3. Conceição Evaristo (70) nasceu em uma família de mulheres
negras cozinheiras, faxineiras, empregadas domésticas. Segunda
de nove irmãos, a escritora, diz que na infância não viveu a
pobreza, mas a própria miséria na favela do Pendura Saia,
encravada no alto da Avenida Afonso Pena, área nobre de Belo
Horizonte. Ali, da mãe e das tias, ouviu muitas histórias e
inventou outras. A ficção era indispensável à sobrevivência, uma
forma de sublimar a realidade. Essa experiência é o alimento da
sua escrita ou, como ela afirma, da sua “escrevivência”.
4. Nasceu numa favela da zona sul de Belo Horizonte, com pais desconhecidos, e
teve que conciliar os estudos com o trabalhos como empregada doméstica, até
concluir o curso normal, em 1971, já aos 25 anos. Mudou-se então para o Rio de
Janeiro, onde passou num concurso público para o magistério e estudou Letras
na UFRJ.
Na década de 1980, entrou em contato com o Grupo Quilombo hoje. Estreou na
literatura em 1990, com obras publicadas na série Cadernos Negros, publicada
pela organização. É mestra em Literatura Brasileira pela PUC-Rio, e doutora
em Literatura Comparada pela Universidade Federal Fluminense.
5. Suas obras, em especial o romance Ponciá Vicêncio, de 2003, abordam temas
como a discriminação racial, de gênero e de classe. A obra foi traduzida para
o inglês e publicada nos Estados Unidos em 2007. Atualmente leciona na
UFMG como professora visitante.
Conceição Evaristo é militante do movimento negro, com grande participação
e atividade em eventos relacionados a militância política-social.
Obras:
Romance
Ponciá Vicêncio (2003)
Becos da Memória (2006)
Poesia
Poemas da recordação e outros movimentos (2008)
Do velho e do Jovem
Contos
Insubmissas lágrimas de mulheres (Nandyala, 2011)
Olhos d`água (Pallas, 2014).
Histórias de leves enganos e parecenças
(Editora Malê, 2016)
6. O título [2]
A temática
Condição a que o negro é submetido; em quase todos os contos, a violência
marca presença constante, a pobreza, a miséria, a desigualdade social, o
preconceito racial, a infância, o erotismo, a vida de mulheres negras, a vida nas
favelas; homossexuais em dilemas sobre o amor, a vida e a ancestralidade
africana.
O tempo e espaço
As histórias se passam em um tempo psicológico, ou seja, não existem datas,
não existe cronologia. Já o espaço são explicitados em alguns contos como
favelas do Rio de Janeiro e de Belo Horizonte.
7. A linguagem
A linguagem é de fácil acesso e, na maioria das vezes, é culta. Importante,
porém, é perceber que a autora se utiliza se uma linguagem, muitas vezes,
poética, suaviza a grave situação [a autora é poetisa].
Olhos d‟água também parte em busca da renovação da linguagem.
“Hifenização da escrita”.
Exemplo: “Duzu-Querença”; “flor-criança”; “borboleta-menina” e “dedos-
desejos”; “gozo-dor”; “águas-lágrimas”.
Neologismo
Exemplo: “Luamanda” (p.59) – formada dos vocábulos lua + manda 9do verbo
mandar); “Dorvi” (p.99); “lacrimevaginava” (p.60) – lacrimejar + vagina +
sufixo – Ava, que indica ação; “Salinda” (p.51).
A autora utiliza, ainda, alguns nomes e vocábulos de origem africana:
Yabás, Orixás, Oxum, Duzu, Lumbiá, Erê, Kimbá, Ayoluwa, Bamidele, dentre
outros.
8. Olhos dágua
1ª pessoa
Personagens: Narradora (1ª das 7 filhas), Mãe, e Filha da narradora.
Acordou bruscamente e uma estranha pergunta: que cor eram os olhos de minha
mãe? Lembrava dela com detalhes. Lembrava de histórias da infância da mãe dela,
nascida no interior de Minas: muitas vezes, quando a mãe cozinhava, da panela subia
cheiro algum. Era como se cozinhasse ali o nosso desesperado desejo de alimento.
Era justamente nesses dias que ela mais brincava com as filhas. Brincadeira
preferida: a mãe era a rainha. Sentada no trono. Colhiam as flores que circundavam o
barraco, colocavam-nas sob a rainha e faziam a reverência. As princesas cantavam, e
dançavam em volta dela. A mãe ria de maneira triste, sorriso molhado. Eu sabia que
os jogos eram só pra distrair a nossa fome [ e ela distraía]
Temor da mãe em dia de forte chuva. Rezas para a Sta Bárbara.
Os olhos de minha mãe se fundiam com a natureza: Chovia, chorava!
