profissional, e propõe a reflexão do
quotidiano profissional e a genealogia moral como métodos de abordagem da
questão ética do serviço social .
Sem pretender apresentar aqui a riqueza dos conteúdos dos vários artigos que
integram a obra, destaco quatro ideias implícitas à reflexão desenvolvida pelos
autores.
3. I – Como distinguir Moral e Ética ?
Os fundamentos da ética são sociais e históricos. Só o ser social age
eticamente uma vez que só ele é capaz de agir com consciência e liberdade.
Para agir teleologicamente o Homem cria alternativas de valor, escolhe entre
elas, incorporando-as nas suas finalidades. Neste contexto, e no sentido de
explicitar as formas específicas de objectivação da ética, Maria Lúcia Barroco
estabeleceu a distinção entre prática moral, a acção ética e reflexão filosófica
sobre elas.
“A moral é o conjunto de costumes e hábitos culturais, transformados em
deveres e normas de conduta, que responde à necessidade de estabelecer
parâmetros de convivência social. As normas morais são orientadas por
princípios e valores que, quando estão legitimados socialmente, funcionam
como deveres exigidos aos membros da sociedade, tendo por objectivo o bem
da comunidade. No plano da moral as acções são valoradas como boas/más,
justas/injustas, correctas/incorrectas” (Maria Lúcia Barroco, 34).
“É no campo da moralidade que são estabelecidos os juízos de valor (...). Os
deveres, as normas e os juízos configuram o carácter normativo da moral e
atendem a expectativas sociais diante do comportamento dos indivíduos” (ibid.,
35).
“A moral e os valores são sempre sociais e históricos: são construções
culturais objectivas inscritas nas relações sociais inerentes à (re)produção da
vida social” (ibid, 35).
Os costumes são considerados como deveres porque são fruto de um
consenso social acerca do que é bom para a colectividade. Tal facto leva a que
se crie uma expectativa de que os indivíduos respeitem tais deveres, mas para
isso é preciso que eles os aceitem conscientemente como legítimos, “daí a
necessidade de criar a vinculação entre o dever e a consciência moral, entre o
carácter social da moral e a sua aceitação subjectiva” (ibid., 35).
4. A moral constitui a prática dos indivíduos na sua singularidade e a ética é a
reflexão teórica e a acção livre voltada ao humano. O conteúdo da reflexão
ética é a própria realidade moral. ”As normas e os valores não são instituídos
pela teoria, mas por necessidades práticas. A teoria pode contribuir para
entender esse processo, indagando sobre o seu significado e voltando à prática
para contribuir na sua transformação” (ibid.36)
A consciência da universalidade do Homem, o consciente respeito do outro, o
agir individualmente em função do seu compromisso com projectos colectivos,
constituem indicadores de um comportamento ético provido de um “sujeito
consciente das suas escolhas e responsabilidades na sociedade” (ibid., 37).
A reflexão ética contribui para a descoberta das implicações éticas do agir
social e do significado dos valores existentes nas relações de poder.
II – Genealogia da moral do Serviço Social, uma proposta metodológica
fundamental à construção da identidade profissional ?
“Se por deontologia entendemos o conjunto de deveres exigidos aos
profissionais, uma ética de obrigações para consigo próprio, com os outros e
com a comunidade, parece evidente que todas as profissões implicam uma
ética, pois todas se relacionam directa ou indirectamente com outros seres
humanos” (Cabral, 52).
Crítico da abordagem positivista da ética profissional, cuja finalidade reside
essencialmente na exploração da natureza de problemas e dilemas morais,
avançando com a prescrição de formas de agir correctamente, Carlos Jacques
(59-71) propõe uma alternativa : a genealogia da moral do serviço social.
Referindo Nietzsche e Foucault, define genealogia como o estudo das
condições de possibilidade da verdade de um discurso. As condições podem
ser internas ao discurso (critérios de cientificidade, tradições disciplinares,
técnicas retóricas,...) e externas (relações sociais, relações de poder, contexto
histórico, ...), ambas contribuindo para determinar as condições de verdade de
5. um discurso. Simultaneamente descritiva e crítica, a genealogia apresenta uma
dimensão crítica fundada no complexo histórico que legitima um discurso.
Aquilo que se afirma sobre a moral do serviço social tem a sua própria história,
uma história que acumula e constitui as condições de legitimidade daquilo que
é afirmado. A genealogia moral constitui uma proposta de investigação sobre
as condições de legitimidade do discurso moral, um método de análise da
moral do serviço social, que avalia a importância dos valores que integra e abre
caminho a outras “possibilidades históricas de agir profissionalmente”( ibid. 62).