Tomada pelo desespero por não lembrar dos olhos da mãe, resolveu voltar à cidade
em que nasceu.
Lá, viu só lágrimas e lágrimas. Entretanto ela sorria feliz. A mãe trazia águas
correntezas. Por isso, prantos e prantos a enfeitar o seu rosto. A cor dos olhos de
minha mãe eram olhos d‟água. Águas de Mamãe Oxum!
Abraço e mãe e filha – lágrimas misturadas.
Um dia desse: narradora e sua filha, doce jogo, a menina tocou o rosto dela e
contemplando-o perguntou “ mãe, qual é a cor tão úmida de seus olhos?
9. Ana Davenga
3ª pessoa
Personagens: Ana, Davenga, Homens do morro, policiais.
As batidas na porta ecoaram como um prenúncio de samba. O coração de Ana
naquela quase meia noite apaziguou um pouco.
Flashback
História de Davenga e Ana – ciúme dos caras devido a presença da Ana no Barraco.
Davenga: ela fica e nada mudará – quem bulisse com ela morreria.
Davenga era tai grande, tão forte, mas tão menino, tinha o prazer banhado em
lágrimas.
Volta à cena inicial: todos chegam menos Davenga. Ana, aflita, imagina situações.
[ruins]
Flash back
Se conheceram na roda de samba. Naquele época, polícia estava atrás dele: assalto a
banco. Não havia sido ele, não assaltava na região e achava roubar banco servicinho
sem graça. Gostava de ver o medo das vítimas, principalmente das fortes, dos
chefões.
Assaltara deputado e gostara de ver o medo dele.
Foi por aqueles dias que conhecera Ana. A bailarina dançara livre, solta, na festa de
uma aldeia africana. Era preciso coragem para chegar na mulher, mas do que pra
fazer serviço. Desde aquele dia Ana ficou para sempre no barraco.
10. Conheceu na cadeia, quando ia visitar um amigo. Maria Agonia, evangélica,
costuma ir lá falar da agonia de uma vida sem o Senhor. Marcaram um encontro
na praça, no domingo.
No dia, ele no botequim, ela na igreja. Ao acabar a pregação, ela faz sinal pra ele
ir atrás, ela queria um lugar sozinho com ele. Se amaram muito na moita. E
assim foi por muitas vezes. Um dia se encheu, propôs que subisse o morro pra
ficar com ele. Maria reagiu, era crente, filha de pastor, instruída, ia deixar tudo
pra morar com marginal?
Tinha alguém que ia fazer o serviço pra ele.
Dia seguinte, manchete: “Filha de pastor apareceu nua toda perfurada de balas.
Tinha ao lado corpo um bíblia.”
Retorno: cadê Davenga? Ana alisou a barriga, lá estava a sua criança, bem
pequena.
Davenga entra furando o círculo. Era a festa de aniversário para Ana.
Quando a madrugada afirmou, Davenga mandou que todos se retirassem e que
seus companheiros ficassem alertas.
Davenga estava na cama vestido com a pele negra, brilhante lisa que Deus lhe
dera. Ela também, nua.
A porta abriu violentamente e dois policiais entraram com armas em punho.
Davenga vestiu a calça lentamente. Ele sabia que estava vencido. A arma estava
debaixo da camisa. Podia pegar as duas, sabia que isso significaria a morte. Se
Ana sobrevivesse, quem sabe teria outro destino.
11. Ele pegou e se ouviram muitos tiros.
Os noticiários lamentaram a morte de um policial em serviço. Na favela, os
companheiros choraram a morte do chefe e de Ana que “morrera ali na cama,
metralhada, protegendo com as mãos um sonho de vida que ela trazia na
barriga”.
Em uma garrafa cheia de água, um botão de rosa, que Ana Davenga havia
recebido de seu homem, na festa primeira de seu aniversário, vinte e sete, se
abria. [poético]
12. Duzu – Querença
Narrador: 3ª pessoa
Personagens: Duzu, pai, mãe, D. esmeraldina, Tático, Angélico, Querença.
Descrição de Duzu nas latas de lixo. Homem passa e lança olhar de asco.
Ela lambe os dedos, embaixo da unha ou imaginando o prazer de comer um
alimento levado à boca pela sua mão – mas imaginário. Câimbras.
História dela:
Viera para a cidade quando pequena. O pai tinha esperança – o pescador sonhava
com um ofício novo. Esperança para a filha: na cidade havia senhoras que
empregavam meninas ela podia trabalhar e estudar. Uma senhora havia
arrumado emprego para a filha do Nogueira e ia encontrar com eles na capital.
Duzu ficou com a senhora por muitos anos. Casa grande com muitos quartos,
com moças que passavam muitas coisas no rosto e na boca. Ajudava na lavagem e
passagem das roupas e na limpeza dos quartos – mas tinha sempre que bater
antes.