O conceito do “social” determinou e continua a determinar os valores básicos
da profissão. A finalidade de uma profissão e os valores subjacentes a essa
finalidade são condicionados pela história da profissão e pela história da
sociedade em que se insere. Por isso, a genealogia do social coloca em
evidência a história do serviço social, num evoluir nem sempre tranquilo tendo
mantido inalterado o objectivo da coesão social. De acordo com o código
deontológico internacional do Serviço Social de 1994, os assistentes sociais
devem colocar os seus objectivos, conhecimentos e experiência ao serviço dos
indivíduos, dos grupo, das comunidades e da sociedade, apoiando-os no seu
desenvolvimento e na resolução dos seus conflitos individuais ou colectivos e
nas consequências que daí advêm, descortinando-se o propósito de assegurar
as relações de solidariedade que constituem a sociedade. O serviço social
assume deste modo uma posição conservadora, integrando-se num conjunto
de políticas e instituições dedicadas à promoção da coesão social e na
manutenção da realidade dominante.
Segundo o autor, a alteração da sua justificação moral, o seu conservadorismo,
exige mais do que simplesmente reconceptualizar a natureza das suas acções
no campo social. Terá que ir ao encontro do princípio da soberania
democrática.
III – Em que consiste o Projecto Profissional?
6. Como refere Paulo Netto, os homens agem sempre teleologicamente. As suas
acções são sempre orientadas para objectivos-metas e fins. A acção
humana implica sempre um projecto que é uma antecipação ideal da finalidade
que se pretende alcançar, com a inovação dos valores que a legitimam e a
escolha dos meios para a atingir. Apenas os projectos societários, aqueles que
apresentam uma imagem da sociedade a ser construída, e que reclamam
valores e privilegiam meios materiais e culturais para concretizar essa
sociedade, possuem uma dimensão política que envolve relações de poder.
O Serviço Social não constitui uma unidade identitária, ele está alicerçado na
diversidade de origens e expectativas sociais, comportamentos e preferências
teóricas, ideológicas e societárias distintas. Por isso, a profissão de Serviço
Social é um espaço plural de onde poderão emergir projectos profissionais
diferentes. “Toda a categoria profissional é um campo de tensões e lutas” e a
afirmação de um projecto profissional não suprime divergências e contradições.
Ela deve fazer-se através do debate, pela discussão, pelo confronto de ideias.
IV - Quais os valores básicos do projecto profissional do Serviço Social?
A análise do projecto ético-político do serviço social no Brasil mostra que ele se
centra nos seguintes valores:
1 - A Liberdade:
Reconhece a liberdade como valor central, concebida historicamente como
possibilidade de escolha entre alternativas concretas. Deste modo, a liberdade
surge associada à autonomia, à emancipação e desenvolvimento dos sujeitos
entendidos como actores providos de vontade.
“O projecto profissional vincula-se a um projecto societário (ideal) que propõe a
construção de uma nova ordem social, sem dominação e/ou exploração de
classe, etnia e género” (Netto, 24).
2 - A Defesa intransigente dos Direitos Humanos:
7. A equidade e a justiça social, na perspectiva da universalização do acesso aos
bens e serviços relativos aos programas e políticas sociais, a ampliação e a
consolidação da cidadania constituem condição para a garantia dos direitos
civis, políticos e sociais.
3 - A democratização de procedimentos:
O projecto reclama-se radicalmente democrático, entendendo-se
democratização como a “socialização da participação política e socialização da
riqueza socialmente produzida”.
4 - Um compromisso com a competência:
A competência profissional implica uma formação académica qualificada que
viabilize a “análise concreta da realidade social” imprescindível ao
desenvolvimento de procedimentos adequados. A auto-formação permanente e
o exercício de uma postura investigativa revelam-se fundamentais.
É necessário romper com o voluntarismo, com o isolamento profissional e com
as falsas interpretações acerca da direcção social do projecto ético-profissional.
5 - Um compromisso com a qualidade dos serviços prestados:
O projecto profissional radica num compromisso com a qualidade dos serviços
prestados à população, o que implica uma abertura das decisões institucionais
à participação dos utentes.
No Brasil, o Serviço Social tem-se vindo a afirmar em contextos diversos, e a
sua expansão encontra-se legitimada pela crescente massa crítica e
redimensionamento da formação, mas sobretudo “à reconquista dos direitos
8. cívicos e sociais que acompanharam a restauração democrática da sociedade
brasileira” (Netto, 22).