Um dia esqueceu e foi entrando: Moça do quarto dormindo, em cima dela dormia
um homem; Duzu ficou confusa, ficou olhando: engraçado, bonito, bom de olhar.
Resolveu que não ia bater mais. Viu várias coisas [ela não sabia nomear a ação]
mas gostava de ver.
Em alguns quartos era repreendida, em outros, bem-aceita. Houve até um em
que o homem fez um carinho no rosto dela e foi descendo.
13. A moça mandou que ele parasse: é só uma menina. Ele levantou enrolando-se no
lençol e deu uma nota de dinheiro para a Duzu.
Voltou no dia seguinte e não era o mesmo homem, mas outro.
Passado dias era ele de novo. Os dois, nuzinhos. O homem chamou por ela. Fazia
carinho no rosto e no seio da menina. Ganhou muito dinheiro depois.
Duzu voltava sempre. Um dia o homem estava nu e sozinho, pegou a menina e
jogou em cima da cama. Ganhava mais e mais dinheiro.
Um dia D. Esmeraldina entrou e estava brava: deitar com homem tudo bem, mas
tinha que dar dinheiro pra ela!
Naquele momento Duzu entendeu tudo, de tantos quartos, de dinheiro, o porquê
de nunca mais ter conseguido ver os pais, de D. Esmaraldina não ter cumprido a
promessa de deixá-la estudar. Entendeu qual seria sua vida.
Anos ali e em outras zonas.
Acostumou-se com os gritos de mulheres apanhando, ao sangue delas
assassinadas, com as pancadas dos cafetões, desmandos das cafetinas.
Acostumou-se à morte como forma de vida.
9 filhos espalhados pelos morros.
Muitos netos. 3 deles lhe abrandavam os dias. Angélico, que chorava por não
gostar de ser homem. Queria ser guarda penitenciário para poder dar fuga ao pai.
Tático, que não queria ser nada. E a menina Querença, que retomava os sonhos e
os desejos de tantos outros que já tinham ido.
14. Duzu se desesperou quando soube da morte de Tático, apanhado de
surpresa por um grupo inimigo. Tão novo, treze anos.
Nova dor para guardar no peito. Era preciso descobrir uma forma de
ludibriar a dor.Resolveu voltar ao Morro.
Deus de brincar de faz de conta. Aprofundou as raias do delírio para viver os
últimos dias.
Asas para voar, voava no alto do morro.
Estava chegando a época em que sofrer era proibido: carnaval.Estava
fazendo uma fantasia.
Pegava papeis no lixo para montá-la. Ala das baianas.
Desfile. Voou alto, lembrou-se dos rostos da mãe, do pai, dos filhos, da avó,
da neta Querença. Morreu ali mesmo, mas escadarias da igreja.
Querença soube da morte da avó quando voltara da escola.
No delírio dos últimos dias da avó, Querença haveria sempre de umedecer
seus sonhos e florescessem e se cumprissem vivos. Era preciso reinventar a
vida, novos caminhos. Não sabia ainda como, estava estudando e ajudava a
ensinar as crianças da favela, participava do grupo de jovens a associação de
moradores e da escola. Intuía que era pouco. A luta devia ser maior ainda.
Olhou novamente a avó, desviou o olhar entre lágrimas e contemplou a rua:
Mistérios coloridos, cacos de vidro – lixo talvez – brilhavam no chão.
15. Maria
Narrador: 3ª pessoa
Personagens: Maria, Ex de Maria, ladrões e linchadores.
Maria esperava o ônibus.
Levava os resto da festa do dia anterior (tinha melão. Nunca comeram:
gostariam?) que ganhara da patroa e uma gorjeta, com a qual compraria remédios
(filhos menores com gripe) e uma lata de „Toddy‟. Palma de uma das mãos doía:
cortara na faca a laser [que corta até a vida]
Ônibus: reconheceu um homem. Ele sentou ao seu lado. Lembranças do passado.
Era o pai de seu filho mais velho. Porque não podia ser de outra forma? E o
menino, Maria, como vai? [cochichos] Sabe que sinto falta de vocês? “Tou
sozinho.” Ele não quis mais ninguém e perguntara sobre ela. Maria teve mais dois
filhos. Ficava com homens de vez e quando e... [buraco-saudade do peito dele]
O homem levanta sacando a arma. Lá atrás avisam que é assalto. O de trás recolhia
tudo. O motorista seguiu viagem. Silêncio. O comparsa do seu ex-homem passou
por e não pediu nada.
Os assaltantes desceram rápido.
Negra safada, vai ver que estava no coleio com os dois.
Calma, gente.
Foi a única a não ser assaltada.
16. E os xingamentos continuaram até:
Lincha! Lincha! Lincha!
Calma, gente.
Lincha! Lincha! Lincha!
Maria punha sangue pela boca, nariz e ouvidos. Sacola arrebentada: será que
os meninos iam gostar de melão?
Quando o ônibus esvaziou, quando a polícia chegou, o corpo da mulher
estará todo dilacerado, pisoteado.
Maria queria tanto dizer ao filho que o pai havia mandado um abraço, beijo,
carinho.
17. Quantos filhos Natalina teve:
Narrador: 3ª pessoa
Personagens:
Natalina alisou carinhosamente a barriga, o filho pulou lá dentro respondendo
ao carinho. Ela sorriu feliz. Era sua quarta gravidez e seu primeiro filho. Só
seu. Aquele filho ela queria.
Narrador fala das gestações anteriores:
1ª gravidez:
Quando menina (13 anos), do namoradinho Bilico. Não queria (vergonha), a
mãe deu muitos chás mas de nada adiantou.
Sá Praxedes (ideia da mãe) – fazia abortos – conhecida por „comer
criancinhas‟.
Natalina tinha medo dela (todas as crianças tinham). Fugiu de casa. Teve o
filho no hospital e doou para a enfermeira.
2ª gravidez;
Com peão de obra
Ele ficou feliz e lhe propôs casamento. Ela não queria. Deu o filho ao pai, que
foi embora para sua cidade natal.
18. 3ª gravidez:
Pedido da patroa que não poderia ter filhos. Teve relações com patrão até
engravidar. Cuidaram da gestante. Ao ganhar o bebê, entregou-o à patroa.
4ª gravidez:
Estupro. Homens invadiram o barraco dela perguntando-lhe pelo seu irmão.
Não tinha irmão, deixara suas 6 irmãs, mãe e pai há anos. Os homens
insitiam. Amarrada, levaram-na pra um lugar deserto durante a madrugada.
Em um dado momento, o carro parou e o homem que estava do lado dela
desceu, não sem antes passar – novamente – as mãos nas pernas dela – e
bater nas costas do motorista dizendo “bom proveito”.
Estalar de ramos secos.
Desceram do carro. Natalina foi estuprada. Depois tombou
sonolento ao lado dela. Ao se afastar dele, ela esbarrou na
arma. Ela dá um tiro certeiro e guarda a história só pra ela.
Guardou também a semente invasora daquele homem.
Estava feliz e ansiosa para ver aquele filho e não a marca de
ninguém, talvez nem dela. Sá Praxedes não iria comer nunca.
19. Beijo na face
Narrador: 3ª pessoa
Personagens: Salinda
Salinda lembrou do beijo dado na face na noite anterior. Algo tão tênue como os
restos de uma asa amarela, de uma borboleta-menina, que foi atropelada nos
primeiros instantes de seus inaugural voo. Ela estava aprendendo um novo
amor.
Tentou guardar pra si as melhores lembranças e retomar a rotina.
Mesmo estando entupida de alegria, precisava embrutecer o corpo. A vigilância
sobre seus passos, pretendia, se possível, abarcar até pensamentos.
Casada, infeliz, mãe de dois filhos, o marido desconfia dela, vigia. Aos poucos as
ameaças do marido foram ficando cada vez mais diversificadas e cruéis. (Tomas
acrianças, matá-la, suicidar-se). Salinda tinha medo, vinha adiando o
rompimento há anos.
Tia Vandu – acompanhara seus sofrimentos, cúmplice. Na casa da tia
aconteciam os encontros, era a guardiã do amor de Salinda.
Desfazia a mala, lembranças. Daqui a pouco o marido chegaria: como? Calmo
como na adolescência ou amargo quando reataram? [quem era o pai da
primeira filha dela?]
20. Reconhece; não devia ter reatado o namoro. Também reconhece: haviam
experimentado tempos felizes.
Mala. Lembranças. Filhos de férias na casa da tia Vandu [Chã de Alegria]. Filha
mais velha – maturação, 13 anos – sorriso – possível cumplicidade.
Demora do marido. Aflição. Lembrara das desconfianças [o colega de
trabalho], dos interrogatórios com as crianças. Medo.
Toca o telefone. Já sabia de tudo. Não ia matá-la, nem se matar, mas brigar
ferrenhamente pelos filhos.
Tentando equilibrar-se sobre a dor e o susto, Salinda contemplou-se no
espelho. No lugar de sua face viu a da outra. Do outro lado o rosto da amiga, a
força do amor entre duas iguais. Mulheres, ambas se pareciam. Altas, negras
com dezenas de dreads a lhes enfeitar a cabeça. Um leve e fugaz beijo na face,
sobra rasurada de uma asa de borboleta, se tornava uma certeza, uma presença
incrustada nos poros da pele e da memória.