O projecto profissional é um processo contínuo que se constroi no quotidiano, e
que assenta numa proposta de resgate da centralidade da ética na formação
profissional. A defesa e a reprodução dos princípios e valores éticos que lhe
estão subjacentes exige sujeitos profissionais activos e autónomos. Como
referem Cristina Maria Brites e Maria Lúcia Barroco “A formação ética, pela sua
natureza filosófica, é pressuposto essencial, tanto para o desvelamento crítico
do significado das escolhas individuais em face dos projectos colectivos,
quanto para orientar a construção de respostas profissionais que, diante dos
desafios quotidianos, tenham a capacidade objectiva de romper, em algumas
situações, ou de resistir aos limites da ordem burguesa” (80).
O contributo essencial deste livro reside no facto de considerar a existência
ética como um recurso teórico acessível aos quadros profissionais que estão
em formação, rompendo com a ausência de reflexão ética sobre a prática
profissional. O estágio, enquanto experiência pré-profissional, permite a
construção de uma identidade e postura éticas no processo de formação, e
constitui “uma relação orgânica com o quotidiano”.
Mas o interesse da obra aqui apresentada ultrapassa a qualidade dos referidos
artigos. Para além de uma listagem das publicações do CPIHTS, o livro inclui
ainda 4 documentos importantes para o estudo e reflexão das questões da
ética, deontologia e projectos profissionais do Serviço Social, designadamente:
• • A ética no serviço social. Princípios e Valores, documento adoptado
pela Assembleia Geral da Federação Internacional de Trabalhadores
Sociais, em Julho de 1994.
• • Definição de Trabalho Social, adoptada pela Federação Internacional
de Trabalhadores Sociais, documento divulgado pela Associação de
Profissionais de Serviço Social em 2000.
9. • • Princípios Éticos y Políticos para las Organizaciones Profesionales de
Trabajo Social del Mercosur, documento cedido pelo Comité Mercosur
de Organizações Profissionais de Trabalho Social.
• • Código de Ética Profissional dos Assistentes Sociais, aprovado em
Brasília pelo Conselho Federal de Serviço Social no dia 13 de Março de
1993.
Estes documentos mostram por si a actualidade do debate que aqui se inicia.
É difícil numa obra colectiva estabelecer um fio condutor entre os contributos
diversos dos autores que integra. Também nesse aspecto, a obra aqui
apresentada responde a esta exigência. Aparentemente com algumas
repetições no plano dos fundamentos teóricos, a natureza da escrita e as
reflexões a que nos conduz permitem-nos estabelecer a riqueza de abordagem
e uma matriz teórica referencial. Também por isso, a iniciativa desta publicação
merece ser aplaudida.
Coimbra, 22 de Abril de 2002.
BIBLIOGRAFIA
Artigos
- A construção do Projecto Ético-político do Serviço Social frente à crise
Contemporânea - José Paulo Netto
- Os fundamentos Sócio-históricos da Ética -Maria Lúcia Barroco
- Ética e Solidariedade -Jorge Cabral
- Ética e Deontologia Profissional -Jorge Cabral
- O que é ser um bom Assistente Social? Prolegómenos de uma genealogia moral do
Serviço Social -Carlos Jacques
- A centralidade da Ética na formação profissional - Cristina Maria Brites e Maria Lúcia
Barroco
VALORES BÁSICOS DO PROJECTO PROFISSIONAL DO SERVIÇO SOCIAL
10. 1 - A LIBERDADE
2 - A DEFESA INTRANSIGENTE DOS DIREITOS HUMANOS
3 - A DEMOCRATIZAÇÃO DE PROCEDIMENTOS
4 - UM COMPROMISSO COM A COMPETÊNCIA
5 - UM COMPROMISSO COM A QUALIDADE DOS SERVIÇOS PRESTADOS
DOCUMENTOS
A ÉTICA NO SERVIÇO SOCIAL. PRINCÍPIOS E VALORES, documento adoptado
pela Assembleia Geral da Federação Internacional de Trabalhadores Sociais, em Julho
de 1994.
DEFINIÇÃO DE TRABALHO SOCIAL, adoptada pela Federação Internacional de
Trabalhadores Sociais, documento divulgado pela Associação de Profissionais de
Serviço Social em 2000.
PRINCÍPIOS ÉTICOS Y POLÍTICOS PARA LAS ORGANIZACIONES
PROFESIONALES DE TRABAJO SOCIAL DEL MERCOSUR, documento cedido
pelo Comité Mercosur de Organizações Profissionais de Trabalho Social.
CÓDIGO DE ÉTICA PROFISSIONAL DOS ASSISTENTES SOCIAIS, aprovado em
Brasília pelo Conselho Federal de Serviço Social no dia 13 de Março de 1993.