21. Luamanda
Narração: 3ª pessoa
Personagens:
Consertou o vestido no corpo, observando o colo e o pescoço. As marcas da
idade não atingia ela, o máximo que disseram que ela tinha foi 35 [tinha 50]
Lua, Luamanda, companheira, mulher. Havia dias em que era tomada de
nostalgia. Lua no céu, Luamanda se desminliguia na terra. Lembrava da
primeira paixão.
Tinha onze anos, mas ficou só naquele romance de criança. A mãe descobriu,
aplicou-lhe uma surra. O amor dói? Desejou crescer, os pelos crescendo e seu
corpo se formando; cartinhas de amor... O amor é terra morta?
Aos treze anos, em um terreno baldio, perdeu a virgindade – o menino
também era virgem. Luamanda chorando de prazer. O amor é teerremoto?
Em outros tempos, vasta ezperiência, abortos sofridos: cinco. O amor é um
poço misterioso onde se acumulam águas-lágrimas?
Experimentou o amor de outras mulheres. No começo achou estranho, mas
depois de nada sentiu falta.
Depois, sua experiência com um rapaz bem mais jovem que ela. O amor não
cabe em um corpo?
Muitas experiências, com vários homens e mulheres de naturezas diversas.
Até que teve uma paixão avassaladora por um velho.
22. Nem sempre funcionava na hora do sexo, no entanto, foi no corpo do velho
que ela melhor executou o ritual do amor.
O amor é um tempo de paciência?
“Entre encontros e desencontros, Luamanda estava em franca
aprendizagem. Uma aprendizagem por dentro e fora do corpo. A cada amor
vivido, Luamanda percebia que a lição encompridava, mas que ainda faltava
testes, arguições, sabatinas e que ela sabia só um pouquinho ou talvez nem
soubesse nada ainda.”
Olhou-se no espelho, pensou em um poema em que uma mulher se
contempla procurando sua outra face.¹ Não era o caso dela, ela se
descobria sempre. Imaginou-se com os cabelos brancos sobre o rosto negro.
Distraiu-se; tinha um compromisso naquela noite. Outro amor a esperava.
Ouviu os assobios, saiu apressada. Podia ser que o amor já não suportasse
um tempo de longa espera.
¹ Poema: “Retrato” – Cecília Meireles.
23. O cooper de Cida
Narração: 3ª pessoa
Pernsonagens:
O Sol vinha nascendo molhado na praia de Copacabana. Cida – Cooper – uma
desportista natural. Corria o tempo todo querendo talvez vazar o minguado
tempo de correr.
Depois da corrida, padaria – jornal. Graças ao curso de leitura dinâmica, corria
os olhos pelas manchetes. Em casa, corria no banho, fervia o leite, se arrumava,
voava pro trabalho. Corria sobre a corda bamba invisível e opressora do tempo.
Era vencedora de outras distâncias. Já saltara montanhas e divisas de um tempo-
espaço ficara para trás. Não sabiam bem o nome da cidade natal, mas as pessoas
eram lentas. Desde pequena tinha o sentimento de urgência.
Aos nove menstruara. Sua brincadeira predileta era apostar corrida e desafiar
todos nos tempos gastos em qualquer tarefa. Vencia sempre.
Aos 11 foi pela primeira vez ao Rio com sua mãe – que reclamara da velocidade
dos carros. Cida adorou a cidade e descobriu outras pessoas com a mesma
urgência. Retornaria, tinham razão, a cidade era maravilhosa.
Aos 17 um tio lhe arranjara um emprego no Rio.
Trabalho, trabalho, trabalho.
Os amores tinham de ser breves.
Cursos – rápidos.
24. É preciso correr pra chegar antes, conseguir a vaga, o lugar ao sol, a fila pequena,
a lavanderia aberta, a metade da missa [mãe recomendara não perder a missa de
domingo].
Todas as manhãs, corria no calçadão. Corria contra ela própria, não perdendo e
não ganhando nunca. Mas, naquele dia: sentimento estranho, desejo de querer
parar. Lentidão de passos: viu o mar pela primeira vez. A princípio, monotonia,
previsibilidade da natureza. Mas a vida dela também assim era. Sentiu o
coração: não era uma máquina. A corda bamba do tempo era frágil, podendo se
romper a qualquer hora. Abandonou o calçadão e foi pra areia, afundou os pés e
contemplou novamente o mar.
Sentiu necessidade de arrancar os tênis que lhe prendiam os pés e deixou
aquelas correntes abandonadas ali mesmo. Ao olhar o mar, viu um nadador
brincando. Como era possível se divertir àquela hora? Eram 6h55min. Deveria
ser muito rico, pensou ela.
Saiu dali, a passos lentos. Quando chegou em frente ao prédio, o amigo já
esperava, completamente surtado pelo atraso dela. Ficou pior ainda quando a
viu em trajes de Cooper. Pensou que estivesse sido assaltada ou algo parecido.
Falou, esbravejou, mas ela só lhe olhava.
Depois de algum tempo, mandou-o ir trabalhar. Ela não iria naquele dia. Ia dar
um tempo para ela. Mas falou tão baixinho, como se fosse um momento único de
uma misteriosa e profunda prece.
25. Zaíta esqueceu de guardar os brinquedos
Narração: terceira pessoa.
Personagens: as gêmeas Zaíta e Naíta.
Zaíta e Naíta, gêmeas que viviam tirando a mãe do sério porque deixavam seus
brinquedos espalhados pelo chão.
Mãe, com duas filhas e dois filhos em um barraco de uma favela, trabalhava, mas
a vida estava cada vez mais difícil, filhos se metera com tráfico e drogas, andava
armado; ela não deixava que dinheiro dele entrasse em casa, mas, as vezes se
questionava se não valia a pena, jamais disse isso a alguém .
Zaíta sentiu falta de sua figurinha da menina que carregava flores, a figurinha
que ela mais gostava e que parecia exalar perfume. Não quis perguntar à mãe,
porque sabia que ia apanhar. Então, precisava achar a irmã. Naíta havia lhe
oferecido uma boneca negra, muito bonita, mas que só tinha um braço, Zaíta não
aceitou.
Na noite anterior, dormira com a figurinha debaixo do travesseiro; levantara-se
para ir à escola e, agora, já não estava mais lá. Saiu para a rua à procura da irmã.
Foi casa por casa e não a encontrou. A cada ausência de informação sua mágoa
crescia. Tinha o pressentimento de que a figurinha-flor não existia mais. Zaíta
andava de beco em beco à procura da irmã. Chorava. Lembrou-se da mãe. Iria
apanhar muito quando chegasse a casa. Tentava se lembrar de como a figurinha
havia ido parar em sua mão. Não conseguia.
26. A mãe deu falta das filhas, saiu a procurá-las e tropeçou naquele monte de
brinquedos espalhados pelo chão. Xingou, ficou com raiva, quebrou toda a
boneca negra bonita. Naíta, que estava escondida da irmã na casa ao lado,
ouviu o barulho e resolveu voltar para casa. Foi recebida com tapas e
safanões. A mãe mandou que fosse procurar a irmã.
Iria dar duas notícias de que a irmã não iria gostar muito: uma é que ela
perdera a sua figurinha e, a outra, é que a mãe estava braba com elas.
Zaíta, em sua busca pela irmã, acabou sendo assassinada por um tiroteio
ocorrido no morro, que envolvia o irmão dela. Cinco ou seis corpos, como o
de Zaíta, jaziam no chão. Quando Neíta viu a irmã, demorou um pouco para
entender. Aproximou-se do corpo dela e gritou:
- Zaíta, você esqueceu de guardar os brinquedos?
27. Di lixão
Narração: 3ª pessoa, por um narrador onisciente.
Personagem principal: Di lixão, um garoto de 15 anos.
Di lixão de 15 anos, morava com outro garoto, de 14 anos em uma favela. Um
dia, amanheceu com o dente doente e sentiu uma bola de pus no canto da
gengiva. Aquilo doía feito um inferno.
Acordou e deu uma cusparada no companheiro de quarto; o garoto em instinto
de defesa, pulou sobre ele e deu-lhe um pontapé nas partes baixas. Di lixão
estava apavorado de dor. Agora a dor de cima se juntava com a dor de baixo.
Pensou na mãe. Ainda bem que aquela puta tinha morrido. Sabia quem a
matara, tinha visto tudo, mas não dizia nada à polícia. Não gostava dela.
Ele era uma dor só. As dores haviam se encontrado. Doía o dente. Doíam as
partes de baixo. Doía o ódio. Queria mijar, mas tudo doía. O dia amanhecia
quente, mas ele sentia muito frio. Conseguiu urinar. Estava urinando sangue.
Passou a língua no canto da boca. O carocinho latejou. Num gesto coragem-
desespero levou o dedo em cima da bola de pus e apertou-a contra a gengiva.
Cuspiu pus e sangue.
Di lixão morrera ali mesmo, fora encontrado em posição fetal, morto, com um
filete de sangue saindo da boca entreaberta.
28. Lumbiá
Narração: terceira pessoa.
Personagem principal: Lumbiá, um menino negro.
Lumbiá, vendia amendoins e chicletes na rua, junto com a irmã e um amigo. Mas
do que ele gostava mesmo era de vender flores. Colorido em seus braços. E tinha
a manha para vender aos namorados homens e mulheres, mas que os iguais
também namoravam. E vendia muito!
Às vezes, sentava-se em uma mesa e fingia que chorava muito – muitas vezes,
não era fingimento, lembra-se da vida triste que levava e chorava de verdade; as
pessoas o ajudavam dando-lhe dinheiro.
Encantava-se com o Natal, mais especificamente, a imagem do menino Jesus.
Sentia-se parecido com ele em toda a sua pobreza, só faltava ser negro como ele.
Um dia, uma das casas comerciais iria armar um presépio no interior da loja e
abriria para visitação. O problema é que a criança sozinha não entrava; ele sabia
que se esperasse pela mãe dele, não o veria nunca. As crianças tentaram entrar,
mas os seguranças não deixavam.
23 de dezembro, fazia muito frio, a loja já quase fechando, quando o segurança
deu uma bobeira, ele entrou. Lá estava o Deus-menino de braços abertos. Nu,
pobre, vazio e friorento como ele. De braços abertos, o Deus-menino pedia por
ele. Erê queria sair dali. De repente, Lumbiá pegou o Deus-menino nos braços e
saiu correndo. O segurança tentou pegá-lo, mas o garoto fugiu. Atravessa a rua,
não vê o carro, o sinal aberto; é atropelado e morre.
29. Os amores de Kimbá.
Narração: terceira pessoa.
Personagens: Kimbá, Gustavo e Beth
Kimbá, jovem rapaz negro e pobre, que morava em uma favela carioca. Esse
apelido veio de um amigo rico, Gustavo, que morava na zona sul do Rio, que
dizia que o rapaz era parecido com um outro amigo que ele deixara na Nigéria.
Não gostava da vida que levava; não gostava do morro, nem de seus habitantes.
Extrema pobreza: morava com a mãe, as tias, a avó, duas irmãs e um irmão e um
pequeno barraco.
Achava-se muito bonito e atraente; tinha um belo corpo que chamava a atenção
de mulheres e homens. O susto: os homens também gostavam dele. Não se
acostumava.
Gostava de Beth, uma garota rica, que fora apresentada a ele pelo amigo que lhe
dera o apelido de Kimbá. Dia em que conhecera a garota, um encntro bom,
gostoso e cheio de safadezas.
Encontro a três. A garota ficou nua e Gustavo também tirou a roupa. Estranheza
em Kimbá, tira a sua roupa e faz sexo oral.
Depois Beth
Kimbá saiu daquele encontro de corpo leve. Feliz ou infeliz? Estava apaixonado
por Beth, mas e o amigo? Será que o homem ia dar em cima dele?
30. A situação se desenrolava: Beth estava apaixonada por Kimbá, ele por ela, mas
Gustavo também era apaixonado por Kimbá, porém nunca teve coragem de se
declarar. Incomodo ciúmes.
Kimbá teria de se decidir, combinaram um encontro em casa de Beth e fizeram
um pacto: a morte selaria o pacto de amor entre eles. A morte pelo amor dos três.
Quando ele chegou, Beth e Gustavo já estavam nus; tirou também sua roupa e
cada um tomou um copo de veneno. Deitaram-se e esperavam a morte chegar.
31. Ei, Ardoca
Narração: 3ª pessoa.
Personagem principal: Ardoca, um homem negro e pobre.
Ardoca, trabalhador, sempre convivera com os trens, mas que nunca se
acostumara com eles. Mesmo aos domingos, em casa, ouvia o barulho do trem nos
trilhos e isso o perturbava muito.
Uma tarde, caminhou em direção à estação, comprou o bilhete, entrou no trem,
encostou-se na parede e, lentamente, foi escorregando o corpo até chegar ao chão.
Uns tinham pena, outros diziam que estava bêbado; uma mulher deu-lhe um copo
de água. Ele suava frio. De repente, um rapaz veio abrindo caminho: Ei, Ardoca!
Ei, Ardoca! Pegou o homem no colo e levou-o até o banco, na rua.
Quando os passageiros viram, o trem já em movimento, o rapaz estava tirando
sapatos, relógios, roupa, enfim, estava assaltando Ardoca.
Não podiam fazer mais nada por causa da velocidade do trem. Também Ardoca já
estava sem vida. Havia bebido veneno e decidira morrer no trem. O barulho da
máquina sobre os trilhos entoava uma música réquiem de descanso eterno para
Ardoca. Amém.
32. A gente combinamos de não morrer
vários narradores.
Personagens: Bica, Mãe de Bica, Dorvi, Idago, Neo.
Dividida em partes, narradores diferentes e separada apenas por um espaço.
1ª parte – narração: 3ª pessoa, narrador onisciente.
Dorvi se lembra do juramento feito junto a outros meninos do morro: “ A
gente combinamos de não morrer”. Estava chorando, ao lado de uma lixeira na
qual jogaram o corpo de uma mulher que haviam matado. Era a fumaça,
pensou para justificar as lágrimas. Cheirou droga, lembrou-se do filho que
acabara de nascer, seu “putinho”, quis cutucá-lo com a ponta da escopeta, mas
Bica, a mulher, não deixou.
2ª parte – narração: Bica.
Medo, coragem, medo, coragemedo, coragemedo, dor e pânico. Uma festa.
Ouve barulhos de tiro e tapas; não gosta de tevê. Lembra-se do irmão Idago,
morto na favela com tiro. Vacilou, dançou. Meu neném dorme. Ainda me resto
e arrasto aquilo que sou.
33. 3ª parte – narração: inicia com terceira pessoa, e depois com a mãe de Bica.
A mãe de Bica e Idago está assistindo televisão; lá fora barulho interminável de
tiros. Decide se fixar na novela (adora) para esquecer o mundo real em que
vive. Teve dois filhos e alguns abortos provocados. Preferia viver a vida das
personagens a viver a sua. Fazia cinco anos da morte do filho – pobre garoto,
era calado e infeliz.
4ª parte – narração: Bica
Lembra do irmão (Idago) que teve morte merecida. Ali no morro, as regras
eram claras: falou, dançou. E ele era “bocudo”. Lembra que uma vez, na escola,
entregou a todos que roubavam merenda; os meninos pegaram-no e encheram
sua boca de pimenta. Ele tinha 11 anos, ela, 12.
5ª parte – narração: Dorvi
Pensa na vida: muita droga, violência, morte, exclusão social, injustiça. Quero
boiar no profundo fundo do mar. É lá no profundo fundo que eu vou construir
um castelo para a morada de meu filho. Bica, predileta minha, vai também. Ela
sabe que da ponta da escopeta também sai carinho.
34. 6ª parte – narração: Mãe de Bica
A mãe relata a preocupação dela para com a filha. Gostava de Dorvi; conhecia-o
desde criança, mas não era esse o futuro que queria para a filha. Sabia que ele
estava encrencado, conseguiria um ponto de droga, mas confiara na pessoa
errada e agora estava com problemas com os fornecedores.
7ª parte – narração: Dorvi
Dorvi sente que a morte se aproxima, o pior é que juraram: “A gente combinamos
de não morrer”, e agora ele teria de ir atrás do seu amigo. Mataria e morreria; o
juramento seria quebrado. O garoto reflete sobre como a sensação de perigo lhe
dava prazer; uma vez; chegou a gozar no meio de um tiroteio, tamanha era sua
excitação com a violência. Agora, sentia que seu corpo formigava. Vou matar, vou
morrer. É lá no mar que vou ser morrente. É no profundo do fundo, que
guardarei para sempre as lembranças do meu putinho e da dileta minha.
8ª parte – narração: Bica
O esperado acerto de contas aconteceu. Dorvi matara Neo, colega ali do morro e
estava sumido. Bica relembra de todos ali que cresceram juntos, meninos e
meninas. Adora escrever, inventar histórias. Escrever funciona para mim como
uma febre incontrolável, que arde, arde, arde... Gosto de ver palavras plenas de
sentido ou carregadas de vazio dependurados no varal da linha.
35. Palavras caídas, apanhadas, surgidas, inventadas na corda bamba da vida.
Bica tinha fome, mas não era fome de comida, era outro tipo de fome. Minha
mãe sempre costurou a vida com fios de ferro. Entre Dorvi e os
companheiros dele havia o pacto de não morrer. Eu sei que não morrer, nem
sempre é viver. Deve haver outros caminhos, saídas mais amenas. Lá fora,
muito barulho de tiros, muitos corpos no chão; e lembra que lera:
“Escrever é uma maneira de sangrar”.
36. Ayoluwa, a alegria do nosso povo
3ª pessoa, por um narrador onisciente.
Personagens: Ayoluwa
História de uma aldeia antes e depois do nascimento de Ayluwa.
Comunidade estava numa fase de total depressão: ninguém tinha mais ânimo
pra nada, escassez de tudo.
As pessoas morriam e matavam-se, sem razão de viver.
Até que um dia, em volta da fogueira, uma mulher anunciou: “Bamidele, a
esperança, anunciou ia ter um filho”.
Transformação.
Esperança, mas consciente das dificuldades – a maior: acreditar novamente
no valor da vida.
Ayoluwa não veio com a promessa da salvação, mas também não veio para
morrer na cruz. Ayoluwa, alegria do nosso povo, e sua mãe, Bamidele, a
esperançã, continuam fomentando o pão nosso de cada dia.